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Uma correta interpretação do grupo familiar para fins de concessão do benefício assistencial de prestação continuada

Uma correta interpretação do grupo familiar para fins de concessão do benefício assistencial de prestação continuada

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O grupo familiar, para fins de concessão do LOAS, deve estar adstrito aquele que reside sob o mesmo teto que o requerente?

A assistência social tem estado bastante em voga nos dias atuais. Por um lado, críticas acentuadas a um suposto paternalismo exacerbado do Estado brasileiro e, por outro, expressivos resultados em relação à redução da miséria no país.

Abstraindo-se exageros e críticas com cunho exclusivamente partidário, há de se observar que a matéria realmente comporta discussão, tanto que a própria jurisprudência de nossos tribunais, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem sido bastante volátil, com mudanças radicais em curto espaço de tempo.

O tema é bastante sensível em razão da vulnerabilidade do público alvo das medidas assistenciais e também da limitação dos recursos estatais.

O que se pretende com o presente trabalho é levar a uma reflexão sobre o papel da família no amparo ao chamado miserável e se é correto imputar exclusivamente ao Estado tal dever.

Há de se observar que, não obstante a amplitude da assistência social no Brasil, o estudo vai ater-se ao benefício previsto no artigo 20 da Lei n° 8.742/93 – Lei de Organização da Assistência Social Art. 20 – O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

Em relação ao tema a Lei n° 8.742/93, em sua redação original, definia grupo familiar nos seguintes termos:

§ 1° Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes.

Trata-se de conceito ampliativo, que dava ênfase aos seguintes aspectos: unidade familiar, residência sob o mesmo teto e contribuição para o sustento do grupo.

Posteriormente o dispositivo foi alterado pela Lei 9.720/98, que fazia referência ao conceito trazido pelo artigo 16 da Lei 8.213/91, desde que residissem sob o mesmo teto do requerente. Assim, o grupo familiar para fins do benefício LOAS passou a ser considerado como aquele estabelecido na Lei 8.213/91:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;

II - os pais;

III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido.

Aqui é perceptível que o legislador trouxe com a modificação um critério bem mais restritivo para fins de cômputo da renda, pois passou a considerar apenas aquelas pessoas que, além de residirem sob o mesmo teto, tivessem algum vínculo de parentesco mencionado nos incisos do artigo 16 da Lei 8.213/91, hipótese não prevista anteriormente.

Por fim, veio nova alteração legislativa, agora trazida pela Lei n° 12.435/11, com a seguinte redação:

§ 1o  Para os efeitos do disposto no caput, a família é composta pelo requerente, o cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência de um deles, a madrasta ou o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados, desde que vivam sob o mesmo teto. 

A nova modificação, que trouxe a redação vigente atualmente, mostrou-se menos restritiva do que a anterior, mas, ainda assim, nos mesmos parâmetros daquela.

Alguns trabalhos já debateram a questão do grupo familiar tendo como enfoque principal os componentes em si. Contudo, o enfoque que se pretende analisar aqui é aquele que exige que os componentes vivam sob o mesmo teto do requerente.

O objetivo do trabalho é justamente tentar ponderar se o simples fato de um dos componentes do grupo familiar não residir sob o mesmo teto do requerente seria apto, por si só, a afastar a sua renda para fins de concessão do benefício.

Desde já deve ser ressaltado que o autor não concorda com tal premissa, buscando uma interpretação dos dispositivos legais a luz das disposições constitucionais.

Nessa linha de raciocínio, vale destacar que o constituinte foi bastante claro ao asseverar, no artigo 229 da Constituição da República Federativa do Brasil, que:

“Art. 229. Os pais têm o dever e assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.”

Assim, principalmente no que se refere aos pais em relação aos filhos menores e aos filhos em relação aos pais idosos, carentes e enfermos, acredita-se que o dever do Estado seria subsidiário, devendo restar comprovada a impossibilidade de auxílio material quando do requerimento do benefício assistencial LOAS.

A tese aqui debatida também está amparada no Código Civil, que assim dispõe:

“Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros.”

Ou seja, o artigo 1.696 do Código Civil consagra o princípio constitucional acima destacado, assentando o dever de prestação de alimentos entre os membros da entidade familiar.

É inequívoco, portanto, que o dever de alimentos entre pais e filhos decorre da própria Carta Constitucional, não sendo possível afastá-lo pelo simples argumento do titular de tal dever não residir sob o mesmo teto do necessitado.

Desta feita, quando o necessitado dirigir-se à autarquia previdenciária ou mesmo for bater às portas do Poder Judiciário com a finalidade de requerer o benefício assistencial, parece correto que, além do estudo social junto ao local de sua morada, se faz necessário diligenciar para identificar a capacidade de contribuição dos pais e/ou dos filhos do requerente, ainda que não residam com ele.

É óbvio que não há qualquer pretensão no sentido de obrigar o necessitado, já tão massacrado pelas circunstâncias da vida, a diligenciar para localizar seus entes, mas apenas fornecer as informações necessárias para que a autarquia ou o Poder Judiciário possam fazê-lo.

Identificado o indivíduo e verificando-se sua capacidade financeira, caberia ao Estado viabilizar os meios para obrigá-lo a cumprir o dever constitucionalmente imposto, através, por exemplo, da Defensoria Pública.

O que não se pode admitir é que o termo “vivam sob o mesmo teto” seja utilizado para desonerar de um dever constitucional aquele a quem o legislador constituinte expressamente responsabilizou.

Na prática, muitos julgadores ou passam ao largo de tal discussão ou simplesmente restringem a responsabilidade apenas àqueles que vivam sob o mesmo teto do requerente, sequer diligenciam com o fim de aferir a responsabilidade daqueles a quem a Carta Constitucional atribui o dever de auxílio.

Como já foi dito, esta interpretação não encontra amparo no sistema vigente, nem mesmo na atual interpretação que os tribunais adotam em relação a tema correlato, o da responsabilização por abandono afetivo.

Atualmente nossos tribunais são uníssonos em reconhecer a possibilidade de ocorrência de ilícito civil no Direito de Família e, por consequência, a viabilidade de imputar-se o dever de indenizar/compensar aquele que comete o ilícito. Veja-se o seguinte julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.

1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família.

2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.

3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico.

4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.

5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial.

6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.

7. Recurso especial parcialmente provido.

(REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012).

Ora, se nossos tribunais admitem a possibilidade de responsabilização em razão de omissão no dever de cuidar no que se refere à afetividade, o que se dirá na omissão do dever material de cuidar!

Se o Poder Judiciário se permite ingressar na esfera abstrata da afetividade entre pais e filhos, em razão de uma interpretação sistemática de nosso ordenamento, o que dirá na esfera das relações materiais, cujo dever vem expressamente definido.

E não há qualquer razão para que o Estado, através da autarquia previdenciária ou através do Poder Judiciário, deixe de perquirir se tal dever está sendo cumprido em casos que, ao final, o próprio Estado será onerado com o pagamento do benefício assistencial.

Repita-se que a tese aqui defendida não pretende onerar ainda mais o requerente, mas apenas chamar para a discussão aquele que se omite do dever constitucional de prestar assistência, onerando ainda mais a sociedade como um todo em razão de sua omissão.

Assim, tendo como premissa que a responsabilidade do Estado, no que tange ao provimento das necessidades básicas dos membros da entidade familiar, é subsidiária, somente devendo incidir quando o grupo familiar não possuir meios para prover o sustento dos seus familiares incapazes de prover a própria subsistência, é obrigatória a análise da capacidade financeira de todos os membros do referido grupo, mesmo daqueles que não vivam sob o mesmo teto, mas cuja responsabilidade decorra de dispositivo constitucional imperativo.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MOREIRA, Eduardo Ferreira. Uma correta interpretação do grupo familiar para fins de concessão do benefício assistencial de prestação continuada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4713, 27 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34551. Acesso em: 29 mar. 2024.