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Cláusula de reserva de plenário e controle difuso de constitucionalidade pelos Tribunais

apontamentos sobre a aplicabilidade da Súmula Vinculante 10 segundo a jurisprudência do STF

Cláusula de reserva de plenário e controle difuso de constitucionalidade pelos Tribunais: apontamentos sobre a aplicabilidade da Súmula Vinculante 10 segundo a jurisprudência do STF

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O artigo estuda o impacto da cláusula de reserva de plenário no controle difuso de constitucionalidade exercido pelos tribunais, especialmente à luz do que preconiza o enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF.

Uma das consequências do sistema jurisdicional misto de controle de constitucionalidade adotado pela Constituição de 1988 é a existência de regras que ora se reportam ao controle concentrado-abstrato, ora ao controle difuso-concreto. Identificá-las no texto constitucional é parte do trabalho do jurista, já que o legislador constituinte não se ocupou de dar-lhes uma sistematização didática.

Assim, se de um lado o art. 103 da CF/88 é claramente uma norma voltada a disciplinar a legitimidade ativa para a propositura da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade, o que é parte do controle concentrado, o art. 97 é norma integrante do controle difuso, conquanto nem sempre seja percebida como tal.

Esse art. 97 da Constituição, como é cediço, estabelece a cláusula de reserva de plenário nos termos seguintes:

Art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.

É uma regra dirigida aos tribunais, consoante se nota da sua redação. Por isso mesmo é parte do controle difuso, que é aquele que, por definição, é exercido por qualquer juiz ou tribunal incidentalmente no curso de um processo constitucional subjetivo, com a finalidade de proteger direitos subjetivos (inter partes).    

No entanto, não obstante a competência difusa dessa espécie de controle, a cláusula de reserva de plenário (art. 97) é uma exigência que o texto constitucional impõe tão somente aos tribunais, não se aplicando a juízes monocráticos e turmas recursais, por exemplo.  

Significa dizer que, no Brasil, o modelo de controle difuso de constitucionalidade não permite que qualquer órgão de tribunal declare a invalidade de uma lei ou ato normativo. Dada a gravidade da atuação jurisdicional nessas hipóteses, que pode acarretar o desfazimento da presunção de legitimidade do produto da atividade legiferante, o legislador constituinte cometeu (reservou) tal atribuição apenas ao plenário ou ao órgão especial. E foi além: não apenas a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo fica restrita ao plenário ou ao órgão especial como também é preciso respeitar o quorum de decisão, isto é, a maioria absoluta de seus membros. Inobservadas essas imposições procedimentais, a atuação do tribunal - enquanto órgão fiscalizador in concreto da validade dos atos normativos - não se justifica.       

Em que pese a clareza da cláusula, alguns tribunais passaram a se utilizar de um curioso subterfúgio para controlar a constitucionalidade das leis sem que, para tanto, precisassem socorrer-se do plenário ou do órgão especial. A tese funcionava da seguinte forma: o órgão julgador afastava a incidência de uma determinada norma, a decidir a lide com base em outros critérios, sem declarar expressamente a inconstitucionalidade do ato normativo. Assim, apesar de não explicitar a decisão que entendeu da invalidade, o resultado prático continuava a ser a ineficácia concreta da regra legal.

A jurisprudência do STF logo se apercebeu dessa manobra, censurando-a, como se nota deste precedente (grifo meu):

EMENTA: I. Controle de constitucionalidade: reserva de plenário e quorum qualificado (Constituição, art. 99): aplicação não apenas à declaração em via principal, quanto à declaração incidente de inconstitucionalidade, para a qual, aliás, foram inicialmente estabelecidas as exigências. II. Controle de constitucionalidade; reputa-se declaratório de inconstitucionalidade o acórdão que - embora sem o explicitar - afasta a incidência da norma ordinária pertinente à lide para decidi-la sob critérios diversos alegadamente extraídos da Constituição. (STF, Primeira Turma, RE 240.096/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/03/1999, p. DJ 21/05/1999).

Desse modo, a censura do STF consistiu em reconhecer que o acórdão lavrado pelo tribunal que afastava a incidência da norma, ainda que não declarasse expressamente a sua invalidade, poderia ser considerado exercício, sim, de controle de constitucionalidade difuso. Todavia, como a decisão colegiada não tinha observado a reserva de plenário (art. 97), impunha-se sua reforma.

Esses fundamentos se foram sedimentando mais e mais no repertório de decisões da Suprema Corte, o que culminou com a aprovação, na sessão plenário de 18/06/2008, do enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF. Colaciono:

STF, Súmula Vinculante 10

Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte.

Mas é importante sublinhar que a edição desse enunciado com caráter vinculante não impediu que a própria jurisprudência do STF evoluísse para discriminar as hipóteses ensejadoras de sua aplicação.

