Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/32638
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Um novo paradigma para a atuação criminal do Ministério Público

o controle externo material da atividade policial e a investigação direta de infrações penais como formas de redução da desigualdade no processo de criminalização secundária

Um novo paradigma para a atuação criminal do Ministério Público: o controle externo material da atividade policial e a investigação direta de infrações penais como formas de redução da desigualdade no processo de criminalização secundária

Publicado em .

O artigo analisa a forma desigual como atualmente é aplicado o Direito Penal no Brasil e o papel do Ministério Público como agente transformador desta realidade.

Resumo:O artigo analisa a forma desigual como atualmente é aplicado o Direito Penal no Brasil e o papel do Ministério Público como agente transformador desta realidade. A polícia seleciona de modo arbitrário o seu objeto de atuação, concentrando sua ação em cidadãos pertencentes às classes sociais menos favorecidas, atividade que não sofre controle adequado por parte do Ministério Público. Deve o Ministério Público, através de um controle externo material da atividade policial e da investigação direta de infrações penais, buscar uma aplicação mais igualitária do Direito Penal, superando os entraves à criminalização secundária da chamada criminalidade do colarinho-branco, em busca dos objetivos de um verdadeiro Estado Social e Democrático de Direito. 

Palavras-chave: Sistema de justiça criminal. Igualdade. Ministério Público. Controle externo. Investigação Criminal.

SUMÁRIO:1.      Introdução – 2. A desigualdade do sistema de justiça criminal e algumas de suas causas – 3. Formas de redução das desigualdades através do incremento da vulnerabilidade daqueles excluídos do atual sistema de justiça criminal – 3.1. Necessidades de readequações legislativas – 3.2 Sugestões de intervenção do Ministério Público como protagonista da busca por um novo paradigma para o sistema de justiça criminal no Brasil – 3.2.1. Controle externo material da atividade policial – 3.2.2. Investigações diretas de infrações penais pelo Ministério Público - 4. Conclusão – 5. Referências Bibliográficas.


1.      Introdução.

Por anos, o Direito Penal teve seu estudo focado na dogmática sistêmica da teoria do delito, blindando-se de influências político-criminais tidas para muitos como indesejáveis.

Consagrados juristas alemães como EDMUND MEZGER e HANS WELZEL defendiam este distanciamento, assim como o fazia NELSON HUNGRIA, no Brasil. Na obra de JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, A moderna teoria do fato punível, o prefácio de NILO BATISTA menciona um discurso de HUNGRIA no ano de 1942 em que apregoa justamente a necessidade da manutenção desta separação[1].

Houve, por isso, um descolamento entre o Direito Penal e a sua aplicação prática, os seus “efeitos reais”. Foi o Professor CLAUS ROXIN o pioneiro na proposta de fundir dogmática e política criminal, indo além, inclusive, ao sugerir uma teoria do delito totalmente estruturada em função da política criminal[2].

Porém, este desapego à realidade não é exclusividade das Ciências Penais. A respeito desta problemática, Conde e HASSEMER ensinam que:

“(...) não é estranho que o Direito, e não somente o Direito Penal e seus cultivadores, tenham uma fixação normativa que às vezes é quase uma obsessão, que faz com a criação, interpretação e aplicação das normas jurídicas seja sua quase, para não dizer exclusiva preocupação ou tarefa. Isso em si não seria mal se a realidade social, a que se referem as normas jurídicas, fosse imutável e estivesse prévia e claramente delimitada, mas desgraçadamente esta realidade é mais complexa, rica e cambiante do que o próprio tecido normativo construído em torno dela reflita ou cristaliza.”[3]

Nesta perspectiva, o estudioso e o profissional que tem como objeto de sua atividade o “sistema de justiça criminal”[4] brasileiro não pode se prender a dogmática do Direito Penal e do Processo Penal sem voltar a sua atenção para a forma como ele opera e as consequências desta intervenção nas vidas das pessoas.

E ao se dispor a realizar tal reflexão, a constatação é que no Brasil o Direito Penal material vem sendo aplicado de forma extremamente desigual por este “sistema de justiça criminal”. Desigualdade que não se encontra na letra fria e distante da lei e dos manuais, mas nas Delegacias de Polícia, Promotorias de Justiça, Varas Criminais e Penitenciárias deste país continental.

Sobre esta violação ao princípio constitucional da igualdade em particular, ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR asseveraram:

“O princípio constitucional da isonomia (art.5º CR) é violável não apenas quando a lei distingue pessoas, mas também quando a autoridade pública promove uma aplicação distintiva (arbitrária) dela.” [5]

Neste artigo, pretendo pontuar brevemente como se opera este vilipêndio constitucional na prática e apontar aquelas que, na minha ótica, são as suas principais causas. Na sequencia, apresentarei algumas estratégias para solucionar o problema.

Como se verá, embora o conjunto destas propostas resolutivas tenha como protagonistas os responsáveis pela elaboração, interpretação e aplicação das regras que modulam o “sistema de justiça criminal” brasileiro, o foco central será a atuação do Ministério Público como agente propulsor desta transformação.


2.      A desigualdade do sistema de justiça criminal e algumas de suas causas.

Cumpre desde logo reconhecer que há enorme identificação dos postulados da doutrina desenhada pela criminologia na década de 70 do século XX, denominada de “labeling approach”, à realidade brasileira[6].

Muito resumidamente, o “labeling approach” constituiu uma radical mudança do objeto de pesquisa da criminologia, partindo dos fatores da criminalidade (etiologia) para a reação social.

Assim, a criminalidade não seria um dado ontológico, mas algo construído pelo sistema de justiça criminal através de definições e da reação social. O comportamento criminoso é assim definido por ser rotulado como tal e a estigmatização social é diretamente responsável pela criação do status de criminoso, conforme explica BARATTA[7].

