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Teto constitucional de remuneração

impasse artificial

Teto constitucional de remuneração: impasse artificial

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O impasse em torno da definição do teto nacional de retribuição dos agentes públicos encontra uma solução na própria Constituição Federal. Trata-se da norma contida no art. 60, §4º, inciso III, da Lei Fundamental. Segundo a disposição, não será objeto de deliberação a proposta de emenda constitucional tendente a abolir a Separação dos Poderes. A norma insere-se entre as chamadas cláusulas pétreas. Explique-se a afirmação.

O impasse para a definição do teto não diz respeito ao valor a ser fixado. Este é apenas a parte visível da discussão. O impasse resulta basicamente da exigência de um concerto absoluto, um entendimento prévio, formal, entre o Presidente da República, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, o Presidente da Câmara e do Senado Federal sobre o projeto de lei fixador dos limites. É a exigência da "iniciativa conjunta" para fixação dos subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal, contemplada no art. 48, inciso XV, da Lei Fundamental, a razão primeira do dissídio na matéria. Trata-se de uma disposição anômala, introduzida na Câmara dos Deputados durante a tramitação da emenda constitucional da reforma administrativa, objeto permanente de questionamento das assessorias técnicas da Câmara, do Senado e do Executivo. Por ela é possível a qualquer das autoridades envolvidas na discussão do tema uma espécie de "recusa prévia", um "non liquet", obstaculizador de qualquer iniciativa das demais autoridades envolvidas. Basta que uma das autoridades recuse a sua assinatura ao projeto de lei e o impasse se afirma. A norma criou um esdrúxulo "veto a projeto de lei". Mais do que isso: retirou do Supremo Tribunal Federal a iniciativa privativa de lei para definição da retribuição dos seus membros, com repercussão direta para o restante da magistratura.

Como é sabido, segundo o art. 96, inciso II, alínea b, da Constituição da República, compete privativamente ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores e aos Tribunais de Justiça propor ao Poder Legislativo respectivo, a criação e a extinção de cargos e a remuneração dos seus serviços auxiliares e dos juízos que lhes forem vinculados, bem como a fixação do subsídio de seus membros e dos juízes, inclusive dos tribunais inferiores. A norma faz apenas uma ressalva: o disposto no art. 48, XV (a fixação, por iniciativa conjunta, do subsídio dos ministros do STF). Essa ressalva do art. 96 e a iniciativa conjunta prevista no art. 48 devem ser objeto de expurgo constitucional, vale dizer, de declaração de inconstitucionalidade, com fundamento no princípio da separação do Poderes, restabelecendo-se a iniciativa reservada da Suprema Corte na matéria.

É óbvio que qualquer iniciativa do Supremo Tribunal Federal, quanto à definição do subsídio dos ministros da corte, como as demais hipóteses referentes à magistratura, exige votação nas duas casas legislativas e sanção ou veto pelo Poder Executivo. Mas o que resvala para a ilegitimidade constitucional é a exigência de que a própria iniciativa do projeto de lei dependa da concordância plena de todos os presidentes referidos. Como as divergências partidárias entre esses atores políticos são comuns, esse entendimento mútuo prévio e formal, fora do processo de discussão parlamentar, é praticamente inviável. Com a exigência formal, tolhe-se a iniciativa da corte na origem, acanhando desarrazoadamente as garantias da magistratura e violando diretamente a autonomia administrativa do Poder Judiciário. Torna-se letra morta a iniciativa privativa de lei prevista para os demais Tribunais (CF, art. 96, inciso II, alínea b), pois ela permanece indiretamente dependente da decisão unipessoal de chefes políticos de outros órgãos constitucionais. Constrangem-se princípios que nem mesmo uma emenda constitucional pode desconsiderar.


Essa compreensão do tema não é nova, nem resulta de uma "hermenêutica de interesse", de uma posição corporativa ou reativa, pois a venho sustentando há mais de dois anos em quase duas dezenas de congressos acadêmicos, e a apresentei, desde 1996, de forma privada, ao próprio relator da proposta de emenda constitucional na Câmara dos Deputados, Dep. Moreira Franco. É triste constatar, porém, que o problema continua praticamente no mesmo estado em que se encontrava há anos atrás.

O impasse, no entanto, é artificial, pois foi estimulado por norma inválida, que pode e deve ser removida mediante a plena restauração da ordem constitucional. Basta que as entidades ou as autoridade legitimadas para uma ação direta de inconstitucionalidade provoquem a Suprema Corte. O Supremo Tribunal Federal certamente preservará a autonomia da magistratura, elemento indiscutível e inegociável do Estado de Direito, criando condições para uma discussão mais democrática e serena do tema dentro do Congresso Nacional.


Autor

  • Paulo Modesto

    Paulo Modesto

    membro do Ministério Público da Bahia, professor de Direito Administrativo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade Salvador (UNIFACS), professor e coordenador do curso de especialização em Direito Público da UNIFACS

    é também membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo e do Instituto dos Advogados da Bahia, conselheiro técnico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), vice-presidente do Instituto de Direito Administrativo da Bahia (IDAB) e ex-assessor especial do Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998).

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MODESTO, Paulo. Teto constitucional de remuneração: impasse artificial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 40, 1 mar. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/330. Acesso em: 28 mar. 2024.