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Dissecando o princípio contratual da boa-fé objetiva

Dissecando o princípio contratual da boa-fé objetiva

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Análise atual acerca do princípio contratual da boa-fé objetiva, seus deveres anexos e figuras parcelares, bem como sua constante evolução como referencial hermenêutico interpretativo dos negócios jurídicos.

1. INTRODUÇÃO

A boa-fé objetiva integra uma regra geral de conduta, presente em todas as fases das relações contratuais e tem como principais objetivos exigir das partes que observem certos parâmetros de lealdade, probidade, honestidade e observância a regras gerais de convivência e normas jurídicas. Busca restringir o exercício abusivo da autonomia que os cidadão possuem para livre contratar, criando uma série de deveres anexos às obrigações assumidas no acordo que firmam.

O tema chama atenção ao passo que o ideal de boa-fé é mutável e varia de acordo com o momento histórico e ambiente em que determinado negócio jurídico é firmado.

O presente estudo buscou analisar o atual cenário da Teoria Geral dos Contratos no que tange ao princípio da boa-fé objetiva, trazendo à baila ensinamentos e contribuições doutrinárias que surgiram nos últimos anos e latente evolução do tema, princípalmente como referencial utilizado pelo judiciário para limitação de ilegalidade e abusos.

2. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA E SUAS FUNÇÕES NO DIREITO CONTRATUAL

2.1. Conceito Geral de Boa-fé no Direito

Não é demais lembrar que o direito é composto não somente por normas expressas e que representam-se por meio da constituição, leis federais, tratados... Também o direito é representado por valores sociais que lhes estão à base e devem transparecer no exame de cada fato relevante para a vida das pessoas ou grupos, levando em conta suas crenças e ambiente em que vivem[1].

A palavra boa-fé origina-se do latim “bona fides”[2]. Fides, no caso, remete a honestidade, confiança, lealdade, sinceridade e fidelidade. Segundo Aurélio Buarque de Holanda[3], a boa-fé seria o respeito do indivíduo em três sentidos: certeza de agir no amparo da lei ou sem ofensa a ela; ausência de intenção dolosa; e sinceridade e/ou lisura.

A boa-fé, mais especificamente dentro da ciência do direito, significa, portanto, respeitar não só a legislação aplicável, mas um agir conforme padrões sociais e regras de condutas implícitas, manter uma postura coerente e retilínea no decorrer de seus atos de modo a não usurpar direitos alheios. A boa-fé, sempre é presumida, cabendo a parte eventualmente prejudicada por determinado ato comprovar o que alega.

O Direito, como base do estado constitucional, vale-se da boa-fé inerente a condição de ser humano para moldar as bases de uma sociedade ideal, a qual tem a cordialidade, cooperação e boas intenções como princípios de convivência.

2.2. Boa-fé Subjetiva

Antes de adentrar na questão do que é boa-fé subjetiva, devemos fazer uma diferenciação com o que entende-se por boa-fé subjetiva, conceito muito utilizado no direito brasileiro.

O princípio da boa-fé subdivide em duas essenciais linhas interpretativas da conduta do agente: “boa-fé subjetiva, também chamada de concepção psicológica da boa-fé, e boa-fé objetiva, também denominada concepção ética da boa-fé[4].

Repita-se, portanto, que a boa-fé subjetiva refere-se ao estado psíquico do agente, ou seja, leva em conta eventual ignorância, crença errônea, ainda que escusável da existência de uma situação regular[5]. Expressa a real intenção do indivíduo que deve ser cristalina no sentido de não haver qualquer indício de dolo ou engano.

Vale dizer, portanto, que para a análise da boa-fé subjetiva do sujeito, deve-se perceber o seu real objetivo na sua ação perante terceiros, não estando presentes, dentro de sua percepção ou intenção o dolo com objetivos escusos. Ou seja, a boa-fé subjetiva está relacionada às noções de justiça e princípios do sujeito e sua capacidade de interpretação do ambiente que atua.

Como exemplo, podemos citar um sujeito que vende um veículo com um gravame registrado, destacando no contrato que o bem encontrava-se livre de qualquer pendência. Claro que a situação apresentada, em uma análise superficial, leva a crença de que a má-fé encontra-se nítida na atitude do vendedor, todavia, se este não possuía de fato ciência da pendência e muito menos possuía intenção de lesar o comprador com sua conduta podemos dizer que procedeu resguardando a boa-fé objetiva.

Em igual sentido, o Doutor Luciano de Camargo Penteado cita o seguinte exemplo:

Já no que tange à boa-fé subjetiva, pode-se dar como exemplo o do possuidor que, de boa-fé, tem a seu favor uma série de efeitos jurídicos, como a contagem de prazo reduzida para fins de usucapião, na modalidade ordinária (CC 1242 caput e 1260), o direito de retenção, como garantia de indenização por benfeitorias e acessões realizadas no imóvel (CC 1219) e ainda, entre muitos outros, certos benefícios em matéria de acessão imobiliária, quer perante o titular do terreno a que acede materiais (CC 1255 caput), quer ainda perante o que desempenha acessões em imóvel de sua titularidade (1256 caput, interpretado a contrario sensu).[6]

De forma simples, o oposto da boa-fé subjetiva é simplesmente a má-fé, com objetivo nítido de fraudar, lesar ou beneficiar-se de determinado ato que pratica.

