Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/35433
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Relações paterno-filiais e os danos morais decorrentes do abandono afetivo dos pais.

Como o Judiciário pode intervir nessas relações entre pais e filhos e qual o dano cabível

Relações paterno-filiais e os danos morais decorrentes do abandono afetivo dos pais. Como o Judiciário pode intervir nessas relações entre pais e filhos e qual o dano cabível

Publicado em . Elaborado em .

Observa-se a dificuldade de caracterização dos danos morais nas relações paterno-filiais e como a responsabilidade paterna possui um conteúdo muito mais amplo, notadamente de feições existenciais.

Resumo:Trata-se de uma análise da dificuldade de caracterização dos danos morais nas relações paterno-filiais. A investigação desenvolveu-se conforme o processo metodológico sócio-jurídico, auxiliado pela pesquisa investigativo-dialética (indutivo/dedutiva). Igualmente, não se abandonou o crivo sócio-histórico. Desta maneira, foi possibilitado travar o conhecimento teórico-dogmático alinhavado aos entendimentos prático-jurisprudenciais que desafiam os tribunais brasileiros quanto à temática do dano moral proporcionado aos rebentos nas relações paterno-filiais, facilitando a inserção social do estudo. Para elaboração do trabalho, utilizaram-se estudos de jurisprudência, de doutrinas, análise de casos. O conceito de família evoluiu através dos tempos - essa é uma consideração inegável. Pode-se verificar todas as profundas alterações relacionadas ao direito de família que ocorreram no Brasil durante o último século. No entanto, uma coisa é indiscutível, a família continua sendo o locus fundamental de desenvolvimento do ser humano, apresentando-se como uma constante em todas as culturas, ainda que com certas peculiaridades. Será em seu seio que a pessoa evoluirá em seus mais diversos aspectos. O direito, assim como a família, não é estático. A Constituição Federal impõe uma série de deveres aos pais, dentre os quais se destacam a criação, educação e assistência dos filhos. Essas condutas não podem ser consideradas meras obrigações morais, mas sim dotadas de cunho jurídico, justificando a possibilidade de reparação por abandono moral. O que fundamentará a responsabilização não será um direito subjetivo ao afeto, mas sim o descumprimento dessas normas. Para o pleno desenvolvimento da criança, não basta a observância de obrigações de cunho meramente patrimonial, como o adimplemento de alimentos. A responsabilidade paterna possui um conteúdo muito mais amplo, notadamente de feições existenciais. A formação do menor como pessoa exige a efetiva presença e educação, tanto por parte do pai como da mãe. Deste modo, torna-se imprescindível uma mudança de paradigma jurídico e social: a cultura da paternidade irresponsável deve ser substituída pela consciência da necessária participação de ambos os genitores no processo de desenvolvimento do filho, cada qual cumprindo sua função.

O direito não possui - e nem poderia possuir - o condão de obrigar uma pessoa a nutrir afeto por outra. Assim, no comum dos casos, as vítimas terão que se contentar com uma indenização em pecúnia, quando esta for cabível.

Palavras-chave: Dano afetivo. Abandono moral. Relação paterno-filial. Direito de família. Responsabilidade civil.

Sumário:Introdução…Capítulo I…1.   A família...1.1       Conceito de família..1.2       A família inserida no Ordenamento Jurídico Brasileiro...1.3       O afeto e o cuidado como valores jurídicos..1.4       A constitucionalização do Direito Civil no âmbito familiar..Capítulo II...2.   Os Princípios no Direito de Família...2.1       Os princípios em espécie..2.1.1  O princípio da Dignidade da Pessoa Humana..2.1.2  O princípio da Paternidade e da Maternidade Responsável..2.1.3  O princípio da Afetividade..2.1.4  O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente..2.2       A ponderação dos princípios jurídicos na perspectiva civil-constitucional..Capítulo III. 3.   A Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo nas Relações Paterno-filiais..3.1       Noções gerais de Responsabilidade Civil.3.1.1  Conceito e finalidade da Responsabilidade Civil..3.1.2  Pressupostos da Responsabilidade Civil Subjetiva...3.2       Danos Morais ou Danos à Pessoa?...3.3       A problemática da conceituação dos danos morais..3.4       Danos morais como danos à cláusula geral da tutela da pessoa humana...3.5       Os danos morais compensáveis...3.6       Responsabilidade civil no Direito de Família...3.7       A omissão de afeto e cuidado como dano à pessoa humana compensável..3.8       Os requisitos da condenação a título de danos morais decorrentes de abandono afetivo nas relações paterno-filiais..3.8.1  O pressuposto da condenação: a existência de uma efetiva relação paterno-filial.3.8.2  Dos deveres da condição de pai: a conduta omissiva..3.8.3  Nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o evento....Conclusão.Referências bibliográficas..