No Brasil, a reação social identificada pela teoria se opera através de uma tripla seletividade do sistema, resultando na desigualdade da aplicação do direito penal. Esta seleção ocorre em relação aos autores de crimes, às vítimas e aos tipos penais, e seu principal protagonista é a polícia (militar e civil), por que é ela que atua na “porta de entrada” do sistema.

No entanto, há que se destacar que a seleção efetuada num primeiro momento pela polícia é passivamente absorvida pelo Ministério Público e Poder Judiciário[8] que a reproduz, através de mecanismos próprios, acentuando ainda mais a desigualdade da filtragem inicial. Esta seletividade sem controle leva à discriminação[9] e tem como causas alguns fatores que se destacam.

O alicerce central desta nefasta desigualdade é a enorme disparidade entre o projeto idealizado pelo Congresso Nacional e Presidente da República e a capacidade do Estado em concretizar este vasto programa[10]. Para alguns, como ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, esta diferença é natural, própria do sistema criminal, assim como a seleção que dela deriva.

“A criminalização primária é um programa tão imenso que nunca e em nenhum país se pretendeu levá-la a cabo em toda a sua extensão nem sequer em parcela considerável, porque é inimaginável. A disparidade entre a quantidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é tão grande e inevitável que seu escândalo não logra ocultar-se na referência tecnicista a uma cifra oculta. As agências de criminalização secundária têm limitada capacidade operacional e seu crescimento sem controle desemboca em uma utopia negativa. Por conseguinte, considera-se natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário.” [11]

Realmente, parece ser um fenômeno mundial a multiplicação da legislação penal e mesmo condutas aparentemente normais, que outrora não desencadeavam a atuação do direito penal, passaram a ser criminalizadas.

BUSATO identificou com precisão que:

“Pode-se partir de uma simples constatação empírica: estamos vivendo um momento de orientação global ao recrudescimento da repressão. (...). A quebra da bipolaridade do poder a nível mundial, somada á globalização econômica, e por forca desta, cultural, levou a humanidade a um discurso mais ou menos hegemônico ditado a partir de uma fonte bem conhecida. Este discurso é o discurso da insegurança social, do rompimento de qualquer padrão em prol de uma pretensão de segurança que nunca chega.” [12]

O fenômeno é sentido, inclusive e, sobretudo, em países desenvolvidos, como os Estados Unidos da América, onde tem sido apontado como uma das causas para o “colapso” do sistema de justiça criminal americano[13].

Decorrência disso é a natural limitação da estrutura do Estado, em sua concepção lato sensu, em lidar com este imenso universo de leis penais, o que resulta em seleção que, por sua vez, não sofre adequado controle, acarretando em discriminação.

Logo, até mesmo para justificar a sua existência, num primeiro momento, a polícia escolhe, arbitrariamente, uma pequena parcela das leis penais do país para concentrar a sua atuação e, posteriormente, esta seleção é acolhida e acentuada pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário.

E é nos critérios - ou na ausência deles - que orientam esta seleção que reside a principal causa do problema aqui tratado.

Como a polícia atua de maneira burocratizada[14], acaba substituindo seus objetivos por reiterações rituais, geralmente fazendo o mais simples e o mais barato.

Não se trata aqui de atribuir uma conotação negativa a forma como funcionam as nossas polícias, mas de uma constatação natural decorrente de uma das principais características da burocracia WEBERIANA, o seu caráter de permanência e repetição:

“O burocrata individual não pode esquivar-se ao aparato ao qual está atrelado. Em contraste com o notável, que administra ou governa honorificamente ou á margem, o burocrata profissional esta preso a sua atividade por toda a sua existência material e ideal. Na grande maioria dos casos, ele é apenas uma engrenagem num mecanismo sempre em movimento, que lhe determina um caminho fixo. O funcionário recebe tarefas especializadas e normalmente o mecanismo não pode ser posto em movimento ou detido por ele, iniciativa esta que tem que partir do alto. O burocrata individual esta, assim, ligado á comunidade de todos os funcionários integrados no mecanismo. Eles têm um interesse comum em fazer com que o mecanismo continue suas funções e que a autoridade exercida socialmente continue.”[15]

É próprio da burocracia, portanto, e dentre os órgãos do “sistema de justiça criminal” brasileiro, Ministério Público e Poder Judiciário também são ainda de características eminentemente burocráticas, a extrema conformidade às rotinas e aos procedimentos, os quais garantem com que as pessoas façam repetidamente aquilo que delas se espera, centradas nas regras e regulamentos ao invés de trabalhar em função de objetivos e metas democraticamente estabelecidos.

Portanto, naturalmente, a ação da polícia recai sobre a denominada obra tosca da criminalidade (ZAFFARONI), cuja detecção e investigação são mais fáceis.

Crimes de baixa complexidade, cometidos por pessoas situadas em extratos sociais de limitado acesso positivo a educação e que, portanto, terão menos condições de evitar sua reiteração e de praticá-los de maneira sofisticada, o que dificultaria a sua percepção, são os clientes preferidos do sistema[16].

Consequentemente, são excluídos de seus tentáculos os crimes cuja autoria, teoricamente, recairia sobre aqueles em posição social de maior destaque. Isso ocorre não por que não cometam estes aquelas mesmas infrações penais, mas, sim, por que suas condições pessoais os tornam capazes de evitar a sua reiteração ou de aplicar sofisticação à execução do delito.

Igualmente, dadas circunstâncias sociais, econômicas e políticas, há uma inclinação natural de pessoas ricas ou detentoras de alguma forma de parcela de Poder do Estado à prática de crimes de difícil detecção e investigação, os chamados crimes de colarinho branco[17], havendo, logo, baixa vulnerabilidade destas ao sistema[18].

No entanto, há casos excepcionais nos quais pessoas que, a princípio, não seriam selecionadas pelo sistema, acabam sendo por ele alcançadas.