O Código Civil brasileiro dispõe sobre diversas situações em que prevê a observância da boa-fé subjetiva, especialmente na sua parte especial, “Direito das Coisas”, nos arts. 1.214 a 1.220, 1.254 a 1.257, 1.242 a 1.261, os quais dispõem acerca de posse, seus efeitos e direitos do possuidor de boa-fé e o de má-fé.[7]

Diferenciando o conceito de boa-fé subjetiva do caso de boa-fé objetiva, destaca-se ensinamentos do Doutor Luciano de Camargo Penteado:

Tradicionalmente, no estudo da boa-fé, é comum distinguir a boa-fé objetiva da boa-fé subjetiva. A primeira atua como modo de interpretar negócios jurídicos (CC 113), como fonte de criação de deveres secundários de prestação (CC 422) e como limitação ao exercício do direito subjetivo em sentido amplo (CC 187). A segunda consiste em estado de ignorância, análogo ao erro negocial, daquele que não sabe estar em uma situação irregular e, nada obstante esta nesciência, atua como se titular do direito fosse, ainda sem a titularidade e sem a conseqüente legitimação para o exercício. Poderia se afirmar que, se legitimação há, esta é de fato, mas reconhecida pelo sistema justamente por conta da putatividade resultante da ignorância.[8]

O conceito de boa-fé objetiva, muito mais amplo, será abordado de maneira mais aprofundada em momento oportuno no decorrer do estudo apresentado.

2.3. Princípio da Boa-fé Objetiva

“A virtude da boa-fé consiste em acreditar no que diz e dizer o que acredita. Quem está de má-fé mente, mas quem mente não está necessariamente de má-fé.”[9]

O princípio da boa-fé objetiva, positivado no Código Civil de 2002 é considerado, por muitos, uma das maiores e mais significativas mudanças reais no direito brasileiro nos últimos tempos. Seguindo a onda de brilhantura dos preceitos já tecidos no Código de Defesa do Consumidor, mais de uma década antes.

Anteriormente, a boa-fé somente era relacionada a intenção do sujeito, abrangendo tão somente conceitos vagos e subjetivos[10]. “Com o surgimento do jusnaturalismo, a boa-fé ganhou, no Direito Comparado, uma nova faceta, relacionada com a conduta dos negociantes e denominada boa-fé objetiva.”[11].

Com a evolução do direito, passou-se a buscar a análise da boa-fé de uma forma não mais somente subjetiva, mas objetiva e ampla. Seguindo essa linha, conforme Tartuce, “alguns códigos da era moderna fazem menção a essa nova faceta da boa-fé, caso do Código Civil português de 1966, do Código Civil italiano de 1942 e do BGB alemão, normas que serviram como marco teórico para o Código Civil Brasileiro de 2002”[12].

A partir da nova dinâmica, passou-se também a ser observada a necessidade de respeito aos deveres anexos de conduta inerentes à boa-fé objetiva. Em havendo quebra ou desrespeito dos deveres anexos, verificar-se-ia a chamada violação positiva do contrato.

Sabe-se que a observância da boa-fé objetiva contratual sinaliza a análise de todas as etapas de desenvolvimento do contrato, incluindo a fase anterior, de negociações, de execução e, inclusive, a fase posterior ao término do contrato firmado.

Podemos dizer que um sujeito porta-se mediante boa-fé objetiva quando ele guarda, em suas ações e omissões, respeito aos direitos da outra parte do contrato. “Imagine se antes de vender a casa, o vendedor manda pintá-la de modo a esconder diversos defeitos que comprometem significativamente o imóvel e seu valor”[13]. Agindo dessa forma, o vendedor fere a boa-fé objetiva porquanto, aparentemente não violou nenhuma regra, mas objetivamente ofendeu o princípio estudado.

Da mesma forma, o contratante de má-fé comete ilícito e fere a lei, e o estado irá amparar o ofendido, responsabilizando-o como se cometesse qualquer ilicitude, ou seja, indenizando o ofendido pelos prejuízos sofridos.

Conforme art. 422, do Código Civil: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.[14]

Regina Beatriz Tavares da Silva, comentando o mencionado artigo, destaca o seguinte:

O princípio da boa-fé está intimamente ligado não só à interpretação do negócio jurídico, pois segundo ele o sentido literal da linguagem não deverá prevalecer sobre a intenção inferida da declaração da vontade das partes, mas também ao interesse social de segurança das relações jurídicas, uma vez que as partes devem agir com lealdade e também de conformidade com os usos do local em que o ato negocial foi por elas celebrado[15]

Caso de grande repercussão acerca da aplicação da boa-fé objetiva na fase pré-contratual é o chamado “caso dos tomates”[16]:

os primeiros entendimentos jurisprudenciais relevantes que trataram da matéria envolveram a empresa CICA e foram pronunciados pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, casos que ficaram conhecidos em todo o Brasil sob a denominação caso dos tomates. Essa empresa distribuía sementes a pequenos agricultores gaúchos sob a promessa de lhes comprar a produção futura. Isso ocorreu de forma continuada e por diversas vezes, o que gerou uma expectativa quanto à celebração do contrato de compra e venda da produção. Até que certa feita a empresa distribuiu as sementes e não adquiriu o que foi produzido. Os agricultores, então, ingressaram com demandas indenizatórias, alegando a quebra da boa-fé, mesmo não havendo qualquer contrato escrito, obtendo pleno êxito.[17]

Seguindo, falando de boa-fé objetiva já na fase contratual, podemos citar como maior exemplo de aplicabilidade o que prevê a súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”.

Visivelmente, a súmula citada tem sua razão de ser originária de casos em que construtoras, valendo-se de seu poderio econômico, buscavam instituições financeiras, firmando transações financeiras e hipotecando imóveis que já haviam prometido a terceiros compradores de boa-fé.

Destarte, como não raro muitas empresas do ramo de construção civil acabavam não conseguindo manter o empreendimento e eram conduzidas à falência, os adquirentes de imóveis acabavam sendo prejudicados por tal conduta. A situação exemplificada demonstra visível quebra dos deveres anexos da boa-fé objetiva.

Finalmente, como exemplo de observância da boa-fé objetiva na fase pós contratual, citamos o Doutrinador Flávio Tartuce:

Quanto à aplicação da boa-fé objetiva na fase pós-contratual, cite-se o comum entendimento de que o credor tem o dever de retirar o nome do devedor do cadastro de inadimplentes após acordo ou pagamento da dívida. Isso, sob pena de surgimento de uma responsabilidade pós-contratual (post pactum finitum), pela quebra da boa-fé. Nesse sentido:

‘Inscrição no SPC. Dívida paga posteriormente. Dever do credor de providenciar a baixa da inscrição. Dever de proteção dos interesses do outro contratante, derivado do princípio da boa-fé contratual, que perdura inclusive após a execução do contrato (responsabilidade pós-contratual)’ (TJRS, Processo 71000614792, j. 01.03.2005, 3.ª Turma Recursal Cível, Juiz Rel. Eugênio Facchini Neto, Comarca de Porto Alegre).