O Direito de Família é de todos os ramos do direito, o que está mais intimamente relacionado à vida, tendo em vista que, normalmente, a origem das pessoas, bem como o lugar a que estão vinculadas durante sua existência, é o cerne familiar.

É nesse contexto que a família surge como célula fundamental em está repousada a organização social e ainda é tida muitas vezes como o alicerce do Estado, sendo, por tal motivo, merecedora de ampla proteção estatal.

Não resta nenhuma dúvida hoje que um panorama tão rico e variado que se descortinou ao se imaginar como construir essa exposição, de que se trata daqueles temas instigantes que não se esgotam.  Todavia, ao contrário, propicia de maneira contínua e incessante, ao pesquisador e ao operador do direito, um espetacular manancial de características que poderão ser sempre percorridos, sem correr o risco do esgotamento da seiva profícua que o vivifica.

Tem sensibilizado a vertente da relação paterno-filial em conjugação com a responsabilidade, num viés naturalmente jurídico, mas essencialmente justo, de se buscar a compensação indenizatória em face de danos que pais possam ocasionar a seus filhos, por força de uma conduta imprópria, especialmente quando a eles é negada a convivência, o amparo afetivo, moral e psíquico, bem como a referência paterna ou moderna concretas, acarretando a violação de direitos próprios da pessoa humana, magoando seus mais sublimes valores e garantias, como a honra, o nome, a dignidade, a moral, a reputação social, o que, por si só, é profundamente grave.

O tema proposto trata das relações paterno-filiais e os danos morais decorrentes do abandono afetivo dos pais para com os seus filhos, tendo em vista que a família é a base fundamental para formação da sociedade e que ao longo dos tempos veio sofrendo várias alterações em sua estrutura.

Outrora a família era bem estruturada e bem definida com o pai como patriarca e mantedor dessa família, uma mãe zelosa, que não trabalhava fora e vivia para o lar, a educação, e cuidados dos filhos e os mesmos seguiam os valores rígidos que lhe eram passados pelos seus pais, que eram pautados no respeito, carinho, afeto e amor, um senso único de criação para um bem maior e futuro próspero para essas crianças (OLIVEIRA, 2001, p 14). 

O instituto do dano moral está presente há tempos no ordenamento jurídico, o que é problematizado com essa pesquisa é como esse abandono e a negligência por parte de um dos pais ou ambos, causam sequelas em seus filhos.

E como mensurar a aplicação do dano moral nesses casos para que se tenha uma justa indenização a esses filhos, mas que não se caracterize como enriquecimento sem justa causa, e que também não seja menor que os transtornos sofridos e como transformar anos de abandono afetivo em valor pecuniário?

     BERENICE (2007, p. 409) versa que:

“[...] mesmo que o pai só visite o filho por medo de ser condenado a pagar uma indenização, isso é melhor que gerar no filho o sentimento de abandono. Ora, se os pais não conseguem dimensionar a necessidade de amar e conviver com os filhos que não pediram para nascer, imperioso que a justiça imponha coactamente essa obrigação.”[1]

      Conforme disposto no Artigo 227 da Constituição da República Federativa do Brasil (1988)[2]

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

 À luz da doutrina e da jurisprudência, toda sociedade tem o dever de zelar pelas crianças, e com isso são criados vários institutos para assegurar que tais direitos sejam efetivamente postos em prática. E o dano moral vem sendo utilizado com o intuito de restituir as perdas ocasionadas pelo abandono e como medida repressiva, pois os pais com medo de pagar, visitam os seus filhos.

O dispositivo do dano moral está presente há tempos no ordenamento jurídico, o que se quer problematizar com essa pesquisa é como esse abandono e a negligência por parte de um dos pais ou ambos, causam sequelas em seus filhos.

Partindo desse princípio busca-se responder se o abandono dos pais gera dano moral para os filhos.

Nota-se que no Brasil existe um número considerável de crianças que foram abandonadas e ou negligenciadas por parte dos pais ou responsáveis, acarretando problemas que poderão afetar as várias dimensões, físicas, psíquica, moral e intelectual, uma vez que a família é o ponto central na formação do ser humano.

