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Direito de resistência e desobediência civil a partir das visões de Hobbes e Thoreau

Direito de resistência e desobediência civil a partir das visões de Hobbes e Thoreau

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Discutem-se o direito de resistência, como gênero, e a desobediência civil, como espécie daquele, a partir da visão dos teóricos Thomas Hobbes e Henry Thoreau.

1. INTRODUÇÃO

O direito de resistência configura-se como a possibilidade de oposição popular à opressão imposta pelo Estado, recusando-se a cumprir leis que sejam manifestamente injustas ou opressoras. Este direito, em vários períodos históricos, recebeu tratamento diferenciado, tanto pelo viés filosófico, passando pelo viés político e também pela ótica jurídica.

A obra de Henry Thoreau, que pode ser encarada mais como um incentivo à resistência do que propriamente como um estudo sobre ela, traz em seu bojo críticas ao governo imposto, ou até mesmo ao governo eleito, considerando-o como uma mera conveniência que pode se tornar inconveniente. Este tema será tratado, com mais profundidade, no capítulo correspondente.

Além disso, é importante analisar que Thoreau trouxe à tona o conceito de desobediência civil, que enquadra-se como uma espécie do gênero direito de resistência. Quando este tema for devidamente discutido neste estudo, perceberemos que Thoreau vivia numa sociedade que tinha todos os elementos caracterizadores de um sentimento popular de insatisfação que pudesse gerar a resistência.

Por outro lado, é importante analisar também a visão de Thomas Hobbes, que utilizando-se de bases e parâmetros contratualistas, possui também uma análise acerca deste direito de resistência que, já no capítulo seguinte, será discutida e exposta.

Ainda se mostra importante a discussão da desobediência civil (e do direito de resistência como um todo) nas sociedades modernas, sobretudo nos Estados Democráticos de Direito, a exemplo do Brasil. O fundamento de validade de todo o poder político expresso na nossa Constituição, implicitamente, pode garantir aos brasileiros o direito de resistir. Há países, contudo, que preferiram deixar expresso este direito, como é o caso de Alemanha e Portugal. Neste aspecto, há uma discussão: a (in)compatibilidade deste direito com o Estado derivado do contrato social, onde o povo e o governo são sujeitos de direito e obrigações.

É desta forma, também, que se discutem os princípios da supremacia do Estado, da soberania popular e até mesmo do jusnaturalismo. Afinal, resistir à injustiça é garantir que o homem tenha direitos a si garantidos desde o estado de natureza, como a vida, a liberdade e a justiça propriamente dita. Aqui há a análise da (im)possibilidade de o contrato social poder, ou não, retirar estes direitos básicos. Aliás, se a relação é contratualista, também há por parte do governo o dever de não ser opressor nem injusto. Como o povo reagiria, então, à opressão ou à injustiça?

Esta reação popular, a conduta comissiva (de resistir ativamente a algum ato arbitrário, injusto ou opressor) ou a omissiva (deixar de cumprir mandamento opressor) pode se revelar como o único meio de defesa da população, conforme será analisado.

Enfim, este estudo buscará analisar a evolução histórica e o momento atual do direito de resistência, dedicando um capítulo especialmente para o caso brasileiro, fazendo um contraponto entre a Constituição cidadã de 1988, outras que a inspiraram, o fundamento de validade do direito de resistência (se é que ele existe) e a análise filosófica a partir dos teóricos adotados para esta discussão.


2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS SOBRE O DIREITO DE RESISTÊNCIA: VISÃO HOBBESIANA

Para compreendermos sob que bases se fundamenta o direito à resistência e irresignação da sociedade civil aos ditames estatais, faremos uma digressão pertinente sobre as ideias de Thomas Hobbes sobre o Estado – o estado soberano e limites de atuação individual dos seus súditos.

Thomas Hobbes é um dos expoentes do contratualismo – corrente filosófica que afirma que o estabelecimento da sociedade civil se deu devido a um contrato, no qual os sujeitos abrem mão de parte de sua liberdade individual, desfrutada livremente no Estado de Natureza, em prol da constituição do Estado, que deve ser comandado por um poder soberano, e tem como objetivo a segurança, a paz, a coesão social, o bem de todos.