‘O cancelamento de inscrição em órgãos restritivos de crédito após o pagamento deve ser procedido pelo responsável pela inscrição, em prazo razoável, não superior a dez dias, sob pena de importar em indenização por dano moral’ (Enunciado n. 26 dos Juizados Especiais Cíveis do Tribunal de Justiça de São Paulo).[18]

2.4. Funções da Boa-fé Objetiva

A boa-fé objetiva, mesmo sendo norma de caráter aberto (cláusula geral) possui diversas funções, algumas inclusive muito claras no Código Civil de 2002 (artigos 113, 187 e 422), as quais objetivam determinar a aplicabilidade e conceder poder interpretativo ao princípio.

Vejamos a seguir algumas funções da boa-fé objetiva.

2.4.1. Função Interpretativa

Veja que, diante da subjetividade inerente ao poder concedido aos indivíduos de prever a estabelecer seus direitos e obrigações em contrato e, assim, serem donos do próprio destino, nascem diversos problemas de linguagem e interpretação.

Até mesmo quando falamos em interpretação de leis, são muitas as divergências quanto a determinados textos legais, gerando diversas linhas de interpretação e posicionamentos doutrinários que chegam a tomar proporções amplamente conflitantes. 

Uma das principais funções da boa-fé objetiva é a de interpretação dos negócios jurídicos. Conforme já referido, tem-se a ideia de que o ser humano age resguardando a boa-fé e que eventual ato que contrarie esta premissa seria anomalia a ser coibida e extirpada pelo estado de direito.

Importante transcrever importante ensinamento do grande Humberto Theodoro Jr.:

Nos tempos atuais, prevalece o princípio de que ‘todos os contratos são de boa-fé’, já que não existem mais, no direito civil, formas sacramentais para declaração de vontade nos negócios jurídicos patrimoniais, mesmo quando a lei considera um contrato como solene. O intérprete, portanto, em todo e qualquer contrato, tem de se preocupar mais com o ‘espírito’ das convenções do que com a sua ‘letra.[19]

Nesse sentido encontra-se o artigo 113, do Código Civil, o qual prevê que: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” [20]

Emana do supracitado artigo a função interpretativa da boa-fé, a serve a preencher eventuais lacunas constantes em acordos mediante aplicação de conceitos básicos de boa-fé, probidade e usos e costumes do lugar de sua celebração.

Segundo Stolze:

Guarda, pois, essa função, íntima conexão com a diretriz consagrada na regra de ouro do art. 5º,  da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, segundo o qual o juiz, ao aplicar a lei, deve atender aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Tendo em vista as constantes mudanças sociais, a função de interpretação da boa-fé objetiva demonstra-se como ferramenta valorosa de evolução da evolução da cultura contratual, uma vez que faz com que o operador do direito possua um referencial hermenêutico[21] adequado ao momento histórico cultural em que se estabelece o negócio jurídico analisado, valendo-se disso para garantir interpretação adequada.

Assim, a função interpretativa da boa-fé objetiva representa um dos pilares da relação contratual, devendo sempre eventuais lacunas, brechas ou imperfeições serem analisadas à luz de conceitos básicos – e atuais – de bons costumes, boa-fé, probidade, ética e dignidade.

2.4.2. Função de Integração

A função de integração também decorre da condição expressa no artigo 113, do Código Civil (já citado supra), uma vez que a boa-fé é utilizada como referencial para complementar o negócio.

É muito comum que os particulares, ao pactuarem um contrato, deixem de se ater a pontos cruciais ao negócio e que acabam passando despercebidos ao positivar a relação. Nasce daí, a necessidade da função de integração da boa-fé objetiva de modo a preencher as lacunas verificadas.

Assim, eventuais pontos obscuros ou de divergência de compreensão devem ser analisados mediante a observância da boa-fé objetiva, assim, integrando o espaço deixado entre as partes com entendimento dotado da máxima boa-fé que seria – e deveria – ter sido observada para tanto.

O exemplo mais claro da função de integração da boa-fé objetiva decorre da seguinte situação: duas partes firmam contrato particular de compra e venda de um automóvel a prazo; como não possuem conhecimento e experiência jurídica acabam deixando de especificar no contrato eventual taxa de juros para eventual inadimplemento. Cabe então ao estado, havendo suscitação da matéria em uma possível litigância, valer-se do poder de integração da boa-fé objetiva ao negócio jurídico e  determinar a aplicação da taxa legal de juro para o caso.

2.4.3. Função de Controle

Por fim, mas não menos importante, temos a função controle que emana do princípio da boa-fé objetiva. Ou seja, visa-se, nessa abrangência, limitar o exercício abusivo de direitos subjetivos de uma parte em detrimento de outra, intervindo na relação contratual.

Em outras palavras, limitar direitos subjetivos confere ao princípio da boa-fé objetiva o papel de impedir o abuso do direito a autonomia da vontade por parte dos contratantes, ferindo assim os mais comezinhos direitos pessoais e à própria função social do contrato. Reafirma-se que, com a mudança das concepções acerca da dogmática da autonomia da vontade e pacta sunt servanda representa papel essencial através da função de controle da boa-fé objetiva, determinando que todo e qualquer negócio seja de direito público ou privado, deve observar a função social que lhe é atribuída pelo ordenamento jurídico.[22]

O Código Civil positivou a função referida no Código Civil, em seu artigo 187, quando prevê o seguinte: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”[23]

Comentando o mencionado artigo, a Doutrinadora Regina Beatriz Tavares da Silva destaca: Abuso de direito ou exercício irregular do direito:

O uso de um direito, poder ou coisa, além do permitido ou extrapolando as limitações jurídicas, lesando alguém, traz como efeito o dever de indenizar. Realmente, sob a aparência de um ato legal ou lícito, esconde-se a “ilicitude”, ou melhor a antijuridicidade sui generis no resultado, por atentado ao princípio da boa-fé e aos bons costumes ou por desvio de finalidade socioeconômica para a qual o direito foi estabelecido[24]

Pode-se dizer que a função de controle da boa-fé objetiva possui papel de extrema relevância e visa combater desproporcionalidades nos contratos que geram benefícios ao contratante de má-fé em detrimento da parte contrária da relação.