O não cumprimento desse papel acentua-se na necessidade de sua reparação, assegurado na Constituição de 1988, em seu art. 5º, V e X, a possibilidade de reparação dos danos morais, não faz qualquer restrição que justifique a sua não aplicação às relações paterno-filiais.

Essa reparação poderá ser feita por meio de indenização através de uma perícia técnica que deverá avaliar os fatos apresentados e provocados aos filhos, a fim de que a mesma não se configure como forma de enriquecimento, e sim uma forma de evitar que os pais continuem a causar esses danos a seus filhos.

Para elaboração do trabalho, utilizar-se-á estudos de jurisprudência, de doutrinas, análise de casos. Este trabalho desenvolver-se-á conforme o processo metodológico sócio-jurídico, auxiliado pela pesquisa investigativo-dialética (indutivo/dedutiva) [GUSTIN; DIAS, 2006]. Da mesma maneira, será utilizado o método sócio-histórico.

Igualmente, será possibilitado travar o conhecimento teórico-dogmático alinhavado aos entendimentos prático-jurisprudenciais que desafiam tribunais brasileiros quanto à temática do dano moral proporcionado aos rebentos nas relações paterno-filiais, facilitando a inserção social do estudo.

O conceito de família evoluiu através dos tempos - essa é uma consideração inegável. Podem-se verificar todas as profundas alterações relacionadas ao direito de família que ocorreram no Brasil durante o último século. No entanto, uma coisa é indiscutível, a família continua sendo o locus fundamental de desenvolvimento do ser humano, apresentando-se como uma constante em todas as culturas, ainda que com certas peculiaridades.

Será em seu seio que a pessoa evoluirá em seus mais diversos aspectos. O Direito, assim como a família, não é estático. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 impõe uma série de deveres aos pais, dentre os quais se destacam a criação, educação e assistência dos filhos.

Essas condutas não podem ser consideradas meras obrigações morais, mas sim dotadas de cunho jurídico, justificando a possibilidade de reparação por abandono moral. O que fundamentará a responsabilização não será um direito subjetivo ao afeto, mas sim o descumprimento dessas normas.

Para o pleno desenvolvimento da criança, não basta a observância de obrigações de cunho meramente patrimonial, como o adimplemento de alimentos. A responsabilidade paterna possui um conteúdo muito mais amplo, notadamente de feições existenciais. A formação do menor como pessoa exige a efetiva presença e educação, tanto por parte do pai como da mãe.

O Direito não possui - e nem poderia possuir - o condão de obrigar uma pessoa a nutrir afeto por outra. Assim, no comum dos casos, as vítimas terão que se contentar com uma indenização em pecúnia, quando esta for cabível.  Deste modo, torna-se imprescindível uma mudança no paradigma jurídico e social: onde a cultura da paternidade irresponsável deve ser substituída pela consciência da necessária participação de ambos os genitores no processo de desenvolvimento do filho, cada qual cumprindo sua função na formação do mesmo, uma vez que a família é a principal instituição socializadora.

CAPÍTULO I-  A FAMÍLIA

1.1  CONCEITO DE FAMÍLIA

O Direito de Família é de todos os ramos do direito, o que está mais intimamente relacionado à vida, tendo em vista que, normalmente, a origem das pessoas, bem como o lugar a que estão vinculadas durante sua existência, é o cerne familiar.

De acordo Caio Mário (2007; p. 19), família em sentido genérico e biológico é o conjunto de pessoas que descendem de tronco ancestral comum; em senso estrito, a família se restringe ao grupo formado pelos pais e filhos; e em sentido universal é considerada a célula social por excelência.

Relativo à família, Silvio Rodrigues (2004; p. 4) num conceito mais amplo, diz que é a formação por todas aquelas pessoas ligadas por vínculo de sangue, ou seja, todas as pessoas provindas de um tronco ancestral comum, o que inclui, dentro da órbita da família, todos os parentes consanguíneos. Num sentido mais estrito, constitui a família o conjunto de pessoas compreendido pelos pais e sua prole.

Maria Helena Diniz (2007; p. 9) discorre sobre família no sentido amplo como todos os indivíduos que estiverem ligados pelo vínculo da consanguinidade ou da afinidade, chegando a incluir estranhos. No sentido restrito é o conjunto de pessoas unidas pelos laços do matrimônio e da filiação, ou seja, unicamente os cônjuges e a prole.

