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Novas ferramentas tecnológicas como meios auxiliares para a consolidação de uma polícia cidadã

o uso da pistola taser aplicado a protocolos de proteção social

Novas ferramentas tecnológicas como meios auxiliares para a consolidação de uma polícia cidadã: o uso da pistola taser aplicado a protocolos de proteção social

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A técnica policial do uso progressivo da força e a utilização de ferramentas não letais, como a “pistola de choque” ou taser, são estratégias integrantes de protocolos de segurança que orientam as atividades de uma policia cidadã.

Este trabalho surge da necessidade de se firmarem posicionamentos inerentes à utilização de novas ferramentas tecnológicas colocadas à disposição das forças de segurança pública, quanto à questão de solução de conflitos e controle de pessoal.  Na atual realidade brasileira a sociedade merece e exige a prestação de um serviço de segurança pública pautado na cidadania, com a observância de condutas voltadas para o respeito à dignidade humana. Dentro desse contexto, a técnica policial do uso progressivo da força e a utilização de ferramentas não letais, como o Dispositivo de Condução de Energia (“pistola de choque” ou taser), são estratégias integrantes de protocolos de segurança que orientam as atividades de uma polícia cidadã. Foi realizada pesquisa bibliográfica, exploratória e descritiva. Assim, a partir da análise sob a ótica da doutrina, da técnica e da jurisprudência brasileira, afirmamos que, em determinados casos, é possível o uso dessa ferramenta, sob a égide da legalidade, contra cidadãos que estejam sob suspeita de terem cometido ilícitos penais e que se encontrem em situação de fuga. 

PALAVRAS-CHAVE: Dignidade humana, Polícia, Fuga, Taser. 


INTRODUÇÃO.

O instinto de sobrevivência e o sentimento de liberdade são condições inerentes a, basicamente, todos os seres vivos. São sentimentos naturais. É algo inato ao homem.

Tendo como ambiente uma sociedade complexa, heterogênea e contemporaneamente inserida em um contexto de globalidade, podemos afirmar que o Estado, como agente garantidor do bem comum e da paz social que é, traz, dentre suas obrigações primeiras, a função de proporcionar aquela condição natural do cidadão enquanto ser humano. Nas suas condições de agente mantenedor da paz social - está sob a ótica estrita da segurança pública -, entendemos que aquela função se traduz na observância de uma condição tal onde o servidor público, enquanto agente garantidor, tenha possibilidades de se nortear, dentro das diversas situações apresentadas, por um protocolo de ação que seja pautado no mais estrito cumprimento de condutas onde o respeito aos direitos humanos seja a regra, onde o respeito à dignidade da pessoa humana seja o princípio orientador da conduta do homem público.

Assim, sob a leitura da segurança pública, essa observação e respeito àquela condição primeira não pode se traduzir em um não agir, em uma omissão, leniência ou passividade por parte do agente estatal. Pelo contrário, deve se pautar em um agir eficaz, dentro dos limites e possibilidades estabelecidos pelo arcabouço Legal vigente na sociedade, o que podemos afirmar ser a real necessidade do uso progressivo da força, em dada situação afeta à resolução de conflitos sociais.

Dentro desse contexto (uso progressivo da força), a utilização de um instrumento não letal pelas forças de segurança pública, um dispositivo de condução de energia conhecido como pistola de choque ou taser, já vem há algum tempo marcando presença no ambiente nacional. Essa ferramenta, advinda das inovações tecnológicas e colocada a serviço da proteção dos direitos humanos daqueles atores envolvidos em determinado cenário de segurança pública, surge, na realidade policial brasileira, com o objetivo de contribuir para a diminuição da violência desarrazoada e desproporcional, em face às condutas dos agentes estatais, bem como para equipar o servidor público com uma ferramenta que lhe auxilie no trabalho de resolução de conflitos.

Logo, quando o assunto é a utilização da pistola taser, sempre que houver situações de enfrentamento pautadas por ameaças ou violências não letais, sendo possível, o uso de tal instrumento será regra. Entretanto, quando existir uma ameaça indireta (onde não há o enfrentamento direto ao agente público, mas sim uma situação de tentativa de escape) uma pergunta se faz necessária: é razoável, sob o prisma de uma conduta respeitadora dos direitos humanos, utilizar-se de tal ferramenta em situações onde ocorre a fuga de pessoa(s) envolvida(s) em determinado contexto policial? Se a pessoa envolvida em determinada ocorrência, em dado momento empreender fuga, é razoável ao servidor público fazer uso da taser? É o que nos propomos, neste trabalho, a debater, tentar esclarecer e firmar posicionamentos.

Discorreremos, então, sobre a ótica da doutrina, da técnica e da jurisprudência brasileira quanto à questão do uso da “pistola de choque” taser em ocorrências policiais onde cidadãos suspeitos do cometimento de algum ato ilícito empreendam fuga, isto é, não estejam ameaçando direta e imediatamente a integridade física de outras pessoas do povo nem do agente público. Então, ao final, respondermos se essa ferramenta, sob a égide da legalidade que norteia o Estado democrático de direito, tem possibilidade de ser utilizada contra cidadãos em fuga.


A OBSERVÂNCIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS ATIVIDADES POLICIAIS.

Como reflexo da profunda desigualdade social que impera na realidade brasileira, que vem desde a época em que éramos colônia portuguesa e foi se potencializando, em grande parte devido à gestão de nossos mandatários, até os dias atuais, observa-se um vasto histórico de violência policial, principalmente sobre as camadas mais modestas da população. Tal violência, entendida por Souza Neto (2009) como forma de manter a ordem, mas não de preservar a lei, fez com que se legitimassem ações policiais truculentas e prisões arbitrárias, ao arrepio da Lei posta e tendo como base não a legalidade, mas decisões políticas.

