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Foucault e o Defense of Marriage Act: análise sobre os discursos acerca do casamento homoafetivo

Foucault e o Defense of Marriage Act: análise sobre os discursos acerca do casamento homoafetivo

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O presente artigo tem o intuito de analisar a lei americana Defense of the Marriage Act (Lei da Defesa do Casamento) sobre uma ótica do filósofo francês Michael Foucault, estudando a definição desse instituto do direito.

1. Foucault e uma visão geral sobre a sexualidade e a biopolítica.

A lei Defense of Marriage Act (Lei da Defesa do Casamento), introduzida em 1996 no ordenamento jurídico, foi aprovada com uma maioria que de tão grande, era impossível de ser vetada, sendo ela assinada pelo então presidente Bill Clinton, veio a definir duas coisas: primeiramente, que o casamento entre pessoas do mesmo sexo era passível de ser ignorado juridicamente, dependendo da legislação estadual, e a definição de uma instituição no ordenamento jurídico, a de que o casamento seria a união civil entre um homem e uma mulher, e que esposo se refere apenas a um marido ou a uma esposa.
É claro o caráter discriminatório da lei: ao deixar que os estados não concedam aos casais homossexuais a mesma condição dos heterossexuais, institucionaliza-se a possibilidade de que os casais gays não usufruam dos mesmos direitos ao bel prazer do Estado, criando assim espaços legais onde comportamentos homofóbicos podem ser institucionalizados, onde o casal gay é considerado um cidadão de segunda categoria. Mas ainda assim, uma análise apenas dos efeitos não é satisfatória, o que nos devemos nos perguntar é: por que surge a iniciativa para que uma lei dessas seja criada?

Primeiramente atacaremos o problema da homossexualidade (e da sexualidade). Foucault fala na obra História da Sexualidade vol. 1, que, ao contrário do que muitos pensam, a burguesia não reprimiu os discursos sobre sexo: na verdade, foram criados vários discursos, tentando regular a prática do sexo e do corpo, que toma papel central dentro da ascensão da burguesia. Essa necessidade de controle vem com a noção de que os governos não estão tratando mais de povo, mas sim de uma população, criando assim a noção da biopolítica como paradigma fundador do Estado Moderno1, afetando todas as áreas, desde a economia até a noção de quem era cidadão e constituía o Estado-nação, além de uma noção da “nobilização” do corpo, que toma o lugar do sangue azul dos nobres, o que leva a burguesia a criar discursos sobre o sexo que crie um sexo que seja “perfeito”, que não atinja o corpo prejudicialmente e que seja capaz de cumprir a sua função de deixar herdeiros saudáveis, inteligentes, já que são eles quem vão fazer com que a burguesia continue em seu lugar (já que eles não possuem o “privilégio” da hereditariedade como os nobres).

A homossexualidade se torna então um problema sério: ela não é capaz de funcionar dentro dessa lógica do capitalismo burguês. Até o final do século XVIII, três grandes códigos regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Essa regulação passava por toda a intimidade da pessoa: desde quando ela deveria fazer sexo, com quem, passando até o ponto de como ela deveria fazer sexo. Cresce então o discurso psiquiátrico sobre o sexo: o homossexual se torna um doente, alguém que possui algum distúrbio mental, que sofreu um desvio e se torna um anormal. A homossexualidade, antes representada apenas pelo ato da sodomia, se transforma “para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma” (FOUCAULT, 2012, p.51). O homossexual deixa de ser uma pessoa que cometeu um ato e se reduz a sua sexualidade: vira um personagem rodeado de mistério, em que seus hábitos, seus costumes, nada escapa à sua sexualidade.

A lógica entre poder e sexo toma características marcantes: marca o sexo em uma lógica binária, que sempre reprime o sexo, que não o deixa se manifestar sobre pena de deixar de existir, é relegado ao segredo até que deixe de existir, e esse poder se exerce em todos os níveis de forma igual, desde o Estado até a família, criando situações de submissão, do cidadão ante o Estado, da criança perante os pais, enquanto fala que essa relação é beneficial.