Cezar Fiúza (2008; p. 939), considera família de modo lato sensu, como sendo “uma reunião de pessoas descendentes de um tronco ancestral comum, incluídas aí também as pessoas ligadas pelo casamento ou pela união estável, juntamente com seus parentes sucessíveis, ainda que não descendentes”, como também define em modo stricto sensu dizendo que: “família é uma reunião de pai, mãe e filhos, ou apenas um dos pais com seus filhos”.

Segundo Paulo Nader (2006; p.3), Família consiste em "uma instituição social, composta por mais de uma pessoa física, que se irmanam no propósito de desenvolver, entre si, a solidariedade nos planos assistencial e da convivência ou simplesmente descendem uma da outra ou de um tronco comum".

Sintetizando a conceituação desse instituto, Silvio Venosa (2005, p.18), assevera que a Família em um conceito amplo, "é o conjunto de pessoas unidas por vínculo jurídico de natureza familiar", em conceito restrito, "compreende somente o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o pátrio poder".

Finalizando Carlos Roberto Gonçalves (2007; p. 1) traz família de uma forma abrangente como “todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como unidas pela afinidade e pela adoção”. E também de uma forma mais específica como, “parentes consanguíneos em linha reta e aos colaterais até o quarto grau”.

1.2 A Família inserida no Ordenamento Jurídico Brasileiro

Em se tratando da legislação e do tratamento jurídico brasileiro, a proteção

estatal conferida à família está prevista, principalmente, nos textos da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Ocorre que nem sempre o Direito de Família teve a amplitude dada hoje no ordenamento jurídico do Brasil, como se percebe pelo fato de que as questões pertinentes à família passaram praticamente despercebidas pelo poder constituinte das duas primeiras Constituições Federais Brasileiras.

SILVA (2007) afirma, em estudo sobre indenizações aos filhos, que essas duas Constituições não faziam nenhuma referência à família, na época marcadamente patriarcal.

A primeira alusão ao grupo familiar em sede constitucional ocorreu na Lei Maior de 1934. Naquela Carta, o constituinte ateve-se a questões formais e relativas ao casamento, não conferindo maior importância à substância da instituição [MARIA DA SILVA, Cláudia. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho, 2004, p. 21].

No corpo da Lei Maior de 1937 vieram mudanças significativas relativas ao tratamento dos pais quanto aos seus filhos. Esse texto previa o tratamento igualitário entre filhos naturais e filhos legítimos e, ainda, a necessidade de se conferir cuidados e garantias especiais à infância e à adolescência, a fim de que os menores pudessem dispor de uma vida digna.

Apesar do grande avanço do texto de 1937, as Constituições de 1946, 1967 e 1969 não deram continuidade às inovações no campo da tutela infantil e do adolescente, sendo que a única mudança merecedora de destaque do período foi a promulgação da Lei do Divórcio, na vigência da Carta de 1969, permitindo a dissolução do vínculo matrimonial e a celebração de um novo casamento [MARIA DA SILVA, Cláudia. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. In.: Revista de Brasileira de Direito de Família, v. 6, n. 25. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, ago/set, 2004, p. 125].

Seguidamente, em 05 de outubro de 1988, foi promulgado o imperativo constitucional ora vigente, usualmente reconhecido por Constituição Cidadã. Esta Carta passou a lidar de maneira mais efetiva acerca da questão familiar. CANEZIN (2006, p.71) considera o texto aludido como “um marco histórico fundamental no que se relaciona à abordagem da família”.

A importância da família é reconhecida na Lei Maior vigente, como facilmente se depreende da leitura dos dispositivos que tratam sobre a temática, em especial do artigo 226, que prevê a família como a base da sociedade, merecendo especial proteção do Estado.

Adiante, no artigo 227, a Carta de 1988 determina como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, todos os direitos que lhes confiram uma vida digna. É o que estabelece a redação do dispositivo aludido:

Art. 227. É dever da família, da sociedade, do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação e ao lazer, à profissionalização, à cultura e à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Note-se, da escrita desse artigo, que criança e o adolescente ganharam lugar de destaque no ordenamento jurídico brasileiro. Na mesma orientação da Carta Magna, quanto ao especial apreço conferido aos menores, foi editada a Lei no. 8.069 de 1990, denominada de Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

O artigo 3° do referido Estatuto prevê que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se-lhes, por meio da lei ou por outros meios, todas as formas de oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

O ECA, nos artigos 4º e 5º, determina que cumpre à família, à sociedade e ao Estado a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, a salvo de qualquer forma de negligência. Ademais, decide que qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais será punido na forma da lei.