3. BOA-FÉ: CONCEITOS PARCELARES E REFERENCIAL INTERPRETATIVO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS

3.1. Deveres Anexos ao Princípio da Boa-fé Objetiva

A boa-fé objetiva possui papel fundamental no direito contratual por ser norma de grande amplitude e subjetividade.

Desse modo, além de sua generalidade, existem deveres que são anexos à boa-fé os quais atuam como fundamento normativo, e não propriamente fático, do princípio maior.[25]

O Código Civil não apresenta expressamente os deveres anexos de conduta, contudo, desde o início de vigência do diploma legal, grande parte da doutrina e jurisprudência tem construído importantes estudos e abordagens acerca do tema, de tão modo a ganhar grande relevância.[26]

Segundo Couto e Silva:

A medida da intensidade dos deveres secundários, ou anexos, é dada pelo fim do negócio jurídico. Mas, tal finalidade, no que toca à aplicação do princípio da boa-fé, não é apenas o fim da atribuição, de que normalmente se fala na teoria da causa. Por certo, é necessário que essa finalidade seja perceptível à outra parte. Não se cuida, aí, de motivo, de algo psicológico, mas de um plus que integra o fim da atribuição e que está com ele intimamente relacionado. A desatenção a esse plus torna o adimplemento insatisfatório e imperfeito.[27]

Os deveres anexos vislumbram-se como verdadeiros limitadores positivos ou negativos da autonomia da vontade privada, estabelecendo deveres de comportamento e norteando a conduta dos contratantes de forma guiada aos ideais de justiça.[28]

Eventual violação desses deveres anexos gera, conforme construção doutrinária, violação positiva do contrato mesmo tendo sido a obrigação principal aparentemente cumprida, uma vez que houve violação das obrigações secundárias.[29]  Ou seja, os contratantes devem “colaborar durante a execução do contrato, conforme o paradigma da boa-fé objetiva”.[30]

Os deveres anexos à boa-fé são diversos e possuem grande amplitude, contudo, a seguir passaremos a uma análise mais aprofundada dos principais atualmente verificáveis nas relações contratuais.

3.1.1. Dever de Lealdade e Confiança Entre as Partes

Não há dúvidas de que exige-se, como fator primordial a qualquer relação o dever de lealdade e consequente confiança no desenvolver dos atos.

Conforme dicionário, a palavra lealdade remete ao comportamento sincero, franco e honesto, sendo fiel aos compromissos assumidos.[31]

Já confiança, demonstra crédito e boa fama do confiável; segurança e bom conceito que inspiram as pessoas de probidade, talento, discrição, esperança firme e  familiaridade.[32]

“Quando se fala em deveres de lealdade e confiança recíprocas, costuma-se denominá-los deveres anexos gerais de uma relação contratual.”.[33]  Isso no sentido que o contrato deve ser cumprido da forma estipulada e respeitando os princípios norteadores da honra e probidade.[34]

Tal dever requer que as partes sejam transparentes no negócio firmado de forma a que seja formada segurança jurídica e consequente confiança no cumprimento das obrigações previstas de ilibada.[35]

3.1.2. Dever de Assistência e Cooperação

O dever de assistência, o qual também recebe a nomenclatura de dever da cooperação entre as partes, visa definir que devem cooperar para o resultado pretendido no contrato, ou seja, para que o que foi acordado seja desempenhado da melhor forma e atingindo previsões recíprocas.[36]

Verifica-se contrariedade a esse dever quando uma das partes, sempre diligente na relação contratual, é impedida de cumprir com o contrato por atos da outra parte. Como exemplo, podemos citar uma situação em que um Locador oculta-se e evita o pagamento dos aluguéis e/ou deixa de fornecer informações necessárias para tal por própria inércia.[37]

3.1.3. Dever de Informação

Ter ciência exata do que se está fazendo, o porquê, resultados, consequências, valores, riscos, condições, prazos, obrigações e muitos outros contextos contratuais é de suma importância para que o contrato cumpra sua função social.

Um exemplo claro do dever de informação decorre dos contratos de franquia e a formação jurisprudencial decorrente, que estabelece que a franqueadora, ao formar a oferta de franquia deve especificar com a maior exatidão possível todos as características do negócio, riscos e todas possíveis situações. Eventual descumprimento deste dever de informação é considerada violação positiva do contrato e gera o dever de indenizar. Vejamos julgado recente sobre o tema:

APELAÇÃO CÍVEL. CONTRATO DE FRANQUIA. QUEBRA CONTRATUAL PELO FRANQUEADOR. DEVOLUÇÃO DOS ROYALTIES. PEDIDO PROCEDENTE. 1. Numa operação de franchising bem estruturada, a circular de oferta da franquia é elaborada por escrito e em linguagem clara e acessível, contendo obrigatoriamente, dentre muitas outras, as informações relativas à remuneração periódica pelo uso do sistema, da marca ou em troca dos serviços efetivamente prestados pelo franqueador ao franqueado (royalties). 2. A mesma exigência – informação clara e por escrito - subsiste na hipótese de renovação ou alteração do contrato. 3. Com o descumprimento das disposições contratuais pela franqueadora - que aumentou o percentual dos royalties - houve prejuízos suportados pela franqueada, o que gera à franqueadora o dever de restituir tais parcelas, devidamente corrigidas e acrescidas de juros moratórios.[38]

Veja através da decisão supra um nítido caso em que a boa-fé objetiva contratual é desrespeitada, mais especificamente pela quebra do dever anexo da informação.

Utilizando-se do direito comparado, e em uma análise voltada aos contratos de consumo, Marques subdivide o dever da informação em duas necessárias observâncias. Primeiramente o dever de esclarecimento (Aufklarungspflicht, em alemão e obligation de renseignements, em francês) o qual obriga a parte a fornecer informações exatas referentes a riscos de determinado serviço ou negócio, bem como demais informações que, se não fornecidas, poderiam gerar grave consequência a parte desinformada. Também, há o dever de aconselhamento (Beratungspflicht, em alemão e obligation de conseil, em francês), isto é, seria o dever de deixar claro ao contratante determinadas questões técnicas relativas a possíveis escolhas que este pode fazer no contrato e os resultados práticos que isso gera, impedindo frustrações e surpresas.[39]

3.1.4. Dever de Confidencialidade

O dever anexo da confidencialidade é inerente a toda contratação e conduz ao resguardo de direitos da personalidade dos contratantes.[40]

Como se sabe, muitos contratos, em especial os que envolvem grandes empresas, acabam possuindo diversa carga de informações confidenciais de extremo valor aos interessados. A proteção destas informações, por consequência, é um dever vinculado à boa-fé objetiva e mesmo não tendo sido expresso em contrato, por óbvio deve ser respeitado, sob pena de resultar em grave lesão de um dos contratantes, gerando, consequentemente, a violação positiva do contrato e consequente dever de indenizar.

Citando Stolze, trazemos exemplo de ofensa ao dever contratual:

Em um determinado contrato firmado entre as empresas OLIVEIRA e TIGO, para fornecimento de ração de pássaros, não se consignou cláusula no sentido de que as partes contratantes não poderiam, durante a vigência do contrato, ou mesmo após, divulgar dados ou informações uma da outra. Ora, ainda que não haja estipulação nesse sentido, é forçoso convir que a boa-fé impõe que se observe o dever de sigilo ou confidencialidade entre ambas.[41]

Como exemplo mais específico do dever de confidencialidade, podemos citar o caso de uma empresa de tecnologia que firma contrato de licença de software por tempo determinado e após o final do contrato descobre que informações relativas ao seu sistema foram disponibilizadas pela empresa contratante à outra empresa, do mesmo ramo, com quem firmou contrato posterior. Veja que, nesse caso, além da quebra do dever anexo de confidencialidade, ainda verificamos uma consequente violação à propriedade intelectual.

Assim, as informações das partes no contrato restringem-se, obviamente, ao pacto que firmaram, gerando violação da boa-fé objetiva o uso não previsto ou não autorizado.

3.2. Figuras Parcelares à Boa-fé Objetiva

Inerentes à concepção de boa-fé objetiva, existem as figuras parcelares, as quais denotam-se como noções conceituais visando a árdua tarefa de buscar delimitar um conceito aberto.

Conforme Penteado:

A boa-fé, segundo a insuperável classificação feita por Menezes Cordeiro ao tratar do exercício inadmissível das posições jurídicas, apresentaria oito figuras parcelares, ou seja, tipos de argumentos recorrentes com vistas a sua aplicação tópica. Entre eles estariam o venire contra factum proprium, o tu quoque, a exceptio doli, desdobrada em exceptio doli generalis e exceptio doli specialis, a inalegabilidade das nulidades formais, o desequilíbrio no exercício jurídico, a supressio e a surrectio.[42]

Pretendemos, pois, analisar algumas figuras parcelares da boa-fé objetiva de modo a compreender e criar a visão do conceito de uma forma estrutural.

3.2.1. Supressio  

Segundo Gonçalves: “Um direito não exercido durante determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa-fé”.[43]

O dever anexo denominado supressio, decorrente da expressão alemã werwirkung (em português: perda)[44], possui conceito que remete à supressão do direito pelo seu não exercício por período considerável ou de forma a levar a outra parte a considerar que não mais o fará. Isto é, a perda de um direito pelo transcurso do tempo para exercê-lo ou pela demonstração de falta de interesse de exercê-lo.

Diferente de uma prescrição, onde o que se perde é o próprio direito, no caso da supressio, o que de fato ocorre é a inércia da parte em realizar determinado ato, a qual demonstra-se latente ao ponto de gerar expectativas.[45]

O mencionado comportamento demonstra a necessidade de agir mediante conduta retilínea, impedindo que a parte oposta venha a ser pega de surpresa, possuindo relação de proximidade com o dever anexo venire contra factum proprium.

Stolze cita exemplo clássico do dever anexo ora tratado: O exemplo tradicional de supressio é o uso  de área comum por condômino em regime de exclusividade por período de tempo considerável, que implica a supressão da pretensão de cobrança de aluguel pelo período de uso”.[46]

3.2.2. Surrectio

Com conceito estreitamente próximo ao da supressio, quando falamos em surrectio tem-se que um comportamento, mesmo que contrário as regras iniciais do acordo, se por muito tempo praticado sem qualquer oposição, acaba tomando proporções de regra.

Seria, conceitualmente, “a outra face da supressio. Acarreta o nascimento de um direito em razão da continuidade da prática de certos atos.”[47]

A surreição nada mais é do que o surgimento de uma posição jurídica pelo comportamento materialmente nela contido, sem a correlata titularidade. Como efeito deste comportamento, haveria, por força da necessidade de manter um equilíbrio nas relações sociais, o surgimento de uma pretensão.[48]

Assim, um comportamento contrário seria contrário à surrectio. Como exemplo, podemos citar um contrato de aluguel com data de pagamento fixada para o dia 10 de cada mês. Todavia, o locatário recebe seu salário no dia 20 e, dessa forma, sempre efetua o pagamento nesta data. Veja, transcorrido todo o período contratual de 5 anos configuraria uma quebra de confiança que o locador exigisse juros e correção monetária por todo o período não tendo oposto qualquer impedimento em momento anterior. Falar-se-ia de uma surrectio pelo transcurso do tempo e conduta das partes em aceitar que os atos fossem praticados daquela forma.

3.2.3. Tu Quoque

Tu quoque, Brutus, fili mi! A célere frase históricamente atribuída a Júlio Cesar, pela constatação da traição de seu filho Brutus, dá nome a um dos mais comuns desdobramentos do princípio da boa-fé objetiva”[49]

A aplicabilidade do chamado tu quoque  se dá em situações em que uma parte da relação contratual é pega de surpresa por determinada atitude da parte contrária, causando-lhe inegável desamparo e eventual dano em decorrência da atitude.

Diferencia-se do desdobramento da boa-fé objetiva denominado venire contra factum proprium pois não objetiva a tutela de expectativa de continuidade de comportamento, e sim uma manutenção de seus atos visando preservar o equilíbrio contratual.[50]

Tal conceito, correlato à boa-fé objetiva, “proíbe que uma pessoa faça contra outra o que não faria contra si mesmo, consistindo em aplicação do mesmo princípio inspirador da exceptio non adimplendi contractus.”[51]

À título de exemplo, podemos citar, conforme ensinamentos de Stolze: “um bom exemplo desse desdobramento da boa-fé objetiva reside no instituto do exceptio non adimplendi contractus. Se a parte não executou a sua prestação no contrato sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação.”[52]

Explicando a exceção de contrato não adimplido, e sua previsão no Código Civil, em seu artigo 476, Luciano Penteado relata:

O enunciado, em termos de tu quoque, equivale a dizer: você não pode cobrar enquanto não pagar o que deve; se o fizer, surpreende-me sua conduta e o direito fornece um meio de tutela. Em outras palavras, a pessoa que viola uma regra jurídica não pode invocar a mesma regra a seu favor, sem violar a boa-fé objetiva, na modalidade denominada tu quoque.[53]

“Pela figura do tu quoque objetiva-se a vedação de dois pesos e duas medidas, ou seja, da adoção de comportamentos contraditórios no interior de relações obrigacionais com referência a determinado direito subjetivo derivado do contrato.”[54]

3.2.4. Exceptio Doli      

É conclusivo pelo próprio título do desdobramento da boa-fé denominado exceptio doli que refere-se a uma exceção de dolo. Ou seja, a boa-fé objetiva não se observa quando determinada parte de um contrato vale-se de atitude dolosa com o intuito “não de preservar legítimos interesses, mas, sim, de prejudicar a parte contrária.”.[55]

Conforme Stolze: “Uma aplicação deste desdobramento é brocardo agit qui petit quod statim redditurus est, em que se verifica uma sanção à parte que age com interesse de molestar a parte contrária e, portanto, pleiteando aquilo que deve ser restituído.”[56]

O legislador buscou restringir condutas eivadas de dolo ao redigir o art. 940, do Código Civil, o qual garante a possibilidade de quem tenha sido acionado judicialmente por dívida paga, no todo, ou em parte, de cobrar judicialmente o dobro ou o mesmo valor como espécie de sanção.

Cabe pontuar que o Doutrinador Luciano de Camargo Penteado ainda divide a exceptio doli em dois subconceitos, isto é, excepio doli generalis e exceptio doli especialis:

A exceptio doli especialis nada mais seria do que  uma participação da exceptio doli generalis referida a atos de caráter negocial e atos dele decorrentes, quando o primeiro houvesse sido obtido com dolo. Assim, a generalis, como o próprio nome já diz, é gênero e a outra espécie. A diferença específica encontra-se nos casos em que a fonte da que dimana o possível direito é um negócio jurídico e não qualque outra fonte. O caráter excessivamente geral das duas figuras acaba por tornar sua aplicação perigosa em termos de segurança jurídica, valor que parece preservado pelas figuras anteriormente consideradas, na medida em que tem pressupostos concretos de verificação.[57]

3.2.5. Venire Contra Factum Proprium Non Potest     

Um dos principais deveres anexos à boa-fé objetiva, sem dúvida é o que iremos abordar neste tópico. Venire contra factum próprium non potest, em uma tradução literal do latim significaria vir contra um fato próprio. No direito, significa agir de maneira contraditória.

Ou seja, o contratante não poderá, no curso da relação jurídica agir de forma confusa e sem a necessária lógica decorrente do contrato, situação que geraria, consequentemente a quebra de confiança da(s) outra(s) parte(s), e a violação do mencionado dever anexo.

“Protege uma parte contra aquela que pretende exercer uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente.[58]

Nas palavras do Jurista Luciano de Camargo Penteado:

o venire contra factum proprium que se verifica, basicamente, nas situações em que uma pessoa, durante determinado período de tempo, em geral longo, mas não medido em dias ou anos, comporta-se de certa maneira, gerando a expectativa justificada para outras pessoas que dependem deste seu comportamento, de que ela prosseguirá atuando naquela direção. Ou seja, existe um comportamento inicial que vincula a atuar no mesmo sentido outrora apontado. Em vista disto, existe um investimento, não necessariamente econômico, mas muitas vezes com este caráter, no sentido da continuidade da orientação outrora adotada, que após o referido arco temporal, é alterada por comportamento a ela contrário.[59]

Pode-se afirmar que existem quatro pressupostos para a configuração do venire contra factum proprium, quais sejam: a) um comportamento; b) a geração de expectativa pela parte contrária da relação; c) o investimento (intelectual, financeiro, de tempo etc) na expectativa gerada; d) comportamento contraditório, o qual frustra as expectativas do outro.[60]

Como exemplo podemos citar uma situação hipotética em que um locatário deixa o imóvel locado, informa o locador e não realiza o pagamento de qualquer despesa de rescisão. Logo após tomar conhecimento da situação, a locadora coloca o imóvel como disponível para locação e consegue firmar contrato após doze meses transcorridos desde o abandono do antigo locatário. Transcorrido todo o acontecimento, move ação de execução em face do locatário inadimplente, cobrando-o por todo o período desde sua saída do imóvel até o novo contrato de locação. Veja, nesse caso, o locador pratica indiscutível venire contra factum próprium, quebrando o dever anexo e, consequentemente, ferindo a boa-fé objetiva da relação contratual.