Aqui, como visitantes indesejados, mesmo sem possuir os predicados necessários para frequentar a “festa” das Delegacias de Polícia e Fóruns Criminais brasileiros, a seleção ocorre por que o cidadão se colocou em posição de vulnerabilidade originariamente não existente ou por que alguma atitude isolada de agentes do Estado foi capaz de atuar sobre um chamado crime de colarinho branco.

E quando tal anomalia ocorre as desigualdades se acentuam, agora com a contribuição do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Nestes casos, no âmbito da polícia há interferências externas diretas (políticas e midiáticas) e dificuldades em investigar fatos mais complexos praticados por autores não convencionais, seja por falta de treinamento ou por carência de condições materiais.

Embora um pouco menos sujeitos a interferências externas diretas, membros e servidores do Ministério Público e do Poder Judiciário também não se encontram preparados para lidar com esta criminalidade não usual[19].

Além disso, a grande quantidade de trabalho e a rotina de lidar com casos de menor complexidade acabam fazendo com que estes profissionais tentem evitar o desconhecido, afastando-se de investigações e ações penais aparentemente mais difíceis, em que a dedicação deverá ser maior e os critérios de análise distintos dos comumente aplicados[20].

Ao atuarem desta maneira, condicionados, Promotores de Justiça e Juízes de Direito agem como seres humanos que são, tendendo a fazê-lo automaticamente, de forma acrítica, como aponta ALEXANDRE MORAIS ROSA:

“As descobertas da neurociência demonstram que a maneira como aprendemos a pensar e a explicar o modo como decidimos depende de um complexo sistema de variáveis. (...) e o cérebro, assinala Daniel Kahneman, por seus sistemas — S1 (implícito, rápido, direto, automático, emotivo e desprovido de esforço) e S2 (explícito, consciente, demorado, racional, desgastante e lógico) — busca reduzir a complexidade da decisão.

Basta lembrar da primeira vez em que dirigimos um carro. O que era uma atividade do S2 nas primeiras vezes, com o tempo, passa a ser uma atividade realizada pelo piloto automático. E dirigimos sem pensar. Ainda que os sistemas (S1 e S2) trabalhem em sequência, por sermos humanos, não se problematiza muito, justamente porque a resposta pronta está dada. Modificar exige tempo e esforço mental. No campo do processo penal esse modo de pensar leva muitas vezes a erros (vieses), dado que a reflexão não é acionada. Isso porque a atenção é cara e escassa.”[21]

Outro fator que contribui para esta desigualdade é que a legislação brasileira não prevê instrumentos necessários para lidar com esta criminalidade, tampouco regras processuais condizentes com as suas particularidades[22].

O processo penal brasileiro é voltado àquela criminalidade habitual ao sistema. Podem ser mencionadas aqui as tantas formas de revisão das decisões judiciais que na prática acaba beneficiando somente uma minoria de acusados com condições econômicas para pagar um bom e influente advogado.

Enfim, mesmo quando o primeiro filtro do sistema de justiça criminal deixa escapar alguém que a princípio não se encontrava em situação de vulnerabilidade, o sistema apresenta uma série de outros filtros, que se multiplicam ao longo do caminho, sendo raras as sentenças condenatórias com imposição de pena de prisão para estas pessoas.

Este panorama foi identificado com precisão por BUSATO e HUAPAYA:

“Na América Latina, são mais que evidentes os obstáculos que se apresentam para levar a cabo a criminalização secundária para a delinquência do colarinho-branco. Os índices não são mais do que vergonhosos. As razões são muitas: o poder econômico e político de seus autores e também o seu prestígio. Muitos destes processos de criminalização terminam tão-somente em uma triste folha de expediente perdida em uma gaveta de alguma Delegacia de polícia, ou nem mesmo isso.

O Direito Penal, por isso, sempre deve permanecer em constante crítica. Dentro de um Estado Social e Democrático de Direito é necessário, para afirmar a legitimidade do próprio Estado, que estes obstáculos que impedem a criminalização secundária de altos setores da população se extingam.”[23]

Trata-se, evidentemente, de um lento e gradual processo a superação destes obstáculos, porém, é preciso “dar o primeiro passo”, e este pode e deve ser de iniciativa do Ministério Público brasileiro.


3.      Formas de redução das desigualdades através do incremento da vulnerabilidade daqueles excluídos do atual sistema de justiça criminal.

Embora um efetivo reequilíbrio da balança necessariamente passe pela forma de atuar de todos aqueles que integram o “sistema de justiça criminal”, os parcos apontamentos que se pretende colocar referem-se a algumas necessárias modificações legislativas e às possíveis intervenções do Ministério Público brasileiro, como órgão independente dos demais Poderes da República Federativa do Brasil, incumbido pela Constituição de promover “(...) a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”[24] e na posição de exclusivo titular da ação penal pública (artigo 129, I, da CF).

Ou seja, o foco da criminalização secundária deve passar a ser a criminalidade não usual e para tanto ao Ministério Público foi destinado instrumental capaz de realizar esta mudança de rota já pelo Constituinte Originário.

O que se pretende não é uma “caça às bruxas”, mas cumprir, através da aplicação do Direito Penal, os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, expressados no artigo 3º, da Constituição Federal, tão somente.

 Neste sentido, novamente BUSTATO e HUAPAYA:

“Deve-se ter em conta, entretanto, que isto não significa, de qualquer modo, uma pretensão de “vingança proletária” à custa de una ampliação do Direito Penal, mas sim uma “correção de rumos” em direção a um Direito Penal mais adequado às propostas humanitárias e aos princípios do Estado Social e Democrático de Direito.”[25]

3.1.Necessidade de readequações legislativas.