Em regra, essas práticas se articulam com um olhar seletivo, que constitui “inimigos da ordem”. O papel geralmente recai sobre os negros e os moradores das favelas, que figuram como alvo principal da persecução criminal. Trata-se da conhecida “reação em cadeia da exclusão social”, que atinge parte considerável da população brasileira, reduzida à condição de “subcidadania”.[2]  

Nesse sentido, hodiernamente, dos casos que povoam a mídia nacional, só há espaço àqueles mais graves. Entretanto, essa violência é muito mais presente do que imaginamos. A manutenção da ordem pública é, indubitavelmente, um dos principais bens coletivos da sociedade moderna. O Estado, como provedor do bem comum e primeiro responsável pela efetivação e manutenção da paz pública, tem o dever de zelar pela preservação do patrimônio dos cidadãos e de suas respectivas integridades físicas. Assim, os conflitos sociais derivados de indivíduos com comportamentos desviantes são manejados, nas sociedades modernas, por organizações públicas especializadas na efetivação de mecanismos de controle social (SAPORI, 2010)[3]. A manutenção da ordem deve ser efetivada mediante a obediência da Lei. Então, como bem sintetiza Sapori (2010), vigora no Estado democrático de direito, nessa ótica, a máxima “ordem sob lei”.

Pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, de 1948, o homem é reconhecido, na sua eminente dignidade, como tendo direito a ter direitos (EUGÈNE ENRIQUÉZ, 2006).

O princípio da dignidade da pessoa humana, no Direito Internacional dos Direitos Humanos, está positivado em, pelo menos, quatro Ordenamentos internacionais (MONSALVE; ROMAN, 2009). Na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948) há três alusões explícitas, sendo uma delas no preâmbulo: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos; a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948) traz cinco referências à ideia de dignidade: art. 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade; na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica, 1969) há três referências ao princípio da dignidade humana, nos artigos 5º, 6º e 11; e por último, na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Belém do Pará, 1994), também com três artigos explícitos sobre dignidade: a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana.     

Internamente, a Constituição Federal de 1988 elegeu como um dos fundamentos em que está embasada nossa Nação, como Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana. A Constituição traz, já em seu primeiro artigo, a dignidade da pessoa humana como um dos pricípios fundamentais da República Federativa do Brasil.

Mas o que é dignidade humana? Ao ponderar o princípio da dignidade humana, Piovesan (2008), citando Carmen Lúcia Antunes Rocha[4], aduz que “é no princípio da dignidade humana que a ordem jurídica encontra o próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada”. A dignidade humana, em seu sentido mais profundo e sensível, é que deve nortear todo o arcabouço legal que rege a vida em sociedade. É nesse fundamento primeiro que se há de buscar a fortaleza orientativa no sentido de resolução dos conflitos, que são inerentes às relações humanas no tecido social de dada comunidade.   

Dignidade é o pressuposto da ideia de justiça humana, porque ela é que dita a condição superior do homem como ser de razão e sentimento. Por isso é que a dignidade humana independe de merecimento pessoal ou social. Não se há se ser mister ter de fazer por merecê-la, pois ela é inerente à vida e, nessa contingência, é um direito pré-estatal.[5]

 A dignidade da pessoa humana está no íntimo do ser, enquanto ente individual e único. Sarlet (2001) afirma que essa dignidade é a garantia de que a pessoa não será submetida a tratamento degradante e que, por conseguinte, terá a garantia de condições existenciais mínimas. Todavia, há de se ponderar que essas condições mínimas de existência não podem ser vistas sob a ótica da imutabilidade ou da invariabilidade, pois a confecção do tecido social afeto a determinado contexto histórico é que ditará aquelas condições.

A qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos[6].   

Para Monsalve e Román (2009), a noção de dignidade humana pode ser abordada a partir de uma grande variedade de perspectivas e disciplinas, pois é uma ideia que tem aplicações em diversas esferas da vida humana. Entretanto, tratamos aqui sob um viés de resolução de conflitos onde, notadamente, exista alguma espécie de violência como premissa.

A história recente do país está repleta de exemplos de casos em que as entidades que mais desrespeitaram e violaram a dignidade humana de cidadãos foram aquelas ligadas à segurança pública. E aqui, sem espaço para divagações, pode-se afirmar que a instituição policial é tida como expoente daquelas condutas arbitrárias onde, para que a ordem fosse mantida, violava-se a lei.

Mas o que é Polícia? Em forma simples e concisa, Polícia é uma função do Estado que se concretiza numa instituição de administração positiva e visa a por em ação as limitações que a lei impõe à liberdade dos indivíduos e dos grupos para salvaguarda e manutenção da ordem pública (BOBBIO, 1998).

A Constituição Federal, em seu art. 144, determina que a segurança pública seja exercida para a “preservação da ordem pública”, “da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Ocorre que, conforme Souza Neto (2009), o uso da noção de “ordem pública” – que é um conceito jurídico indeterminado – serve para distintas justificações nos mais diversos contextos. Ressalta que a cultura de “manter a ordem” nem sempre está atrelada à de preservar a lei, pois em tempos autoritários recentes mantinha-se a ordem mesmo que tivesse de não se preservar a lei, e nas instituições policiais brasileiras essa visão ainda tem resquícios de presença.

Uma ordem pública democrática, em contraste, é aquela estruturada pela Constituição e pelas leis. Preservar a ordem pública significa, sobretudo, preservar o direito, a ordem juridicamente estruturada, garantir a legalidade. Politicas públicas e ações policiais que desconsiderem os direitos fundamentais transgridem, até não mais poder, a própria ordem pública que querem preservar[7]

Quando se trata de exigibilidade da observância do princípio da dignidade humana pelas forças policiais, Greco (20009), ao citar José Alaya Lasso, afirma que as consequências pelo descumprimento das leis, por parte das forças policiais, são extremamente maléficas ao corpo social em que estão inseridas. Em verdade, a partir do momento em que o servidor policial viola a Lei e comete atos em desalinho com o que ele próprio representa, passa a ser entendido, individualmente, como mais um desajustado social, ficando a visão institucional, perante a sociedade, extremamente obscurecida e desacreditada. Esse tipo de conduta normalmente se baseia no simbolismo de violência e belicismo, que efetivamente está atrelado à imagem policial. Além disso, a reconstrução da imagem institucional perante determinada comunidade torna-se muito dificultosa, pois se faz necessária a realização de longos e demorados trabalhos a fim de se obter, novamente, a confiança da sociedade.       

