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Judicialização de direitos fundamentais e ativismo judicial: o STF e o direito à vida, uma análise da ADPF 54 à luz da nova "summa divisio" constitucionalizada no Brasil

Judicialização de direitos fundamentais e ativismo judicial: o STF e o direito à vida, uma análise da ADPF 54 à luz da nova "summa divisio" constitucionalizada no Brasil

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A decisão proferida pelo STF quando do julgamento da ADPF 54 analisou a interpretação conferida ao direito fundamental à vida, adequando-a à nova summa divisio constitucionalizada no Brasil no caso de aborto de fetos anencéfalos.

1. Acórdão

ESTADO – LAICIDADE. O Brasil é uma república laica, surgindo absolutamente neutro quanto às religiões. Considerações. FETO ANENCÉFALO – INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ – MULHER – LIBERDADE SEXUAL E REPRODUTIVA – SAÚDE – DIGNIDADE – AUTODETERMINAÇÃO – DIREITOS FUNDAMENTAIS – CRIME – INEXISTÊNCIA. Mostra-se inconstitucional interpretação de a interrupção da gravidez de feto anencéfalo ser conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal. (STF – ADPF 54 – Rel. Min. Marco Aurélio – DJE nº 80, divulgado em 29/04/2013 ).


2. A ADPF n. 54

A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS, em 17 de junho de 2004, propôs perante o Supremo Tribunal Federal Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, distribuída sob o n. 54, indicando como preceitos vulnerados o art. 1º, inc. III (princípio da dignidade da pessoa humana); o art. 5º, inc. II, (princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade); art. 6º, caput e art. 196 (direito à saúde), todos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, pelo Poder Público ao se proibir, através da atuação do Poder Judiciário – por meio de juízes e tribunais -, a antecipação terapêutica do parto nos casos de fetos anencéfalos. Tal proibição calcava-se no conjunto normativo ensejado pelos artigos 124, 126, caput, e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Distribuída a ação, o Ministro Relator Marco Aurélio concedeu, em 01 de julho de 2004, medida liminar para autorizar a antecipação de parto de fetos anencéfalos. Todavia, em 20 de outubro de 2004, o pleno do Supremo Tribunal Federal não a referendou.

Contra o referendo, cassando a liminar, votaram os ministros Eros Grau, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Carlos Velloso e Nelson Jobim. Além do relator, votaram pelo referendo da liminar os ministros Carlos Ayres Britto, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Após a admissão de várias entidades de âmbito nacional na qualidade de amicus curiae, dentre elas a CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil; Conectas Direitos Humanos; Centro de Direitos Humanos; Instituto de Bioética, Direitos e Gênero; e da realização de audiências públicas em 26 e 28 de agosto, 04 e 16 de setembro de 2008, o Supremo Tribunal Federal, por maioria (8x2), nos termos do voto do Ministro Relator Marco Aurélio, julgou procedente o pedido formulado na ADPF 54 para decidir inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo caracteriza a conduta tipificada nos artigos 124 ou 126 do Código Penal.

Foram  vencidos os ministros Cezar Peluzo e Ricardo Lewandowski. Acompanharam o relator os ministros  Celso de Mello, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Ayres Britto e Gilmar Mendes.

Desta feita, tem-se por objetivo analisar os efeitos do julgamento da ADPF 54 à luz da nova summa divisio prevista na Constituição da República do Brasil de 1988, especificamente a interpretação do direito à vida conferida pelo Supremo Tribunal Federal e sua dimensão individual e coletiva.


3. O direito à vida e sua concepção individual e coletiva

A Constituição brasileira de 1988 assegura a inviolabilidade do direito à vida e sua existência com dignidade, conforme disposições expressas insertas no art. 5º, caput, combinado com o art. 1º, inciso III.

Todavia, o  direito fundamental à  vida deve ser compreendido numa tríplice concepção, ou seja, como direito de nascer, de permanecer vivo e de existir com dignidade2.