O estado de natureza, para Hobbes, é uma condição pré-social na qual predomina o uso da força e da violência. Os homens, naturalmente egoístas, no estado de natureza não possuem quaisquer freios, são guiados apenas por suas paixões e estímulos animalescos. Os homens, embora dotados de racionalidade, no estado de natureza pouco fazem uso dela, devido ao caos estabelecido. O que predomina no Estado pré-social é a luta pela sobrevivência.

A percepção do caos aos quais estavam submetidos e o medo que os homens sentiam uns dos outros os levou a assinarem uma espécie de contrato social, no qual abdicavam parte de sua liberdade em prol da constituição sociedade civil, seja, em prol da coletividade. A limitação de ação do homem significa exatamente que com a constituição da sociedade civil este deixa de ser guiado apenas pelo seus próprios impulsos e transfere a um outro – o estado – a decisão acerca das questões os afete.

A partir deste momento da história humana a coesão social passou a ser vista como uma necessidade e uma consequência natural do Estado forte, no qual as decisões do soberano não deveriam ser contestadas, apenas obedecidas em benefício do bem comum que se reflete diretamente na sua segurança, na sua certeza que não sofreria agressões arbitrárias de outros homens injustamente.

O elemento volitivo (will) que em Hobbes substitui a origem divina do poder, funda a a representação e, por esta, “a relação jurídica do poder define-se, não só pela submissão da vontade, mas também pela troca de obediência por proteção”, ela vai adequar o “meio (cessão do direito) ao fim (preservação da vida). O individualismo hobbesiano exige que o poder provenha da vontade de cada um, e que este só obedeça o quanto e enquanto for racionalmente necessário para a sua vida. A obrigação dura apenas se o soberano me protege a vida; cessa, não somente se ele a ameaça, mas também quando deixa, embora malgrado seu, de garanti-la.

Desta forma, há duas possibilidades de interpretação sobre a possibilidade de resistência dos súditos aos poderes do soberano de acordo com o pensamento Hobbesiano: pode-se afirmar a existência dessa possibilitada ou refutá-la.

Com base na ideia de que Hobbes contemplou a possibilidade de resistência civil, desenvolvem-se duas linhas de pensamento ou hipóteses.  A primeira dessas se refere à liberdade dos súditos. De acordo com o seu entendimento, o súdito não é obrigado a obedecer nenhuma ordem do soberano que tente contra sua própria vida e sua integridade física. A segunda baseia-se no critério de utilidade do pacto. Hobbes afirma que, quando o soberano não é mais capaz de garantir a segurança, não se deve mais fidelidade ao pacto.

Outra opção possível, de acordo com seus pensamentos, é a inexistência de um direito à resistência. Quem se filia a essa corrente tece dois argumentos. O primeiro é o fato de que o contrato é baseado na transferência de resistência, não sendo coerente assumir que os homens mantém um direito que foi transferido e cuja transferência é o mecanismo que permite a instituição do poder soberano. O segundo baseia-se na constatação que, sendo o Leviatã o maior poder na sociedade civil, ele tem o poder de exterminar qualquer forma de resistência que a ele se oponha.

Esse pensamento se coaduna com a sua afirmação de que o soberano não deve obediência às leis. Neste sentido demonstra-se que o soberano se encontra fora dos limites do contrato. Não sendo o soberano parte do contrato, seria, portanto,  resultado dele, logo, a relação soberano x contrato social seria de transcendência, de anterioridade. Hobbes afirma ainda, que não estão obrigadas à obediência às leis as crianças, loucos e deficientes mentais. Esses podem desobedecer exatamente porque não se obrigam por nenhum pacto, dada a sua incapacidade para contratar:

Portanto é manifesto que todos os homens, porque nascem crianças (in infancy), nascem inaptos para a sociedade. Muitos também (talvez a maior parte), ou por defeitos de suas mentes, ou por falta de serem educados, continuam inaptos por toda a vida; e no entanto, eles têm, crianças ou mais velhos, natureza humana; por conseguinte, o homem é tornado apto para a sociedade não pela natureza mas pela educação. 