No mesmo sentido, p Doutrinador Pablo Stolze cita alguns exemplos positivados no próprio Código Civil:

O primeiro deles reside no art. 973, CC-02 (sem equivalente no CC-16), em que se estabelece que a “pessoa legalmente impedida de exercer atividade própria de empresário, se a exercer, responderá pelas obrigações contraídas. Ou seja, embora impedido de exercer a atividade, se o faz, gera a expectativa, nos contratantes, do cumprimento pactuado, não pondendo o indivíduo invocar a sua própria torpeza para se desvencilhar das obrigações celebradas.

Outro exemplo reside no art. 330, CC-02 (também sem equivalente no CC-16), em que o credor, que aceitou, durante a execução de pacto de trato sucessivo, o pagamento em lugar diverso do convencioado, não pode surpreender o devedor com a exigência literal do contrato, para alegar descumprimento. A Idéia, inclusive, poder ser desdobrada para o tempo do descumprimento do contrato, emq ue a tolerância habitual de determinado atraso, sem oposição, impede a cobrança de sanção pela mora do período.

Mais um exemplo pode ser encontrado no art. 175, CC-02 (art. 151, CC-16), explicitandoque o contratante que, voluntariamente, iniciou a execução do negócio jurídico anulável, não pode mais invocar essa nulidade. Isso porque, o cumprimento voluntário do negócio anulável importa, na dicção legal, em extinção de todas as ações ou exceções de que dispusesse o devedor, uma vez que esse livremente pratica o pactuado, não podendo surpreender a outra parte com a alteração de seu comportamento.[61]

3.2.6. Duty to Mitigate the Loss      

O supracitado desdobramento da boa-fé objetiva observa que o credor, dotado de certos poderes na relação com o devedor, deve evitar o agravamento do próprio prejuízo.[62]

Nesse sentido é o Enunciado n. 169, do CJF/STJ na III Jornada de Direito Civil: “O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”. Conforme Tartuce, o mencionado enunciado encontra inspiração no art. 77, da Convenção de Viena de 1980, sobre a venda internacional de mercadorias:

A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída.

De forma exemplificativa à aplicação do duty mitigate the loss pode-se citar caso em que determinada empresa aluga uma sala comercial a uma pessoa física. Acontece que, já no início do contrato o locatário acaba tendo que mudar de cidade devido a motivo pessoal e simplesmente abandona o local. Nesse caso, não pode o Locador valer-se da situação e, mesmo sabendo que o Locatário abandonou o local persistir na cobrança de aluguéis até que consiga firmar contrato com terceiro. Tal situação configura verdadeira quebra da boa-fé objetiva ligada a duty mitigate the loss.

3.5. A Evolução Constante da Boa-fé como Referencial Hermenêutico

Toda manifestação interpessoal pressupõe, necessariamente, uma futura interpretação pelos envolvidos para que seja dotada de eficácia e segurança jurídica aos interessados no sentido de verem seus direitos amparados por norma criada por eles próprios visando atender suas necessidades.

Os contratos escritos, num exercício constante da linguagem, necessitam ser interpretados para que possam possuir validade e exercer, de fato, o interesse das partes.

Um dos maiores problemas da linguagem[63] é a interpretação, uma vez que, por ser subjetiva, acaba gerando diversas compreensões baseadas em diversos fatores inerentes à condição humana.

Nas palavras de Gonçalves: “Nem sempre o contrato traduz a exata vontade das partes. Muitas vezes a redação mostra-se obscura e ambígua, malgrado o cuidado quanto a clareza e a precisão demonstrado pela pessoa encarregada dessa tarefa.”[64]. Isso ocorre em virtude das peculiaridades do caso específico e a dificuldade de positivar – muitas vezes às pressas -, o que as partes realmente buscam por meio daquele acordo que estão firmando.

As cláusulas gerais, presentes no Código Civil, permitem ao operador de direito interpretar o negócio conforme as suas características de modo que o direito esteja em constante evolução mesmo sem que sejam criadas normativas constantes de modo a preencher cada lacuna que diariamente é apontada.[65]

“Este é o principal sentido da cláusula geral: servir de meio de adaptação da lei às modificações verificadas no contexto social e, inclusive, no contexto político.”[66]

Interpretar o negócio jurídico é, portanto, determinar o sentido e alcance do que as partes buscam em determinado acordo[67].

Mas não é só isso, a interpretação do negócio firmado entre as partes deve tomar como referencial hermenêutico[68] a boa-fé objetiva e todos os desdobramentos necessariamente observáveis com sua decorrente aplicação, principalmente quando falamos na sua função de interpretação. Isto é, na análise do negócio jurídico por meio de um contrato, muito necessário se faz ter em mente o contexto histórico cultural e ambiente em que o negócio foi firmado de modo a poder estabelecer se houve extrapolamento dos direitos de uma ou ambas as partes.

Conforme bem descreve o professor Rosenvald:

“[...] a boa-fé servirá como parâmetro objetivo para orientar o julgador na eleição das condutas que guardem adequação com o acordado pelas partes, com correlação objetiva entre meios e fins. O juiz terá que se portar como um “homem de seu meio e tempo” para buscar o agir de uma pessoa de bem como forma de valoração das relações sociais.” (grifei)

Veja que a boa-fé objetiva, como princípio contratual e observando seu potencial de interpretação do negócio jurídico, encontra-se em evolução constante como referência interpretativa aos contratos, uma vez que deve ser observada à luz dos usos e costumes e ideais de boa-fé, probidade, honestidade e lealdades extraídos da situação específica analisada.

Por isso, apesar de sempre melhor a manutenção do que foi pactuado entre as partes, deve ser utilizada como ferramenta essencial na análise contratual por parte dos operadores de direito, de modo que seja pregada a justiça, equidade e respeito aos interesses sociais e individuais em cada relação.