Em primeiro lugar, é preciso que seja respeitado o princípio penal da intervenção mínima. O direito penal deve ter reduzido o seu âmbito de incidência àquelas situações de extrema necessidade, limitado sempre pela sua própria finalidade de proteção dos bens jurídicos.

Somente assim poderá ser encurtada a distância entre o programa penal do Estado e a capacidade de torná-lo efetivo. É certo que quanto menor for esta disparidade maior será a capacidade de dar concretude à lei penal, reduzindo o campo de discricionariedade daqueles responsáveis pela sua execução e, consequentemente, de discriminação.

Também de lege ferenda se encontra a possibilidade de ampliar as hipóteses legais de acordo entre as partes nos crimes de ação penal pública, como o Projeto de Lei nº 8045/2010 (atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados), que institui o novo Código de Processo Penal e prevê regras que possibilitam acordos entre Ministério Público e acusado para verdadeira imposição antecipada de pena, mediante atendimento de determinados requisitos legais.

De fato, desde que estabelecidos previamente os limites legais (legal standards) e respeitada a possibilidade de controle posterior por parte do Poder Judiciário, trata-se de um campo em que o Ministério Público e o Poder Judiciário podem: I) filtrar a seletividade discriminatória efetuada pela polícia de maneira arbitrária na fase de investigação; b) desafogar as Promotorias de Justiça e Varas Criminais para que ambas as instituições possam planejar sua atuação criminal com base em um novo paradigma, voltado à criminalidade do colarinho branco.

Além de se tratar de uma necessidade do sistema de justiça criminal brasileiro, teoricamente, a ampliação dos acordos penais já encontra sustentação na corrente doutrinária flexibilizadora do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e a garantia contra eventuais abusos repousam na teoria constitucional dos freios e contra pesos (checks and balances) e na inafastabilidade do controle ulterior por parte do Poder Judiciário[26].

Por fim, ainda no campo das possíveis mudanças legislativas, é imprescindível que o processo penal brasileiro se modernize e se adeque às novas espécies de criminalidade, talvez buscando inspiração em modelos estrangeiros que tenham apresentado algum êxito neste sentido e possam ser adaptados à nossa realidade[27].

3.2.Sugestões de intervenção do Ministério Público como protagonista da busca por um novo paradigma para o sistema de justiça criminal no Brasil.

No entanto, as alterações legislativas sugeridas não são novidade. Aliás, apesar de possíveis, realisticamente falando, são elas pouco prováveis. Tanto já se falou de suas necessidades que qualquer mudança dentre as apontadas acima, em curto ou médio prazo, seria uma enorme e agradável surpresa.

Como são o Congresso Nacional e a Presidência da República os detentores do “poder político constitucional” para a promoção dessas modificações, cabe ao Ministério Público, na condição de titular exclusivo da ação penal pública e como sendo o órgão a quem a Constituição confiou a missão de zelar pela paz social, interesses sociais - como a segurança pública - e eficiência das ações policiais, elaborar e colocar em prática o que se pode chamar de projeto de redução da desigualdade na aplicação do direito penal no Brasil.

Minha sugestão é que este plano seja centrado em dois eixos que se complementam, na busca pela mudança do enfoque de atuação das agências de criminalização secundária: um controle externo material da atividade policial e a investigação direta de infrações penais pelo Ministério Público.

3.2.1.       Controle externo material da atividade policial.

A Constituição do Brasil estabelece como uma das funções institucionais do Ministério Público o exercício do “controle externo da atividade policial, na forma de lei complementar”.

Referida Lei Complementar é a Lei nº 75/93, a qual, de maneira bastante aberta, estabelece os princípios que devem orientar o exercício desta atividade, dentre eles devendo aqui ser apontado o de buscar respeitar os direitos assegurados na Constituição Federal e na lei (artigo 3º, “a”).

No entanto, em seu Capítulo II, ao elencar as medidas judiciais e extrajudiciais referentes ao controle externo da atividade policial a lei parece de uma obviedade gritante, dando a clara impressão de se tratarem de repetições de outras atribuições já conferidas por lei ao Ministério Público, em sua essência[28].

Como o legislador complementar deixou a desejar ao apresentar genéricas e já conhecidas ações de controle externo da atividade policial, cabe ao Ministério Público nortear a sua atuação nesta atividade interpretando a própria Constituição Federal de 1988.

O Ministério Público brasileiro deve, assim, neste particular, exercer o controle externo da atividade policial procurando corrigir as distorções ao princípio constitucional da igualdade (artigos 5º e 6º da CF), assegurando o direito social à efetiva segurança pública (artigo 6º da CF) de todo o cidadão e buscando legitimar a sua condição institucional de titular exclusivo da ação penal pública (artigo 129, I da CF).

Como premissa básica é preciso reconhecer a necessidade de seleção na atividade policial de prevenção e investigação[29]. Enquanto houver um número de leis penais que torne impossível uma atuação policial capaz de aplicá-las uniformemente é imprescindível selecionar e superar, assim, o mito do princípio da obrigatoriedade da investigação e da ação penal pública[30].

Num segundo momento, é imprescindível que o Ministério Público se torne parte ativa desta seleção. Ou seja, possa ser efetivamente capaz de influenciar e, em conjunto com as polícias, fazer escolhas[31] e definir pautas de atuação de acordo com uma política de segurança pública com metas e objetivos democraticamente estabelecidos.

A atual passividade com que age o Ministério Público torna-o corresponsável pelas inúmeras distorções que se operam na realidade do “sistema de justiça criminal”. É preciso estabelecer uma postura proativa, superando preconceitos e reconhecendo a necessidade de se fazer um verdadeiro planejamento interinstitucional entre as polícias e o parquet.

Não se propõe aqui uma relação verticalizada entre as polícias e o Ministério Público, mas de interação horizontal, através da qual se permita o desnudamento e o debate dos critérios que são hoje usados para a seletividade da atuação policial.

