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Cessão fiduciária de direitos creditórios no direito recuperacional

Cessão fiduciária de direitos creditórios no direito recuperacional

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A sujeição indiscriminada dos créditos utilizados pelas instituições financeiras aos efeitos da recuperação judicial inibiria os efeitos benéficos do instituto, sendo que as operações por eles financiadas seriam cada vez mais ausentes.

INTRODUÇÃO

A cessão fiduciária de direitos sobre bens móveis e títulos de crédito representa importante instrumento de garantia a operações do mercado de capitais e financeiro brasileiro. Sua iminente utilização nos últimos anos ensejou relevante corroboração na manutenção de uma situação estável na economia tupiniquim, em meio à crise mundial recentemente observada.

O instituto é regulado pela Lei 4.728, de 14 de julho de 1965, conforme alterada, que entre outras disposições, trata do mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento (“Lei de Mercado de Capitais”). O artigo 66-B da Lei de Mercado de Capitais, em seu §3º, prevê que:

“Art. 66-B. O contrato de alienação fiduciária celebrado no âmbito do mercado financeiro e de capitais, bem como em garantia de créditos fiscais e previdenciários, deverá conter, além dos requisitos definidos na Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, a taxa de juros, a cláusula penal, o índice de atualização monetária, se houver, e as demais comissões e encargos.(...)§ 3º É admitida a alienação fiduciária de coisa fungível e a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito, hipóteses em que, salvo disposição em contrário, a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito é atribuída ao credor, que, em caso de inadimplemento ou mora da obrigação garantida, poderá vender a terceiros o bem objeto da propriedade fiduciária independente de leilão, hasta pública ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, devendo aplicar o preço da venda no pagamento do seu crédito e das despesas decorrentes da realização da garantia, entregando ao devedor o saldo, se houver, acompanhado do demonstrativo da operação realizada.”

Não obstante a importância do instituto para o mercado financeiro e de capitais nacional, pairam ainda algumas dúvidas e polêmicas acerca de sua aplicação no âmbito do direito brasileiro. Uma destas questões está relacionada à sujeição dos créditos garantidos pela cessão fiduciária aos efeitos da recuperação judicial. Abordaremos, para tanto, a Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, conforme alterada (“Lei de Falências e Recuperação de Empresas”), que trata sobre o dilema em seu artigo 49, §3º e artigo 119, inciso IX, que desta forma dispõe:

“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.(...)§ 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.”

“Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras:(...) IX – os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer.”

Para que o presente trabalho seja estudado de forma clara e completa, é essencial estabelecermos alguns conceitos intrinsecamente relacionados ao instituto da cessão fiduciária de direitos creditórios. Trataremos, para tanto, das noções gerais acerca do negócio fiduciário, passando pela definição da cessão fiduciária, e finalmente discutiremos da aplicação deste mecanismo de garantia sobre a égide da recuperação judicial de empresas, abrangendo inclusive, os princípios norteadores do direito recuperacional.

Por fim, concluiremos a pesquisa ponderando, em um exercício de análise da doutrina e jurisprudência sobre o tema, os impactos da sujeição ou não dos créditos garantidos pela cessão fiduciária aos efeitos da recuperação judicial de empresas, ao mercado financeiro e de capitais nacional, bem como seus resultados para a situação econômica do Brasil.


1. NEGÓCIO FIDUCIÁRIO

1.1. Conceito

Entende-se por negócio fiduciário o negócio jurídico por meio do qual o devedor ora fiduciante, transfere a propriedade ou a titularidade de um determinado bem ou direito ao credor fiduciário. Trata-se de garantia bilateral, por meio da qual, uma vez concretizada a transmissão, o credor fiduciário passa a ser proprietário ou titular do direito transmitido até o adimplemento da obrigação principal. Ato contínuo, adimplida a obrigação principal pelo devedor fiduciante, o credor fiduciário fica obrigado a retornar o bem ou direito transmitido àquele. Temos, portanto, a justificativa da bilateralidade do negócio fiduciário, considerando que o devedor fiduciante assume a obrigação de transmitir o bem ou direito ao credor fiduciário e este, por sua vez, obriga-se a dar ao bem ou direito a destinação inicialmente acordada no respectivo contrato.

Observa-se, neste diapasão, que a propriedade do fiduciário sobre o bem ou direito transmitido é restrita e resolúvel, sendo que no momento em que a obrigação principal é cumprida, tal propriedade resolve-se ao fiduciante ou qualquer beneficiário previamente estabelecido em pacto fiduciário. É o entendimento do eminente doutrinador Orlando Gomes, que define o negócio fiduciário como:

“o negócio jurídico pelo qual uma das partes adquire, em ‘confiança’, a propriedade de um bem, obrigando-se a devolvê-la quando se verifique o acontecimento a que se tenha subordinado tal obrigação, ou lhe seja pedida restituição”.

Melhim Namem Challub, conceitua o negócio fiduciário da seguinte forma:

“o negócio jurídico inominado pela qual uma pessoa (fiduciante) transmite a propriedade de uma coisa ou a titularidade de um direito a outra (fiduciário), que se obriga a dar-lhe determinada destinação e, cumprido esse encargo, retransmitir a coisa ou o direto ao fiduciante ou a um beneficiário indicado no pacto fiduciário.”