Frise-se que mesmo a corrente que afirma não haver espaço para o direito de resistência no arcabouço teórico Hobbesiano, admite que os homens podem desobedecer naquelas situações que envolvem a liberdade dos súditos, conforme já mencionado. Tratam-se de circunstâncias referentes a direitos que não podem ser transferidos pelo contrato social. Se não podem ser transferidos, evidentemente, são situações que se encontram fora do contrato social. A situação mais polêmica para essa corrente de pensamento é a desobediência na hipótese em que o soberano não pode mais garantir a segurança. Deve-se atentar para o fato de que os homens não deverem obediência quando a sua segurança não é garantida não é uma afirmativa de que os súditos podem valorar os atos do soberano. Se fosse dado aos súditos o poder de avaliar os atos do soberano e obedecer ou desobedecer conforme seu humor, todo o sistema estaria falido, havendo um retorno inevitável ao estado de natureza.

Nesse sentido, conforme todo o sistema de pensamento hobbesiano, quando da possibilidade de negação à obediência aos ditames do soberano, ele se refere aos casos de morte de soberania. No capítulo que trata da liberdade dos súditos no Leviatã, Hobbes afirma que os súditos só se mantêm obrigados enquanto a segurança for garantida e, no parágrafo seguinte, lista hipóteses de morte da soberania como a invasão externa, a guerra interna, a renúncia do monarca ao poder soberano. Deste modo, “a segurança está na definição da própria soberania. É poder soberano aquele poder amplo o suficiente para garantir a segurança. Assim, se o Estado não garante a segurança, não é Estado”.

 Conclui-se, portanto, que todas as hipóteses de desobediência elencadas por Hobbes se encontram fora do âmbito do contrato social. Neste sentido, se todas as hipóteses de desobediência estão inseridas aquém ao contrato social, significa que dentro do âmbito do contrato social não há espaço para a desobediência civil de acordo com o pensamento hobbesiano, que, contudo, pode ser superado pela análise dos Estados modernos.


3. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM HENRY THOREAU

No entendimento de Henry Thoureau, “o melhor governo é o que menos governa”, ou seja, o melhor governo é aquele que não governa de modo algum, devendo ser aplicado de forma rápida e sistemática, por ser o governo um artifício conveniente, mas a maioria dos governos é por vezes uma inconveniência.

Dentro desse contexto, o governo se mostra como uma conveniência pela qual os homens conseguem ficar em paz, inclusive uns com os outros, sendo assim, quanto mais conveniente ele for, mais paz trará aos seus governados.

A existência de um exército permanente levanta diversas objeções, que podem, ao seu fim, convir no protesto em face de um governo permanente. Este governo, como se sabe, foi escolhido pelo povo para executar a sua própria vontade, estando igualmente sujeito a abusos antes mesmo que o povo venha atuar através dele. Menciona-se como exemplo a guerra dos Estados Unidos da América contra o México, eis que fora conduzida por um pequeno número de indivíduos que utilizam o governo permanente como meio particular, mesmo sem o consentimento do povo.

Ao citar o governo norte-americano, Henry Thoureau aduz que este governo não tem a força e vitalidade de um único homem vivo, eis que um único homem pode fazê-lo dobrar-se à sua vontade, à medida que for sendo usado uns contra os outros. Nesse tocante, os governos são a prova de como os homens podem oprimir em proveito próprio, mostrando-se excelente, entretanto, este governo não estimula qualquer iniciativa, não mantém o país livre, não educa, sendo, por diversas vezes, um obstáculo.

Clama-se não já por governo nenhum, mas imediatamente por um governo melhor, deixando que cada homem indique que tipo de governo mereceria seu respeito, pois a razão de que uma maioria governe por um longo tempo, não significa que a maioria esteja provavelmente mais certa, nem que isso pareça mais justo para a minoria, mas sim, que a maioria é fisicamente mais forte.