Aliás, a interpretação literal da palavra controle parece ter feito com que o Ministério Público se sinta apenas um fiscal da polícia, numa relação quase que hierarquizada. Não quero dizer que a fiscalização da atividade policial seja prescindível. Longe disso, faz ela parte importante dos deveres institucionais do parquet, especialmente quando a atuação policial é ilegal.

No entanto, não se pode olvidar que a polícia é uma instituição vinculada e subordinada ao Poder Executivo, não sujeita, portanto, hierarquicamente ao Ministério Público. De outro lado, este é o titular exclusivo da ação penal pública, destinatário único das investigações policiais.

Estas posições e atribuições constitucionais forçam o intérprete a, interpretando a Constituição de maneira textual (não confundir com literal), contextualizar a palavra controle para emprestá-la um sentido de atuação conjunta entre polícia e Ministério Público, em cooperação, unidade, obrigando este a se aproximar irremediavelmente das polícias para fielmente desempenhar o seu papel.

Antes disso, contudo, parece imprescindível que cada Ministério Público deva estabelecer uma verdadeira política institucional de atuação no controle externo material da atividade policial, superando o voluntarismo de alguns poucos que têm se dedicado a enfrentar o tema de maneira isolada[32].

Como resultado, se espera que o Ministério Público deixe de se apresentar como mero ratificador ou expectador passivo do trabalho policial ou, nas palavras de René Ariel Dotti, um mero “repassador da prova colhida[33]”.

Além disso, a formação de uma pauta de atuação comum e a inserção do Ministério Público no âmago do trabalho investigativo pode ser uma solução para reduzir as diligências inúteis e definir estratégias iniciais de preservação formal e material das provas produzidas na investigação em eventual futura ação penal[34].

O Ministério Público precisa definitivamente tornar efetiva a sua condição de titular exclusivo da ação penal pública, garantida pelo artigo 129, I, da Constituição Federal. Ao titular da ação penal caberia, em tese, decidir com exclusividade os casos penais a serem apreciados pelo Poder Judiciário.

Esta parcela de poder do Estado foi atribuída pela Carta Magna tão e somente ao Ministério Público, porém, não passa hoje de um discurso retórico e distante da realidade.

É imprescindível reconhecer que quem decide hoje, de fato, quais casos penais serão submetidos ao Poder Judiciário é a polícia e dela, por sua omissão, fez-se refém o parquet!

Eis, portanto, talvez um dos caminhos para se fiscalizar os critérios arbitrários de seletividade que causam distorções graves no nascedouro do “sistema de justiça criminal”, ao mesmo tempo em que se pode pensar numa investigação criminal eficiente e produtiva, com a colheita somente de provas necessárias e voltadas desde logo à segunda fase da persecução penal.

3.2.2.       Investigações diretas de infrações penais pelo Ministério Público.

A execução de uma política institucional de controle externo material da atividade policial, que contemple atuação no viés acima indicado, certamente não é a única forma através da qual pode o Ministério Público servir de agente transformador da realidade do sistema de justiça criminal brasileiro.

As policiais são órgãos do Poder Executivo e, portanto, sujeitas a uma série de circunstâncias que limitam por natureza a sua capacidade de ação. Estas limitações devem ser reconhecidas como próprias da posição na qual o Constituinte Originário situou as polícias brasileiras.

Portanto, além de atuar em parceria com os órgãos de segurança na seleção de prioridades que podem ser denominadas de “comuns”, o Ministério Público deve, internamente, fixar as suas próprias diretrizes para o exercício da atividade de investigação direta de uma parcela de infrações penais, em casos “excepcionais”[35].

O critério a pautar esta seleção interna não pode ser outro que não seja o de identificar aquela criminalidade cuja tendência é de ainda resistir a uma ação integrada entre o Ministério Público e as polícias, dadas as peculiaridades próprias do espaço em que estas se situam na estrutura do Estado brasileiro, já referido.

Além disso, esta seleção deve também ser realizada de acordo com metas e objetivos de uma política estadual de segurança pública previamente discutida democraticamente.

Outro ponto de fundamental importância neste tema é que a atividade de investigação direta pelo Ministério Público acarreta naturalmente em algum desgaste pessoal - dos agentes ministeriais responsáveis pela sua execução - e institucional.

Este impacto negativo deve ser administrado pela instituição de modo a conferir um equilíbrio entre a necessidade de estreitamento e fortalecimento das relações com as polícias (no campo do controle externo, sobretudo material) sem que isso importe em obstaculizar um combativo trabalho de investigação direta do parquet, que invariavelmente tem por objeto infrações penais praticadas pelos próprios agentes policiais.

Duas formas de facilitar o balanceamento deste delicado cenário são: a) a já referida seleção, com base em critérios previamente discutidos, da seara em que se dará a apuração direta de infrações penais pelo Ministério Público; b) a cisão de atribuições entre as atividades de execução do controle externo da atividade policial e da investigação[36].

Não obstante, é altamente recomendável que cada Ministério Público reflita e discuta suas próprias peculiaridades, estruturando-se de acordo com as demandas locais, sendo as ideias acima apenas propositivas diante de um quadro hipotético que considero ideal[37].

Definidas as estratégias de cada Ministério Público, é preciso concentrar investimentos para treinamento de membros e servidores, bem como aquisição de equipamentos de vanguarda que permitam à instituição atuar com eficiência frente à criminalidade que tem o dever de atingir: a do colarinho branco, detentora do poder econômico e político.


4.      Conclusão.

Mostra-se imprescindível que se inicie um processo de transformação de atuação das agências de criminalização secundária no Brasil, sendo que o Ministério Público possui todas as condições para assumir tal papel e resgatar de fato o seu protagonismo na interpretação e aplicação do Direito Penal e do Processo Penal.