Quando um responsável pela aplicação da lei viola a lei, o resultado é, não apenas um atentado à dignidade humana e à própria lei, mas também um erguer de barreiras à eficaz atuação da policia. As violações da Lei por parte das forças policiais têm múltiplos efeitos práticos.[8]

Ainda, esse desrespeito isola a polícia da comunidade comprometendo a noção de “aplicação da lei” ao lhe retirar o elemento “lei”, diminuindo a confiança do público e contribuindo, sobremaneira, para o saliente descrédito da instituição e de seus integrantes.

Em sentido contrário, o respeito dos Direitos Humanos pelas forças policiais reforça de fato a eficácia da atuação dessas instituições, fortalecendo a confiança e estimulando a cooperação da comunidade, contribuindo para a solução pacífica dos conflitos.  A polícia passa a ser vista como parte integrante da comunidade, alavancando os resultados positivos tanto na prevenção quanto na solução de crimes. O policial passa a ser visto como um membro da comunidade, inserido em sua realidade rotineira. Ele é tido como um agente que trabalha em prol da paz social, do bem comum. Não há receios por parte integrantes da comunidade, pelo contrário, há aproximação, certa intimidade. 

Os agentes policiais e serviços responsáveis pela aplicação lei que respeitam os direitos humanos colhem, pois, benefícios, que servem os próprios objetivos da aplicação da lei, ao mesmo tempo que constroem uma estrutura de aplicação da lei que não se baseia no medo ou na força bruta,  mas antes na honra, no profissionalismo e na dignidade.[9]

Entretanto, consoante ainda o pensamento de Greco (2009), a dignidade da pessoa humana não possui caráter absoluto, mas deve ser ponderada à luz do caso concreto. Ao exemplo de criminoso que é condenado à pena privativa de liberdade onde, em vista do ato cometido, terá sua liberdade cerceada a fim de cumprimento de sua pena.

Dito isso, entendemos que o policial é, por natureza profissional, o garantidor da aplicação da Lei. Ele é o representante do Estado. Ele é a face mais tangível do Estado para a maior parte da população brasileira (SOARES, 2006). Esse simbolismo existente na figura do policial denota referência de honra, de legalidade, auxílio e proteção, voltada para uma sugestão pacificadora.

O uniforme de um policial é sua vestimenta funcional, mas é também uma mensagem dirigida à sociedade, na qual se reafirma a autoridade de quem a veste. A farda neutraliza a singularidade do indivíduo que a veste, substituindo-a por um papel público, cujo portador torna-se um agente público, cumpridor de funções institucionalizadas[10].

A presença policial exala segurança, respeito e obediência. Não ao indivíduo em si, mas uma obediência velada ao Estado, este que, em uma análise simples, nada mais é do que o regulador da sociedade, do conjunto de homens e mulheres que se reuniram para conviver e progredir pacificamente, aceitando e obedecendo as regras postas. Esse Estado, na seara da segurança pública, ali representado na figura do agente, tem por finalidade servir ao corpo social, logo, é totalmente desconexo tal agente cometer um ato ilegal, pois ele é um servidor do povo (nas diversas nuances que esse conceito abrange) e escolheu por profissão servir e proteger.

Os policiais são contratados para fazer com que leis reguladoras da vida da sociedade sejam observadas. Juram, solene e publicamente, cumprir a lei para servir a sociedade, logo que passam a integrar a instituição. A mera presença do policial, quando uniformizado na rua, significa que a sociedade é regulada por leis e que há uma instituição na rua para garantir seu cumprimento. Não faz sentido para o  cidadão mais indiferente ou para a criança mais inocente que um policial possa descumprir a lei.[11]

A Lei impõe ao agente a condição de garantidor ao lhe atribuir que “tenha por lei, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”[12].

No último quartel do século vinte, um quarto direito de cidadania – os direitos públicos ou, mais precisamente, os direitos republicanos – está sendo definido e precisa ser melhor positivado e efetivamente garantido (BRESSER-PEREIRA, 2014). Aqui, esse autor trata mais especificamente do patrimônio público, porém, em uma visão mais estrita, entendemos que esses direitos republicanos ora inseridos no conceito de cidadania também representam o direito à prestação de serviços públicos, mormente aqueles afetos à segurança pública, pautados pelo profissionalismo e em rigorosa observância à dignidade humana. Profissionalismo no sentido de que o agente seja conhecedor de seu ofício, e esse conhecimento abarca, inclusive e principalmente, o trato com o cidadão, mesmo quando este tenha cometido um ato ilícito.


DISPOSITIVO DE CONDUÇÃO DE ENERGIA (PISTOLA TASER) NA REALIDADE POLICIAL BRASILEIRA.

A década de 1990 transformou o planeta. Novas tecnologias, ideias revolucionárias e mudanças de conceitos fizeram com que o mundo se transformasse consideravelmente.  As novas tecnologias diminuíram distâncias e tornaram o termo “instantaneidade” uma realidade presente.  As consequências dessa nova fase de vida planetária refletem-se tanto na esfera política quanto na econômica. Na seara política o mundo tornou-se mais democrático, com novos países aderindo ao melhor sistema político até hoje produzido pelo homem, a democracia.  Na esfera econômica, o advento de novas invenções, descobertas e produções tornou o comércio internacional e o fluxo internacional de capitais muito mais incentivados, presentes e reais, com um aumento enorme da demanda consumista.