Desta maneira, os homens servem aos Estado como máquinas, entregando os seus corpos, traduzem o exército permanente, sem qualquer livre exercício de escolha ou de uma avaliação moral, mas, constantemente são apreciados como bons cidadãos.

Reduzidamente, existem homens que servem ao Estado com a sua consciência e acabam resistindo, mais do que servindo, ao passo que o Estado trata-os geralmente como inimigos. Este sim, considera-se homem sábio, não sujeita-se à condição de “barro” a ser moldado para “tapar um buraco e cortar o vento”.

Para Henry Thoureau, o homem inevitavelmente se degrada pelo fato de estar associado ao governo vigente nos Estados Unidos, pois não há como considerar que o governo seja uma organização política que é também o governo do escravo.

Deve-se reconhecer o direito à revolução, de negar lealdade e de oferecer resistência ao governo diante da sua tirania e ineficiência. Extrai-se as palavras de Henry Thoureau para exemplificar a situação:        

Se alguém me dissesse que o nosso governo é mão porque estabeleceu certas taxas sobre bens estrangeiros que chegam aos seus portos, o mais provável é que eu não criasse qualquer caso, pois posso muito bem passar sem eles: todas as máquinas têm atrito e talvez isso faça com que o bom e o mau se compensem. De qualquer forma, fazer um rebuliço por causa disso é um grande mal. Mas quando o próprio atrito chega a construir a máquina e vemos a organização da tirania e do roubo, afirmo que devemos repudiar essa máquina. Em outras palavras, quando um sexto da população de um país que se elegeu como o refúgio da liberdade é composto de escravos, e quando todo um país é injustamente assaltado e conquistado por um exército estrangeiro e submetido à lei marcial, devo dizer que não é cedo demais para a rebelião e a revolução dos homens honestos. E esse dever é tão mais urgente pelo facto de que o país assaltado não é o nosso, e pior ainda, que o exército invasor é o nosso. (Página 03)

Ao citar William Paley, intitulando-o como uma autoridade em assuntos morais, que afirma que enquanto não se possa resistir ao governo estabelecido ou modificá-lo sem inconveniência pública, é a vontade de Deus que tal governo seja obedecido.

Analisando tal posicionamento, Henry aduz que Paley nunca levou em conta os casos em que a regra da conveniência não se aplica, nos quais um povo ou um indivíduo tem que fazer justiça a qualquer custo. Ressaltando ainda que o povo norte-americano tem que acabar com a escravidão e parar de guerrear com o México, mesmo que isso lhe custe a existência enquanto povo.

Ao tratar acerca do voto, ressalta-se que toda votação é um tipo de jogo com uma leve coloração moral. Henry indica que proclama-se o voto, talvez, de acordo com o critério moral, mas sem interesse vital de que o certo saia vitorioso, pois esta decisão cabe a maioria. Desta forma, o compromisso de votar nunca vai mais longe do que as conveniências, ao passo que o homem quando sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da maioria.

Há escassa virtude nas ações de massa dos homens. Quando finalmente a maioria votar a favor da abolição da escravatura, das duas uma: ou ela será indiferente à escravidão ou então restará muito pouca escravidão a ser abolida pelo o seu voto. A essa altura, os únicos escravos serão eles, os integrantes da maioria. O único voto que pode apressar a abolição da escravatura é o daquele homem que afirma a própria liberdade através do seu voto. (Página 04)

Com base na ideia de Henry Thoureau, nenhum homem tem o dever de se dedicar à erradicação de qualquer mal, pois ele pode ter outras preocupações que o motivem, no entanto, deve-se ter, no mínimo, a obrigação de não dar qualquer apoio prático à injustiça.