Já é tardio o início deste Movimento de superação dos entraves à atuação do Estado sobre a criminalidade de colarinho-branco, não havendo qualquer expectativa de que as mudanças se operem de forma repentina, até porque dependem também, e principalmente, de uma verdadeira transformação da cultura de atuação profissional de advogados, promotores, juízes e policiais.

É a posição compartilhada por ZUGALDIA ESPINAR:

“(...) a legitimidade do Direito Penal de um Estado Social e Democrático de Direito passa por remover os obstáculos que impedem a criminalização secundária dos setores sociais altos e por tomar consciência da ´armadilha` que pode supor a carência por parte do Estado de um interesse sério em prevenir a delinquência marginal para poder seguir utilizando o despossuído criminalizado como ´bode expoatório` (as prisões, queiramos ou não, estão cheias, ainda que sempre com os mesmos), isto é, como expressão simbólica do bom funcionamento de um sistema que lava as mãos criminalizando (ainda que só em nível primário) a delinquência dos setores sociais mais favorecidos.”[38]

Finalizo com as palavras magistralmente ditas por CONDE e HASSEMER, tão pertinentes e, acima de tudo, tão reais:

“É evidente que existem determinadas anomalias psíquicas, genéticas etc. que levam à predisposição de determinados delitos. Também é certo que alguns defeitos na socialização favorecem certas formas de criminalidade. Mas isso não justifica que a imagem da criminalidade, que aparece quase sempre nos livros e obras gerais, Tratados e Manuais de Criminologia, seja aquela levada a cabo por sujeitos patológicos e marginalizados sociais. Nos Manuais de Criminologia, muito se fala de psicopatas, de assassinos em série, estupradores de crianças; de brigas de jovens que alteram a ordem pública nos estádios de futebol, que cometem atos de vandalismo, que consomem ou traficam drogas, ou roubam em supermercados; mas pouco, para não dizer nada, se fala da criminalidade dos poderosos; da personalidade egoísta, da insensibilidade social e desumana do empresário ou dos membros do Conselho de Administração, que decidem não pagar o salário digno ou não fazer determinadas inversões sociais em beneficio dos trabalhadores, que cometem fraudes fiscais, que provocam a insolvência fraudulenta da empresa, deixando na rua milhares de trabalhadores, que não adotam medidas que evitem a poluição do meio ambiente ou a fabricação de produtos defeituosos; como tampouco se fala do banqueiro frio, calculista e ambicioso que administra especulativamente as economias alheias, que cria sociedades de fachada em paraísos fiscais, que se presta a interesses muito mais elevados, lavagem de dinheiro procedente de atividades ilegais; ou de políticos corruptos, dos intermediários entre estes e os empresários ambiciosos que esperam conseguir subvenções ou concessões de obras públicas; do financiamento ilegal de partidos políticos; dos grandes lideres da máfia e do narcotráfico, de seus assessores jurídicos. Será que isso não é criminalidade? Será que uma fraude financeira de grande volume não produz maior dano social que todos os furtos e roubos cometidos em uma década em um país? Talvez possa parecer exagerado ou demagógico, mas aos olhos do tipo de criminalidade julgada diariamente pelos Tribunais, e da criminalidade que também é raramente objeto de sanção penal, muitas vezes vem à mente a oportuna e irônica frase de Bertold Brecht: “O que é mais grave, assaltar um banco ou fundar um?.”[39]                 


5.      Referências bibliográficas.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999.

BUSATO, Paulo César. Direito Penal e Ação Significativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal: fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.

CONDE, Francisco Munoz e BUSATO, Paulo César. Crítica ao direito penal do inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

CONDE, Francisco Munoz e HASSEMER, Winfried. Introdução á Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

DALLAGNOL, Deltan Martinazzo “Controle externo da atividade policial: panorama, problemas e perspectivas” Disponível em: <http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-e publicacoes/artigos/artigo_problemas_perspectivas_controle_externo_atividade_policial.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2014.

Dotti, René Ariel. O Ministério Público e a Polícia Judiciária: relações formais e desencontros materiais. In: MORAES, Voltaire de L. (Org.). Ministério Público, Direito e Sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.

Gazoto, Luiz Wanderlei. O Princípio da Não-Obrigatoriedade da Ação Penal Pública. Disponível em: <https://sites.google.com/site/luiswanderleygazoto/meus-textos/o-princpio-da-no-obrigatoriedade-da-ao-penal>. Acesso em 23 de julho de 2014.

ROSA, Alexandre Morais. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor>. Acesso em 18 de julho de 2014.

SALGADO, Daniel de Resende. “O controle externo, a seletividade e a ineficiência da investigação criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. Coordenadores: Daniel, Dental e Monique Cheker, Editora Jurispodvm, Salvador, 2013.

WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.265.

ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.46.


Notas

[1] BUSATO, Paulo César. Direito Penal e Ação Significativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.63-64.

[2] A obra referência desta proposta é Política criminal e sistema jurídico penal, traduzida para o português por LUÍS GRECO.

[3] CONDE, Francisco Munoz e HASSEMER, Winfried. Introdução á Criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.5

[4] A expressão “sistema de justiça criminal” será usada no artigo referindo-se ao conjunto de órgãos e instituições responsáveis pela elaboração, interpretação e aplicação do Direito Penal e do Direito Processual Penal brasileiro, de maneira interligada e funcional, em que cada uma delas desempenha uma atribuição definida com antecedência pela Constituição e pelas leis brasileiras.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.46.

[6] De acordo com CONDE e HASSEMER, a base para o desenvolvimento da teoria do “labeling approach” se deu na criminologia norte-americana dos anos 60, com LEERT, ERICKSON, SHUR e BERCHER e também com o trabalho de sociólogos e criminólogos europeus como TAYLOR, WALTON e YOUNG, na Inglaterra; SACK, na Alemanha; BARATTA, na Itália; BERGALLI, na Espanha, op. cit., p.93.