Nesse diapasão, cumpre estabelecer o marco inicial da vida humana, a partir do qual o ordenamento jurídico deve protegê-la, eis que a Constituição não tratou de estabelecê-lo expressamente. Nas palavras do Ministro do Supremo Tribunal Federal Ayres Britto, em seu voto proferido no bojo da ADPF n. 54, sobre o início da vida, a Constituição é de um silêncio de morte; ou seja, nada diz.

Ocorreram três tendências no seio da Constituinte. Uma queria assegurar o direito à vida desde a concepção, o que importava em proibir toda e qualquer hipótese de aborto. Outra previa que a condição de sujeito de direito se adquiria pelo nascimento com vida, sendo que a vida intrauterina, inseparável do corpo que a concebesse ou a recebesse, é responsabilidade da mulher, o que possibilitava o aborto. A terceira, a qual restou aprovada, entedia que a Constituição não deveria estabelecer o marco inicial da vida humana3.

Portanto, coube à doutrina e à jurisprudência a missão de estabelecer o marco inicial da vida humana.

Certo é que não há consenso sobre esta questão, nem biológico ou mesmo filosófico. O que se tem são posições sobre o tema:

a) a vida tem início a partir da concepção;

Segundo Alexandre de Moraes o início da vida humana deve ser dado pelo biólogo, cabendo ao jurista dar-lhe enquadramento legal, e, do ponto de vista  biológico,  a  vida  se  inicia  com  a  fecundação   do  óvulo  pelo espermatozoide, resultando um ovo ou zigoto4. A vida viável começa, porém, com a nidação, quando se inicia a gravidez. Tem-se, então, que o embrião (óvulo fecundado pelo espermatozoide) representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a  da mãe, sendo inexato afirmar que a  vida do embrião ou do feto está englobada pela mãe5.

b) a vida tem início a partir da nidação;

Essa posição lança mão do argumento de que há potencial de vida quando o embrião se fixa no útero materno, já que o embrião não pode se desenvolver fora dele6. Isso ocorre, em regra, no prazo de sete a dez dias após a fecundação. Com isso o zigoto é fixado no útero materno e a vida se torna viável7.

c) a vida tem origem com a formação do sistema nervoso central;

O dado fundamental para essa perspectiva é a capacidade neurológica de sentir dor ou prazer8. Ocorre a partir do décimo quarto dia de concepção. Trata-se de uma leitura inversa do marco legal que determina a morte humana. A Lei n. 9.434/97, estabelece, em seu art. 3º, que “a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento  deverá  ser  precedida  de  diagnóstico   de  morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina”. Portanto, a morte humana é caracterizada pela morte encefálica. Lado outro, o início da vida humana seria marcado pela formação do sistema nervoso central.

d) a vida tem início quando o feto pode existir independentemente da mãe.

Por fim, essa teoria defende que a vida só teria início a partir da vigésima terceira semana de  gestação, quando a  vida do   feto   seria independente em relação à da mãe9.

A questão submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal no bojo da ADPF n. 54, mostra-se ainda mais complexa do que delimitar o início da vida humana. Trata-se de decidir se o feto portador de anencefalia é titular de vida humana ou não e se antecipação terapêutica do parto, quando do diagnóstico, tipifica as condutas insertas no art. 124 e 126 do Código Penal.

A anencefalia é definida pela literatura médica como a má-formação fetal congênita por defeito do fechamento do tubo neural durante a gestação, de modo que o feto não apresenta os hemisférios cerebrais e o córtex, havendo apenas resíduo do tronco encefálico10. Todavia, os anencéfalos não são natimortos cerebrais, tanto que o Conselho Federal de Medicina revogou a Resolução CFM n. 1752/200411, que assim os tratava, editando a Resolução CFM n. 1949/2010. Importante frisar que a anencefalia não é incompatível com a vida extrauterina12.

Desta feita, a decisão proferida pelo STF, ao entender que se mostra inconstitucional interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo  é conduta tipificada nos artigos 124 e 126 do Código Penal, provoca repercussões de ordem individual e coletiva.