4. CONCLUSÃO

O princípio da boa-fé objetiva é, certamente, uma garantia fundamental à função social do contrato e garantia da ordem pública.

Além disso, através das funções do princípio da boa-fé objetiva, mais especificamente quanto a de interpretação dos negócios jurídicos, verifica-se importante referencial teórico e interpretativo, o qual, inevitavelmente, evolui constantemente, uma vez que baseia-se no ambiente e detalhes do momento histórico-cultural em que o negócio jurídico foi firmado.

Da mesma forma, as figuras parcelares e deveres anexos que formam o conceito de boa-fé objetiva concedem ao princípio uma amplitude ao mesmo tempo incomparável e benéfica ao direito civil e na formação e análise dos negócios jurídicos.

Essa evolução constante traz inegável contribuição ao estudo dos contratos, quebrando paradigmas e formando diferentes, novas e recentes visões e teorias de interpretações modernas aos contratos.

Certamente deve-se asseverar que a autonomia da vontade privada e a consequente força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda) devem sempre prevalecer em caso de dúvidas acerca da má-fé do agente. Apesar de alguns autores defenderem que a liberdade de contratar tende a diminuir cada vez mais, esse ônus conferido a sociedade revela-se como basilar às relações e os mecanismos de intervenção do estado – como para observância da boa-fé objetiva – devem ainda serem vistos com certa cautela.

Apesar disso, há que se louvar a evolução crescente observada na aplicação do princípio da boa-fé objetiva, haja vista revelar-se como fundamental limitador de ilegalidades em um cenário atual em que a sociedade verifica diversos problemas decorrentes de um sistema capitalista cada vez mais austero.

REFERÊNCIAS

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[1] DINAMARCO, 2016, p 40.

[2] PEREIRA, 1937, p. 29.

[3] HOLANDA, 1999, p. 309.

[4] GONÇALVEZ, 2012, p. 91.

[5] MARTINS-COSTA. 2000, p. 411.

[6] PENTEADO. 2016.

[7] LISBOA. 2012, p. 100.

[8] PENTEADO. 2016. 

[9] COELHO. 2012, p. 40.

[10] TARTUCE. 2015, p. 465.

[11] TARTUCE. 2015, p. 465.

[12] TARTUCE. 2015, p. 465.

[13] COELHO. 2012, p. 41.

[14] BRASIL. Lei n°. 10.406, 2002, art. 422.

[15] SILVA. 2012, p. 202.

[16] TARTUCE. 2015, p. 465.

[17] TARTUCE. 2015, p. 465.

[18] TARTUCE. 2015, p. 469.

[19] THEODORO JR.. 1993, p. 38.

[20] BRASIL. Lei n°. 10.406, 2002, art. 113.

[21] STOLZE. 2012, p. 114.

[22] MARTINS-COSTA. 1999, p. 456-457.

[23] BRASIL. Lei n°. 10.406, 2002, art. 187.

[24] DA SILVA. 2012, p. 252.

[25] STOLZE. 2012, p. 114.

[26] COUTO E SILVA. 2008, p. 38.

[27] COUTO E SILVA. 2008, p. 48.

[28] MELLO. 2001, p. 316.

[29] TARTUCE. 2015, p. 454.

[30] MARQUES. 2006, p. 233.

[31] BUENO. 1986, p. 648.

[32] BUENO. 1986, p. 648.

[33] STOLZE. 2012, p. 115.

[34] STOLZE. 2012, p. 115.

[35] STOLZE. 2012, p 115.

[36] STOLZE. 2012, p. 116.

[37] MARQUES. 1999, p. 65.

[38] TJ-DF - APC: 20110111997900, Relator: J.J. COSTA CARVALHO, Data de Julgamento: 29/04/2015,  2ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 15/05/2015 .

[39] MARQUES. 1999, p. 65.

[40] STOLZE. 2012, p. 119.

[41] STOLZE. 2012, p.119.

[42] PENTEADO. 2016.

[43] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[44] STOLZE. 2012, p. 126.

[45] STOLZE. 2012, p. 125.

[46] STOLZE. 2012, p. 125.

[47] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[48] PENTEADO. 2016.

[49] STOLZE. 2012, p. 127.

[50] PENTEADO. 2016.

[51] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[52] STOLZE. 2012, p. 127.

[53] PENTENADO. 2016.

[54] PENTEADO. 2016.

[55] STOLZE. 2012, p. 127.

[56] STOLZE. 2012, p. 127.

[57] PENTEADO. 2016.

[58] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[59] PENTEADO. 2016.

[60] PENTEADO. 2016.

[61] STOLZE. 2012, p. 125.

[62] TARTUCE. 2015, p. 475.

[63] S.f. Utilização dos elementos de uma língua como meio de comuncação entre os homens, de acordo com as preferências de cada um, sem preocupação estética; qualquer meio de exprimir o que se sente ou pensa; estilo; (fig.) a voz dos animais. (BUENO. 1986)

[64] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[65] BOULOS. 2006, p. 77.

[66] BOULOS. 2006, p. 77.

[67] GONÇALVES. 2012, p. 53.

[68]  STOLZE. 2012, p. 114.


Autor

  • Felipe Muxfeld Knebel

    Advogado com mais de 10 anos em experiência e atuação com assessoria jurídica de empresas e processos judiciais;

    Membro da Comissão de Inovação na Advocacia, da OAB/SC;

    Certificado em Estratégias e Técnicas de Negociação pela Michigan University;

    Pós graduado em Direito Empresarial e Civil pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus;

    Pós graduado em Direito Processual Civil, pela ESA - Escola Superior de Advocacia;

    Pós graduando em Direito, Tecnologia e Inovação, pela ESA - Escola Superior de Advocacia;

    Publicações nas áreas de Direito Empresarial e Contratos reconhecidas e citadas em trabalhos acadêmicos;

    Sócio Fundador do Escritório Knebel Advocacia Empresarial: www.knebeladv.com.br

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