Ao longo do século a ciência foi ganhando peso, expressão, houve a união da ciência com a técnica, ambas passaram a ser utilizadas pelo mercado, o mercado se expande planetariamente e quando as técnicas que vieram do século passado se juntam, nos últimos 25 anos, à técnica da informação, então se criam as condições para a criação de um mundo só, que não havia até então, e aí imagino que é isso que permite falar hoje de globalização, nesse sentido de construção de um mundo que funciona de forma unitária.[13]

Pode parecer redundante, mas a inexorável marcha social é transformadora. Criar, produzir, melhorar, instruir, superar são atitudes que dinamizam as pessoas, constroem a ciência e transformam a sociedade (CLOTET, 2014). Novas criações e o uso dessas ferramentas alicerçado em doutrinas voltadas à construção da paz social fazem parte de políticas públicas adequadas ao bem-estar comum. 

A globalização é uma realidade planetária, nada será como antes. O século XX parece ter trazido um enorme ganho científico, se comparado aos tempos anteriores da raça humana. Esse saber científico trouxe a técnica para construir ferramentas; objetos que colocados a serviço do Estado na luta pela amortização dos conflitos sociais nos trouxeram soluções melhores, muito mais brandas e muito menos violentas, na resolução de divergências.

Instrumentos utilizados por forças de segurança de outros países, e que comprovadamente desaguaram em resultados positivos (aqui entendidos como enfrentamentos a conflitos com o mínimo de violência possível), hoje são tidos como uma realidade no cenário brasileiro.  

Na realidade social conflitante em que vivemos, as situações de grave ameaça e violência fazem parte da rotina de qualquer pessoa. Elas estão em nossa casa, no nosso trabalho, no trânsito, na escola ou nos momentos de lazer. A violência está em toda parte, até mesmo em nossa educação.

As instituições públicas são parte do tecido social. Sociedade e polícia não podem ser pensados como organismos duais, separados, independentes e que, em tese, se autocontrolam. A instituição policial é parte da sociedade e tem de refletir os anseios desta, principalmente no sentido de se identificar como instrumento, como um dos meios responsáveis pela construção da paz social, do bem comum das pessoas. Enfim, o policial tem de se identificar como um “protetor”, como o agente responsável por proporcionar segurança à comunidade. E essa segurança, por óbvio, há que se dar em um patamar de profissionalismo tal que seja conceituada “segurança com cidadania”. Para Enriquez (1990) o homem aspira à paz social, à liberdade e à felicidade comum, porém constrói instituições que se voltam muito mais para a repressão que para a harmonia comum.  

Por que os homens, dizendo-se guiados pelo princípio do prazer e pelas pulsões de vida, aspirando à paz, à liberdade e à expressão de sua individualidade e, dizendo-se conscientemente desejar a felicidade para todos, criam, frequentemente, sociedades alienantes que mais favorecem a agressão e a destruição do que a vida comunitária? Por que as instituições, que os homens edificam, funcionam mais como órgãos de repressão do que como conjuntos onde a aceitação da regra favorece a sua própria realização e a constituição de uma identidade sólida e maleável?[14]             

Essa violência, presença constante em nosso dia-a-dia, traz um desafio às instituições responsáveis pela manutenção da ordem, encarregadas da observância à lei (órgãos de segurança pública) e corresponsáveis pela construção da paz social. Esse desafio pode ser lido como um compromissamento do Estado, no sentido de apaziguar e solucionar os conflitos sociais – inerentes à raça humana – de modo muito mais pacífico (menos sanguinário e violento) que d’antes. E aqui, nos referindo às instituições policiais, afirmamos que esse desafio se traduz em condutas pautadas em protocolos de ação voltados fundamentalmente ao respeito à dignidade da pessoa humana. Assim, entendemos que o uso do Dispositivo de Condução de Energia (popularmente conhecido como pistola taser) traz um enorme avanço e uma contribuição fundamental ao trabalho policial, que é, por natureza, um trabalho de enfrentamento de conflitos.

Essas novas doutrinas de trabalho policial, pautadas no desenvolvimento e aplicação de novas ferramentas tecnológicas, facilitam sobremaneira a atividade de segurança pública que, na busca pelo oferecimento de segurança à sociedade, tem de se nortear pela observância de condutas que resultem em um mínimo de lesividade possível àqueles indivíduos que ameaçam, com suas ações, a segurança da comunidade.

Inseridas nesse contexto desenvolveram-se doutrinas como a do “uso progressivo da força” (que é a que nos interessa aqui) e com isso o surgimento de novas tecnologias capazes de fazer frente a questões de quase violência e violência propriamente dita, onde dispositivos não letais são utilizados em substituição ao uso de armas de fogo. Recentemente começou a fazer parte da realidade policial e de guarda essa nova tecnologia conhecida como dispositivo de condução de energia (DCE), “pistola de choque” ou “Taser”, sendo objeto deste estudo o seu uso em pessoas em fuga. Trata-se de um dispositivo a ser usado como instrumento de controle em situações que pedem uma ação mais segura de parte do agente público, quando a força física é ineficaz e quando o uso de arma de fogo é desproporcional, tendo-se como resultado provável o controle da situação apresentada, sem a gravidade de ferimentos causados por arma de fogo.   

A técnica policial do uso progressivo da força se resume em um estado tal onde o agente público contata o cidadão e esse contato segue uma sequência lógica de causa e efeito. A atitude do cidadão e o nível de resposta do agente se dão em vários níveis. Normalidade x presença física: normalidade no ambiente onde não há necessidade de intervenção. Cooperativo x verbalização: há uma suspeita, no entanto o cidadão é positivo e compreensivo às determinações do agente, não há resistência. Resistência passiva x controles de contato: nível preliminar de insubmissão, há resistência passiva, mas não há resistência física às determinações; aqui o cidadão não acata as ordens, fica parado, resiste sem reagir, sem agredir. Resistência ativa x técnicas de submissão: a resistência é ativa, há o desafio físico. Agressão não letal x táticas defensivas: a tentativa de se obter uma submissão à lei se embate com a resistência ativa e hostil do cidadão; há um ataque físico deste ao agente ou àqueles próximos do local. Agressão letal x força letal: existe ameaça à vida de alguém do povo presente e do próprio agente público; aqui o agente pode concluir, razoavelmente, que vidas estão em risco ou que haja grande possibilidade de danos físicos aos envolvidos naquela intervenção[15].