Uma delas diz respeito ao fato de que a simples ausência de aplicação de uma determinada norma jurídica ao caso concreto não implica de per si contrariedade ao enunciado nº 10 da súmula vinculante. É a conclusão que se extrai do julgado a seguir (grifo meu):

EMENTA: RECLAMAÇÃO. SÚMULA VINCULANTE N. 10. REVISÃO DE BENEFÍCIO. LEI N. 9.032/95. DECISÃO DA SEXTA TURMA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESERVA DE PLENÁRIO. NÃO CONFIGURADO O DESCUMPRIMENTO DA SÚMULA VINCULANTE N. 10 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 1. A simples ausência de aplicação de uma dada norma jurídica ao caso sob exame não caracteriza, apenas por isso, violação da orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal. 2. Para caracterização da contrariedade à súmula vinculante n. 10, do Supremo Tribunal Federal, é necessário que a decisão fundamente-se na incompatibilidade entre a norma legal tomada como base dos argumentos expostos na ação e a Constituição. 3. O Superior Tribunal de Justiça não declarou a inconstitucionalidade ou afastou a incidência dos arts. 273, § 2º, e 475-o, do Código de Processo Civil e do art. 115, da Lei n. 8.213/91, restringindo-se a considerá-los inaplicáveis ao caso. 4. Reclamação julgada improcedente. (STF, Tribunal Pleno, Rcl 6944/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 23/06/2010, p. DJe 12/08/2010).

Cumpre observar igualmente que o enunciado vinculante nº 10 representa a cristalização do pensamento da Corte Suprema a respeito de uma interpretação específica do art. 97 da Constituição. Logo, considerando que esse mesmo art. 97 circunscreve sua aplicabilidade ao controle difuso exercitado pelos tribunais, só se pode invocar o enunciado respectivo para aquelas demandas de caráter jurisdicional, e não para as de cunho meramente administrativo.

Nesse sentido, vai o acórdão seguinte (grifo meu):

EMENTA: PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. CONSELHO SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. QUÓRUM DE APROVAÇÃO DA SUGESTÃO DE PENA DE DEMISSÃO. ALEGAÇÃO DE OFENSA À SÚMULA VINCULANTE Nº 10 E AO JULGADO NA ADI Nº 3.227/MG. IMPROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do STF e garantir a autoridade de suas decisões (art. 102, inciso I, alínea l, CF/88), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (art. 103-A, § 3º, CF/88). 2. O alcance da Súmula Vinculante nº 10 está restrito à esfera para a qual se volta a norma do art. 97 da CF/88, qual seja, a esfera jurisdicional. 3. Não há aderência estrita entre a ADI nº 3.227/MG e o ato reclamado que seja apta a instaurar a competência originária do STF em sede reclamatória. 4. É incabível o uso da reclamação pelo jurisdicionado para se furtar ao trâmite processual ordinário de discussão do direito pretendido. 5. Reclamação improcedente. (STF, Primeira Turma, Rcl 9360/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 30/09/2014, p. DJe 14/11/2014).

Seja como for, o tempo revelou que a virtual contrariedade ao enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF é uma ameaça constante à autoridade das decisões do STF em matéria constitucional. Não sem razão, esse tema é presença permanente na pauta de julgamentos da Suprema Corte brasileira.

Um dos casos mais recentes de desrespeito ao enunciado nº 10 deu-se no julgamento da Reclamação 18896/SP. Nesse precedente, a suma dos fatos reportava-se a uma decisão da 1ª Câmara de Direito Privado Tribunal de Justiça de São Paulo que havia lavrado acórdão por meio do qual reconhecia a uma mulher, na qualidade de companheira, a condição de única herdeira do de cujus. O problema é que, para assim concluir, a Corte paulista precisou aplicar ao caso o art. 1.829 do CC, norma de direito sucessório cabível para as hipóteses de sucessão legítima, havidas de prévia relação casamentária.

Dessa maneira, o tribunal estadual recusou-se a aplicar o art. 1.790 do mesmo código, regra que disciplina a sucessão causa mortis advinda da união estável em termos distintos, a comportar uma concorrência maior entre os herdeiros. Na decisão, o TJSP entendeu que a sucessão causa mortis na união estável deveriam reger-se pelas mesmas regras aplicáveis à sucessão causa mortis no casamento (CC, art. 1.829). Eis o acórdão:  

Inventário – Decisão que reconheceu a condição da agravada de única herdeira do 'de cujus', na qualidade de companheira, afastando a aplicação do disposto no artigo 1.790 do Código Civil, nomeando-a como inventariante – Agravante que, na qualidade irmão unilateral do 'de cujus', pleiteia o reconhecimento de sua condição de herdeiro com a homologação do plano de partilha apresentado em observância ao disposto no artigo 1.790 do Código Civil e sua manutenção no cargo de inventariante – Manutenção da decisão agravada – Interpretação infraconstitucional do disposto no artigo 1.790 do Código Civil que afasta sua aplicação ao caso em tela – Equiparação do regime sucessório entre cônjuge e companheira – Observância do disposto no inciso II do art. 1.829 do Código Civil – Companheira que, na condição de única herdeira do 'de cujus', deve ser mantida no cargo de inventariante, em vista do disposto no inciso I do artigo 990 do Código de Processo Civil. Nega-se provimento ao recurso. (TJSP, 1ª Câmara de Direito Privado, AI 2102911-71.2014.8.26.0000/SP, Rel. Des. Cristiane Santini, j. 09/09/2014).