Sacramenta o entendimento Otto de Souza Lima, que descreve o negócio fiduciário como aquele em que coisa ou direito é transmitido a outrem, com fim determinado, sendo que o fiduciário assume a obrigação de utilizá-los para tal fim específico e, uma vez este satisfeito, devolverá ao fiduciante.

1.2. Classificação

Segundo a classificação do ilustre doutrinador Pontes de Miranda, o negócio fiduciário é classificado como negócio jurídico bilateral, oneroso ou gratuito, principal ou acessório, solene ou não solene.

Como visto, o negócio fiduciário é bilateral na medida em que encerra a constituição de direitos e obrigações para ambas as partes. Assim, o fiduciário obriga-se a destinar o bem ou direito objeto do contrato ao fim nele previsto e determinado, restituindo-os ao fiduciante ou a beneficiário previamente estabelecido, ao passo que o fiduciante assume obrigação de efetivamente transmitir o bem ou direito ao fiduciário, respeitando sua titularidade.

A característica onerosa ou gratuita do negócio fiduciário é explicada por Melhim Namem Chalhub:

“O negócio fiduciário será oneroso se o fiduciante transmitir a propriedade com vistas a uma correspondente contraprestação que se impuser ao fiduciário, ou se este tiver, na contrapartida, o direito de obter uma prestação do fiduciante; será gratuito se o fiduciante transmitir a propriedade independente de qualquer contraprestação ou se o fiduciário a receber independente de contraprestação do fiduciante.”

Ainda de forma a destrinchar a classificação proposta por Pontes de Miranda, temos que o negócio fiduciário pode ser principal, nos casos em que, à exemplo, a transmissão da propriedade ocorre para efeitos de administração patrimonial. Será acessório quando a transmissão da propriedade possuir como objetivo uma garantia, como é o caso dos contratos de empréstimo, em que este é o contrato principal.

Por fim, o negócio fiduciário pode ser classificado como solene ou não solene. A primeira classificação advém da necessidade de forma prescrita em lei e observância de certas formalidades para a efetivação da transmissão do bem ou direito. É o caso da transmissão de direito real, que requer a averbação do ato no registro competente. A não solenidade, por sua vez, é verificada quando não há requsitos formais para a confirmação da transmissão, sendo a simples tradição suficiente.


 2. A CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS

2.1. Conceito

Conceitua-se a cessão fiduciária de direitos creditórios pelo negócio jurídico por meio do qual o cedente fiduciante cede ao cessionário fiduciário, como garantia ao cumprimento de obrigações, direitos de crédito que possui junto a terceiros. Sobre a definição do instituto, especifica Fábio Ulhôa Coelho:

“é negócio jurídico em que uma das partes (cedente fiduciante) cede à outra (cessionário fiduciário) seus direitos de crédito perante terceiros (“Recebíveis”) em garantia do cumprimento de obrigações, geralmente as de mutuário. O cessionário fiduciário titula a propriedade (ou “titularidade”) fiduciária dos “Recebíveis”, de modo que o inadimplemento da obrigação garantida importa a consolidação deles em seu patrimônio. Na cessão fiduciária de títulos de crédito, o cessionário fiduciário tem, também, as posses direta e indireta do documento representativo dos “Recebíveis” (duplicata, nota promissória, cheque etc.). O cessionário fiduciário, destaco, é titular do direito de crédito cedido pelo devedor. Não se trata de uma simples caução de títulos de crédito, mas de verdadeira transferência do direto à instituição financeira. O direito ao crédito cedido passa, em outros termos, a integrar o patrimônio da instituição financeira como objeto de propriedade resolúvel. Se ocorrer o adimplemento da obrigação garantida pela cessão fiduciária, essa propriedade se resolve e o direito objeto da cessão fiduciária deixa de integrar o patrimônio da instituição financeira para retornar ao do antigo mutuário. Mas se não ocorre o adimplemento da obrigação, a propriedade se consolida e o mesmo direito que integrava condicionalmente ao patrimônio da instituição financeira passa a integrá-lo incondicionalmente (isto é, consolida-se a propriedade sobre ele)”.

Leciona ainda Melhim Namem Chalhub:

“Uma das hipóteses mais comuns de negócio fiduciário é a cessão fiduciária de crédito, para fins de garantia, de cobrança ou mesmo de compensação, todas elas largamente utilizadas no sistema financeiro.A essa modalidade de negócio aplicam-se, mutatis mutandis, os princípios da venda com escopo de garantia.Por meio da cessão, o cessionário é investido da condição de credor, com todos os poderes inerentes a este, inclusive o de valer-se de todas as ações e execuções a que o credor está legitimado, mas, recebendo o crédito, não pode apropriar-se da totalidade do produto, mas apenas do quantum correspondente ao seu crédito, ou retendo o produto recebido até que o devedor-cedente pague sua dívida”.

Cesar Amendolara, acerca do tratamento dado à posse no âmbito da cessão fiduciária de títulos de crédito, ressalta o que segue:

“A cessão fiduciária de títulos de crédito e recebíveis é uma garantia de extraordinária importância, uma vez que livra o credor fiduciário dos riscos de insolvência do cedente fiduciante, salvo, evidentemente se ficar comprovado que a cessão foi feita com intuito de fraude.Além disso, é importante ressaltar que ao credor fiduciário é atribuída a posse direta e indireta do bem objeto da propriedade fiduciária ou do título representativo do direito ou do crédito, conferindo-lhe maior segurança para a liquidação da garantia em caso de inadimplemento da obrigação principal. Em outras palavras, sendo o contrato omisso é o credor fiduciário quem faz a cobrança do crédito e se apropria da quantia recebida até o limite do seu crédito, entregando ao cedente fiduciante o saldo, se houver”.

Ecio Perin Junior, especialista no tema, diferencia a cessão fiduciária da alienação fiduciária, distinção cuja qual servirá como principal alicerce para a não sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária, como veremos a seguir:

“cumpre esclarecer que a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios também é negócio jurídico, sendo que está em busca da constituição de direito real em garantia consistente na titularidade fiduciária de créditos (documentados o não em títulos de crédito) cedidos pelo autor da garantia. As origens do instituto encontram-se no contrato de alienação fiduciária em garantia, que tem igual objetivo, como pudemos ver.A cessão fiduciária de títulos de crédito foi instituída pelo art. 66-B, § 3º, passando a admitir a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis, bem como de títulos de crédito. Com isso, o sistema legal brasileiro passou a contar com duas espécies do gênero “negócios fiduciários”: 1) a alienação fiduciária de coisa, que pode ser móvel ou imóvel e 2) a cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito”.

Cesar Amendolara utiliza-se da classificação de negócio jurídico trazida por Pontes de Miranda para também classificar a cessão fiduciária da seguinte forma:

“a) bilateralidade, pois cria obrigações para ambas as partes, tanto para o fiduciário quanto para o fiduciante;b) onerosidade, pois há a reciprocidade de ônus e vantagens para os contratantes, em razão das obrigações assumidas pelas partes e, por outro lado, beneficia a ambos, proporcionando instrumento creditício ao alienante e assecuratório ao adquirente;c) por depender, para sua existência, de uma obrigação principal que deve ser garantida, possui caráter assessório;d) formalidade, pois, requer sempre, para constituir-se, instrumento escrito, público ou particular, devidamente registrado no Registro de Títulos e Documentos do domicilio do devedor; ee) indivisibilidade, porque o pagamento de uma ou mais prestações da dívida não importa exoneração, correspondente à garantia, ainda que esta compreenda vários bens, exceto disposição expressa no título ou na quitação”.

2.2. Requisitos Formais

O caráter solene da cessão fiduciária enseja o atendimento de determinados requisitos para a sua devida constituição. Neste sentido, temos como principais exigências: (i) o registro do instrumento de cessão fiduciária junto ao Cartório de Registro de Títulos e Documentos do domicílio ou sede do cedente fiduciante; (ii) o cumprimento dos requisitos dos artigos 286 e seguintes do Código Civil Brasileiro; e (iii) a descrição completa das obrigações garantidas pela cessão fiduciária.

Neste diapasão, sacramenta o entendimento sobre a questão, o doutrinador Melhim Namem Chalhub:

“A forma de constituição dessa garantia é o contrato de cessão e seu modo de constituição é registro desse contrato em Registro de Títulos e Documentos situado no domicilio do devedor.Uma vez registrado o contrato, considera-se o devedor-cedente-fiduciante destituído da titularidade e da posse sobre os direitos ou créditos cedidos fiduciariamente e o credor-cessionário-fiduciário investido nessa titularidade e na posse”.

E ainda:

“A propriedade ou titularidade fiduciária constitui direito real, oponível erga omnes, sendo o contrato seu título aquisitivo e o registro o modo de sua aquisição. Para a validade contra terceiros, o registro se faz, conforme o objeto do negócio seja móvel ou imóvel, no Registro de Títulos e Documentos ou no Registro de Imóveis competente, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para seu licenciamento.(...) Em qualquer das hipóteses (alienação ou cessão), exige-se contrato escrito, celebrado por instrumento público ou particular, firmado pelas partes e, quando por instrumento particular, por duas testemunhas, que só valerá contra terceiros depois de registrado no Registro de Títulos e Documentos, na repartição competente para o licenciamento de veículos ou no Registro de Imóveis, conforme o contrato tenha por objeto coisa móvel ou imóvel, ou direitos reais relativos a imóveis (neste último caso, cessão de direito creditório decorrente da alienação de imóveis)”. 

No mesmo sentido, tratam da formalidade e solenidade da cessão fiduciária, os autores Ivo Waisberg e Gilberto Gornati:

“Os requisitos formais aplicáveis à cessão fiduciária são os mesmo de uma cessão de crédito regulada pelo Código Civil, através dos arts. 286 e seguintes, além daqueles determinados, pelo art. 18 da Lei 9.514/1997, que diz respeito às características do crédito garantido. Ainda, no que diz respeito ao aperfeiçoamento da garantia necessário se faz efetuar o registro do documento de sua constituição perante o Cartório de Registro de Títulos e Documentos da sede ou domicílio do cedente fiduciante”.

2.3. Objeto

O artigo 66-B, §3º da Lei de Mercado de Capitais, estabelece como objeto da cessão fiduciária, os “direitos sobre coisas móveis, bem como títulos de crédito”. No que se refere ao último, Cesar Amendolara, opina:

“Os títulos de crédito são documentos representativos de créditos e devem ser emitidos em conformidade com a legislação específica de cada tipo ou espécie. Apresentam dois requisitos básicos: (i) autonomia: uma vez que os títulos de crédito podem circular por meio de endosso independentemente da obrigação que criou o direito de crédito; e (ii) executividade: pois são títulos executivos extrajudiciais (CPC, art. 585, I).Vimos, portanto, que não se trata apenas e tão somente de um documento representativo de relação creditícia, configurando o título de crédito, como título executivo extrajudicial.Dessa forma, os títulos de crédito têm sua importância no que concerne à possibilidade do seu portador, através de negociação, efetuar de imediato o seu valor, servindo-se para transações atuais a prestação prometida pelo seu devedor. Logo, dão margem a negociação e a circulação do direito creditório.Já os recebíveis, por sua vez, são direitos de crédito originado do faturamento de bens e serviços vendidos e, usualmente, entregues. Podem ser duplicatas, notas promissórias e etc.”.

Segundo Fernando Netto Boiteux, o título de crédito possui funções de meio de pagamento e instrumento de crédito ou de investimento. Tais funções impactam tanto a atividade empresarial negocial como os atos da vida civil.  Os títulos de crédito são considerados bens móveis e incorpóreos. Ao lado dessa classificação estão os direitos reais sobre objetos móveis, os direitos intelectuais e as ações correspondentes .

Mister se faz ressaltar que os créditos classificam-se como bens móveis, conforme dispõe o artigo 83, inciso III do Código Civil, que determina que os direitos pessoais de caráter patrimonial são bens imóveis.


 3. A CESSÃO FIDUCIÁRIA NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

3.1. Conceitos Gerais da Recuperação Judicial de Empresas

A recuperação de empresas pode ser entendida como uma pretensão postulada em juízo com o escopo de alcançar a extinção de obrigações e o contorno da crise financeira de determinada sociedade, sendo que nela é atribuído ao Estado a prestação jurisdicional. Neste sentido, na procedência do pedido, a sociedade adentra ao estado de recuperação e na improcedência da pretensão, ao estabelecimento restará a falência. 

Em complemento, Sidnei Agostinho Beneti entende que a recuperação “possui objetivo social, fundado na própria utilidade da empresa e de seus bens, inclusive os bens imateriais componentes dela própria e de seu estabelecimento comercial”.

Em exercício comparativo com o antigo instituto da concordata, Ecio Perin Junior, ensina:

“(...) se na vetusta legislação a concordata era concedida ao comerciante infeliz, que, muito embora honesto, não conseguia conduzir minimamente a gestão de seus próprios negócios, e portanto o Estado, magnânimo e onipresente, acabava por tutelar os interesses privados desse comerciante em detrimentos dos interesses sociais dos demais credores que estavam sujeitos ao procedimento, na recuperação notamos o contrário, pois via à aproximação dos credores por meio da apresentação de um plano de recuperação, judicializado (recuperação judicial) ou não (extrajudicial) e, ainda, a discussão levada ao crivo democrático assemblear da AGC”.

Como observamos, a recuperação de empresas busca a manutenção de uma situação estável para a sociedade, oferecendo a esta oportunidade adicional para a continuidade de seus negócios. Observa-se, para tanto, que o princípio da preservação da empresa foi basilar para a criação do instituto recuperacional.

3.2. Princípio da Preservação da Empresa

Rubens Requião, em estudo sobre o princípio da preservação da empresa, entendia que “sendo a sociedade e sua empresa um repositório de interesses privados e gerais, com alta e relevante função social, sua extinção constitui fato grave, que somente em casos extremos deve ser consentida” .

Sobre o princípio, Nelson Abrão expõe que este norteia as relações recuperacionais, no sentido de que:

“Modelou o Projeto de Lei nº 4.376/93 e particularmente o substitutivo oferecido maneiras singulares que disciplinam a empresa na fórmula desenvolvida visando preservá-la dos efeitos danosos que se irradiam a partir do momento em que se configura o estado de crise. Aproxima-se remédio de largo espectro que tem o condão de separar o joio do trigo, numa radical mudança d’água para o vinho, na exata quantificação dos aspectos negativos e nos vetores que levarão a empresa ao encontro do seu objeto social”.

A própria Lei de Falências e Recuperação de Empresas, em seu artigo 47, positivou tal princípio, conforme redação abaixo:

“Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.”

Depreende-se da leitura que liquidação da empresa deve ser tratada como ultima ratio, devendo os maiores esforços serem envidados para a recuperação da empresa. Mario Ghidini ressalva:

“a empresa é um organismo produtivo de fundamental importância social; essa deve ser salvaguardada e defendida, enquanto: constitui o único instrumento de produção de (efetiva) riqueza; constitui o instrumento fundamental de ocupação e de distribuição de riqueza; constitui um centro de propulsão do progresso, também cultural, da sociedade.”

Ecio Perin Junior, de forma definitiva, enaltece a importância do princípio para o direito comercial, econômico e financeiro brasileiro:

“Sem dúvida, o princípio da preservação da empresa encontra apreciação de fundamental importância no campo do direito falimentar, possibilitando ao seu operador proteger os interesses sociais em benefício da comunidade, inclusive garantidos constitucionalmente. É inegável que a sorte da empresa não pode ficar jungida à simples conduta do empresário, como se entre eles houvesse uma relação dominial; a preservação da empresa de fato deve ser um centro autônomo de interesses, cuja intangibilidade deve ser incessantemente perquirida, sem prejuízo da punição e do afastamento do empresário. Como paradigma da questão central objeto da polêmica instalada com a cessão fiduciária em garantia, como dissemos, o princípio da proporcionalidade te destaque na interpretação da norma falitária. Houve, sem dúvida, notória interferência do mercado financeiro na elaboração da lei, que se mostrou determinante para uma mudança de rumo destinada a preservar os créditos de origem financeira dos efeitos da recuperação judicial, conforme se pode verificar da simples leitura do art. 49, §§ 3º e 4º da LFRE”.

Nas palavras de Luis Felipe Salomão e Paulo Penalva Santos, “a regra, portanto, é buscar salvar a empresa, desde que economicamente viável. O legislador colocou, à disposição dos atores principais, no cenário da empresa em crise, as soluções da recuperação extrajudicial e judicial”.

3.3. Divergências Doutrinárias e Jurisprudenciais

A discussão cerne deste trabalho consiste na interpretação do §3º, do artigo 49, da Lei de Falências e Recuperação de Empresas. Estabelece o artigo:

“Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

(...)§ 3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.

O dilema recai no entendimento de que o crédito garantido por cessão da propriedade fiduciária deve ou não encontrar-se em submissão aos efeitos da recuperação de empresas, prevalecendo ou não os direitos de propriedade dos cessionários fiduciários.

3.4. Corrente Majoritária

Os principais argumentos da doutrina e jurisprudência majoritária, em linha com a posição de que os créditos garantidos pela cessão fiduciária não devem sofrer com os impactos da recuperação de empresas, baseiam-se nos seguintes pontos: (a) a cessão fiduciária constitui patrimônio de afetação, divergindo-se do patrimônio geral da empresa em recuperação, não incluindo-se, portanto, ao patrimônio sujeito ao processo recuperacional; (b) a expressão “bens móveis e imóveis”, trazida como exceção à sujeição aos efeitos da recuperação de empresas, deve compreender bens corpóreos e incorpóreos; e (c) a submissão de tais créditos à recuperação de empresas ensejaria o enfraquecimento da cessão fiduciária como garantia de relevantes operações para o mercado de capitais e financeiro nacional, sendo que para a consecução de tais operações, principalmente de financiamento, as instituições financeiras veriam-se obrigadas a aumentar suas taxas de juros, o que inviabilizaria negócios para diversas empresas em atividade.

Diversos doutrinadores defendem tais argumentos, dentre os quais observamos primeiramente os ensinamentos de Melhim Namem Chalhub:

“Há pelo menos quatro fundamentos legais a confirmar que os créditos objeto de cessão fiduciária estão compreendidos na norma do parágrafo 3º do artigo 49 da nova Lei de Falências e, portanto, estão excluídos dos efeitos da recuperação. O primeiro deles é o inciso III do artigo 83 do Código Civil, que classifica os "direitos pessoais patrimoniais" (aí estão os créditos) como bens móveis para os efeitos legais, e, na medida em que integram essa classe, os créditos objeto de propriedade (titularidade) fiduciária estão compreendidos na norma de exclusão do parágrafo 3º do artigo 49. Mais incisiva ainda é a exigência de que seja "observada a legislação respectiva" - o parágrafo 3º do artigo 49 da nova Lei de Falências. Pois bem. Em relação à cessão fiduciária, a "legislação respectiva" dispõe que 1) "o contrato de cessão fiduciária opera a transferência ao credor da titularidade dos créditos cedidos, até a liquidação da dívida garantida"; 2) as quantias recebidas são apropriadas pelo credor fiduciário, e não pelo devedor fiduciante; e (3) é assegurado ao credor continuar recebendo os créditos mesmo em caso de falência da empresa cedente fiduciante, até a liquidação da dívida garantida - conforme o artigo 66B e parágrafos da Lei nº 4.728, de 1965, e os artigos 18 a 20 da Lei nº 9.514, de 1997.Está claro, assim, que os créditos objeto de cessão fiduciária permanecem no patrimônio do credor, sob afetação, até que cumpram sua destinação, imunes aos efeitos de uma eventual falência ou recuperação judicial da empresa devedora fiduciante. Além disso, a tipificação da titularidade fiduciária afasta qualquer possibilidade de sua equiparação ao penhor. São garantias estruturalmente distintas e, por isso, dotadas de regimes jurídicos próprios, inconfundíveis. Ora, pelo penhor o devedor empenha os créditos, mas conserva-os em seu patrimônio, e essa é a razão pela qual se sujeitam aos efeitos da recuperação - conforme o parágrafo 5º do artigo 49 da nova Lei de Falências. Já pela cessão fiduciária, o devedor fiduciante demite-se da propriedade e a transmite ao credor fiduciário, e porque estão fora do patrimônio do devedor é que os créditos cedidos não são alcançados pelos efeitos da recuperação, como prevê o parágrafo 3º do artigo 49 da nova Lei de Falências.Por fim, o parágrafo 1º do artigo 49 da nova Lei de Falências ratifica a exclusão dos créditos fiduciários ao impedir seus titulares de participarem das assembleias de credores, e isso porque essas assembleias deliberam apenas sobre a liquidação dos créditos vinculados ao patrimônio da recuperanda, o que evidentemente não é o caso dos créditos fiduciários, cuja liquidação é feita com os bens atribuídos fiduciariamente ao próprio credor fiduciário.A par dessa fundamentação legal, é preciso ter presente que a desvinculação dos bens objeto de propriedade fiduciária dos efeitos da recuperação judicial confere segurança jurídica inigualável a essa garantia, tornando-a um elemento catalisador do desenvolvimento econômico e social, por conta do efeito do aumento da oferta de crédito e da redução do custo do dinheiro”.

Fábio Ulhoa Coelho, no mesmo sentido, defende a não sujeição dos créditos garantidos em cessão fiduciária no âmbito da recuperação empresarial:

“As exclusões dos credores dos efeitos da recuperação judicial (...) visam, na moderna economia brasileira, proporcionar meios para o barateamento do crédito e criação das condições para o desenvolvimento econômico, valores de maior envergadura que os anteriormente prestigiados.(...) Os objetivos da exclusão, como dito, ligam-se aos da lei de 2005; ou seja, destinam-se a criar, no marco institucional, as condições para o desenvolvimento econômico. Ao retirar dos efeitos da recuperação judicial determinados credores, a lei teve em mira possibilitar o barateamento dos negócios em que eles se envolvem, atendendo ao interesse de toda a sociedade brasileira.O titular de propriedade fiduciária, como dito, tem seu crédito excluído dos efeitos da recuperação judicial. Isso significa que nenhuma consequência advém para o crédito garantido por alienação fiduciária da impetração, pelo devedor fiduciante, da recuperação judicial. Também não produz nenhuma implicação relativamente aos direitos do titular da propriedade fiduciária o despacho de processamento da recuperação judicial. Finalmente, a obrigação do devedor fiduciante não pode ser objeto de nenhuma cláusula do plano de reorganização. Qualquer menção a ela no plano é por tudo e em tudo inválido (porque contraria o art. 49, § 3º, da LF) e ineficaz.O cessionário fiduciário, na cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, é titular da propriedade resolúvel do crédito cedido. Como acentuado acima, esse crédito integra o patrimônio da instituição financeira cessionária. Como integra na condição de resolubilidade, o adimplemento da obrigação garantida pelo cedente fiduciante importa seu retorno ao patrimônio deste. Mas apenas o cumprimento da obrigação tem essa consequência. Quando ela é inadimplida, o direito cedido fiduciariamente se consolida no patrimônio do cessionário fiduciário.A cessão fiduciária de títulos de crédito ou de direitos creditórios, note-se, gera sobre o objeto cedido um direito real (um direito real em garantia), e não pessoal. A instituição financeira cessionária torna-se proprietária desses títulos ou direitos, e não apenas credora. É esta a larga implicação do instituto da cessão fiduciária em garantia cujo objeto são títulos de crédito ou direitos creditórios do cedente 22.Há, portanto, uma diferença fundamental entre, de um lado, a cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, e, de outro, as operações de penhor ou caução de títulos (também de crédito, valores mobiliários, aplicações financeiras etc.). Enquanto na cessão fiduciária de títulos de crédito ou direitos creditórios, tais títulos ou direitos passam ao patrimônio da instituição financeira cessionária e nele permanecem enquanto não cumprida a obrigação garantida, nas operações de penhor ou caução de títulos, estes são apenas transferidos à posse da credora, mas os direitos creditórios neles incorporados não passam nunca a compor o patrimônio dela.Essa diferença reflete, inclusive, no tratamento dispensado a cada hipótese pela LF, quando disciplina a recuperação judicial. Para os títulos de crédito e direitos creditórios cedidos fiduciariamente vige a regra, já transcrita acima, da exclusão dos efeitos da recuperação judicial (LF, art. 49, § 3º). A seu turno, para as operações de penhor ou caução de títulos vigora norma diversa, que as submete aos efeitos da recuperação judicial 23.O depósito em conta vinculada tem pertinência porque o crédito relacionado ao título empenhado ou caucionado é ainda da propriedade do devedor impetrante da recuperação judicial. Encontra-se o instrumento de dívida na posse do credor pignoratício, mas a efetivação dessa garantia fica suspensa porque pode ser afetada pelo plano de reorganização.Não cabe, porém, falar-se no mesmo depósito para os títulos de crédito ou direitos creditórios cedidos fiduciariamente porque não pertencem mais ao patrimônio do devedor impetrante da recuperação judicial. Eles pertencem ao patrimônio da instituição financeira cessionária e não há porque mantê-los, quando vencidos e satisfeitos, em conta vinculada ao juízo da recuperação judicial. Aliás, se a LF eventualmente pretendesse estender aos títulos de crédito e direitos creditórios fiduciariamente cedidos a sistemática do art. 49, § 5º, reservada às operações de penhor ou caução de títulos, ela seria, nessa extensão, inconstitucional. Estaria desrespeitando o direito de propriedade do cessionário fiduciário constitucionalmente assegurado”.

Ivo Waisberg e Gilbeto Gornati defendem também a garantia da cessão fiduciária:

“Do mesmo modo que o bem alienado fiduciariamente deixa de integrar o patrimônio do fiduciante, os direito creditórios, objeto de cessão fiduciária, também são descriminados como patrimônio de afetação e, como tal, de acordo com o § 3º, art. 49, e inciso IX, do art. 119, da Lei de Falências e Recuperações de Empresas nº 11.101/2005, devem estar separados do patrimônio da massa falida, bem como também não se submeterão aos efeitos da recuperação judicial”.

A jurisprudência majoritária do Superior Tribunal de Justiçã , inclusive, manifestou-se sobre o tema discutido:

“RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CONTRATO DE CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DUPLICATAS. INCIDÊNCIA DA EXCEÇÃO DO ART. 49, § 3º DA LEI 11.101/2005. ART. 66-B, § 3º DA LEI 4.728/1965. 1. Em face da regra do art. 49, § 3º da Lei nº 11.101/2005, não se submetem aos efeitos da recuperação judicial os créditos garantidos por cessão fiduciária. 2. Recurso especial provido” .

3.5. Corrente Minoritária

Com menos expressão, a corrente minoritária milita pela submissão de tais créditos à recuperação de empresas, abordando os seguintes pontos: (a) os créditos não são abrangidos pelo §3º do artigo 49 da Lei de Falências e Recuperação Judicial, em um exercício de interpretação restritiva; (b) a função social da empresa; e (c) “enquanto objeto de garantia, os créditos fiduciários deveriam ter o mesmo tratamento legal dos créditos pignoratícios, para os quais a lei prevê que ‘o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada’ durante o prazo de suspensão de 180 dias”.

Ainda que em menor número, a doutrina também se posiciona neste sentido, conforme estabelece Lincoln Fernando Pelizzon Estevam:

“Não é preciso grande esforço para reconhecer que, se não fossem espécies distintas, bastaria ao legislador tratar ambas simplesmente como alienação fiduciária. Não as igualou e nem poderia, pois a distinção decorre do fato de que apenas na alienação fiduciária o credor assume a condição de proprietário fiduciário da coisa, pois a propriedade fiduciária somente pode ser constituída sobre a coisa, e não sobre o direito/crédito. É assim que o Código Civil define, como fiduciária, a propriedade resolúvel sobre a coisa – no caso, móvel e infungível – que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. Portanto, não resta dúvida de que a alienação fiduciária e cessão fiduciária são institutos distintos: somente na alienação o credor passa à condição de proprietário fiduciário da coisa (bem móvel ou imóvel), enquanto na cessão fiduciária ele figura apenas como cessionário do crédito (direito pessoal). Então, se a legislação prevê a existência dessas duas modalidades distintas de negócio fiduciário (alienação fiduciária e cessão fiduciária), pela mesma razão a exceção prevista pela Lei de Recuperação de Empresas deveria contemplar ambas as espécies.(...) Mas o legislador não desejou assim. Excluiu da recuperação judicial apenas e tão somente o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens moveis ou imóveis. Não se pode, portanto, interpretar essa regra, seja por analogia ou por extensão, para abranger, também, a figura do credor cessionário dos títulos de crédito, pois a interpretação restritiva das exceções é regra elementar de compreensão e aplicação das normas jurídicas. Quem não conhece a velha máxima pela qual não é permitido ao interprete restringir naquilo que o legislador não o fez? Ora, a trava bancária já era prevista desde o advento da Lei n. 10.931. Então, a Lei de Recuperação de Empresas, que é posterior – de 2005 – deveria elencar expressamente também essa figura jurídica como umas das hipóteses de exceção ao regime legal da recuperação judicial”.

Luiz Guerra posiciona-se da seguinte maneira:

“A cessão fiduciária sobre créditos tem gerado discussão na doutrina e nos tribunais. É saber se tais operações firmadas com o devedor recuperando estariam ou não sujeitas aos efeitos das recuperação judicial e, portanto, alcançadas pelo caput, do art. 49, da LRF, ou das exceções previstas nos §§ 3º e 5º, do referido artigo? Diante do calor das discussões o assunto já mereceu até apresentação do Projeto de Lei nº 4.589/2009, para incluir na redação do caput, do art. 49, os créditos de cessão fiduciária.A regra geral prevista no caput, do art. 49, alcança todos os credores, salvo as exceções apontadas expressamente na Lei de Recuperações. Em assim sendo, se as exceções por princípio, devem ser expressas e se elas constam apenas dos inciso I e II, do artigo 5ª e parágrafo 7º, do artigo 6º; dos parágrafos 3º e 4º (art. 86, II), do art. 49; e dos parágrafos 1º ao 3º, do artigo 199, da Lei nº 11.101/05, então, somente essas hipóteses estão fora do alcance da lei de recuperação. Assim, as exceções apontadas estão postas, obrigatoriamente, em numerus clausus, por segurança jurídica, e, assim, não se admite e admitirá interpretação extensiva para incluir no rol das exceções também a cessão fiduciária de títulos de crédito”.

A vinculação dos créditos garantidos fiduciariamente à recuperação, também ganha tratamento da doutrina de Paulo Sérgio Restiffe:

“a cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis é direito real de garantia sobre o respectivo objeto; isto é, não só posse, e sim também direito real, no entanto, sobre res alínea (direitos creditórios alheios), e não sobre coisa próprio; isto é, diferente da garantia dominial que deriva da alienação fiduciária indicada noutra espécie, denominada “cessão fiduciária” (art. 28 da Lei 9.514/1997). E esse art. 28 conceitua cessão de crédito que seja objeto da alienação fiduciária, que gera propriedade fiduciária em garantia do credor, em imóvel (em coisa própria), tal como ocorre na garantia fiduciária da Lei de Mercado de Capitais (Lei 4.728/1965, art. 66-B, e Decreto-lei 911/1969) e do Código Civil (arts. 1.361 – 1.368). A cessão fiduciária de título de crédito (art. 66-B, §3º, da Lei 4.728/1965) é instituto de garantia sobre direito alheio, isto é, sobre direito do credor de título de crédito resultante de qualquer negócio jurídico, inclusive o decorrente de contratos de alienação de imóvel (art. 17, II e §1º, da Lei 9.514/1997), e não de alienação fiduciária. É um direito real, mas sobre objeto de terceiros. Já, a cessão de crédito objeto da alienação fiduciária geradora da propriedade fiduciária em garantia (art. 28 da Lei 9.514/1997) esta, sim, implica transferência ao cessionária de todos os direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária em garantia, vale dizer, direito real dominial, em própria, porque alienada fiduciariamente em garantia do credor. Se se tratasse não de cessão fiduciária de direitos creditórios, dos arts. 17, II, e §1º, 18, 19 e 20 da Lei 9.514/1997, ou de títulos de crédito do art. 66-B, §3º, da Lei 4.728/1965 (direito real em coisa alheia), mas de cessão de crédito objeto da alienação , do art. 28 da Lei 9.514/1997, ou de bens móveis infungíveis da Lei 4.728/1965 ou do art. 1.361 do CC de 2002 (direito real em coisa própria – propriedade fiduciário por transferência resolúvel), aí, sim, teria cabimento a inclusão do crédito privilegiado na exceção do §3º do art. 49 da Lei 11.101/2005, por se tratar de cessionário dos direitos e obrigações inerentes à propriedade fiduciária em garantia que lhe foram transferidos, sendo ocupante da posição de proprietário fiduciário”.

Por fim, Ecio Perin Junior sacramenta:

“Finalmente, concluímos, dentro do assunto de grande polêmica, que em nossa opinião a intenção do legislador no que se refere aos créditos garantidos por cessão fiduciária de títulos não foi exclui-los dos efeitos da recuperação judicial, pois se assim fosse expressamente teria indicado no art. 49, § 3º da LFRE.A superação da crise econômico-financeira das empresas, concedida com o deferimento do processo de recuperação judicial, depende da disponibilização dos meios necessários.Para realização desse mister, em um exercício de superação da crise inclusive sob o viés da dignidade da pessoa humana, a lei deve ser aplicada para reconhecer a sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária ao regime de recuperação e, por consequência, a liberação das chamadas “travas bancárias” em benefício das empresas em crise, como medidas de fundamental importância para a superação.E, sem dúvida, viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira da empresa, nos extados termos do art. 47, da LFRE, é permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores. Pensar em sentido contrário, é retornarmos ao vetusto DEC.-Lei n. 7.661/45”.


CONCLUSÃO

Concluímos a presente pesquisa de forma a ponderar os efeitos da defesa de cada uma das posições ora objeto de exposição. Inevitável a continuidade da discussão e a persistência de dúvidas acerca do tema, considerando que o que ocorre aqui é um legítimo “cabo-de-força” entre as instituições financeiras, que concede financiamentos sujeitos à garantia fiduciária, e as empresas devedoras em meio a um processo de recuperação.

A lacuna e falta de especificidades do artigo 49, §3º possibilita o surgimento de interpretações discrepantes e divergentes acerca do tema. Neste sentido, mister ressaltar que tal regra deve ser revista, para que sobre ela não pairem dúvidas.

Entretanto, necessário seria manter em conceito que a garantia é um dos meios mais eficazes para a confiabilidade das instituições financeiras nas operações performadas. A sujeição indiscriminada dos créditos utilizados pelas instituições financeiras aos efeitos da recuperação judicial inibiria os efeitos benéficos do instituto, sendo que as operações por eles financiadas seriam cada vez mais ausentes. Ou ainda, a elevação da taxa de juros seria constante.

Não obstante, deve-se também observar a preservação da empresa, coadunado com a função social desta. A sujeição dos créditos, neste sentido, forneceria mais um instrumento para que a empresa em recuperação possa adimplir suas obrigações de forma efetiva, mantendo, portanto, a sua função junto à comunidade e à sociedade.

Infortunadamente, caberá mais uma vez ao Poder Judiciário, na miopia da lei e seu excesso prolixo, o desfecho acerca do tema. As decisões devem ser sempre pautadas, entretanto, na razoabilidade, devendo o juiz ponderar entre diversos interesses distintos, seja dos credores, da empresa, das instituições financeiras e da coletividade. Inafastável sim, o entendimento de que os atos do magistrado devem favorecer um maior número de interessados e beneficiários, dentro da proporcionalidade.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Pedro Vilas-Boas Simões. Cessão fiduciária de direitos creditórios no direito recuperacional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4559, 25 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33838. Acesso em: 28 mar. 2024.