[7] BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.85-92.

[8] Muito embora o Poder Judiciário receba do discurso dos juristas a função de redução do poder punitivo do Estado, na prática, ele não apenas reproduz a seletividade realizada com antecedência pela polícia e pelo Ministério Público, mas realiza internamente sua própria seleção, aumentando a desigualdade na aplicação das leis penais.

[9] A maneira como é elaborada a estatística criminal nacional de segurança pública no Brasil já revela, por si só, este desequilíbrio e seletividade. Realizada desde o ano de 2005, com sua base de dados sendo o número de ocorrências policiais registradas, não há informações referentes à renda per capta dos noticiados como sendo autores de infrações penais, somente identificando-os por sexo, faixa etária e raça. Não há, ainda, dados sobre eventual investigação que tenha sido instaurada com base no registro da ocorrência, tampouco de seu resultado. No entanto, alguns dados chamam a atenção, como o número total de registros de crimes contra a administração pública no país no ano de 2012, que é 1.479, contabilizando 0,3% do total e o de crimes praticados por particular contra a administração pública, 1.224, representando 0,2% do todo. Uma leitura destes números nos levaria a concluir que crimes de peculato, concussão, corrupção ativa e passiva praticamente não acontecem no Brasil, o que parece efetivamente não corresponder à realidade. Outros delitos de colarinho branco, como a lavagem de dinheiro, sequer são relacionados estatisticamente. Estes dados se encontram no 7º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em novembro de 2013 e confeccionado com base em informações do Sistema Nacional de Estatística de Segurança Pública e Justiça Criminal – SINESPJC, a cargo do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). Metodologia, histórico e objetivo do SINESPJC podem ser encontrados em: <http://ces.ibge.gov.br/base-de-dados/metadados/ministerio-da-justica-mj/sistema-nacional-de-estatistica-de-seguranca-publica-e-justica-criminal-sinespjc> e os dados divulgados em novembro de 2013 estão em: <http://www.forumseguranca.org.br/produtos/anuario-brasileiro-de-seguranca-publica/7a-edicao>. Ambos os acessos em 23 de julho de 2014.

[10] Importante aqui a noção de criminalização primária como sendo o programa penal de determinado país através de suas leis criminalizadoras de condutas enquanto que criminalização secundária é entendida como a forma como o programa é levado a cabo pelas agências do Estado. (ZAFFARONI, BATISTA, ALAGIA e SLOKAR, op. cit. p.43-53.

[11] Zaffaroni, op. cit., p.44.

[12] CONDE, Francisco Munoz e BUSATO, Paulo César. Crítica ao direito penal do inimigo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p.158.

[13] Neste sentido, as obras de WILLIAM J. STUNTZ, The colapse of american criminal justice e Harvey a. SILVERGATE, Three felonies a day.

[14] O principal instrumento de investigação da polícia brasileira é o Inquérito Policial, símbolo de poder dos Delegados de Polícia que se recusam a buscar outras formas mais eficientes para investigar crimes. Ritualizado, formalista, recheado de atos inúteis, enfim, um exemplo perfeito de atividade burocrática do Estado.

[15] WEBER, Max. Ensaios de sociologia. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.265.

[16] Zaffaroni, op cit., p.38-59.

[17] Escolhi usar a expressão “crime de colarinho branco’” ´por que me parece a mais adequada à amplitude da ideia passada pelo texto. A expressão, em inglês “white-collar crime”, foi cunhada por Edwin Sutherland em 1939, que definiu o termo como sendo um “crime cometido por uma pessoa de alta e respeitável posição social praticado no exercício de seu trabalho”. No original, "a crime committed by a person of respectability and high social status in the course of his occupation", em <http://www.law.cornell.edu/wex/white-collar_crime>. Acesso em 23 de julho de 2014. Para saber mais, especialmente sobre as estratégias de atuação do Federal Bureau of Investigation (FBI) no combate a esta criminalidade nos Estados Unidos da América <http://www.fbi.gov/about-us/investigate/white_collar/whitecollarcrime>. Ambos os acessos em 23 de julho de 2014.

[18] O Brasil já possui a terceira maior população carcerária do mundo. Dados divulgados no dia 30 de novembro de 2013 revelam que dos 548.168 presos brasileiros somente 2.703 (0,49%) se encontravam detidos pela prática de crimes contra a administração pública, como peculato e corrupção. Por outro lado, 267.975 (49%) da população carcerária era formada por presos acusados de praticar crimes contra o patrimônio, como o furto. Dados disponíveis em <http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/por-quais-crimes-as-pessoas-estao-presas-no-brasil/>. Acesso em 23 de julho de 2014.

[19] Vários fatores parecem ser decisivos para isso, como a formação jurídica dos profissionais, circunstâncias sociais (os acusados são da mesma posição social de seus acusadores e julgadores) e psicológicas (empatia com o acusado). Outrossim, o Estado não é estruturado para lidar com esta criminalidade. É fato a inexistência de órgãos especializados para o combate aos crimes de colarinho branco (corrupção e lavagem de dinheiro, por exemplo) na estrutura da polícia, Ministério Público e Poder Judiciário dos Estados brasileiros. No Estado do Paraná, em particular, não existem Varas Criminais especializadas em processar crimes de colarinho branco. No Ministério Público há os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECOs) e na estrutura da Polícia Civil os Núcleos de Repressão aos Crimes Econômicos (NURCEs).

[20] Como exemplo, é fácil constatar que os critérios de avaliação do conjunto de provas de casos penais da criminalidade não convencional são geralmente os mesmos utilizados em casos mais simples, rotineiros, o que pode ser interpretado como ofensa ao principio da isonomia material. Parece ser razoável afirmar que Promotores de Justiça e Juízes de Direito não deveriam buscar encontrar os mesmos meios de prova que comumente estão disponíveis em casos de baixa complexidade, como a confissão, por exemplo, nos chamados crimes de colarinho branco, em que são mais raras tais hipóteses.