Nessa técnica, o agente público realiza determinado procedimento em um primeiro contato com a(s) pessoa(s) foco da ação. A seguir, a resposta comportamental daquela(s) determinada(s) pessoa(s) é que vai pautar a próxima conduta do agente. Desse modo, ele tem possibilidade de, dada a resposta do cidadão, tomar a decisão sobre qual próxima conduta seguir, o que pode ir desde a simples presença física no ambiente até a possibilidade do uso de arma letal. Esse preparo do agente público é puramente técnico e, em uma última análise, extremamente profissional.

Assim, dentro de uma conduta norteada pela legalidade, o que significa afirmar, embasado na observância da dignidade humana, o agir estatal tem de ser razoável e proporcional, voltado para a prestação de um serviço de segurança com cidadania.

Dessa forma, o uso da pistola taser ocorrerá quando, dentro da técnica de uso progressivo da força, houver a necessidade de se incapacitar um indivíduo, normalmente em casos de agressão contra o próprio agente, contra terceiros, em prejuízo da própria pessoa (casos de tentativa de suicídio) e, ainda, nas ocorrências de fuga. Essa incapacitação temporária é para permitir que o agente público atue, de modo a imobilizar a pessoa, quer seja utilizando algemas ou outro meio eficaz, impedindo que se prossiga na conduta danosa.

A Taser age por meio de uma descarga de impulsos elétricos que “enganam” o cérebro, fazendo a pessoa cair ao solo e permanecer imobilizada enquanto não cessa a descarga. O corpo prioriza a recepção dos impulsos elétricos da Taser, imaginando que se tratam de impulsos elétricos do cérebro. Ocorre que os impulsos elétricos do cérebro transportam comandos e os da Taser não. Assim, o corpo fica temporariamente sem receber ordens do cérebro e, sem comandos, o suspeito é imobilizado.  Não se trata de um aparelho de choque, pois seu princípio não está baseado na dor para subjugar o indivíduo atingido. Esse dispositivo paralisa e derruba o suspeito de modo instantâneo, não importando o quão forte ele seja, nem se esteja sob efeito de quaisquer substâncias psicoativas. As armas TASER são, sobretudo, equipamentos tecnologicamente sofisticados que minimizam a possibilidade de risco, ou seja, foram desenvolvidas no objetivo de fornecer ao policial uma eficaz opção intermediária no uso da força (LUZ, 2011).

A Taser é similar em modelo e tamanho a uma pistola real. À frente do seu “cano” há um cartucho retangular onde estão alojados dois “dardos”, que são eletrodos condutores de energia. Ao acionar o gatilho os “dardos” (que têm alcance aproximado de 10 metros) são lançados, mas ficam ligados a ela por fios condutores. Quando ambos os eletrodos se prendem ao corpo, a pessoa recebe uma descarga elétrica de 50.000 volts e é imobilizada instantaneamente[16].

O funcionamento da Taser está baseado na alta voltagem que descarrega no corpo de alguém. Essa alta voltagem não é tão perigosa ao organismo quanto o é a amperagem. Por exemplo, se uma pessoa recebe um choque de tomada elétrica comum de parede (110 volts) a carga de energia será de 16,0 amperes; um choque de uma mini lâmpada de árvore de natal equivale a 1,0 ampere; já uma descarga da Taser é de 0,004 ampere. Assim, o que faz a Taser imobilizar uma pessoa (ou várias se estiverem em contato corporal) é a forma da onda elétrica utilizada, idêntica à cerebral, por seus impulsos elétricos de alta voltagem, que imobilizam sem causar dor[17].


MATERIAIS E MÉTODOS.

Foi realizada pesquisa bibliográfica, exploratória, descritiva. Para tanto foram feitos recortes teóricos, tendo em vista que, para este estudo, foi estabelecida articulação entre a temática, novas ferramentas tecnológicas, com o conceito de dignidade humana e o significado institucional de polícia cidadã[18] como norteadora da problematização e discussão do uso da pistola taser aplicado a protocolos de proteção social.

Os autores elencados para subsidiar a realização deste trabalho foram: Carmen Lúcia Antunes Rocha; Claudio Pereira de Souza Neto; Eugène Enriquéz; Flávia Piovesan; Ingo Wolfgang Sarlet; Jetson Silva, Glauber Santana e Moisés Dionísio; Joaquim Clotet; Luiz Eduardo Soares; Luís Flávio Sapori; Milton Santos; Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Ginfranco Pasquino; Paulo Rogério R. Luz; Rogério Greco; Viviana Bohórquez Monsalve e Javier Aguirre Róman, por apresentarem os pressupostos teóricos fundamentais para a compreensão do tema e do objeto de estudo.

O banco de dados consultado para o levantamento de artigos sobre o tema foi a Scielo, com o uso de descritores: “taser”, “pistola de choque”; bem como operadores booleanos “e”, “ou” e “não”. Para a busca de casos na jurisprudência nacional foram acessados os sites de todos os tribunais de justiça estaduais, de todos os tribunais regionais federais, do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal e os casos selecionados de acordo com os objetivos do estudo.

A análise foi realizada sob a ótica da doutrina, da técnica policial de uso progressivo da força e da jurisprudência brasileira.


O USO DA TASER E A JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS BRASILEIROS.

Como discorremos anteriormente, conforme a técnica do uso progressivo da força, o Dispositivo de Condução de Energia - Taser – vem sendo aplicado pelas forças policiais brasileiras em situações de enfrentamento de conflitos. São casos onde, dadas as circunstâncias, a aplicação da força física pelo agente estatal é ineficaz, pois há o risco de não se alcançar o resultado pretendido (cessar a ameaça enfrentada) e tampouco o uso da arma de fogo é cabível, posto ser inadequado, irrazoável e desproporcional. Várias situações podem ser exemplificadas, como a necessidade de imobilização de pessoas que estejam sob efeito de álcool ou de outras substâncias psicoativas (maconha, cocaína, ecstasy, crack, etc) portanto, fora de seu juízo normal e, muitas vezes, insensíveis à dor; pessoas que opõem resistência (passiva ou ativa) ao cumprimento de determinada ordem legal; tentativas de agressão física, à primeira vista, não letal; ou ainda, nas mais variadas situações onde indivíduos empreendem fuga (no caso de terem cometido algum ilícito penal).

 Exemplo bastante educativo da não aplicação dessa técnica se deu em ocorrência policial onde foi usada, em um primeiro momento, a arma de fogo, para então, só posteriormente, se fazer uso da Taser, ocorrendo então a imobilização do suspeito.

QUE, nesse momento, e quando [Fulano de tal] fez menção de sacar algo de sua cintura, o APF [Cicrano] fez um disparo em direção à perna direita, evitando que atingisse o outro policial; QUE, mesmo assim, o depoente ao se aproximar, viu que [Fulano de tal] ainda tentou novamente resistir, entrando em luta corporal com o APF [Cicrano], já dentro do córrego mencionado; QUE, dessa forma, e sem mais alternativas, o depoente desferiu um disparo da arma menos letal TASER contra [Fulano de tal], imobilizando-o; QUE, somente assim, o APF [Cicrano] conseguiu algemá-lo;[19]Grifamos e substituímos os nomes próprios.

Em outra oportunidade, agentes policiais da Polícia Rodoviária Federal no estado do Mato Grosso do Sul realizaram acompanhamento tático policial a veículo suspeito de estar transportando produtos ilícitos (tráfico de drogas – maconha). Durante o trajeto o motorista suspeito colocou em risco a segurança dos usuários da rodovia federal, tentando causar acidentes para dar fim à perseguição policial na pretensão de escapar à ação dos agentes. Após colidir com seu veículo em um barranco, na tentativa de fugir a pé, o suspeito foi detido e imobilizado com um disparo de Taser.   

DEPOENTE: Não, a gente foi atrás da S10, o condutor da S10 ao verificar que a gente estava atrás dele começou a empreender fuga, a gente com sirene, giroflex, ele começou a empreender fuga a uma velocidade muito alta, ele jogava o veículo contra os carros que vinham na rodovia, tentando provocar um acidente, e durante 30 quilômetros se deu essa perseguição, até que a gente tomou a decisão de efetuar um disparo no pneu do veículo para cessar aquela agressão que ele estava oferecendo a todos os condutores da rodovia, onde o pneu furou a caminhonete perdeu velocidade, e ele inclusive tentou jogar ela em um local lá, em um barranco para fugir a pé, e nós chegamos prontamente, ele desceu do veículo e não obedeceu a voz de comando da equipe, fato esse que foi inclusive efetuado um disparo de arma Taser nele, para mobilizar ele e fazer a contenção dele, que e a gente verificou que dentro da S10, tanto na carroceria como no compartimento interno do veículo, havia grande quantidade de maconha.[20] Grifamos.

A pistola Taser foi usada, também, para impedir que réu se auto-lesionasse durante audiência judicial.  Após ser admoestado pelo juiz em reprimenda a seu comportamento, o réu se descontrolou tentando se auto-lesionar, jogando-se no chão, quando então houve a pronta intervenção dos policiais presentes.

Pelo exame do processo propriamente dito, e do inquisitório que o antecedeu, percebe-se que o réu, preso e requisitado para audiência de instrução e julgamento, designada pelo Juízo da 27ª Vara Criminal da Capital, quis falar fora de hora. O Juiz FLÁVIO ITABAIANA NICOLAU não o permitiu e o advertiu para que cessasse tal atitude. Depois, como não fosse atendido, ordenou que o ora apelante fosse retirado da sala de audiências. Então, o último se descontrolou, dizendo que se mataria, e se jogou no chão, derrubando uma cadeira. Nesse momento, o policial militar que conduziu o réu, [Fulano de tal], pediu ajuda de seu colega [Cicrano]. Este desferiu um choque no acusado, com a arma não letal denominada “Taser”.[21] Grifamos e substituímos os nomes próprios.

Na cidade de Guaíra, PR, em acompanhamento a veículos suspeitos os policiais flagraram indivíduos com carregamentos de cigarros, produto de contrabando. Após a abordagem, os indivíduos suspeitos opuseram resistência aos agentes, no que então estes fizeram uso da Taser, imobilizando e efetuando a prisão em flagrante delito dos indivíduos.

Segundo consta do Auto de Prisão em Flagrante, em patrulhamento na região rural denominada Bela Vista, os policiais avistaram movimentação suspeita de dois veículos nos arredores do local, com isso, fizeram a abordagem de um veículo S-10, placas XXX-0000, conduzido por [Fulano de tal], e de um veículo VW/Saveiro, placas YYY-0000, dirigido por [Cicrano]. Cada veículo estava carregado com cerca de 55 (cinqüenta e cinco caixas de cigarros). Relataram ainda que, diante da resistência oposta pelos detidos, foi necessário o uso de força física, comandos de voz e armamento não letal [...] Não há ilegalidade alguma capaz de motivar o relaxamento da prisão (art. 5º, LXV, CF), nem nulidades a declarar, pelo que HOMOLOGO, para todos os efeitos legais, o AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE, em que figura como indiciadas as pessoas acima nominadas e qualificadas no mencionado auto[22]. Grifamos e substituímos os nomes próprios.           