Atem-se a essa análise porque se defende que a summa divisio clássica Direito Público e Direito Privado não foi recepcionada pela Constituição brasileira de 198813.

A nova summa divisio proposta pela Constituição brasileira de 1988 é Direito Individual e Direito Coletivo. Chega-se a essa conclusão, com espeque na doutrina de Gregório Assagra de Almeida, a partir da análise do texto constitucional:

O Capítulo I do Título II da CF/88 explicita o fundamento da nova summa divisio ao fazer constar do texto constitucional, em cláusula expressa, as seguintes expressões: Dos Direitos e dos Deveres Individuais  e  Coletivos.   Outros  argumentos   existem,  cabendo destacar a incompatibilidade do dualismo clássico, que separa Estado da Sociedade, com o Estado Democrático de Direito e a necessidade de se estabelecer o enquadramento metodológico dos direitos, levando-se em conta os planos da titularidade e, especialmente, o plano da proteção e da efetivação do direito, para os quais se volta a ciência jurídica, de dimensão prática estabelecida, em tempos atuais, pelo pós-positivismo jurídico14.

A partir dessa nova summa divisio constitucionalizada, torna-se possível a construção de novos paradigmas da relação entre sociedade e Estado ou entre indivíduos e Estado. Permite-se, assim, a reconstrução de novos princípios e diretrizes para a administração pública, impondo-se uma atuação vinculada ao atendimento dos direitos e garantias fundamentais individuais ou coletivos. Muitos privilégios do Poder Público resultam de uma visão autoritária e distorcida do Estado e do seu papel na sociedade. A própria atuação descomprometida de determinados administradores, que banalizam vários dos direitos fundamentais, individuais e coletivos, tem amparo em um direito público elaborado com base em parâmetros inconciliáveis com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Supremacia do interesse público sobre o particular, insindicabilidade do mérito dos atos administrativos discricionários, presunção de legitimidade dos atos administrativos, entre outras diretrizes que regem a atuação do Poder Público, precisam ser revisitados à luz dessa nova summa divisio constitucionalizada15.

Para a concretização dos direitos fundamentais, in casu, o direito fundamental à vida, torna-se imprescindível o estudo das implicações jurídicas e efeitos das decisões judiciais a partir da adoção e exploração metodológica da summa divisio constitucionalizada Direito Coletivo e Individual.

Portanto, a partir da decisão prolatada, por maioria, pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF n. 54, torna-se possível a antecipação terapêutica de fetos anencéfalos, sem que tal constitua os crimes insertos nos artigos 124 e 126 do Código Penal.

Como dito alhures, essa decisão produz efeitos numa perspectiva individual e coletiva, ao assentar o STF que  a vida  humana que  merece proteção é somente aquela considerada viável.

Produz efeitos numa perspectiva individual uma vez que possibilita que toda mulher quando grávida, eis que constatada a anencefalia de seu feto, tem a prerrogativa de abortar.

Não se olvide que a decisão do STF também produz efeitos no plano coletivo, ao assentar que a vida humana inviável não merece guarida jurídica.

A anencefalia é uma doença congênita letal, mas não é a única. Existem outras como, por exemplo: acardia, agenedia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal, holoprosencefalia, ostogênese imperfeita letal, trissomia do cromossomo 13 e 15, trissomia do cromossomo 18. São todas afecções congênitas letais16.

Destarte, a decisão da ADPF n. 54 erige-se em precedente capaz de possibilitar a interrupção da gestação de inúmeros outros fetos também portadores de doenças congênitas letais, o que se afigura demasiadamente indesejável.

Não bastasse, agiu o STF como legislador positivo, ao criar, através de uma interpretação conforme a constituição, uma terceira hipótese legítima da prática de aborto, qual seja, quando diagnosticada a anencefalia.

Tem-se que tal decisão representa um ativismo judicial, consequência de uma judicialização da política e das relações sociais que experimenta o Brasil, sobretudo, pela atuação do STF.

Judicialização  significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo18.

