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Descaminho e insignificância

Descaminho e insignificância

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Recente decisão prolatada no STF reafirma aplicação dos princípios penais tributários ao crime de descaminho, inclusive a incidência do princípio da insignificância em dividas consolidadas de valor inferior a R$ 20 mil.

A ofensa ao bem jurídico se constitui em um princípio vetor do Direito Penal democrático, na medida em que limita o poder punitivo de forma importante, permitindo sua atuação somente quando um valor essencial para a própria existência da sociedade seja atingido pela conduta do agente.

Nesse sentido, para poder cogitar da ocorrência de crime,  deve haver ofensa a um dos valores estabelecidos como essenciais na Constituição Federal, de sorte que o princípio da ofensividade ao bem jurídico traz para o Estado uma fundamental barreira interventiva, pois o Direito Penal cede passagem ao poder punitivo somente quando o agente praticar conduta que agrida ou, ao menos coloque em risco real, um bem jurídico.

Especificamente em relação aos crimes contra a ordem tributária, a matéria tem sido objeto das mais intensas discussões pela Jurisprudência, a fim de estabelecer o campo próprio em que se supera a ofensa insignificante e efetivamente se ingressa em ofensa ao bem jurídico, permissiva da operacionalização do sistema punitivo.

 A verdade é que a ausência de definição legislativa na matéria impulsionou a Jurisprudência a desenvolver um racionamento lógico, a partir dos comandos normativos administrativos, delineando o momento lesivo, nos delitos materiais contra a ordem tributária, em que efetivamente se dá a ofensa ao bem jurídico, suplantando a insignificância e possibilitando, então, o processamento criminal do agente.

Inicialmente a jurisprudência construiu importante regra, com fundamento no princípio da insignificância, ao entender sua presença quando o delito material encontra-se limitado ao valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), na lesão à Fazenda Nacional, e ao valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), quando a lesão fosse contra a Previdência Social.

A base do entendimento, com relação à Fazenda Nacional, foi o artigo 20, da Lei nº 10.522/2002, que dispõe sobre o cadastro informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais, com redação dada pela Lei nº 11.033/2004: “Serão arquivados, sem baixa na distribuição, mediante requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados de valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00.”

Ao estabelecer que dívidas com a Fazenda Nacional até o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais) serão arquivadas, houve reconhecimento da insignificância deste valor, afirmando a ausência de tipicidade penal, nos delitos materiais (STF, HC 96.661/PR, DJ 03/08/2009).

Quanto à Previdência Social a interpretação inicial decorreu do contido na Portaria MPS nº 1.013/2003, ao alterar a redação da Portaria MPAS nº 4.943/1999: “A Dívida Ativa do INSS de valor até R$ 5.000,00 (cinco mil reais), considerada por devedor, não será ajuizada, exceto quando, em face do mesmo devedor, existirem outras dívidas que somadas superem esse montante.”

Com o advento da Portaria 296/06 do Ministro da Previdência e posteriormente com a Lei nº 11.457/2007 que cria a SUPER-RECEITA e, portanto, unifica a arrecadação tributária previdenciária e previdenciária, desaparece qualquer diferenciação passa a vigorar, de forma uniforme, o valor mais favorável ao acusado, qual seja, R$ 10.000, 00 (dez mil reais).

Historicamente se viu manifestar forte resistência administrativa em inserir, na disciplina geral dos crimes contra a ordem tributária, o delito de descaminho e figuras equiparadas, assim disciplinados no artigo 334 do Código Penal:

“Art. 334.  Iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

 Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

§ 1o  Incorre na mesma pena quem: I - pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei;  II - pratica fato assimilado, em lei especial, a descaminho;  III - vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; IV - adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos.

 § 2o Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências.”

A Jurisprudência do Pretório Excelso de há muito, porém, afirma e reafirma que o descaminho, embora situado nos Código Penal no capítulo dos crimes praticados pelo particular contra a administração pública, caracteriza típica hipótese de delito tributário, eis que o objeto material da ação criminosa é o tributo não recolhido pelo agente, em razão de realização de determinada transação comercial.

Nesse sentido, no dia 03 de novembro de 2014 o Ministro LUIS ROBERTO BARROSO concedeu Habeas Corpus (HC 122050) em que reafirma a aplicação do princípio da insignificância ao crime de descaminho, tal qual ele incide em relação aos demais crimes contra a ordem tributária.

Vale observar que foi destacado na decisão concessiva da ordem que a aplicação do princípio da insignificância aos débitos tributários que sejam menores que o valor estipulado como parâmetro para a atuação do Estado em matéria de execução fiscal se constitui em Jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal não permitindo a disparidade de entendimento em instâncias judiciais inferiores, com base nas balizas gerais do princípio da insignificância (mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada), isso porque, nos delitos tributários, inclusive no descaminho, o que orienta a avaliação da tipicidade penal é a relevância do débito para a administração tributária, que já considera a soma dos débitos consolidados e, portanto, a reiteração na conduta, excluindo se argumente com ela para impedir a aplicação do princípio da insignificância, quando mesmo que consolidada a dívida o seu valor não suplante o marco de não execução fiscal.

Seguindo além, e em acordo com as mais modernas orientações doutrinárias, o Ministro LUIS ROBERTO BARROSO observou que sendo o valor de tributos devidos consolidado, no caso concreto, de R$ 17.554,35 se impõe a aplicação do princípio da insignificância, na medida em que o Ministério da Fazenda, por meio da Portaria 75/2012, definiu o valor de R$ 20.000, 00 (vinte mil reais) como novo parâmetro para a atuação da Procuradoria da Fazenda Nacional.

Melhor explicando Em 29 de março de 2012 houve edição da Portaria MF nº 75, que em seu artigo 1º assim disciplina:

O MINISTRO DE ESTADO DA FAZENDA, no uso da atribuição que lhe confere o parágrafo único, inciso II, do art. 87 da Constituição da República Federativa do Brasil e tendo em vista o disposto no art. 5º do Decreto-Lei nº 1.569, de 8 de agosto de 1977; no parágrafo único do art. 65 da Lei nº 7.799, de 10 de julho de 1989 ; no § 1º do art. 18 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002 ; no art. 68 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996 ; e no art. 54 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991 , resolve:

Art. 1º Determinar:

I - a não inscrição na Dívida Ativa da União de débito de um mesmo devedor com a Fazenda Nacional de valor consolidado igual ou inferior a R$ 1.000,00 (mil reais); e II - o não ajuizamento de execuções fiscais de débitos com a Fazenda Nacional, cujo valor consolidado seja igual ou inferior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Dessa forma, foi estabelecido novo valor considerado irrelevante no âmbito administrativo-tributário, o que produz impactos no âmbito criminal.

A esse propósito, são bastante esclarecedores os fundamentos utilizados pelo Pretório Excelso no julgamento do HC 95749 para, antes da edição da Portaria MF nº 75/2012,  definir  a insignificância penal, a época, no marco de R$ 10.000, 00 (dez mil reais).

 Nessa decisão o Supremo Tribunal Federal estabelece como base lógica a ideia de que ao ser fixado comando de não execução para o Procurador da Fazenda, o que existe é um poder-dever, pois ao mesmo tempo em que lhe é outorgada a capacidade de não mover as medidas judiciais para reaver o crédito, tem ele a obrigação de não o fazer.

Esse âmbito gera o quadro de irrelevância para o sistema administrativo-tributário, havendo incongruência lógica se a matéria continua a ter relevância para o direito penal, que se guia pelo princípio de intervenção mínima.

Claramente, portanto, quando a Portaria MF nº 75/2012 altera o valor de não executividade do crédito tributário para R$ 20.000,00 (vinte mil reais) há a produção inexorável da irrelevância administrativo-tributária até este valor, o que, por decorrência lógica inafastável, deve repercutir no âmbito criminal, passando a se considerar insignificante, em relação ao bem jurídico ordem tributária, a lesão de até R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Concluindo, portanto, conforme recém afirmado em concessão de Habeas Corpus pela Corte Máxima, dentro de absoluto alinhamento com o pensamento doutrinário na matéria, na atualidade, em relação aos crimes tributários de resultado material, inclusive o descaminho, somente se pode cogitar da tipicidade penal quando diante de ofensa superior a R$ 20.000,00 (vinte mil reais), devendo ser reconhecida a insignificância, sob o ponto de vista penal, quando se tenha a conduta, embora formalmente ajustada ao tipo, porém que produza, considerado o valor consolidado, lesão inferior a este quantitativo.

Igualmente, os critérios gerais de análise do princípio da insignificância (mínima ofensividade da conduta do agente, ausência de periculosidade social da ação, grau reduzido de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada), que permitem interpretação casuística da matéria, não se aplicam aos crimes tributários, pois o valor mínimo estabelecido para a execução fiscal, gerador de insignificância penal, já considera o valor consolidado, portanto, já trazendo insita a análise da reiteração delitiva, sendo, dessa forma, suficiente o não suplantar do limite legal de atuação da Fazenda Nacional para se impor, independente de outras considerações, o reconhecimento da insignificância pela inexpressiva vulneração do bem jurídico.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Descaminho e insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4374, 23 jun. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33576. Acesso em: 26 abr. 2024.