Ainda, durante policiamento de rotina uma equipe de Policiais Rodoviários Federais se deparou com um motorista que, por sua conduta, passou a oferecer riscos à segurança de outros usuários da rodovia federal, reagindo à abordagem policial e desacatando os servidores. Assim, dada voz de prisão ao cidadão, este reagiu e teve de ser imobilizado com o uso da taser.

No dia 21 de fevereiro de 2011, o denunciado [Fulano de tal], consciente da ilicitude de suas condutas, de forma voluntária, desacatou funcionário público federal no exercício da função; opôs-se à execução de ato legal, mediante violência a policial rodoviário federal; bem como ofendeu a integridade física do PRF [Cicrano]. Diante disso, o PRF [Cicrano] viu-se obrigado a dar voz de prisão a [Fulano de tal] e a fazer uso das algemas para imobilizá-lo. Nesse ponto, com o objetivo de obstaculizar a ação legal do PRF [Cicrano], [Fulano de tal] reagiu à ordem de prisão e passou a agredir fisicamente o referido agente público, sendo contido somente após o PRF [Beltrano] utilizar gás de pimenta e, posteriormente, aplicar a taser - choque elétrico -, consoante bem descreve o auto de prisão em flagrante e o Boletim de Ocorrência nº 84231.[23] Grifamos e substituímos os nomes próprios.

Em outro caso de cidadão em fuga, após ter dado causa a acidente de trânsito de grandes proporções e tentado se evadir do local, depois de ter colocado em risco a segurança de grande número de pessoas, e ainda por estar transportando em seu veículo carga de cigarros, produto de contrabando, resistindo à prisão e entrando em luta com os agentes, foi então necessário realizar um disparo de Taser para poder conter e imobilizar o indivíduo.

PRF - Ato contínuo, os policiais passaram a perseguir o denunciado, que próximo ao trevo em que dá acesso a Francisco Alves/PR, local de grande circulação de veículos, mais precisamente em frente a um Posto de Combustível, o veículo do denunciado perdeu o controle e ocasionou um acidente que envolveu um caminhão, eis que se encontrava em velocidade excessiva de aproximadamente 140 (cento e quarenta) Km/h, sendo que mesmo assim, o acusado saiu do veículo e empreendeu fuga em direção a um matagal, persistindo os policiais na perseguição, e ao ser abordado, o denunciado ofereceu resistência à prisão, entrando em contato físico com os Policiais, que para algemá-lo, foi necessário a utilização de Taser (arma não letal), causando efeito de choque. Em revista minuciosa dentro do veículo, os Policiais Rodoviários Federais constataram a existência de aproximadamente 22 (vinte e duas) caixas de cigarros de origem estrangeira.[24]

Essas realidades policiais ilustram a aplicabilidade dessa ferramenta. Há casos de resistência, de tentativa de suicídio e, principalmente, de diversas tentativas de fuga com a finalidade de se evitar a aplicação da lei. Esses são alguns dos casos judicializados. Pode-se afirmar que a utilização da pistola Taser se dá, na sua maioria, em ocorrências policiais onde haja resistência do cidadão, normalmente à ordem de prisão, e nos casos de fuga. Esses são os contextos mais rotineiros, na realidade policial, onde se vê a necessidade do uso da Taser. 

Assim, vê-se que, a partir do momento em que a Administração dota o servidor público de mais uma ferramenta de trabalho (pistola Taser), está respeitando a dignidade humana e valorizando seu trabalhador, pois este terá condições de, face ao fato concreto, mensurar a possibilidade/necessidade de utilização daquele instrumento e fazê-lo se assim o decidir. Ao passo que, se o servidor público dispuser apenas da arma de fogo para a execução de seu trabalho, ao enfrentar determinada situação em que se faça necessária a imobilização de cidadão suspeito ou, inclusive, para fazer cessar alguma agressão em princípio não letal, não disporá de outro recurso senão o de usar a arma de fogo, ainda que seja para atingir algum membro não vital do agressor e assim fazer cessar a violência.


CONCLUSÃO

A atividade policial na atual sociedade brasileira, para o profissional que tem senso de humanidade, fraternidade e sentimento republicano, é extremamente complexa. O Brasil é um país marcado por um estigma de estado-policial, de violência estatal, de mazelas sociais onde as forças de segurança pública tiveram sua parcela de responsabilidade. Muito disso atribuído ao estado de exceção que o país vivenciou em seu recente passado.

Neste início de século, em um contexto contemporâneo de sociedade globalizada, onde a tecnologia nos proporciona acesso a informações quase que instantaneamente, vivemos dias de vastas comunicações e novidades. Em tempos de necessárias garantias de segurança nas relações sociais, a população exige que essa segurança seja prestada, fundamentalmente, com cidadania. Tal cidadania está atrelada, sem qualquer sombra de dúvida, à dignidade da pessoa humana. Logo, segurança com cidadania denota ordem e tal ordem tem de ser garantida, necessariamente, sob a égide da Lei. Aí está a expressão do Estado democrático de direito quando se trata de segurança pública.

  Quando os dardos da taser atingem o corpo humano eles causam lesões corporais, normalmente leves. Todavia, o bem da vida (paz social) protegido nessas situações, geralmente, tem uma valoração maior se comparada às lesões causadas na referida pessoa. Cremos que, das diversas situações discorridas nesse trabalho, o uso da taser contra pessoa em fuga, dada a situação contextual, é perfeitamente cabível, encontrando guarida no ordenamento legal, nos princípios básicos que norteiam o respeito aos Direitos Humanos e na jurisprudência dos diversos tribunais brasileiros.

