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A participação de todos na corrupção do 'dia a dia'.

Do cinismo à ingenuidade

A participação de todos na corrupção do 'dia a dia'. Do cinismo à ingenuidade

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Embora a população brasileira como um todo critique e repudie a corrupção no país, muitos a praticam e incentivam sem nem mesmo perceber. Tal prática é sinal de cinismo para muitos, mas para outros é apenas ingenuidade.

Grande parte da sociedade brasileira tentou, por diversas vezes, combater a corrupção da maneira que podia, com revelações, protestos, denúncias e até um impeachment, mas não foram suficientes para combatê-la como gostariam e as esperanças de sua total extinção caíram no vazio. Frente a isso, o sentimento de impotência perante este mal social apenas cresceu. E pior, diante de tamanha banalidade e impunidade, desenvolveu-se ainda mais a ideia do "se todos fazem, por que não?"

Quanto mais essa indiferença popular ganha espaço, mais próximo está de atingir o nível crítico do cinismo, como observou Sérgio Habib. Diante de incontáveis escândalos não investigados, não julgados, não punidos, o povo perde a confiança no sistema legal como um todo e passa a ver a realidade de forma cínica. No Brasil, o cinismo chegou ao ponto de um parlamentar dizer abertamente “a opinião pública me condena, mas a opinião popular me absolve” e não provocar qualquer reação; sua fala vira notícia dos jornais apenas por um dia e a vida repleta de indignação e indiferença continua. E o cinismo não tem fim: quando não chegam ao ponto de dizer abertamente, os criminosos usam os mais vagos e inverossímeis argumentos para provar sua inocência, "como se fossemos, os que não compartilham do poder, uma turba de insensatos ou, bem pior, de alienados mentais." [1]

De pouco em pouco, a descrença em mudanças transforma-se em inércia. Uma inércia que, embora revele o sentimento social de indignidade com esse cenário pessimista, também demostra um lado mais sombrio, pois cada um "sabe que também anseia por uma oportunidade para parasitar o Estado." [2]

É uma evolução da aceitação, como diz Martin e Daniel Biegelman [3], que finalmente chega ao seu fim com a participação, embora seja uma participação em menor grau, uma "corrupção do dia a dia". São atitudes aceitas como rotineiras de tão enraizadas que estão na sociedade. E essas são as condutas que devem ser classificadas como as mais perigosas, pois são vistas como perdoáveis, como se não demonstrassem problema algum, sendo que na realidade abrem espaço para os grandes subornos.

Segundo uma pesquisa feita pela BBC Brasil em 2012, juntamente com os promotores de justiça responsáveis pela campanha "O que você tem a ver com a corrupção", 23% dos brasileiros não consideravam subornar um policial para evitar multa como um ato de corrupção significativo. O grupo elaborou uma lista de atitudes que os brasileiros praticam diariamente sem dar conta de que são espécies de corrupção: Não dar nota fiscal; não declarar Imposto de Renda; tentar subornar o guarda para evitar multas; falsificar carteirinha de estudante; dar/aceitar troco errado; roubar TV a cabo; furar fila; comprar produtos falsificados; bater ponto pelo colega; falsificar assinaturas. [4]

Contudo, se pararmos para analisar a fundo essas práticas, perceberemos que elas, embora haja exceções, não representam uma malícia, senão uma ingenuidade em perceber o que realmente estão fazendo. Estão tão acostumados com essas práticas, presentes desde sempre, que não possuem conhecimento objetivo sobre a sua ilicitude - e alguns, sequer, sobre sua imoralidade.

As opiniões doutrinárias divergem sobre a causa desse bloqueio de percepção do que estão fazendo, entre o certo e errado: Sérgio Buarque de Holanda acredita que o conformismo popular vem de um problema social, da cultura da personalidade originada no patrimonialismo, consequenciada em relações muito impessoais. Por sua vez, aos olhos de Raymundo Faoro, a corrupção também seria derivada do patrimonialismo, mas esse seria um problema do Estado, opressor da sociedade, que estrutura por si só um sistema fundado em privilégios para manter a classe dominante. O próprio Estado, assim, criaria um cenário em que não é possível diferenciar a função administrativa de interesses pessoais.

Uma terceira opinião, com um ponto de vista mais moderno, é a de Fernando Filgueiras, que apresenta o problema da corrupção apartado do passado cultural e baseia a aceitação da corrupção do dia a dia como sendo uma "antinomia entre o mundo moral e o mundo da prática [...] uma tensão entre os valores e o mundo real da sociedade brasileira" [5]. Com essa visão, defende a corrupção não como algo do caráter do brasileiro, uma vez que sabemos distinguir o certo e o errado e possuímos parâmetros morais para perceber que a corrupção não é correta, mas há um problema estrutural que permite sua tolerância. Chega a ser algo contraditório: percebemos atitudes corruptas como algo errado mas, ao mesmo tempo, concordamos que um pouco de desonestidade é necessária em algumas situações. Nossas percepções funcionam de forma bastante maquiavélicas.

Para comprovar sua teoria, Filgueiras usou como base um survey realizado pelo Centro de Referências do Interesse Público (CRIP) da Universidade Federal de Minas Gerais. Através de uma série de perguntas ao público voluntário, a pesquisa buscou desvendar esse cenário contraditório entre saber que uma atitude é errada moralmente e, mesmo assim, aceitar sua prática diante de situações pontuais. A enquete, primeiramente, formulou perguntas de casos mais conhecidos, mais sérios, e questionou se o entrevistado via tais escândalos como atos de corrupção ou não. Exemplo: pagar um funcionário público para tirar documentos mais rápido; um funcionário público deixar de denunciar fraudes cometidas por colegas; um político financiar uma ONG; uma empresa oferecer suborno para se beneficiar em licitações, entre outros. Um número elevado de entrevistados (cerca de 90%) consideraram todas essas práticas como corruptas, o que demonstra a capacidade de diferenciar o certo do errado. Porém, ao serem questionados uma segunda vez, agora sobre pequenos casos rotineiros, casos mais próximos dos entrevistados, a quantidade de pessoas respondendo "sim, são atos corruptos" diminuiu significativamente. Exemplo de respostas: dar dinheiro a um guarda para escapar de uma multa não chega a ser um ato corrupto; sonegar imposto é válido; a corrupção é válida para ajudar os mais pobres; se for necessitada, não há problema em uma pessoa aceitar benefícios em troca de votos; o conceito de honestidade é relativo; se for para proteger a família, está certo fazer algo corrupto.

Algumas dessas respostas demonstram claramente as raízes de nossa cultura patrimonialista e o 'brasileiro sempre cordial' de Sérgio Buarque de Holanda, que perduram em nosso subconsciente até hoje. Propensos a aceitar até a ilegalidade se for para favorecer os familiares e os mais necessitados. Em resumo, a pesquisa demonstra que, por mais que os brasileiros concordem com a ilicitude da corrupção, estão propensos a participar dela se houver necessidade ou mostrarem-se de pouca importância. É fácil perceber os grandes esquemas como atos corruptos, mas é difícil visualizar como a corrupção do dia a dia também impera e prejudica.

Essa enquete também serve para demonstrar como a ingenuidade é predominante. Se a malícia reinasse, a primeira parte da entrevista já demostraria o "jeitinho brasileiro" e muitos entrevistados não considerariam como corrupção os atos praticados por grandes empresas e políticos para adquirirem vantagens. A ingenuidade está, justamente, em reprovar essas ações, mas aceitar a corrupção em benefício da família, em benefício dos mais pobres e ver a sonegação de impostos como o socialmente justo a se fazer.

Essa ideia distorcida entre moral e realidade cria um problema que cresce aos poucos. Subornar agentes públicos não significa apenas uma perda econômica para o corruptor, por menor que a situação se mostre, ela gera problemas sequenciais como a demora do sistema com indivíduos "fura filas" e a pior de todas as consequências: embute na mente do agente público a vontade de buscar novas situações que permitam-no explorar e exigir propina de novos indivíduos. Essa é uma das causas de tamanha burocracia em nosso país, pois mais demora significa novas oportunidades de exigir suborno para acelerar o processo. E parcela da culpa por esse cenário recai sobre a própria sociedade que, além de permitir, incentiva essa prática ao não rejeitar a malandragem.

A sociedade ainda não percebeu a força que possui, e não percebeu como uma atitude firme pode resolver grande parte dos problemas. Nos estudos feitos pela Transparency Internacional em 2013, em um relatório anual intitulado “Global Corruption Barometer”, uma parcela significativa da população mundial disse não tomar a iniciativa e relatar um esquema de corrupção quando se depara com um. Dentre essa parcela, a razão predominante para não denunciarem (45%) foi "it wouldn't make any difference" (não faria nenhuma diferença - tradução nossa). E mais uma vez temos a comprovação de uma descrença populacional. A inércia ocorre por não nos acharmos capazes de mudarmos a situação, sendo que se cem por cento da população mundial aceitasse relatar escândalos, o cenário seria diferente

Assim, embora grande parte dos brasileiros critique as práticas corruptas, não percebem que colaboram com frequência para sua disseminação. Porém, muitos a praticam de forma inconsciente, seja pela herança cultural do "jeitinho brasileiro", seja pela ingenuidade em perceber que estão fazendo algo errado ou seja pelo conformismo em acharem que nada podem mudar. Perceber as pequenas corrupções 'do dia a dia' e mudar essa postura de conformidade é o primeiro passo para a mudança que tanto queremos ver no país.


notas

[1] HABIB, Sérgio. Brasil: Quinhentos Anos de Corrupção. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 1994, p. 109.

[2] RIBEIRO, Isolda Lins. Patrimonialismo e personalismo: a gênese das práticas de corrupção no Brasil. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 19., Fortaleza, CE, 2010, p. 8417.

[3] "The corruption ultimately turns the populace to distrust, ambivalence, acceptance, and ultimately, participation" (A corrupção, em última análise, leva a população à desconfiança, ambivalência, aceitação e, por fim, participação - tradução nossa) - BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Foreign Corrupt Practices Act Compliance Guidebook. New York: Editora John Wiley & Sons, Inc., 2010, p. 05.

[4] Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121024_corrupcao_lista_mdb.shtml>. Acesso em: 28 fev. 2014.

[5] FILGUEIRA, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Revista Opinião Pública, Campinas, SP, n. 2, volume 15, p. 387-421, nov. 2009, p. 394.


referências bibliográficas

BIEGELMAN, Martin T.; BIEGELMAN, Daniel R. Foreign Corrupt Practices Act Compliance Guidebook. New York: Editora John Wiley & Sons, Inc., 2010.

FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. 3. ed. São Paulo: Editora Globo, 2002.

FILGUEIRA, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e prática social. Revista Opinião Pública, Campinas, SP, n. 2, volume 15, p. 387-421, nov. 2009.

HABIB, Sérgio. Brasil: Quinhentos Anos de Corrupção. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 1994.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

RIBEIRO, Isolda Lins. Patrimonialismo e personalismo: a gênese das práticas de corrupção no Brasil. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 19., Fortaleza, CE, 2010, p. 8411-8427.

TRANSPARENCY INTERNACIONAL: Global Corruption Barometer 2013. Disponível em <http://www.transparency.org/gcb2013/report>. Acesso em: 26 fev. 2014.


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