Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/pareceres/33222
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A utilização da Teoria da Reserva do Possível

A utilização da Teoria da Reserva do Possível

Publicado em . Elaborado em .

Comentários ao julgado trazendo uma reflexão quanto a aplicação da Teoria da Reserva do Possível

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PACIENTE PORTADORA DE DOENÇA PULMONAR OBSTRUTIVA CRÔNICA (DPOC) - CID J44.8. NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE FORMA GRATUITA PELO ESTADO. REEXAME NECESSÁRIO CONHECIDO DE OFÍCIO. A APLICAÇÃO POR ANALOGIA DO ARTIGO 19 DA LEI Nº 4.717/65. PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO AFASTADA. O MINISTÉRIO PÚBLICO É PARTE LEGÍTIMA PARA INGRESSAR EM JUÍZO COM AÇÃO CIVIL PÚBLICA VISANDO A COMPELIR QUALQUER ENTE FEDERATIVO A DISPONIBILIZAR TRATAMENTO INDISPENSÁVEL À SAÚDE DE PESSOA INDIVIDUALIZADA. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. INAPLICABILIDADE. TRATAMENTO INDISPENSÁVEL À MANUTENÇÃO DA SAÚDE DA PACIENTE. OFENSA AO DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE E À VIDA. ARTIGO 196 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DEVER DO ESTADO. OBSERVÂNCIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS ORÇAMENTÁRIAS QUE NÃO CONSTITUI ÓBICE A DISPONIBILIZAÇÃO DE PROGRAMAS DE SAÚDE. NECESSIDADE DO TRATAMENTO COMPROVADA. PRESCRIÇÃO ESPECÍFICA DO TRATAMENTO POSTULADO FEITA POR PROFISSIONAL HABILITADO.MÉDICO ESPECIALISTA QUE POSSUI AS MELHORES CONDIÇÕES DE AVERIGUAR AS REAIS NECESSIDADES DA PACIENTE. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES. COMPROVADA LESÃO DE DIREITO FUNDAMENTAL QUE LEGITIMA A CONDUTA PRÓ-ATIVA DO PODER JUDICIÁRIO.PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE (CF, ART. 5º, INCISO XXXV). DEVER DE FORNECIMENTO DA MEDICAÇÃO. RECURSO DE APELAÇÃO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA EM SEDE DE REEXAME NECESSÁRIO CONHECIDO DE OFÍCIO.

(TJPR - 4ª C.Cível - AC - 1062312-2 - Umuarama -  Rel.: Maria Aparecida Blanco de Lima - Unânime -  - J. 03.09.2013)

- Comentário

Trata-se de Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público com o intuito de obrigar o Estado do Paraná a fornece o medicamento Spiriva Respimat (brometo de tiotrópio) gratuitamente à Tereza Conceição do Prado Perialdo, tendo em vista o art. 196[1] da Constituição Federal.

A Ação foi julgada procedente e o Estado do Paraná interpôs apelação alegando que não se deve interpretar o disposto no artigo 196 da Constituição da República de forma tão ampla, devendo sempre se levar em conta o posicionamento do Supremo Tribunal Federal lançado na Suspensão de Segurança nº 175.

Conforme esse entendimento, o fornecimento de medicação deve observar os limites dos programas de medicamentos de responsabilidade do Ministério da Saúde.

O Estado Paraná alega que, In casu, o medicamento não faz parte dos Protocolos Clínicos de Diretrizes Terapêuticas e nem do RENAME (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), e que por essa razão o seu fornecimento violaria o princípio da legalidade, além de não possuir eficácia comprovada, o que causaria sério risco para a saúde da paciente.

Ainda, o Estado do Paraná alega a impossibilidade de o Poder Judiciário desenvolver ou efetivar direitos sem que existam meios materiais disponíveis para tanto, trazendo a tona a teoria da reserva do possível, aduzindo que a escassez de recursos obsta o fornecimento do tratamento de alto custo pleiteado. Afirma que a procedência da ação viola o princípio da separação dos poderes, afinal apenas os Poderes Executivo e Legislativo possuem legitimidade democrática para estabelecer políticas públicas.

Pois bem. A saúde é um direito público fundamental, indisponível, de aplicabilidade imediata, que é conectado à dignidade da pessoa humana. O direito à saúde deve ser informado pelo direito à vida (artigo 5º da Constituição Federal), assim, nos casos de doença, cada cidadão tem o direito a um tratamento digno, independentemente de sua condição econômica, devendo o Estado implementar as devidas políticas públicas[2].

Todavia, há entendimento jurisprudencial equivocado no sentido de que o Estado só deve se obrigar a fornecer os medicamentos previstos no RENAME:

ADMINISTRATIVO. SUS. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS NÃO-DISPONIBILIZADOS. DIREITO À SAÚDE. 1. O direito à saúde é assegurado no constitucionalismo contemporâneo dentro da categoria dos denominados direitos sociais, que se voltam para a dimensão social do ser humano e implicam ações do Estado destinadas à garantia de condições materiais básicas para todos os cidadãos. Ao contrário dos direitos individuais que constituem direitos a abstenções do Estado, os sociais são direitos a prestações do Estado, requerendo um prestar ou fazer estatal para o seu exercício e impondo a realização de políticas públicas, isto é, um conjunto sistematizado de programas da ação governamental. 2. O direito à saúde constitucionalmente garantido tem uma dimensão em que se mostra como direito coletivo, público, assegurando a todos um atendimento adequado e correto. 3. O remédio "Entecavir" não está incluso na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (RENAME), que norteia a oferta, a prescrição e a dispensação de medicamentos nos serviços do SUS. No caso dos autos, "Hepatite B Crônica", o SUS disponibiliza outros medicamentos. A invocação da garantia constitucional não se presta a exigir tudo e qualquer coisa que um médico entenda ser o melhor. Os Conselhos de Saúde e os gestores públicos de forma democrática são os que estabelecem os limites em que ele é prestado