Com efeito, o uso dessa ferramenta, agregado ao trabalho das forças de segurança pública, contribui enormemente para a solução de conflitos de modo menos violento possível, trazendo resultados gerais extremamente positivos, tanto no sentido de se fazer cessar a ameaça social efetivada por certa pessoa em dado contexto policial (posto que a ferramenta aufere relativa eficácia à atividade de polícia), como no sentido da observância à dignidade humana dos atores envolvidos em determinada situação fática.

Por fim, é importante ressaltar que a busca no banco de dados da Scielo mostrou a inexistência de artigos sobre o tema quando os descritores foram “taser”, “pistola de choque”; resultado também encontrado quando utilizados operadores booleanos “e”, “ou” e “não”. A limitada produção científica brasileira sobre o uso da pistola taser deu ao estudo um caráter exploratório, uma vez que se pretende chamar a atenção sobre a relevância da temática e despertar o interesse para a realização de pesquisas que consubstanciem a discussão e os limites para a utilização de novas tecnologias na segurança pública, sem perder de vista sua imbricada relação com os aspectos da dignidade humana e os princípios norteadores de uma polícia cidadã.


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Notas

[2]             SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Parâmetros para a conceituação constitucionalmente adequada da segurança pública. Desafios da gestão pública de segurança. Orgs. Fátima Bayma de Oliveira... [et al.]. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. P. 57.

[3]             SAPORI, Luís Flávio. Segurança pública no Brasil. Desafios e perspectivas. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. P. 17.

[4]             ROCHA, Carmen Lúcia Antunes. O princípio da dignidade de pessoa humana e a exclusão social, texto mimeografado, em palestra proferida na XVII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de agosto a 2 de setembro  de 1999. Disponível em: <http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/anexos/32229-38415-1-PB.pdf> acesso em 16 ago. 2014.

[5]           Idem.

[6]             SARLET, Ingo Wolfgang.  Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2001. P. 60.

[7]             SOUZA NETO, Claudio Pereira de. Parâmetros para a conceituação constitucionalmente adequada da segurança pública. Desafios da gestão pública de segurança. Orgs. Fátima Bayma de Oliveira... [et al.]. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. P. 56 e 57.

[8]             GRECO, Rogério. Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais.  Niterói, RJ: Impetus, 2009. P. 13 e 14. 

[9]             ______ Atividade policial: aspectos penais, processuais penais, administrativos e constitucionais.  Niterói, RJ: Impetus, 2009. P. 13 e 14.

[10]            SOARES, Luiz Eduardo. Segurança tem saída. Rio de janeiro: Sextante, 2006. P 146.

[11]            ______ Estratégias policiais para a redução da violência. Disponível em: <http://pt.braudel.org.br/pesquisas/arquivos/downloads/estrategias-policiais-para-reducao-da-violencia.pdf > Acesso em 02 jun. 2014.

[12]           CÓDIGO PENAL. Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

               § 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

                a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;                

[13]            Entrevista a Milton santos. Programa passando a limpo, TV Record, 2001. Disponível em:<http://www.youtube.com/watch?v=WNiwuUqsd2s >  Acesso em 28 maio 2014.

[14]            ENRIQUÉZ, Eugène. Da horda ao estado. Psicanálise do vínculo social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. P. 12 e 13.

[15]            SILVA, Jetson. Santana, Glauber. Dionísio, Moisés. Técnicas e tecnologias de menor potencial ofensivo – introdução ao uso dos dispositivos de condução de energia – DCE. Departamento de Polícia Rodoviária Federal – MJ. Brasília, 2010.

[16]            SILVA, Jetson. Santana, Glauber. Dionísio, Moisés. Técnicas e tecnologias de menor potencial ofensivo – introdução ao uso dos dispositivos de condução de energia – DCE. Departamento de Polícia Rodoviária Federal – MJ. Brasília, 2010.

[17]            Idem.

[18]           Visão institucional da Polícia Rodoviária Federal, consubstanciada no Anexo II da Portaria nº 28-DG, de 12/02/2014-PRF. Uma polícia cidadã se reconhece e é reconhecida como parte da Sociedade civil, existindo unicamente para prover proteção e serviços aos cidadãos, na exata medida que esses desejam e precisam, bem como respeitando e garantindo seus direitos.             

[19]           Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Habeas Corpus nº 5021605-45.2012.404.0000/RS-2013. Disponível em:

               <http://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=5707778&termosPesquisados=taser>  Acesso em: 06 jun. 2014.

[20]           Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul.  Apelação Criminal nº 0029846-69.2011.8.12.000 –2013. Disponível em: <http://www.tjms.jus.br/cjsg/getArquivo.do?cdAcordao=262409&vlCaptcha=suipq> Acesso em 02 jun. 2014.

[21]           Tribunal de Justiça do Rio de janeiro. Apelação Criminal nº 0198411-64.2012.8.19.0001–2013. Disponível em:<http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0004E40BBBAB4920828642C71C3945F5FAECC50260520616>  Acesso em 30 maio 2014.

[22]           Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Habeas Corpus nº 5001181-11.2014.404.0000/PR-2014. Disponível em: <http://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=6445074&termosPesquisados=taser> Acesso em 03 jun. 2014.

[23]           Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5008334-52.2011.404.7000/PR-2014.<http://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=6488863&termosPesquisados=taser> Acesso em 03 jun. 2014.

[24]           Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Apelação Criminal nº 5000799-21.2011.404.7017/PR-2013. Disponível em:  <http://jurisprudencia.trf4.jus.br/pesquisa/inteiro_teor.php?orgao=1&documento=5682603&termosPesquisados=taser>  Acesso em 09 jun. 2014.


Autor

  • Jorge Amaral dos Santos

    Policial Rodoviário Federal. Especialista em Direito Público. Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Mestre em Direito, políticas públicas de inclusão social pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC.

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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Jorge Amaral dos. Novas ferramentas tecnológicas como meios auxiliares para a consolidação de uma polícia cidadã: o uso da pistola taser aplicado a protocolos de proteção social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4255, 24 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32359. Acesso em: 26 abr. 2024.