Aqui, desviaremos do caminho normal das análises: é preciso se pensar em um poder que não vem de cima, como se o DOMA nascesse um ato que veio se impor de cima para baixo, de um poder de cima. O poder se encontra em todas as relações sociais, em todos os lugares, logo, se deve entender a DOMA não como um ato que se impõe, mas sim um ato que existe dentro de uma rede de poderes dentro da sociedade, sendo essa institucionalização dele apenas um reflexo desse discurso já existente na sociedade.

Com isso, entende-se que a sexualidade é alvo de discursos e técnicas de saberes porque as relações de poder que envolvem ela a fizeram alvo disso.

2. A negação do casamento entre homossexuais e a biopolítica na sociedade capitalista.

Entendendo a biopolítica a partir da ótica da relação entre poder e sexo, em um estado capitalista, fica claro porque se cria normas para a regulação da sexualidade: o poder sobre o sexo vira poder sobre a vida, sobre o corpo, que vira mercadoria no capitalismo, e a população, que cria os mais diversos efeitos econômicos, tem que ser controlada por via de uma gestão calculista da vida, buscando o máximo de eficiência.

Dentro disso, o motivo do nascimento de discursos sobre a homossexualidade dentro da sociedade capitalista fica claro: ele é incompatível com essa noção de gestão eficiente da vida, indo de encontro com todos os preceitos do capitalismo burguês que se coloca devido ao fato de ele não produzir nada que sustente o capitalismo, se revestindo de um discurso que fala sobre o “futuro da espécie”, entre outros, necessitando então de ser controlado via poder-saber que se institucionalizam no direito.

Esse racismo estatal se preocupa então com a “saúde” do Estado: aqueles que têm uma sexualidade considerada “patológica” devem ser excluídos, punidos, mortos, e aqueles que ainda não foram “contaminados”, devem ser controlados para que não se percam. E aqueles com a sexualidade “patológica” ganham símbolos, são taxados de anormais e são tratados como tal.
A DOMA entra então aí: é apenas reflexo desses poderes-saberes que estão na sociedade capitalista, poderes-saberes que se criaram a partir de discursos sobre a sexualidade, pretendendo criar um Estado com a maior eficiência possível dentro dessa ótica, punindo, marcando e retirando direitos daqueles que são anormais (no caso, os homossexuais).

Ao se negar a possibilidade de casamento aos homossexuais dentro do ordenamento jurídico, não se nega apenas a dar a possibilidade de deixar que eles sejam “felizes”, mas também os nega a possibilidade de entrar na própria sociedade como membros capazes de ter “descendentes” (entramos aqui nas questões da adoção, testamentos, etc.), comprometendo a capacidade econômica desses indivíduos, impedindo que eles façam parte desse mecanismo capitalista.

Agora, esse repúdio ao homossexual e as tentativas de impedir de que ele se estabeleça na sociedade como um membro produtivo e capaz de se “reproduzir” dentro dasociedade capitalista, que já existiam desde a Idade Média graças ao cristianismo e que tomou nova forma durante o crescimento do capitalismo, conforme foi mostrado acima, acabou ficando independente desse discurso econômico, e coloca-lo sem levar em conta as mudanças que se passaram (a mudança da sociedade capitalista industrial para uma sociedade capitalista financeira, por exemplo) seria errôneo. O próprio Estado entende que agir dessa maneira atualmente é prejudicial para a economia e a manutenção do Estado, já que o homossexual é tão produtivo quanto o heterossexual.

Entramos então no âmbito dos poderes sociais, nos distanciando da economia. Foucault fala que não existe uma sexualidade intrínseca ao ser humano, e que a própria sexualidade é um constructo social que se monta a partir dos discursos de prazer, poder e repressão na sociedade, colocando em contraste uma sexualidade baseada no estético e na multiplicidade dos prazeres dos gregos, enquanto a nossa sexualidade, uma sexualidade da Scientia Sexualis é preocupada em codificar todos os prazeres.

Essa codificação foi criada com base em uma noção heteronormativa de sexualidade, em que os discursos que regem a sexualidade forçam a noção de uma sexualidade heterossexual, devido à influência do cristianismo e do capitalismo, e essa sexualidade, ao ser colocada de um modo de que só poderia ser exercida dentro de um instituto (da família), que só poderia vir a ser criada via o casamento. Entra aí a noção de normalidade que se institui juntamente com o discurso da sexualidade, e toda a rede de poderes que nasce na sociedade com esse fato, moldando as relações sociais.

O casamento homossexual é problemático para esse discurso sobre a sexualidade em dois pontos: primeiramente, em especial o de homem com homem, ele cria a possibilidade de que novas relações podem ser criadas, devido à não-codificação das relações homossexuais, à não-influencia da lei ou dos hábitos dentro dessas relações, logo, tudo deve ser criado5, quebrando assim os moldes dessa Scientia Sexualis e o seu controle dos prazeres e dos corpos e cria novos discursos dentro da sociedade, discursos que acabam por minar o discurso heteronormativo.

Em segundo lugar, o casamento gay é um problema de um ponto de vista legal-normalizador: o instituto do casamento, notoriamente rígido, foi um dos mecanismos mais usados para se promover a normalização na sociedade, não ditando apenas com quem você deve se casar, mas o papel dentro de cada um dentro do casamento, criando assim poderes disciplinares. O casamento existe como um sacramento religioso e um documento legal, mas também é uma forma de reforçar as relações de poder, os discursos e as estruturas dentro da sociedade quando se realiza o ritual e pune ativamente aquele que não pode receber os benefícios do casamento já que se mostra que esses indivíduos não fazem parte/estão em um polo desvantajoso das relações de poder.


Essas estruturas e discursos existem porque há uma noção social de que eles são necessários pra o funcionamento da sociedade: as instituições religiosas que se baseiam em uma leitura rígida da Bíblia para fundamentar seus argumentos contra o casamento homossexual se deparam com o sério problema das crescentes taxas de divórcio, entre outros problemas, mostrando que a própria instituição do casamento talvez esteja se deteriorando e se mostrando vulnerável. Com o casamento homossexual, essas vulnerabilidades ficam mais expostas, e logo, fica claro porque a maioria dos conservadores religiosos mais extremos brigam para que não haja apenas a negação do pedido da legalização do casamento homossexual, mas também uma volta aos valores “tradicionais” da família, sobre as quais o seu discurso de poder está baseado em, já que essa visibilização da estruturas que estão(já estavam) em decadência se torna um discurso de como os homossexuais estão destruindo a família ao se apropriar da instituição do casamento.


3. Conclusão
Com essa análise, fica claro como o DOMA, além de ser ato jurídico com papel normalizador na sociedade, tentando manter as estruturas de poder íntegras e mantendo vigentes os mesmos discursos sobre a sexualidade, nasce também desses discursos e desses poderes-saberes, em uma relação recíproca de proteção e fundamentação da autoridade.
O autor deste artigo crê que Foucault seria totalmente contra a existência de uma lei como essa, não apenas por causa que Foucault era homossexual, mas também porque ele veria em um ato desses um atraso, um obstáculo no caminho para uma sociedade onde a sexualidade não está presa a essa Scientia Sexualis, e sim está livre para a realização dos prazeres na sua multiplicidade, voltando-se apenas para si, em uma Ars Erotica.


Referências bibliográficas:
FOUCAULT, Michael, História da Sexualidade, Vol. 1. Trad. Maria Thereza e J. A. Guilhon Albuquerque – Rio de Janeiro; Graal, 2012.
FOUCAULT, Michael, Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro; Nau, 2003.
FOUCAULT, Michael, Os Anormais. Trad. Eduardo Brandão – São Paulo; Martins Fontes, 2010.
FOUCAULT, Michael, Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo – Petrópolis; Vozes, 1987.
AGAMBEN, Giorgio, Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo – Belo Horizonte; UFMG, 2004.
FRIENDSHIP AS A WAY OF LIFE(Entrevista com Michael Foucault para a revista Gai Pied). Disponível em http://caringlabor.wordpress.com/2010/11/18/michel-foucault-friendship-as-a-way-of-life/.



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