Percebe-se então que, ao proceder a uma equiparação entre os regimes sucessórios de cônjuge e companheira,  a 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP contrariou o enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do STF. O motivo repousa na constatação o afastamento da incidência do art. 1.790 do Código Civil implicou claramente exercício de controle difuso de constitucionalidade, não obstante o órgão julgador não o tenha declarado expressamente na ementa do acórdão. O efeito prático da decisão do TJSP foi um só: deixou de aplicar a regra legal para a sucessãocausa mortis em união estável.

Nessas circunstâncias, então, o sistema jurídico admite o cabimento da reclamação constitucional, que é o instrumento destinado a preservar a competência e garantir a autoridade das decisões do Supremo Tribunal Federal (CF, art. 102, I, l). Esse mesmo raciocínio é válido para a decisão judicial que contraria ou aplica indevidamente o enunciado de súmula vinculante, consoante dispõe o art. 103-A, § 3º, da CF/88, c/c o art. 7º da Lei 11.417/06:

Art. 103-A omissis

[...]

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

Art. 7º  Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação.

§ 1º  Contra omissão ou ato da administração pública, o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas.

§ 2º  Ao julgar procedente a reclamação, o Supremo Tribunal Federal anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial impugnada, determinando que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.

Ciente disso, o irmão do de cujus, sabedor de que, pelas regras aplicáveis à sucessão causa mortis na união estável, fazia jus à condição de herdeiro, ajuizou reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. Sob a relatoria do Min. Luis Roberto Barroso, a petição foi julgada procedente.

A procedência da RCL 18.896/SP implica reconhecer que a 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP não cumpriu o rito exigido para a declaração de inconstitucionalidade pelos tribunais (cláusula de reserva de plenário). No caso concreto, o acórdão, ao afastar a aplicação do art. 1.790 do CC, com fundamento na equiparação entre união estável e casamento, fê-lo em desacordo com a jurisprudência vinculante do tribunal. Isso porque a tese segundo a qual as regras de sucessão hereditária previstas no art. 1.829 do CC aplicar-se-iam também ao companheiro supértiste não pode se sustentar senão ante um juízo declaratório de inconstitucionalidade. Ainda que implícito, tal juízo foi feito no caso concreto, tanto que assim se afastou o art. 1.790 incidente na espécie.

Ora, como esse tipo de declaração só se pode efetuar em sede de tribunal por meio do plenário ou de órgão especial, jamais mediante órgão fracionário, o acórdão da 1ª Câmara de Direito Privado do TJSP incorreu em flagrante violação da cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) e, de forma mediata, do enunciado nº 10 da súmula de jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal.

No limite, é fundamental perceber que, em julgados similares ao da RCL 18.896/SP, a procedência da reclamação pressupõe não propriamente a justiça da decisão, mas sim a observâncias escorreita do procedimento aplicável ao controle de constitucionalidade difuso exercido no âmbito dos tribunais.  


REFERÊNCIAS

BRASIL. Código Civil. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em:www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. Disponível em:www.planalto.gov.br. Acesso em: 08 de dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF, Primeira Turma, RE 240.096/RJ, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 30/03/1999, p. DJ 21/05/1999. Disponível em:www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante 10. Aprovada na sessão plenária de 18/06/2008, p. DJe nº 117 de 27/06/2008, p. DOU 27/06/2008. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno, Rcl 6944/DF, Rel. Min. Carmen Lúcia, j. 23/06/2010, p. DJe 12/08/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Primeira Turma, Rcl 9360/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 30/09/2014, p. DJe 14/11/2014. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.  

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 18896/SP, Rel. Min. Luis Roberto Barroso (decisão monocrática), j. 30/10/2014, p. DJe 04/11/2014. Disponível em:www.stf.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. 1ª Câmara de Direito Privado, AI 2102911-71.2014.8.26.0000/SP, Rel. Des. Cristiane Santini, j. 09/09/2014. Disponível em: www.tjsp.jus.br. Acesso em: 08 dez. 2014. 


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEODORO, Rafael Theodor. Cláusula de reserva de plenário e controle difuso de constitucionalidade pelos Tribunais: apontamentos sobre a aplicabilidade da Súmula Vinculante 10 segundo a jurisprudência do STF. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4330, 10 maio 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34832. Acesso em: 28 mar. 2024.