Existem leis injustas; devemos submeter-nos a elas e cumpri-las, ou devemos tentar emendá-las e obedecer a elas até à sua reforma, ou devemos transgredi-las imediatamente? Numa sociedade com um governo como o nosso, os homens em geral pensam que devem esperar até que tenham convencido a maioria a alterar essas leis. A sua opinião é de que a hipótese da resistência pode vir a ser um remédio pior do que o mal a ser combatido. Mas é precisamente o governo o culpado pela circunstância de o remédio ser de fato pior do que o mal. É o governo que faz tudo ficar pior. (Página 05)

Há seis anos sem pagar os impostos, Thoureau foi encarcerado e passou uma noite preso, mas, nem por um momento sentiu-se confinado, percebeu que o Estado era um idiota e perdeu todo o respeito que ainda tinha por ele, passando a considerá-lo apenas lamentável. A partir desta situação foi possível entender que o Estado nunca confronta intencionalmente o sentimento intelectual ou moral de um homem, mas apenas o seu corpo, os seus sentidos, sendo dotado apenas de mais força física. Sendo assim, Thoureau admite que deseja apenas negar lealdade ao Estado, mantendo-se indiferente a ele, declarando guerra, silenciosa, da sua maneira, embora continue a tirar vantagem do Estado enquanto puder. Fora solto, pois uma outra pessoa pagou o seus impostos. Por este fato, aduziu:

Se outros resolvem pagar o imposto que o Estado me exige, nada mais fazem além do que já fizeram quando pagaram o seu imposto, ou melhor, estimulam a injustiça além do limite que o Estado lhes pediu. Se eles pagam o imposto alheio a partir de um equivocado interesse pela sorte daquele que não paga, para salvar a sua propriedade ou para evitar o seu encarceramento, isso só ocorre porque não meditaram seriamente no quanto estão permitindo que os seus sentimentos particulares interfiram no bem geral. (Página 10)

De outro ângulo, acrescenta que ainda não surgiu um homem dotado de gênio para legislar o país, pois os que atuam ainda não aprenderam a distinguir o valor relativo do livre-comércio frente à liberdade, à união e à retidão.

Por fim, faz-se imperioso destacar que o progresso de uma monarquia absoluta para uma monarquia constitucional, e desta para uma democracia, é um progresso no sentido do verdadeiro respeito pelo indivíduo.


4. DIREITO DE RESISTÊNCIA E DESOBEDIÊNCIA CIVIL

O direito de resistência, e aqui se incluí a desobediência civil, constitui um instrumento de defesa social da ordem democrática, imbuído por um espírito jurídico ou político, que deve se pautar, sempre que possível, em ações constitucionais.

O direito de resistência pode ser vislumbrado como uma medida de justiça que se impõe quando as leis são injustas.

Analisando-se a obra de Ghidolin, pode-se afirmar que existem duas correntes a respeito do direito de resistência: a positivista e a naturalista. Quanto à posição positivista, podemos subdividi-la em duas espécies: a) extrema – as regras devem ser obedecidas porque são justas; b) moderada – as regras devem ser obedecidas para garantir a ordem e a paz; Tratando-se da posição jusnaturalista, também existem duas ramificações, quais sejam: a) extrema – admite que as leis só devem ser obedecidas se forem justas (aí reside a resistência); b) moderada – as leis podem ser injustas e devem ser obedecidas, salvo em situações excepcionais.

Diante destas considerações, faz-se necessário conceituar o instituto da resistência, que segundo Maria Helena Diniz (p. 181, 2005) tem a seguinte definição:

Direito reconhecido aos cidadãos, em certas condições, de recusa à obediência e de oposição às normas injustas, à opressão e à revolução. Tal direito concretiza-se pela repulsa a preceitos constitucionais discordantes da noção popular de justiça; à violação do governante da ideia de direito de que procede o poder cujas prerrogativas exerce; e pela vontade de estabelecer uma nova ordem jurídica, ante a falta de eco da ordem vigente na consciência jurídica dos membros da coletividade. A resistência é legítima desde que a ordem que o poder pretende impor seja falsa, divorciada do conceito ou ideia de direito imperante na comunidade. O direito de resistência não é um ataque à autoridade, mas sim uma proteção à ordem jurídica que se fundamenta na ideia de um bem a realizar. Se o poder desprezar a ideia do direito, será legítima a resistência, porém é preciso que a opressão seja manifesta, intolerável e irremediável.           

Quanto às leis injustas e sua relação com o direito de resistência, NADER (2010, p. 165) contribui com sua excelente doutrina:

A incompetência ou desídia do legislador pode levá-lo à criação de leis irregulares, que vão trair a mais significativa das missões do Direito, que é a de espargir justiça. Lei injusta é a que nega ao homem o que lhe é devido ou lhe confere o indevido. Um coeficiente das leis em desuso decorre na natureza das leis injustas.

Pelas razões elencadas acima, pode-se afirmar que o direito de resistência deve ser visto como um mecanismo de autodefesa da sociedade, que se insurge contra leis e governos injustos.

No que se refere à desobediência civil, pode-se afirmar que possui como maior expoente o doutrinador Henry David Thoreau (1817-1862), que defendia a ideia de que a desobediência civil está diretamente ligada à autoaprovação e como alguém pode estar em boas condições morais enquanto “escraviza ou faz sofrer outro homem”.

Para Maria Helena Diniz (p. 120, 2005) a desobediência civil consiste na:

Possibilidade de um grupo social, ou de um cidadão, agindo conforme sua consciência e protegido pela Constituição, opor-se a um princípio constitucional. 2. Exercício de direito de resistência passiva por parte de certo grupo social resultante do descumprimento de lei ou de ato governamental contrário à ordem jurídica ou à moral pública (...)

Neste diapasão, a desobediência civil deve ser entendida como um verdadeiro método indireto de participação da sociedade, já que não dispõe de suficientes canais participativos junto às esferas do Estado, que necessitaria deles para poder presentear-se como ente político legítimo. O problema da desobediência civil tem um conteúdo simbólico que geralmente se orienta para a deslegitimação da autoridade pública ou de uma lei, como a perturbação do funcionamento de uma instituição, com o intuito de atingir as pessoas situadas em seus centros de decisão.

Neste contexto, o atual filósofo americano RAWLS (1981, p. 273) complementa que a: “(...) desobediência civil como ato público, não-violento, consciente e, apesar disto, político, contrário à lei, geralmente praticado com o intuito de promover modificação na lei ou práticas do governo.”


5. DESOBEDIÊNCIA CIVIL E ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito guarda como uma de suas principais características a submissão legal do próprio Estado às leis que emana. Em contraposição ao regime absolutista, marcado pela figura de um monarca que ditava as normas e não precisava vincular-se a elas, o regime democrático de direito tem por escopo a preservação da ordem jurídica e visa evitar arbitrariedades que possam ser praticadas pelos governantes. Povo e governo sujeitos à mesma ordem jurídica conduzem a um ideal de sociedade onde a figura da lei paira sobre todos.

Ainda que soe incoerente numa análise inicial, a vinculação do criador da lei à sua própria criatura é quase realidade nos estados democráticos atuais. Pelo menos em tese, as constituições dos países que trazem democracias modernas preveem alguns elementos fundamentais, como a tripartição de poderes proposta por Montesquieu. Dentro desta tripartição, o Poder Legislativo, a quem incumbe elaborar as leis em sentido estrito, está submetido à própria atividade legislativa.

Dentro deste contexto, pode-se pensar que o povo está em pé de igualdade com o seu governo, já que ambos se submetem ao mesmo regime. É, contudo, descabido afirmar tal coisa. Isto porque existem leis injustas e a disciplina legal vinculativa a todos prevê vantagens ao governo em relação aos cidadãos, em nome de um dito Interesse Público. Este interesse, por vezes, é confundido com os interesses do governo. A linha é tênue. Ainda que o governo represente o povo em primeira análise, este deve ser visto como uma pessoa jurídica na ordem interna. Ou seja: o governo deve ser visto e encarado como um sujeito de direitos e obrigações, ainda que estes direitos e obrigações sejam criados por ele mesmo. É neste ponto que analisamos que o povo muitas vezes não tem suas aspirações plenamente atendidas, posto que seu interesse é substituído pelo interesse do governo – que, por sua vez, defende-se dizendo que o interesse governamental é o mesmo interesse público. Nasce aí o direito de resistência, o direito de desobedecer.