[21] ROSA, Alexandre Morais. Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2014-jul-18/limite-penal-duracao-razoavel-contrapartida-igual-prometer-amor>. Acesso em 18 de julho de 2014.

[22] Exemplo disso é que somente através da Lei nº 12.850/2013 se definiu Organização Criminosa na legislação brasileira e, ainda timidamente, foram aperfeiçoados alguns instrumentos processuais próprios ao combate desta espécie de criminalidade como a colaboração premiada, a ação controlada e a infiltração de agentes.

[23] BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal: fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.88.

[24] Artigo 127, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil.

[25] Op. cit. p.89.

[26] Embora o tema seja de grande densidade para ser tratado aqui, pode-se afirmar que seriam assim evitados os principais problemas que hoje se apresentam, por exemplo, no sistema de justiça criminal dos Estados Unidos da América, aonde a prosecutorial discretion é alvo de devastadoras críticas pelos doutrinadores, diante os poderes conferidos aos prosecutors para arbitrariamente decidir quais casos processar, como processá-los e numa ampla liberdade para celebração de acordos com imposições antecipadas de penas privativas de liberdade (plea bargaining), sem nenhuma possibilidade de controle pelo Poder Judiciário. 

[27] Neste sentido, é urgente a necessidade de repensar o Inquérito Policial como instrumento eficaz à investigação criminal e valorizar as decisões dos juízes de primeiro grau, limitando a possibilidade de recursos às instâncias superiores, dentre outras medidas que fogem do escopo deste trabalho.

[28] SALGADO, Daniel de Resende. “O controle externo, a seletividade e a ineficiência da investigação criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. Coordenadores: Daniel, Dentan e Monique Cheker, Editora Jurispodvm, Salvador, 2013, p.166.

[29] DALLAGNOL, Deltan Martinazzo compartilha deste pensamento em seu artigo “Controle externo da atividade policial: panorama, problemas e perspectivas”. Disponível em: <http://2ccr.pgr.mpf.mp.br/documentos-e publicacoes/artigos/artigo_problemas_perspectivas_controle_externo_atividade_policial.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2014.

[30] São várias as referências sobre esta nova perspectiva de roupagem ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, merecendo ser citada a tese de mestrado do Procurador da República Luis Wanderlei Gazoto, O Princípio da Não-Obrigatoriedade da Ação Penal Pública. Disponível em: <https://sites.google.com/site/luiswanderleygazoto/meus-textos/o-princpio-da-no-obrigatoriedade-da-ao-penal>. Acesso em 23 de julho de 2014.

[31] Poderiam ser fixados critérios objetivos para tais escolhas, com base em dados estatísticos, sempre visando reduzir ao máximo a discricionariedade arbitrária que hoje impera.

[32] Como algumas iniciativas neste sentido, ainda que com o foco no aspecto formal do controle, pode-se mencionar a Resolução nº 20, do Conselho Nacional do Ministério Público, que busca disciplinar e definir formas de atuação no controle externo da atividade policial e o Manual Nacional do Controle Externo da Atividade Policial, elaborado pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, disponível em: <https://www.mprr.mp.br/app/webroot/uploads/Manual_do_Controle_Externo.pdf>. Acesso em 23 de julho de 2014.

[33] Dotti, René Ariel. O Ministério Público e a Polícia Judiciária: relações formais e desencontros materiais. In: MORAES, Voltaire de L. (Org.). Ministério Público, Direito e Sociedade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.

[34] Acerca deste particular aspecto no que tange à intervenção efetiva do Ministério Público coleta da prova na fase investigatória vide SALGADO, Daniel de Resende.  “O controle externo, a seletividade e a ineficiência da investigação criminal” em CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. Coordenadores: Daniel, Dental e Monique Cheker, Editora Jurispodvm, Salvador, 2013.

[35] A investigação direta pelo Ministério Público não deveria, teoricamente, abarcar todos aqueles chamados crimes de colarinho-branco, podendo o seu objeto ficar restrito a uma criminalidade organizada que logrou êxito em se expandir para dentro da própria estrutura do Estado, por exemplo. Nestes casos, parece-me que as polícias, na sua atual conformação constitucional, mostrar-se-iam incapazes de agir eficientemente na atividade investigatória, mesmo se “amparadas” pelo parquet através de uma execução da atividade do controle externo material, já colocada. Não obstante, no estado atual de coisas, a investigação direta pelo Ministério Público é definida de maneira muito mais ampla, haja vista a completa inoperância do “Estado policial”. Um bom exemplo desta amplitude é a Resolução nº 1.801/2007, que regulamente os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), no Ministério do Estado do estado do Paraná. e define seu vasto campo de atuação no artigo 5º.     

[36] Embora situadas as atribuições em órgãos distintos, a proximidade e a troca de informações entre eles é de fundamental importância, inclusive podendo haver, por exemplo, um mesmo setor de operações e/ou de serviço de inteligência.

[37] No Ministério Público do Distrito Federal e Territórios e no Ministério Público do Rio Grande do Sul as atribuições de controle externo da atividade policial e dos GAECOs são situadas em órgãos distintos, enquanto que no Estado do Paraná há uma recente tendência de seguir estes modelos de separação, já que, nos termos da Resolução n. 1.801/2007, as atribuições de controle externo competem também aos GAECOs.

[38] In BUSATO e HUAPAYA, op. cit. p.88-89.

[39] Op. cit. p.123-124.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GLITZ, André Tiago Pasternak. Um novo paradigma para a atuação criminal do Ministério Público: o controle externo material da atividade policial e a investigação direta de infrações penais como formas de redução da desigualdade no processo de criminalização secundária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4117, 9 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32638. Acesso em: 27 abr. 2024.