Explica Luís Roberto Barroso que há causas para a ocorrência do fenômeno. A primeira delas é o reconhecimento  da importância de um Judiciário forte e independente como elemento essencial para as democracias modernas. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. A terceira diz respeito ao fato de que agentes políticos preferem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas,  em relação às quais haja desacordo razoável na sociedade, evitando o próprio desgaste na deliberação de temas divisivos19.

No Brasil, a judicialização da política e das relações sociais, decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado e o sistema de controle de constitucionalidade  vigente (difuso-concreto e concentrado-abstrato). Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro  pela admissão de uma variedade de ações do sistema abstrato20  e pela previsão de amplo rol de legitimados a propô-las21. Nesse contexto, a judicialização constitui fato inevitável, uma circunstância decorrente do modelo institucional constitucional vigente e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Entretanto, o modo como venham a exercer esse mister é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial22.

O ativismo judicial está associado a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação do Legislativo e Executivo. Há um distanciamento dos juízes e tribunais de sua função típica de aplicação do direito vigente e uma aproximação de uma função atípica de criação do próprio direito aplicado23.

Nesse diapasão, a judicialização é uma circunstância do desenho institucional constitucional brasileiro. Lado outro, o ativismo é uma atitude24, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance25.

Registre-se que o ativismo  judicial,  diferentemente da judicialização, pode representar um entrave à consolidação da democracia, uma vez que juízes e membros dos tribunais não são agentes públicos eleitos. A investidura no exercício da jurisdição não possui legitimidade popular.

Quando o Judiciário invalida atos do Legislativo ou do Executivo ou impõe-lhes deveres de atuação, desempenha um papel que é político. Essa possibilidade  das instâncias judiciais sobreporem suas decisões às dos agentes políticos eleitos caracteriza a denominada dificuldade contramajoritária26.

Quando o Supremo Tribunal Federal declara inconstitucional um ato normativo editado pelo Legislativo ou um ato emanado do Presidente da República, ele se opõe à vontade de representantes do povo. Exerce, então, um controle não em nome da maioria dominante, mas contra ela.

Não bastasse, cabe aos três Poderes interpretar e aplicar a Constituição. Entretanto, em caso de divergência, a palavra final é do Judiciário. Para evitar que este se transforme em um superpoder, se sobrepondo aos demais, prejudicando o princípio dos freios e contrapesos, a doutrina constitucional tem explorado duas ideias destinadas a limitar a ingerência judicial: a de capacidade institucional e a de efeitos sistêmicos27.

Capacidade institucional envolve a determinação de qual poder está mais habilitado a produzir a melhor decisão em certa matéria. O risco de efeitos sistêmicos imprevisíveis e indesejáveis pode recomendar uma posição de cautela e de deferência por parte do Judiciário. O juiz, por vocação e treinamento,  normalmente, está preparado para realizar a justiça do caso concreto, a microjustiça, sem condições, muitas vezes, de avaliar o impacto de suas decisões sobre um segmento econômico ou sobre a prestação de um serviço público28.

Por fim, a primeira consequência drástica do ativismo judicial é a eletização do debate, eis que o Judiciário tem métodos, linguagem, categorias e discurso próprios. Por conseguinte, aqueles que não dominam tal linguagem estão excluídos da discussão jurídica. O uso de argumentos jurídicos para resolver problemas sociais complexos pode dar a impressão de que a solução para muitos problemas políticos não exige engajamento democrático, mas em vez disso juízes e agentes públicos providenciais29.

Desta feita, não tem o Judiciário o condão de avocar a vontade popular e criar o direito ao decidir ao invés de aplica-lo.

Especificamente acerca da antecipação terapêutica de fetos anencéfalos tramitavam no Congresso Nacional projetos de lei com o intuito de regulamentar, com legitimidade popular, tal prática. Tratam-se do PL nº 4403/2994, de autoria da Deputada Jandira Feghali, que acrescenta um inciso ao art. 128 do Código Penal para, segundo a ementa, “isentar de pena a prática de ‘aborto terapêutico’ em caso de anomalia do feto, incluindo o feto anencéfalo, que implique a impossibilidade de vida extrauterina”; do PL nº 50, de iniciativa do Senador Mozarildo Cavalcanti, também incluindo um inciso no citado dispositivo do referido código, para possibilitar o aborto se o feto apresentar anencefalia, desde que precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal; PL nº 183 do Senador Duciomar Costa.

Recentemente, o anteprojeto ao Código Penal prevê, em seu artigo 128, inciso III, a possibilidade da prática do aborto se comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina. Todavia, em ambos os casos, tal anomalia deverá ser atestada por dois médicos.


4. Conclusão

Tem-se que a atuação do Judiciário na concretização dos direitos e garantias fundamentais, observada a repercussão na perspectiva individual e coletiva desses direitos, não deve sobrepor-se à atuação das funções típicas do Legislativo e Executivo, sob pena de prejudicar o princípio democrático que é o alicerce de todo o modelo constitucional de 1988.

Entretanto, a omissão do Legislativo e Executivo na concretização e viabilização dos direitos e garantias fundamentais possibilita o ativismo judicial na medida em que o Judiciário não poderá escusar-se da função de decidir o litigio que lhe é legitimamente proposto.

Portanto, mister, tendo em vista que estrutura institucional constitucional brasileira dá margem à judicialização e, por conseguinte, ao ativismo judicial, que as questões decidas pelo Judiciário, mesmo que no exercício do controle de constitucionalidade abstrato, se atenha  à produção de efeitos relativos apenas ao pedido deduzido no bojo da ação, ou seja, que não se estenda, a partir da decisão da ADPF n. 54, a possibilidade de antecipação terapêutica de outras anomalias letais.


Citações

2 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2012. p. 361.

3 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 205.

4 A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22-11-1969, ratificada pelo Brasil em 25-9-1992 através do Decreto n. 678, em seu art. 4º, estipula: “Direito à vida. 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

5 MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2011. p. 81.

6 BARROSO, Luís Roberto. Gestação de fetos anencéfalos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras complementares de constitucional: direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2007. p. 163.

7 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Ob. cit. p. 362.

8 BARROSO, Luís Roberto. Ob. cit. p. 163.

9 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Ob. cit. p. 362.

10 BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M.; JENSON, Hal B.; STANTON, Bonita F. Tratado de Pediatria. Madrid: Editora Elsevier, 2002. p. 1777.

11 RESOLUÇÃO CFM Nº 1752/2004 (Publicada no D.O.U., de 13 de setembro de 2004, seção I, p. 140) Autorização ética do uso de órgãos e/ou tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais. O Conselho Federal de Medicina, no uso das atribuições que lhe confere a Lei n° 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e CONSIDERANDO que os anencéfalos são natimortos cerebrais (por não possuírem os hemisférios cerebrais) que têm parada cardiorrespiratória ainda durante as primeiras horas pós-parto, quando muitos órgãos e tecidos podem ter sofrido franca hipoxemia, tornando-os inviáveis para transplantes; CONSIDERANDO que para os anencéfalos,  por sua inviabilidade  vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios  de morte encefálica; CONSIDERANDO que os anencéfalos podem dispor de órgãos e tecidos viáveis para transplantes, principalmente em crianças; CONSIDERANDO que as crianças devem preferencialmente receber órgãos com dimensões compatíveis; CONSIDERANDO que a Resolução CFM nº 1.480/97, em seu artigo 3º, cita que a morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida, sendo o anencéfalo o resultado de um processo irreversível, de causa conhecida e sem qualquer possibilidade de sobrevida, por não possuir a parte vital do cérebro; CONSIDERANDO que os pais demonstram o mais elevado sentimento  de solidariedade quando, ao invés de solicitar uma antecipação terapêutica do parto, optam por gestar um ente que sabem que jamais viverá, doando seus  órgãos e  tecidos possíveis de serem transplantados; CONSIDERANDO o Parecer CFM nº 24/03, aprovado na sessão plenária de 9 de maio de 2003; CONSIDERANDO o Fórum Nacional sobre Anencefalia e Doação de Órgãos, realizado em 16 de junho de 2004 na sede do CFM; CONSIDERANDO as várias contribuições recebidas de instituições éticas, científicas e legais; CONSIDERANDO a decisão do Plenário do Conselho Federal de Medicina, em 8 de setembro de 2004, RESOLVE: Art. 1º Uma vez autorizado formalmente pelos pais, o médico poderá realizar o transplante de órgãos e/ou tecidos do anencéfalo,  após o seu nascimento.   Art. 2º A vontade dos pais deve ser manifestada formalmente, no mínimo 15 dias antes da data provável do nascimento. Art. 3º Revogam-se as disposições em contrário. Art. 4º Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.

12 Há casos em que os bebês vivem vários meses, como o registrado no em Porto Alegre, no Hospital de Clínicas da UFRS, de paciente que viveu quatro meses. Explicita-se também o exemplo mundialmente conhecido da menina Marcela de Jesus Galante Ferreira que sobreviveu 1 ano e 8 meses após ser diagnosticada como anencéfala.

13 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 361.

14 ALMEIDA, Gregório Assagra de. ob. cit. p. 362.

15 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada.  Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 362.

16 Transcrição de trecho do voto do Min. Ricardo Lewandowski, no qual menciona depoimento prestado em audiência pública realizada no STF pelo  médico Rodolfo Acatuassú Nunes, Professor Adjunto do Departamento de Cirurgia Geral da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. p. 10.

17 Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

18 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 366.

19 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. p. 367-368.

20 Ação direta de inconstitucionalidade – ADI; ação declaratória de constitucionalidade – ADC; ação direta de inconstitucionalidade por omissão – ADO; arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF e ação direta de inconstitucionalidade interventiva – ADI interventiva.

21 Com exceção da ADI interventiva, que compete somente ao Procurador-Geral da República, podem propor as ações do controle de constitucionalidade abstrato: o Presidente da República; a Mesa do Senado Federal; a Mesa da Câmara dos Deputados; a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

22 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. p. 369.

23 BARROSO, Luís Roberto. ob. cit. p. 372.

24  O oposto ao ativismo judicial é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. Por essa linha, juízes e tribunais evitam aplicar diretamente a Constituição a situações que não estejam no seu âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário, utilizam critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos e abstêm-se de interferir na definição das políticas públicas.

25 Idem.

26 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. p. 373.

27 Ob. cit. p. 374.

28 BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito do Estado, 3: 17, 2006. p. 34.

29 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. p. 375-376.


5. Referências bibliográficas

ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito Material Coletivo: superação  da summa divisio direito público e direito privado por uma nova summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte: Del Rey, 2008.

BARCELLOS, Ana Paula de. Constitucionalização das políticas públicas em matéria de direitos fundamentais: o controle político-social e o controle jurídico no espaço democrático, Revista de Direito do Estado, 3: 17, 2006.

BARROSO, Luís Roberto. Gestação de fetos anencéfalos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição. In: CAMARGO, Marcelo Novelino. Leituras complementares de constitucional: direitos fundamentais. Salvador: Juspodivm, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. O   controle de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.

BEHRMAN, Richard E.; KLIEGMAN, Robert M.; JENSON, Hal B.; STANTON, Bonita F. Tratado de Pediatria. Madrid: Editora Elsevier, 2002.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2012.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2011.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2013.


Autor

  • Paulo Junio Pereira Vaz

    Mestrando em direitos fundamentais pela Universidade de Itaúna/MG. Pós-graduado em Direito Público material pela Universidade Gama Filho/RJ. Professor dos cursos de Direito da Faculdade Pitágoras - Unidade Divinópolis e da Fundação Educacional de Oliveira/MG - FEOL. Advogado inscrito na OAB/MG.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VAZ, Paulo Junio Pereira. Judicialização de direitos fundamentais e ativismo judicial: o STF e o direito à vida, uma análise da ADPF 54 à luz da nova "summa divisio" constitucionalizada no Brasil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4692, 6 maio 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34797. Acesso em: 19 abr. 2024.