(TRF-4 - AG: 10906 SC 2008.04.00.010906-9, Relator: Relatora, Data de Julgamento: 25/06/2008, QUARTA TURMA, Data de Publicação: D.E. 01/09/2008)

Em que pese o entendimento do TRF4, não se pode privilegiar o RENAME em detrimento do direito a vida, sob pena de violação de preceito fundamental garantido constitucionalmente. Essa é a posição majoritária como se vê do acórdãos abaixo:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS. TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA. IMPOSSIBILIDADE ECONÔMICA DA PARTE AGRAVADA. SOLIDARIEDADE ENTRE OS ENTES DA FEDERAÇÃO, INDEPENDENTEMENTE DE INCLUSÃO DA MEDICAÇÃO NA RELAÇÃO NACIONAL DE MEDICAMENTOS ESSENCIAIS RENAME. DIREITO À SAÚDE. SÚMULA 65 DO TJRJ. PRESENÇA DOS REQUISITOS ENSEJADORES DA ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. MANUTENÇÃO DO PRAZO ESTIPULADO PARA O CUMPRIMENTO DA TUTELA ANTECIPADA, DIANTE DA GRAVIDADE DA SITUAÇÃO E URGÊNCIA EM RECEBER O REMÉDIO. SÚMULA Nº 59 TJ/RJ. MULTA FIXADA QUE MERECE SER REDUZIDA PARA R$ 500,00, POR DIA DE DESCUMPRIMENTO. PARCIAL PROVIMENTO DO RECURSO, NA FORMA DO ART. 557, CPC.

(TJ-RJ - AI: 139344020118190000 RJ 0013934-40.2011.8.19.0000, Relator: DES. CLAUDIA TELLES DE MENEZES, Data de Julgamento: 04/05/2011, QUINTA CAMARA CIVEL)

Por isso, in casu, não se pode aplicar a teoria da reserva do possível.

A Teoria da reserva do possível nasceu na Alemanha. A Corte alemã proferiu decisão em demanda judicial ajuizada por estudantes que não haviam sido aceitos em universidades de medicina de Hamburgo e Munique em razão da política de limitação de vagas em cursos superiores imposta pela Alemanha na época. A pretensão dos estudantes baseou-se no artigo 12 da Lei Fundamental Alemã, segundo o qual “todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação”.

Para decidir a demanda, a Corte compreendeu – aplicando a teoria inovadora da “Reserva do Possível” – que o direito à prestação positiva (o número de vagas nas universidades) encontrava-se dependente da reserva do possível, firmando posicionamento de que o cidadão só poderia exigir do Estado aquilo que razoavelmente se pudesse esperar. Dito de outra forma, a Corte Alemã encontrou respaldo na razoabilidade da pretensão frente às necessidades da sociedade.

Verifica-se que a Teoria da Reserva do Possível nasceu da razoabilidade da proposta frente à sua concretização e não se relaciona exclusivamente com a existência de recursos financeiros suficientes para a concretização das normas constitucionais.

Assim, não pode o Estado do Paraná negar a Constituição Federal com o pretexto de que não possui orçamento para fornecer o medicamento. É dever do Poder Público reservar verba orçamentária para garantia do direito à saúde.

Também não merece prosperar a alegação de que a procedência da ação viola o princípio da separação dos poderes. É dever do Poder Judiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV, da ConstituiçãoFederal

Por fim, ressalta-se que o fato de a médica da paciente Tereza Conceição do Prado Perialdo ter receitado o medicamento, por si só comprova a eficácia do remédio, conforme entendimento jurisprudencial[3].


[1] Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[2] O direito à saúde é tratado pela Constituição como direito de todos e dever do Estado. Este deve atuar, através de políticas sociais e econômicas, com o fim de reduzir o risco de doença e de outros agravos, bem como de propiciar acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Diante do comando previsto no art. 196 e considerando que, no caso, está-se diante de direito fundamental social (cf. art. 6º, c/c art. 5º, §2º) que tem aplicação imediata (art. 5º, §1º), deve o Estado atuar para concretizá-lo. (MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal Comentada. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 696.)

[3] “Ademais, não há falar que não restou comprovado que o remédio pleiteado é eficaz no tratamento ou que o remédio fornecido pelo CEMEPAR é ineficaz, pois a receita médica foi prescrita por profissional devidamente capacitado, com conhecimentos médicos suficientes para saber a ação esperada do medicamento, sendo que se receitou medicação específica certamente é por que ela trará os melhores resultados à paciente. Dessa forma, é irrelevante o fato da medicação pleiteada não constar no programa de medicamentos excepcionais, pois tendo em os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, o direito à vida deve prevalecer sobre eventual ausência de referida medicação no programa de medicamentos excepcionais. Além disso, mencionada medicação foi prescrita por profissional da área da saúde, restando comprovada a necessidade da impetrante de ter acesso a tal medicamento”. (Apelação Cível nº 356975-7, Rel. Des. LUIZ MATEUS DE LIMA, DJ 13.04.2007).



Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelo autor. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi.