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A “única resposta correta”, a quadratura do círculo e a razoabilidade da decisão judicial

A “única resposta correta”, a quadratura do círculo e a razoabilidade da decisão judicial

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O artigo traça um paralelo entre a teoria de Ronald Dworkin, de uma só decisão correta para o mesmo caso, e a quadratura do círculo, sustentando que busca deve ser pela decisão judicial razoável;

Resumo: O artigo examina a tese de Ronald Dworkin referente à existência de apenas uma resposta correta nos casos judiciais. Na sequência, foca-se no problema matemático da quadratura do círculo, de modo a constatar que sequer na matemática, ciência exata por excelência, sempre é possível uma só resposta certa. Mais adiante, sustenta que a meta deve ser por uma decisão judicial que se qualifique como razoável; esta, sim, passível de ser atingida. Isto, por sua vez, depende de uma aproximação entre Ciência do Direito e Justiça. É a Ciência do Direito que, mediante critérios racionais e empíricos, permite alcançar e aferir a razoabilidade da decisão judicial.

Palavras-Chaves: Apenas “uma decisão correta” – Quadratura do Círculo – Decisão Judicial Razoável.

Sumario: 1. Introdução. 2. A “Única Resposta Correta” de Ronald Dworkin. 3. Direito Positivo e a Quadratura do Círculo. 4. A Razoabibilidade da Decisão Judicial. 5. Conclusões. 6. Referências.


1. INTRODUÇÃO

O artigo se propõe a analisar a concepção de uma só resposta correta (“one right answer”) para o mesmo caso judicial, a partir do pensamento de Ronald Dworkin, contextualizando-o com a matemática, mais precisamente com o problema da quadratura do círculo, e suas conexões com a razoabilidade das decisões judiciais.

Tem-se por objetivo geral destacar o que se entende por única resposta correta, por quadratura do círculo e por razoabilidade da decisão judicial, apontando as características de cada qual.

Como objetivo específico, almeja-se saber se a busca por apenas uma resposta correta no Direito é realizável, comparando-a com a quadratura do círculo na matemática – ciência exata por excelência –, e quais os reflexos desta abordagem em relação à ideia de razoabilidade da decisão judicial.

Os problemas que se visa enfrentar são: a)- existe apenas uma só solução jurídica correta para cada caso? b)- Na matemática existem respostas exatas para todos seus problemas? c)- O que se entende por razoabilidade da decisão judicial?  


2. A “ÚNICA RESPOSTA CORRETA” DE RONALD DWORKIN

Ronald Dworkin foi um dos maiores combatentes do relativismo jurídico. Sua construção teórica foi motivada, basicamente, em oposição ao pensamento do jurista inglês H. L. A. Hart que, no capítulo 7, de seu clássico O Conceito de Direito afirmou que, em algumas situações, o juiz deverá decidir o caso com base na discricionariedade.[1]

O pensamento de Hart foi motivado por dois fatores: a)- apesar do positivismo jurídico, a lei não prevê todas as possibilidades fático-jurídicas, necessitando da “atividade judicial criadora” (“creative judicial activity”)[2]; b)- as palavras veiculadas pelos enunciados normativos apresentam uma textura aberta (“open texture of Law”), carecendo para sua aplicação de uma interpretação que pode variar conforme as peculiaridades de cada caso. Para comprovar sua posição, Hart ministrou o seguinte exemplo: “nenhum veículo pode entrar no parque” (“no vehicle may be taken into the park”)[3]. Na sequência, sustentou que, se se estiver ante de um automóvel comum, de um ônibus ou de uma motocicleta, não haverá dúvida acerca da incidência da hipótese contida na lei. Diversa, porém, será a situação se se tratar de um “carro elétrico de brinquedo” (“toy motor-car electrically propelled”),[4]o que exigirá uma atitude adaptativa por parte do juiz para solucionar o caso.

Ao exemplo de Hart podem ser acrescentados outros, tais como: e se o veículo for um cortador de grama motorizado que somente pode ser utilizado quando conduzido pelo responsável pelos serviços? Ou: e se se tratar de veículo policial que esteja em perseguição a criminoso(s) em estado de flagrante delito? E se se tratar de uma ambulância que precise ingressar no parque para prestar socorro a uma pessoa em risco de morte?

Seguramente, nestes exemplos, haverá necessidade de uma adaptação, flexibilização, correção, calibração do enunciado normativo, a fim de evitar uma solução jurídica írrita, insensata, absurda e injusta.

A postura de Hart, a propósito, é muito semelhante ao que defendeu Recasens Siches, ao afirmar que a lógica jurídica exige uma lógica própria, ao que nominou “lógica do razoável”.[5]Para atestar sua posição, Siches recorreu a Radbrusch, que, de sua parte, colheu exemplo em Petrasyski. Este tomou como ponto de partida a seguinte regra: “é proibida a entrada na plataforma de pessoas com cães” (“se prohibe el paso al anden con perros”). Assim exposto o enunciado, por certo, uma pessoa que pretendesse ingressar no recinto acompanhada de um urso, não encontraria impedimento jurídico se a matéria fosse dirimida com base em silogismo da lógica tradicional, o que, por certo, conduziria a uma solução jurídica destituída de sentido.[6]

Contemporaneamente, o jurista estadunidense Andrei Marmor apresentou exemplo semelhante ao de Petrasyski, que pode ser assim compreendido: suponha-se um passageiro que esteja em uma estação de trem aguardando a chegada deste último. Na estação, o passageiro se apercebe da existência de uma regra jurídica, que prescreve: “é proibido dormir nesta estação” (“it shall be a misdemeanor to sleep in any railway station”). Apesar disso, após algum tempo de espera no local, o sujeito acaba por cochilar alguns minutos. É evidente que não houve infração à regra jurídica, haja vista o texto e o contexto respectivos. A norma em questão, em sua essência, proíbe que pessoas passem à noite no local; que durmam ali, isto é, que façam da estação meio de acomodação particular; que se valham das poltronas ou dos bancos ali existentes como leitos, o que, claro, não foi o caso.

Disto tudo se percebe que não basta o exame frio e literal dos dispositivos legais. É preciso investigar o contexto em que o fato ocorreu e cotejá-lo com o valor e finalidade tutelados pelos Direito via norma jurídica.[7]

Hans Kelsen, no capítulo 8º, de seu clássico Teoria Pura do Direito, para desagrado de Dworkin, mas em companhia de Hart[8], afirmou que pode haver mais de uma decisão correta para um mesmo caso. Veja o que disse Kelsen:

A teoria usual da interpretação quer fazer crer que a lei, aplicada ao caso concreto, poderia fornecer, em todas as hipóteses, apenas uma única solução correta (ajustada), e que a ‘justeza’ (correção) jurídico-positiva desta decisão é fundada na própria lei (...) só que, de um ponto de vista orientado para o Direito positivo, não há qualquer critério com base no qual uma das possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à outra. Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’.[9]

Exposta a ideia desta forma, ou seja, considerando a dimensão e os riscos que podem ocorrer com a discricionariedade judicial ao não precisar seus limites, não há como discordar de Dworkin. Afinal, quais seriam os critérios para se aferir se a decisão judicial não estaria apenas refletindo uma mera opinião (“doxa”) do julgador, com base em critérios pessoais de justiça?[10]

Esta circunstância poderia, sem dúvida, comprometer a segurança jurídica que, ao lado da paz e da Justiça, constitui um dos principais fundamentos e fins do Direito. 

Foi com essa preocupação que Dworkin não negou, em plenitude, a existência de discricionariedade na atuação judicial.[11]E nem havia como fazer isso. No entanto, defendeu que esta discricionariedade deve ser em “sentido fraco” (“weak sense”), e não em “sentido forte” (“stronger sense”).[12]O Direito positivo vincula e deve ser observado por todos, de modo a evitar instabilidade social e os reflexos imprevisíveis disso. Dworkin, então, passou a defender a ideia extrema da existência de apenas uma única solução correta (“one right answer”) para os casos judiciais.[13]Para tanto, acresceu outros três elementos em sua construção teórica, a saber: o “romance em cadeia” (“chain novel”), o juiz Hércules e o Direito como Integridade (“Law integrity”). 

De se averbar que Dworkin sustentou até o fim suas premissas teóricas, como se pode comprovar na obra “Justice in Robes”, de 2006. Na ocasião, ele afirmou: “Alguns críticos, incluindo Brian Barry e Joseph Raz, sugerem que eu mudei de ideia sobre o caráter e a importância da afirmação da existência e reivindicação de ‘uma resposta correta’. Para o bem ou para o mal, não mudei.”[14]

Para se ter uma noção aproximada dos pressupostos teóricos de Dworkin, pode-se dizer que, de acordo com o romance em cadeia (“chain novel”), cada juiz agiria como a dar continuidade a um longo e inacabável romance, e cada decisão judicial seria mais um capítulo de uma obra a partir do que já fora escrito no cenário jurídico. Esse romance, portanto, não parte do grau zero; ao contrário, daria sequência ao que foi e vem sendo escrito e deve expressar um encadeamento lógico e sequencial. Expressa, de certo modo, o respeito que se deve ter em relação aos precedentes judiciais, e seu conteúdo vinculativo.[15]

O juiz Hércules, por outro lado, pode ser entendido como um modelo de juiz ou, para alguns, uma metáfora. Expressa a postura que deve ser adotada pelos juízes em geral ao lidarem com os conflitos postos para decisão. Esse juiz Hércules seria dotado de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas. Ele aceita que as leis têm o poder geral de criar e extinguir direitos e sabe que os juízes devem seguir os precedentes dos Tribunais.[16]

Já a integridade, juntamente com o devido processo legal, a justiça e a própria equidade, impõe a concepção do Direito como um conjunto único e coerente de princípios, expresso não só pelas leis (“integridade na legislação”), mas também pelos juízes nas soluções dos casos em que atuam, nos quais devem entender o Direito como um todo sistematizado (“integridade nos julgamentos”), em que não há espaço para decisões “ad hoc”, baseadas em meras preferências pessoais. Ou seja, a decisão deve estar em conformidade com o sistema que confere coerência, unidade e coesão ao ordenamento jurídico.

Apesar do esforço de Dworkin, um exame criterioso da realidade jurídica, indica que é, sim, possível mais de uma solução correta – juridicamente aceitável – para uma mesma questão judicial. A bem ver, isto ocorre diariamente em todas as instâncias do Poder Judiciário, seja entre juízes de primeiro grau que proferem decisões antagônicas entre si, muitas das quais no interior da moldura jurídica de Kelsen; seja, ainda, nas decisões proferidas pelos Tribunais em reexame das decisões de primeiro grau ou ainda quando estes Tribunais têm suas decisões alteradas pelos Tribunais Superiores, sem que isto, por si, possa ser considerado como erro judiciário; isto é, como uma decisão errada ou inaceitável sob o enfoque jurídico. Na verdade, muitas vezes esta divergência de soluções jurídicas para um mesmo caso emana de simples interpretações díspares, todas realizadas no âmbito do juridicamente aceitável. Enfim, não há como afirmar que um juiz ou membro de um Tribunal por se filiar a determinada corrente doutrinária ou jurisprudencial que não corresponda àquela seguida pelo juiz de primeiro grau ou por parte de seus colegas do Colegiado não esteja a proferir uma decisão correta ou admissível, na acepção jurídica do termo.

O que se pretende dizer é que isto é, de certo modo, comum nas lides forenses, e nem por isso autoriza a concluir pela falha, vício ou erro de julgamento. Trata-se, apenas, de um fenômeno jurídico. Esta situação, aliás, em algumas circunstâncias pode criar certo embaraço aos profissionais do Direito quando se veem diante da difícil tarefa de explicar o que ocorreu a parentes ou amigos que não tenham trânsito ou formação jurídica. Uma tarefa, por vezes, sem êxito.  

De qualquer forma, não há como não reconhecer o mérito da obra de Dworkin ao combater o relativismo jurídico, formulando para isto uma teoria com contornos peculiares com vistas a obstar insegurança jurídica. Embora tenha recebido diversas críticas em relação à “única resposta correta”,[17] [18]tem-se que o maior ponto fraco de sua teoria nem seria tanto este último aspecto, mas sim as premissas que ele assentou para alcançá-la.

Neste particular, merece destaque a ficção do Juiz Hércules. Como se sabe, na realidade – e mesmo no sentido metafórico –, não existem juízes semideuses, com poderes sobre-humanos, o que, por si só, indica para a não factibilidade de uma só decisão correta.  

Por conseguinte, a busca por apenas uma decisão correta soa como algo inatingível. Trata-se de projeto que não se realiza, tampouco pode se realizar, eis que, ao contrário do que o ser humano pode aspirar, a vida não é matemática; não em tons absolutos. E, fazendo uso das palavras de Georges Ripert, “toda vez que o Direito ignora a realidade; a realidade se vinga, ignorando o Direito”. 

É preciso, por isso, mirar em outro alvo. Um alvo que não abra as portas, de modo excessivo e, talvez, perigoso para um subjetivismo discricionário, desprovido de critérios falseáveis;[19]e que, ao mesmo tempo, seja compatível com a natureza e vida humanas. Caso contrário, qualquer ideia que venha a ser sustentada nessa diretriz pode não sair da “folha de papel”.[20]    


3. DIREITO POSITIVO E A QUADRATURA DO CÍRCULO

O Direito não é uma ciência exata. O Direito é dinâmico e complexo.

Dinâmico porque se revela mediante um processo histórico e, como dizia Heráclito, “ninguém passa duas vezes no mesmo rio”.[21]Logo, o Direito deve estar em constante revisão e atualização, seja na prescrição de novas condutas a regular a vida em sociedade, condutas estas que devem estar em consonância com a realidade e com os valores sociais vigentes; seja, ademais, por meio da interpretação (significação) destas condutas (proibidas (V), permitidas (P) e obrigatórias (O)), levando-se em conta, sempre, o contexto em que ocorreram os fatos.

Complexo porque não se esgota em si. Ao contrário, interage com inúmeras dimensões da vida em sociedade. Passa pela moral e pela ética; estende-se pela política e economia; encontra-se com a filosofia, sociologia, antropologia, psicologia e, nesse cenário plúrimo, extrai seus fundamentos e demarca suas bases. Daí o brocardo: “ubi societas, ibi jus”.

Não obstante esses aspectos, fato é que o Direito, aqui tomado em sua perspectiva de Direito positivo, é obra humana e, como tal, produto cultural. Por ser produto da cultura não há como se eliminar a subjetividade. Esta lhe é inerente. Está na raiz do seu nascedouro e o acompanha perenemente.[22]

Desse modo, falar em soluções exatas para cada caso não parece ser o melhor caminho em Direito. Em rigor, nem na matemática – ciência dita exata –, isto ocorre sempre. Mesmo na matemática algumas questões não fecham. Ou seja, nem sempre ela fornece respostas exatas para a solução de seus problemas, por maior que seja o grau de abstração.

Uma das situações em que isto ocorre vem a ser a chamada quadratura do círculo.  O objetivo de se quadrar o círculo seria saber se é possível construir um quadrado com área igual e exata a área do círculo, valendo-se apenas de régua e compasso, em um número finito de possibilidades.[23]Daí a expressão quadratura do círculo.

Oficialmente, a primeira tentativa de se quadrar o círculo data do Século V a.C, por iniciativa de Anaxágoras.[24]O tema seguiu por Séculos sem solução, desafiando matemáticos – e não só – de várias épocas e rincões do planeta. Um dos que se debruçaram sobre o problema foi Thomas Hobbes.[25]

É de conhecimento público que a fórmula do círculo corresponde a “π . r2”.[26]Para compreendê-la basta realizar uma circunferência valendo-se, por exemplo, de uma fita métrica. Depois, medir o diâmetro e em seguida o perímetro desse círculo. Na sequência, divide-se um pelo outro e o resultado será algo em torno de “3,14”, ou seja, o π. Logo, a fórmula da área do círculo vem a ser exatamente “A = π . r2”. Desse modo, vertida para linguagem não simbólica, a área do círculo equivale ao π multiplicado pelo quadrado do raio.

Sendo assim, para se quadrar um círculo de raio igual a um, é preciso formar um quadrado, cujo lado deva corresponder à raiz quadrada de π (3,14...), já que a área de um quadrado é dada pela fórmula l2. Contudo, este cálculo não avança, pois o π, além de ser um número irracional, é um número transcendente, impossibilitando a operação.

Para entender melhor o que foi dito, deve-se ter presente que números irracionais são aqueles que não podem ser obtidos pela divisão de dois números inteiros. O π, número irracional, manifesta-se por meio de uma dízima infinita e não periódica, o que já seria fator complicador o bastante para se quadrar o círculo. Atualmente, alguns computadores de alta geração conseguem chegar a centenas de milhões de casa decimais do π, mas o número é infinito e a sequência imprecisa. Apenas a título ilustrativo, segue o número π até a tricentésima casa decimal:  = 3,14159 26535 89793 23846 26433 83279 50288 41971 69399 37510 58209 74944 59230 78164 06286 20899 86280 34825 34211 70679 82148 08651 32823 06647 09384 46095 50582 23172 53594 08128 48111 74502 84102 70193 85211 05559 64462 29489 54930 38196 44288 10975 66593 34461 28475 64823 37867 83165 27120 19091 45648 56692 34603 48610 45432 66482 13393 60726 02491 41273.

Não bastasse isso, como salientado, o π é, também, um número transcendente. Entende-se por número transcendente o número não algébrico, o qual não se pode construir em uma equação polinomial com quoeficientes inteiros.[27]Diz-se transcendente porque transcendem a classe dos números algébricos. Os números algébricos são construtíveis; os não algébricos (transcendentes), não.[28]

Frise-se que todo número transcendente é irracional. Todavia, nem todo número irracional é transcendente. Isto porque, um número irracional pode ser algébrico; o transcendente, não. [29]

Especificamente em relação à quadratura do círculo, em 1822, o matemático alemão Ferdinand von Lindemann demonstrou que π é um número transcendente (não algébrico). Por conta disso, restou demonstrado que não é possível construir um segmento de reta de comprimento igual a π, uma vez que π, como número transcendente (não algébrico e irracional), não é um número construtível, como são os números algébricos.

Desta maneira, não há como construir um quadrado com uma área igual a do círculo, utilizando régua e compasso. Importa dizer: não há como calcular a raiz quadrada de π como sendo o valor dos lados do quadrado, pressuposto necessário para se quadrar o círculo com as mesmas medidas algébricas deste, tomando-se por base régua e compasso. 

A impossibilidade da quadratura do círculo na matemática guarda certa similitude e pertinência para com o Direito. A matemática, assim como o Direito, é obra cultural. E, por ser obra humana, por mais rígidos que sejam seus critérios e métodos artificiais, não se chega sempre a soluções exatas. Neste cariz, se na matemática isto é assim, o que dizer do Direito em que não há uma linguagem simbólica precisa, além de que está sempre sujeito a inúmeras interações e facetas da vida, desde costumes, valores ou episódios imprevistos de múltiplas e inimagináveis espécies, origens e concausas?

 Em certa medida, isto confirma o que foi dito no item anterior: a busca por uma só decisão correta não deve ser a meta. Em Direito não se deve falar em única resposta correta, e sim em decisões judiciais razoáveis. Em consequência, pode existir mais de uma decisão jurídica correta para o mesmo caso, desde que ambas decisões possam ser consideradas razoáveis.  


4. A RAZOABIBILIDADE DA DECISÃO JUDICIAL 

Segundo Fernando Pessoa: “navegar é preciso; viver não é preciso”.

Sem embargo de outras possíveis interpretações da frase acima, pode-se entender que a navegação, no sentido náutico, é precisa; exata. É dizer: baseia-se em instrumentos de precisão espacial, o que permite a localização exata do navegador, além de possibilitar que este possa alcançar seu destino com segurança. A vida, ao contrário, não é precisa. Como afirmava David Hume, ninguém pode assegurar que o sol nascerá amanhã.[30]O que se pode é realizar uma previsão, mais ou menos razoável, da probabilidade disso acontecer, levando-se em conta a experiência acumulada no passado. 

O Direito, por seu turno, que tem por finalidade regular a vida em sociedade, não pode ser exato, pois a vida não o é. Aliado a isso, a interpretação e a aplicação do Direito não se reduzem a mero silogismo lógico-formal, em que a premissa maior seria a lei; a premissa menor, os fatos, enquanto a decisão judicial resultaria da mera justaposição de um sobre o outro. Na realidade, a construção da norma individual e concreta (decisão judicial), não raras vezes, exige de seu intérprete e aplicador uma série de processos mentais, que passam pela investigação exaustiva dos fatos e, na sequência, a seu cotejamento com as normas que compõe o ordenamento jurídico, de modo a formular a solução razoável no caso em pauta. Este processo interpretativo, tanto dos fatos, como do Direito não se realiza de maneira linear, compartimentado e rígido. Ao contrário, há uma série de fatores que interagem simultaneamente entre si, seja de ordem jurídica, seja de ordem extrajurídica, os quais conduzirão à solução encontrada.

Nesse percurso, além da debilidade do sistema processual em reproduzir em juízo em plenitude todos os eventos fáticos e seus detalhes pertinentes, relevantes e úteis à decisão judicial, há uma série de conceitos jurídicos – determinados e não –, que deverão ser interpretados (significados), [31]a partir do contexto em que aconteceram. Isto exige a presença de um “mediador esclarecido”[32]para empreender a passagem da realidade para o texto jurídico e deste para a solução jurídica adequada, sensata e justa que o caso espera. Em uma palavra: solução razoável.                

Neste ponto, deve-se registrar que a interpretação e aplicação do Direito, apesar dos avanços nos estudos sobre inteligência artificial, ainda carece de intervenção humana. É que, muitas vezes, códigos binários próprios de linguagem computacional (“0” e “1”) continuam a ser insuficientes para fornecer soluções sensatas e coerentes – razoáveis – aos casos que são submetidos à análise do Judiciário.[33]

Em simetria com o pensamento de Recasens Siches e Andrei Marmor, antes citados, e com o intuito de comprovar o que aqui se sustenta, basta notar que, se submetido a um computador, um fato que narre a tentativa de subtração para si ou para outrem de cinco barras de chocolate, no valor de R$ 20,00 (vinte reais), seguramente terá como solução a condenação criminal do réu respectivo. Entretanto, quando este mesmo episódio é analisado pelo Supremo Tribunal Federal, o desfecho vem a ser outro. Desfecho, aliás, coerente e consentâneo com os fins e valores jurídico-sociais, presentes no ordenamento e vigentes em sociedade. Isto ocorre porque se reconhece na espécie a incidência do chamado princípio da insignificância, obstando a subsunção mecânica, autômata e algébrica do fato ao disposto no art. 155, “caput”, c/c art. 14, inc. II, ambos do Código Penal. Nesse sentido, a seguinte ementa:

STF. Furto. Princípio da insignificância (bagatela). Identificação dos vetores cuja presença legitima o reconhecimento desse postulado de política criminal. Consequente descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material. Tentativa de furto simples de cinco barras de chocolate. “res furtiva” no valor (ínfimo) de R$ 20,00 (equivalente a 4,3% do salário mínimo atualmente em vigor). Doutrina. Considerações em torno da jurisprudência do STF. “Habeas corpus” concedido para absolver o paciente. Intervenção penal mínima do Estado. Considerações do Min. Celso de Mello sobre o tema. CP, art. 155, “caput”. (...) (BRASIL – SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL - HC 98.152/2009 – MG - Rel.: Min. Celso de Mello – Julgado em 19/05/2009).  

É bom frisar que não se está aqui a defender um relativismo jurídico absoluto. Está, sim, a defender a interpretação e aplicação do Direito com subjetividade – eis que esta lhe é ínsita –; todavia, isto deve ocorrer do modo mais objetivo possível, o que, s.m.j., afigura-se razoável, eis que passível de concretização.

Mas o que vem a ser razoabilidade? Precisamente: o que vem a ser a razoabilidade na decisão judicial?

Em sentido informal, razoável é palavra ambígua. De modo geral, expressa algo coerente, adequado, congruente, sensato, consentâneo, compatível com a realidade subjacente.[34]Ou seja, algo que faça sentido em determinado tempo e local; que traga implícita a marca da razão, daí por que tem como pressuposto sua inteligibilidade. Afinal, não há como aceitar algo como razoável se não for possível aferir suas contingências, circunstâncias, peculiaridades e justificativas.  

Em sentido jurídico, para alguns a razoabilidade está ligada ao princípio da proporcionalidade, conforme entende Luís Roberto Barroso: “razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”.[35]

O próprio Barroso, no entanto, deixa claro que proporcionalidade e razoabilidade têm origens distintas. Segundo o constitucionalista:

“A ideia de razoabilidade remonta ao sistema jurídico anglo-saxão, tendo especial destaque no direito norte-americano, como desdobramento do princípio do devido processo legal substantivo. (...) Já a noção de proporcionalidade vem associada ao sistema jurídico alemão, cujas raízes romano-germânicas conduziram a um desenvolvimento dogmático mais analítico e ordenado.”[36]

Humberto Ávila, de sua parte, diverge desta afinidade entre proporcionalidade e razoabilidade. Veja o que ele diz: 

“Com efeito, o postulado da proporcionalidade pressupõe a relação de causalidade entre o efeito de uma ação (meio) e a promoção de um estado de coisas (fim). Adotando-se o meio, promove-se o fim: o meio leva ao fim. Já na utilização da razoabilidade como exigência de congruência entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada há uma relação entre uma qualidade e uma medida adotada: uma qualidade não leva à medida, mas é critério intrínseco a ela.”[37] 

Sintetizando: na proporcionalidade há uma relação de causalidade, entre meios e fins; na razoabilidade há uma relação de equivalência entre critério e medida.[38]

Tomando esta premissa como linha de partida, pode-se entender que a razoabilidade deve ser aferida a partir da própria decisão; dos motivos nela expostos. Antes de qualquer emissão rotulatória de opiniões sobre alguma decisão judicial, é preciso conhecê-la em suas minúcias e motivações. E, no exame destas, deverá ser aferido se os critérios empregados pelo julgador, tanto fático, como jurídicos foram compatíveis, consentâneos e consistentes de acordo com a Ciência Jurídica para a medida adotada.

Neste sentido, será razoável juridicamente a decisão (medida) que esteja apoiada em bases fornecidas pela Ciência do Direito (critérios). Neste ponto, cabe consignar que, de certo modo, a razoabilidade expressa e materializa a Justiça no caso concreto. Logo, sob este enfoque, as noções de Justiça e Ciência do Direito estariam unidas indissoluvelmente. Afinal, o Direito busca a Justiça, e esta, por sua vez, deve se realizar nos limites do Direito. Contudo, não se pode olvidar que Direito não se restringe a lei, e Justiça é algo mais do que meras convicções pessoais de justo.

Tendo em isto presente, para atingir esse fim – a razoabilidade jurídica da decisão judicial (Justiça) – a Ciência do Direito fornece uma série de parâmetros, standards (critérios), tanto interpretativos, como argumentativos que devem ser observados nas decisões judiciais.

No que alude aos critérios interpretativos – hermenêutica jurídica –, destacam-se contribuições de Ronald Dworkin, Georges Kalinowski, Riccardo Guastini, Emílio Betti, Andrei Marmor, Hans-Georg Gadamer, Giovanni Tarello, Roberto Vernengo, Eros Grau, Inocêncio Mártires Coelho ou Lênio Streck. No âmbito da argumentação jurídica podem ser lembrados Chäim Perelman, Theodor Viehweg, Neil Maccormick, Robert Alexy, Manuel Atienza, Klaus Günther.

Nesta linha de análise, pode ser lembrada, ainda, a lógica e a semiótica jurídicas. A primeira, seja em suas dimensões alética, deôntica ou paraconsistente, ao disponibilizar elementos para se estruturar e organizar as ideias e os argumentos fático-jurídicos. A segunda, com ênfase na linguagem linguística, em seus níveis sintático, semântico e pragmático, viabiliza a significação de fatos e de direito de maneira transparente e apoiada em códigos fortes.

Estes aspectos permitem que se preencha, com rigor, o disposto no art. 93, inc. IX, da Constituição Federal, que exige que toda decisão judicial seja fundamentada.

Como se vê, somente se poderá falar de razoabilidade se a decisão judicial estiver em conformidade com esses critérios fornecidos pela Ciência do Direito. Isto porque são estes que permitem, inclusive, examinar, checar, testar e falsear a decisão judicial (medida), de modo a se averiguar se esta pode ser considerada razoável.

Sem a menor pretensão de esgotar o assunto, o que excede e em muito os limites deste trabalho, mas apenas com o intuito de demonstrar, em linhas gerais, o que foi averbado, pode-se dizer que uma decisão judicial será considerada razoável quando expuser de modo claro e verificável as premissas fáticas e as premissas jurídicas que conduziram ao desfecho do caso. Premissas estas, com o perdão da repetição, que deverão estar em simetria com os critérios científicos aceitos e vigentes na comunidade jurídica.

Em relação às premissas fáticas, a decisão deve apontar, de modo expresso, o fato objeto de subsunção. Deve apontar, além disso, o motivo pelo qual se concluiu por tomar este fato como base para decisão. Significa dizer: o juiz deve indicar quais fatores existentes nos autos o levaram, de acordo com a prova produzida, a concluir pela existência, ou não, de determinada ocorrência fática. Não pode, por exemplo, considerar provado algo que não encontre alicerce probatório nos autos. 

Ainda no que se refere aos fatos, a avaliação e fixação destes na decisão deve ocorrer  em conformidade com a teoria das provas. Ou seja, não se pode aceitar que uma decisão presuma a má-fé em determinada conduta sem que exista prova firme a respeito, até porque a diretriz teórica acena justamente para o oposto. Como se diz: o ordinário se presume; o extraordinário se prova.

No caso das premissas jurídicas, uma vez estabelecido qual fato deverá ser subsumido, o juiz deverá buscar no Direito, ou melhor, nas fontes do Direito (lei, jurisprudência, doutrina e costumes) qual a solução jurídica adequada (razoável). É importante ressaltar neste ponto que o Direito não se interpreta “em tiras”.[40]Sendo assim, é preciso uma consulta a todas as normas jurídicas (princípios e regras), precedentes jurisprudenciais (estatuidor de sentidos), orientações doutrinárias (densificadora de conteúdos) e, conforme o caso, até recorrer aos costumes para se formular a solução jurídica “in concreto” que aspira à razoabilidade.

Esta solução jurídica deve estar lastreada nos cânones da interpretação jurídica e em um discurso racional possível e aceito pelas bases jurídico-teóricas. Deve se fundar em padrões dotados de universalidade e generalidade, os quais têm função prospectiva, e não “ad hoc”.  Não devem, jamais, se basear em convicções íntimas e casuísticas do que vem a ser o justo.

Com o intuito de evidenciar o que se pretende dizer, retorna-se ao julgado antes transcrito com vistas a demonstrar sua razoabilidade, não obstante, em uma visão apressada, seu desfecho contrarie disposição literal de lei. Nesta empreitada, observa-se, de saída, que referida decisão não se apoiou em convicções íntimas do julgador para estabelecer o que se entendia por insignificância em crimes contra o patrimônio. Muito ao contrário. No corpo da decisão houve referência específica sobre o bem tutelado e a finalidade do dispositivo penal em foco, tudo para saber se realmente se justificava a subsunção do evento ao tipo penal respectivo. Houve, ademais, indicação textual dos pressupostos necessários para a configuração jurídica da insignificância e sua aplicação. Observe o teor do julgado:

“... É importante assinalar, neste ponto, por oportuno, que o princípio da insignificância – que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal – tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material, consoante assinala expressivo magistério doutrinário expendido na análise do tema em referência (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, “Princípios Básicos de Direito Penal”, p. 133/134, item n. 131, 5ª ed., 2002, Saraiva; CEZAR ROBERTO BITENCOURT, “Código Penal Comentado”, p. 6, item n. 9, 2002, Saraiva; DAMÁSIO E. DE JESUS, “Direito Penal - Parte Geral”, vol. 1/10, item n. 11, h, 26ª ed., 2003, Saraiva; MAURÍCIO ANTONIO RIBEIRO LOPES, “Princípio da Insignificância no Direito Penal”, p. 113/118, item n. 8.2, 2ª ed., 2000, RT, v.g.).

O postulado da insignificância – que considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de certos vetores, tais como (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada – apoiou-se, em seu processo de formulação teórica, no reconhecimento de que o caráter subsidiário do sistema penal reclama e impõe, em função dos próprios objetivos por ele visados, a intervenção mínima do Poder Público em matéria penal.

Isso significa, pois, que o sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificarão quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano – efetivo ou potencial – causado por comportamento impregnado de significativa lesividade.”

Não bastassem as linhas teóricas que o julgado invocou, a decisão foi expressa na indicação do fato e em dizer o motivo pelo qual se justificava sua inserção nos limites do princípio da insignificância. “Verbis”:

“Vale registrar, Senhores Ministros, em função da própria ‘ratio’ subjacente ao princípio da insignificância, que a tentativa de subtração patrimonial foi praticada, no caso, sem violência física ou moral à vítima e que as ‘res furtiva’, no valor de R$ 20,00 (!!!), equivaliam, à época do delito (outubro/2007), a 5,2% do valor do salário mínimo então vigente (R$ 380,00), correspondendo, atualmente, a 4,3% do salário mínimo em vigor em nosso País.”

Como se percebe, a decisão preencheu os requisitos para ser considerada razoável. Como já dito, num primeiro aporte até poderia indicar uma violação literal de dispositivo legal. No entanto, uma análise detida de seu teor revela exatamente o contrário, vale dizer, sua conformidade com o Direito e com a Justiça. Isto demonstra que a interpretação e a aplicação do Direito é mais complexa do que sugeria Montesquieu e seu juiz “boca da lei”. Comprova que a atividade judicial tem, sim, o compromisso com a Justiça, a qual deve e pode ser empreendida com critérios jurídico-científicos. No caso – repita-se – os Ministros da Suprema Corte Brasileira decidiram a causa com parâmetros universais e generalizantes, aceitos e firmados pela comunidade jurídica. Indicaram, de modo expresso e com base em dado objetivo (salário mínimo), porquê o episódio se amoldava ao princípio da insignificância e, em razão disso, não caracterizava crime, isto sem o menor risco de comprometer a segurança jurídica; ou, de modo extremo, sem revogar tacitamente o crime de furto.  

Ao revés, o julgado afirma-se como sinalizador para nova aplicação do princípio da insignificância em casos futuros, desde que presentes os pressupostos que por ele indicados, o que os Romanos já sabiam de longa data, conforme se extrai do brocardo: “ubi eadem ratio, ubi eadem jus” (“onde houver a mesma razão, haverá o mesmo direito”).  

Em síntese, se, por um lado, o Direito não pode prescindir da busca de uma solução razoável – a qual traz implícita a noção de Justiça –; por outro, não pode dispensar os critérios fornecidos pela Ciência do Direito para atingimento deste ideal. Direito e Ciência, bem como Direito e Justiça devem caminhar juntos, a partir de parâmetros não milimétricos, nem imbuídos de certezas absolutas, mas dotados de razoabilidade; de razoabilidade jurídica.


5. CONCLUSÕES 

Do desenvolvimento do tema, foram extraídas as seguintes conclusões:

1. Ronald Dworkin, a partir da obra Taking Rights Seriously, publicada em meados da década de 1970, passou a defender a ideia da existência de apenas uma só resposta correta (“one right answer”) para o mesmo caso judicial. Na ocasião, seu objetivo era combater, dentre outros, o pensamento de H. L. A Hart que afirmava que, no positivismo jurídico, diante da textura aberta da norma jurídica (“open texture of Law”), e da impossibilidade da lei regular todas as situações jurídicas passíveis de ocorrer em sociedade, o juiz poderia agir com discricionariedade, o que poderia levar a mais de uma solução jurídica para o mesmo caso.

2. Apesar do esforço empreendido por Ronald Dworkin e da importância de sua obra no combate ao relativismo jurídico, o que fez com base em quatro premissas (única resposta correta, romance em cadeia, juiz Hércules e o Direito como integridade), é fato que pode existir além de uma solução juridicamente correta para um mesmo caso. Aliás, isto ocorre diariamente nos Tribunais. Com efeito, entendimentos judiciais diversos sobre mesmos temas jurídicos, desde que fundamentos em premissas científico-jurídicos, não podem ser reputados como decisões judiciais incorretas.

3. A busca por uma decisão judicial exata, precisa, matemática não deve ser o objetivo. Uma pesquisa atenta revela que isto sequer é possível, em tons absolutos, na própria matemática, apesar de sua linguagem artificial e do elevadíssimo grau de abstração. Um dos exemplos em que isto ocorre é a quadratura do círculo, que não pode ser realizada por ser π um número irracional e transcendente (não algébrico). Logo, se nem na matemática há possibilidade de se estabelecer soluções exatas para todos seus problemas, o que dizer no Direito, cujos fatores de interação com a realidade são muito mais amplos e imprevisíveis.

4. A busca, a meta, o alvo não deve, pois, consistir em se ter uma só resposta correta para os mesmos casos judiciais. Deve, diante das limitações humanas e da multiplicidade de aspectos que interagem no Direito, ser pela razoabilidade da decisão judicial.

5. A razoabilidade da decisão judicial deve ser aferida a partir de critérios rigorosos fornecidos pela Ciência do Direito, seja no plano interpretativo, seja no plano argumentativo. Isto tem por fim evitar decisões de cunho eminentemente subjetivista e que possam afetar a segurança jurídica, uma das pilastras do Direito. Nesta conformidade, a interpretação e aplicação do Direito devem ser realizadas com subjetividade, entretanto do modo mais objetivo possível, nos limites do realizável; do razoável.


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Notas

[1] Segundo Dworkin “The most powerful contemporary version of positivism is that proposed by H.L.A. Hart, and it is Hart’s version which is criticized in this book”. Tradução: “A versão contemporânea mais forte do positivismo é proposto pelo H. L. A. Hart, e é esta versão (de Hart), que é criticada neste livro”. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, (...), p. XI.

[2] HART. H. L. A. The Concept of Law.  Second Edition. Oxford: Oxford University Press, 1994, p. 134.

[3] HART. H. L. A. The Concept of Law. (...), p. 128.

[4] HART. H. L. A. The Concept of Law, (...), p. 129.

[5]SICHES, Luíz Recásens. Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho. Segunda Edición. México: Porrúa, 1973, p. 143.

[6]SICHES, Luíz Recásens. Nueva Filosofia de la Interpretación del Derecho. (...), p. 165.

[7] MARMOR, Andrei. The Pragmatics of Legal Language. USC Legal Studies Research, Paper nº 08-11. May

2008, p. 09.

[8]Além da discricionariedade judicial, Hart reconheceu, outrossim, a possibilidade de mais de uma decisão correta. Observe-se: “In these cases it is clear that the rule-making authority must exercise a discretion, and there is o possibility of treating the question raised by the various cases as IF there were one uniquely correct answer to be found, as distinct from an answer which is a reasonable compromise between many conflicting interests”. Tradução: “Nestes casos, é evidente que a autoridade respectiva deve exercer um poder discricionário, e não há possibilidade de tratar a questão levantada pelos vários casos, como se houvesse uma única resposta correta a ser encontrada, como distinto de uma resposta que é um compromisso razoável entre muitos interesses conflitantes”. HART. H. L. A. The Concept of Law, (…), p. 132.

[9] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 391.

[10] Segundo Dworkin: “Lawyers need no evidence to show that judges disagree, and that their decisions often reflect their background and temperament”. Tradução: “Advogados não precisam de provas para mostrar que os juízes discordam e que suas decisões muitas vezes refletem sua formação e temperamento.” DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. (...), p. 06. 

[11] Para Dworkin: “The proposition that when no clear rule is available discretion in the sense of judgment must be used is a tautology”.  Tradução: “A proposição de que quando não há regra clara deve-se usar o poder discricionário no julgamento é uma é uma tautologia.” DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, (...), p. 34.

[12] DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, (...), p. 32. 

[13] Em certa passagem da obra Levando os Direitos a Sério, fica clara a proposta de Dworkin, ao formular a seguinte indagação: “How should judges reach their decisions in order best to advance the goals of the legal process?” Tradução: “Como os juízes devem chegar às suas decisões de modo a melhor para atender os  objetivos do devido processo legal?”. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, (...), p. 6. 

[14] No original: “Some critics, including Brian Barry and Joseph Raz, suggest that I have changed my mind about the character and importance of the ‘one right answer’ claim. For better or for worse, I have not”.  DWORKIN, Ronald. Justice in Robes. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2006, p. 266.

[15] Nas palavras do próprio Dworkin: “Each judge is then like a novelist in the chain. He or she must read through what other judges in the past have written not only to discover what these judges have said, or their state of mind when they said it, but to reach an opinion about what these judges have collectively done, in the way that each of our novelists formed an opinion about the collective novel so far written”. Tradução: “Cada juiz é, então, como um romancista em cadeia. Ele ou ela deve ler o que outros juízes no passado escreveram não só para descobrir o que esses juízes já disseram, ou seu estado de espírito quando eles disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes têm coletivamente fizeram, no sentido de que cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até agora.” DWORKIN, Ronald. A Matter of Principle. Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 1985, p. 159.

[16] Sobre o juiz Hércules, veja como Dworkin se expressa: “We might therefore do well to consider how a philosophical judge might develop, in appropriate cases, theories of what legislative purpose and legal principles require. We shall find that he would construct these theories in the same manner as a philosophical referee would construct the character of a game. I have invented, for this purpose, a lawyer of superhuman skill, learning, patience and acumen, whom I shall call Hercules. I suppose that Hercules is a judge in some representative American jurisdiction. I assume that he accepts the main uncontroversial constitutive and regulative rules of the law in his jurisdiction”. Tradução: “Podemos, portanto, considerar como um juiz filósofo poderia desenvolver, em casos apropriados, teorias sobre as intenções legislativas e aquilo que os princípios jurídicos exigem. Veremos que ele iria construir essas teorias da mesma maneira como um árbitro filosófico iria construir as características de um jogo. Eu inventei, para esse fim, uma figura de habilidade sobre-humana, aprendizagem, paciência e perspicácia, a quem eu chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja um juiz de alguma jurisdição americana representativa. Presumo que ele aceita as principais regras não controversas que regulam o direito em sua jurisdição.” DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously, (...), p. 105. 

[17]De acordo com Eros Grau: “Dá-se na interpretação de textos normativos algo análogo ao que se passa na interpretação musical. Não há uma única interpretação correta (exata) da Sexta Sinfonia de Beethoven: a Pastoral regida por Toscanini, com a Sinfônica de Milão, é diferente da Pastoral regida por von Karajan, com a Filarmônica de Berlim. Não obstante uma seja mais romântica, mais derramada, a outra mais longilínea, as duas são autênticas – e corretas. Nego peremptoriamente a existência de uma única resposta correta (verdadeira, portanto) para o caso jurídico – ainda que o intérprete esteja, através dos princípios, vinculado pelo sistema jurídico. Nem mesmo o juiz Hércules (Dworkin) estará em condições de encontrar para cada caso uma resposta verdadeira, pois aquela que seria a única resposta correta simplesmente não existe” GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. XXV.

[18]Na mesma trilha, Robert Alexy: “as regras do discurso não permitem encontrar sempre precisamente um resultado correto. Com frequência resta uma considerável margem do discursivamente possível” ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. A teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, p. 266.

[19] Para Karl Popper para que o conhecimento seja considerado científico deve ser refutável, falseável, falsificável, ou seja, somente quando seja possível checá-lo, examiná-lo, avaliá-lo e testá-lo. POPPER, Karl. Conhecimento Objetivo: Uma Abordagem Evolucionária. Tradução Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975, p. 24-25.

[20]LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 33.

[21]BUCKINGHAM, Will “et al”. The Philosophy Book. New York: DK, 2011, p. 40.  

[22]Acerca do tema, Cristiano Carvalho assevera: “o direito, em nível de significação, ou seja, no plano das normas, é ontologicamente subjetivo como qualquer outro bem cultural, o que torna sempre a investigação árdua. Ainda que se possa buscar uma epistemologia objetiva, ou seja, livre na medida do possível de opiniões pessoais e juízos de valor subjetivos, o único substrato ontologicamente objetivo do direito são os textos em sua literalidade mais crua. A partir do momento em que o intérprete passa a construir sentido, a ontologia converte-se em subjetiva”. CARVALHO, Cristiano. Teoria da Decisão Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 269.

[23]VENDEMIATTI, Aloísio Daniel. A Quadratura do Círculo e a Gênese do Número π. Dissertação de Mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), 2009, p. 20.

[24] Outros dois problemas matemáticos, desde a Grécia Clássica, similares à quadratura do círculo são a duplicação do cubo e a tripartição do ângulo. Ainda sobre a matemática apresentar outras questões insolúveis, ver o paradoxo de Russel aplicada à Teoria dos Conjuntos, que, de maneira simples, pode ser compreendido pelo Paradoxo do Barbeiro. No mesmo sentido, a Teoria da Incompletude de Kurt Gödel, por vezes chamado de “teorema da indecidibilidade”. Isto demonstra que a questão da quadratura do círculo está longe de ser a única aporia na matemática.  

[25]HOBBES, Thomas. Elementos de Filosofia. Primeira Seção. Sobre o Corpo. Parte I. (Clássicos de Filosofia). Tradução de José Oscar de A. Marques. Campinas: IFCH/Unicamp, 2005, p. 10.

[26]Ou, informalmente, como se costuma falar no ensino médio: “Pierre ao quadrado”.

[27]VENDEMIATTI, Aloísio Daniel. A Quadratura do Círculo e a Gênese do Número π. (...), p. 48.

[28]VENDEMIATTI, Aloísio Daniel. A Quadratura do Círculo e a Gênese do Número π. (...), p. 49.

[29]VENDEMIATTI, Aloísio Daniel. A Quadratura do Círculo e a Gênese do Número π. (...), p. 48-50.

[30]HUME, David. Investigação sobre o entendimento Humano. Tradução André Campos Mesquita. São Paulo: Escala Educacional, 2006, p. 31-32.

[31]Sobre este aspecto, as palavras de Riccardo Guastini: “In âmbito giuridico, ‘interpretare’ significa attibuire significato ad um texto”. Tradução: “No âmbito jurídico, ‘interpretar’ significa atribuir um significado a um texto”. GUASTINI, Riccardo. Il Giudice e la Legge. Torino: G. Giappichelli Editore, 1995, p. 17.

[32]A expressão é de Carlos Maximiliano. MAXILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 59. 

[33]Em 1997, o enxadrista Garry Kasparov disputou partidas contra o supercomputador da IBM, conhecido como “Deep Blue”. Na ocasião, a máquina venceu o homem. Posteriormente, foi constatado que a jogada que desencadeou a vitória do computador, não passou de uma falha no sistema computacional. Para mais detalhes: SILVER, Nate. The Signal and the Noise: Why So Many Predictions Fail — but Some Don't. New York: The Penguin Press, 2002. 

[34]Seguindo diretriz similar, Antônio José Calhau Resende: “A razoabilidade é um conceito jurídico indeterminado, elástico e variável no tempo e no espaço. Consiste em agir com bom senso, prudência, moderação, tomar atitudes adequadas e coerentes, levando-se em conta a relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade a ser alcançada, bem como as circunstâncias que envolvem a pratica do ato”. RESENDE, Antonio José Calhau. O princípio da Razoabilidade dos Atos do Poder Público. Revista do Legislativo. Abril, 2009.

[35]BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 305.

[36] BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo. (...), p. 305.

[37]ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 162.

[38]ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. (...) , p. 162.

[39]Sobre argumentação jurídica, recomenda-se a obra de Tiago Gagliano Pinto Alberto: Poder Judiciário e a Argumentação no Atual Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

[40] GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002, p. XXVIII.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANNA, José Ricardo Alvarez. A “única resposta correta”, a quadratura do círculo e a razoabilidade da decisão judicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4160, 21 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33981. Acesso em: 28 mar. 2024.