O nascimento do direito de resistência ocorre neste ponto porque I – o sistema idealizado não está funcionando corretamente, pois o poder do povo está sendo substituído pelo poder de poucos e II – a partir do momento em que enxergamos a sociedade como um jogo onde todos seguem regras, o jogo torna-se injusto a partir do momento em que alguém cria as regras do modo que lhe sejam mais favoráveis. Como o povo não dispõe de instrumentos eficazes para combater esta prática, passa então a promover a sua própria revolução, resistindo à dominação imposta em forma de democracia forjada. Mas será que esta resistência está em concordância com a ideia de estado democrático de direito? Deve-se analisar como, neste modelo de sociedade e de Estado, o poder se origina e como se dá a dinâmica do processo político.

Como objeto de análise, o sistema jurídico-político do Brasil traz em sua Constituição Federal a premissa de que “todo poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes, na forma da lei”[1]. Dizer que o poder, ou ainda, que todo poder emana do povo é legitimar seu direito de resistência. Isto porque os poderes instituídos para dar forma o governo também emanam do povo, e apenas ele pode ditar-lhe os rumos. Assim pontua Cavalcante (2006):

A desobediência civil é a maneira legítima que o cidadão possui para agir em nome de seus interesses e garantir a efetivação de direitos da minoria quase sempre oprimida pela vontade da maioria, sem violência e em nome da defesa de direitos e garantias constitucionais, resistindo a atos e a leis injustas ou opressivas, objetivando sua revogação ou anulação, sempre embasada em princípios maiores como o da cidadania e da soberania popular.           

O excerto nos conduz também a análise de outros fatores. Um deles é a questão da vontade da maioria. Em sua clássica obra “A desobediência civil”, Thoreau[2] fala sobre a opressão da maioria em relação à minoria. Para ele, o exercício da vontade da maioria na sociedade não se justifica por ser mais justo ou por ser uma forma mais branda para que a minoria legitime esta vontade. Thoreau diz que a vontade da maioria é levada em conta apenas porque, fisicamente, esta é mais forte que a minoria. É, contudo, periclitante a dominação de uma maioria que de fato oprime ou manifesta sua vontade por leis injustas. Por que a minoria teria de aceita-las? E quando o governo, expressão da vontade de maioria, quebra o laço que tem com esta e passa a oprimir maioria e minoria?

Aliás, é importante destacar que embora o governo seja o retrato da vontade de uma maioria, é plenamente possível que este se desvincule da vontade daqueles que lhe conferiram o poder. Um governante, em atividade política buscando a sua eleição, pode transmitir ideias e projetos que satisfaçam a maioria, mas que, em verdade, este só os utilizou com o fim de ser eleito – seus planos governamentais são bem distintos. Então a análise passa a ser feita a partir de uma abordagem indutiva: se o poder emana do povo e este se executa por um representante eleito por um determinado período de tempo, o povo, a qualquer momento, pode desobedecê-lo e desobedecer leis injustas e opressoras. Isto porque a vontade do povo, titular único do poder, detentor da soberania popular, está sendo ferida por aqueles que deveriam defender as aspirações sociais.

É por isto que o direito de desobedecer, em uma análise sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, é quase que um fundamento da República. Embora não diga isso de forma expressa como as constituições da Alemanha[3] e de Portugal[4], a Constituição Brasileira cria uma lógica favorável a este entendimento. As expressões do direito de resistência não consistem necessariamente em violência ou em anarquia – pelo contrário, podem ser encontradas em movimentos sociais reivindicatórios comuns, como greves de trabalhadores contra práticas injustas, como leciona Maurício Gentil[5]:

Na prática, as greves são deflagradas em movimentos de reivindicação por melhores salários, melhores condições de trabalho, em busca do atendimento e da efetivação das normas do artigo 7º da Constituição, o que por si só já se pode chamar de direito de resistência, uma vez que, ao paralisar o serviço, está-se resistindo à opressão patronal, que desrespeita os direitos humanos dos trabalhadores que deliberaram pela greve, mais especificamente os chamados direitos fundamentais de segunda geração ou dimensão.

Ao contrário da concepção de que no Estado Democrático de Direito todos devem sucumbir, é válida a tese de que neste Estado a garantia fundamental é a resistência à ordem injusta. Reconhecer o povo como soberano, titular de todo poder, é permitir-lhe a insurgência contra a injustiça e a opressão impostas por poucos representantes eleitos que traem os próprios fundamentos da sua eleição. A resistência é expressão do povo em defesa da sua soberania, e contra o ataque a ela. Injustiça e opressão, afinal, ainda que ataquem apenas determinadas parcelas da sociedade, são uma ofensa à base de todo o poder: o povo.

Negar a resistência é negar a soberania popular. É favorecer o sistema engessado de leis e normas emanadas por representantes em detrimento daquilo que o povo realmente anseia. Aliás, é possível até classificar, no Estado Democrático submisso às próprias normas, o direito de resistência como um direito de defesa da própria autoridade que o povo possui, e que, sendo titular de todo o poder político, passa a defender-se contra as injustiças, opressões e arbitrariedades perpetradas.


5. CONCLUSÃO

Pelo delineamento deste estudo, podemos concluir que a desobediência civil pode ser analisada sob vários ângulos e aspectos. Primeiro, na perspectiva de Hobbes, percebemos que não existe campo de incidência da desobediência dentro do contrato social. As hipóteses de desobediência “hobbesianas” são todas fora do contrato social.

Além disso, para Thoreau, a desobediência civil deve ser entendida como um verdadeiro método indireto de participação da sociedade, pois esta não possui canais eficientemente participativos junto à tomada de decisões do Estado, encontrando no direito de resistência a sua forma de expressão de vontade e discordância quanto à opressão ou injustiça praticada pelo governo (soberano).

E, por fim, percebemos que no Estado Democrático de Direito é possível ocorrer a desobediência civil, visto que o poder popular é fundamento de validade para todos os outros no caso brasileiro, ainda que não haja disposição legal expressa. Além disso, constituições de outros países trazem possibilidades expressas do direito de resistir, como a constituição alemã e a constituição portuguesa. É, derradeiramente, clara a possibilidade de oposição à injustiça e à opressão por meio da desobediência civil num estado que tem o povo como titular de todo o poder.


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

GARCIA, Maria. Desobediência civil: direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais , 1994.

GHIDOLIN, Clodoveo. Jusnaturalismo ou positivismo jurídico: uma breve aproximação. Disponível em: <http://www.fadisma.com.br/arquivos/ghidolinpdf.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2014.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Martin Claret, São Paulo, 2006.

MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150-153.

NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Vamireh Chacon. Brasília: UnB, 1981.

THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,. 1997. p.5 - 56. Comentário e hiperlinks: Sérgio Bellei (UFSC).


Notas

[1] Constituição da República Federativa do Brasil. Artigo 1º, parágrafo único.

[2] THOREAU, Henry David. A desobediência civil. Tradução: Sérgio Karam. Porto Alegre: L&PM,. 1997. p.5 - 56. Comentário e hiperlinks: Sérgio Bellei (UFSC).

[3] Artigo 20 da Constituição Alemã: “(...) 3. O poder legislativo está vinculado à ordem constitucional; os poderes executivo e judiciário obedecem à lei e ao direito. 4. Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm direito de resistir contra quem tentar subverter essa ordem”.

[4] Artigo 7º da Constituição Portuguesa: “(...) 3. Portugal reconhece o direito dos povos à autodeterminação e independência e ao desenvolvimento, bem como o direito de insurreição contra todas as formas de opressão”.

[5] MONTEIRO, Maurício Gentil. O direito de resistência na ordem jurídica constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 150-153.


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ARAÚJO, Luis Felipe; GOMES, Lucianne Fabrizia Santana et al. Direito de resistência e desobediência civil a partir das visões de Hobbes e Thoreau. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4284, 25 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32322. Acesso em: 28 mar. 2024.