Mais especificadamente, sobre o direito à convivência familiar, o Estatuto, pelo que dispõe seu artigo 19, estabelece que toda criança tem direito a ser criada e educada no seio da sua família e, apenas excepcionalmente, em família substituta. Assegura-se, por meio deste dispositivo, a convivência familiar, bem como a comunitária. Em relação aos deveres dos pais, o ECA articula o seguinte:

Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Finalmente, sobre os diplomas que tratam do Direito de Família, em 2002 o novo Código Civil veio a substituir o antigo de 1916, que há muito se encontrava ultrapassado. A nova Lei Civil prevê deveres dos pais em relação aos filhos nos dispositivos que tratam do exercício do poder familiar, em capítulo próprio, nos artigos 1.630 a 1.638, e também em outros artigos esparsos, como é o caso do artigo 1.566, IV, que lida do dever recíproco dos cônjuges quanto ao sustento, à guarda e à educação dos filhos, dentre outras várias disposições.

Ademais, o Código Civil de 2002 alterou o antigo “pátrio poder” para dar lugar a um novo poder familiar livre da concepção romana, segundo a qual o pai tinha pleno direito de vida e de morte sobre seu filho. A evolução desse pensamento abandonou a noção de poder nas relações paterno-filiais e acatou a noção de que essas relações decorrem de uma autoridade natural dos pais com relação a sua prole, esta dotada de dignidade. Assim, o poder familiar passou a ser menos um poder e mais um dever.

Ressalte-se que a determinação da parentalidade responsável como um múnus é uma direção dos textos civis, bem como da Carta Magna, de modo que toda a sistemática orienta-se nesse sentido. É que, a partir do pós-modernismo e da constitucionalização do direito privado, o Código Civil de 2002 não é apenas uma nova codificação que trata do regramento das relações privadas, ele é, na realidade, um mecanismo para conferir efetividade às disposições constitucionais. Esse também é o caso dos princípios norteadores do Direito, em especial ao tema ora posto, os do Direito de Família, pautados na dignidade da pessoa humana, na ética da responsabilidade e da solidariedade e, além disso, na convivência familiar e no melhor interesse dos menores.

1.3 O Afeto e o Cuidado como Valores Jurídicos

A mudança de paradigma no que toca os direitos vinculados às relações de filiação convidam a identificar tanto o afeto quanto o cuidado como valores jurídicos, vez que em diversas passagens do ordenamento tais valores aparecem como deveres de provisão do Estado, dos pais e da sociedade aos menores, por quem aqueles são responsáveis.

NICOLA ABBAGNANO (2006, p. 51) indica que o uso do termo valor, segundo a filosofia, tem início quando seu significado é generalizado para indicar qualquer objeto de preferência ou de escolha. Inserir um determinado valor no ordenamento jurídico é uma escolha do legislador, que dá preferência a um valor em detrimento de outro. Neste caso, a previsão em lei, geral e abstrata, do afeto e do cuidado tem a sua razão de ser no fato de que é papel do Direito estabelecer proibições e permissões que viabilizem o convívio social, coibindo condutas reprováveis e estimulando comportamentos adequados. Assim, valores como o cuidado e o afeto são preferíveis aos valores individualistas e patrimonialistas nas relações familiares.

A importância do cuidado e do afeto ao ordenamento jurídico, especialmente no que toca as relações parentais, parte da concepção de que a capacidade de desenvolver-se como sujeito e bem se relacionar socialmente depende diretamente de se ter recebido tais valores nos primeiros anos de vida, quando o menor, vulnerável, está a moldar sua personalidade. Por assim dizer, o papel paterno/materno tem função estruturante do filho como sujeito.

Em sentido oposto, a falta desses valores repercute negativamente não só no indivíduo, mas também na sociedade. Em relação ao indivíduo, a repercussão da falta de afeto e de cuidado dá-se na possibilidade da criança desenvolver uma personalidade agressiva, deprimida, rebelde e indisciplinada; ao passo que, na esfera social, essa falta é apontada, inclusive, como possível causa do aumento da delinquência juvenil. De tal feita, a ausência de tais valores nas primeiras etapas da vida não é maléfica apenas à criança, mas a todo o ambiente em que ela irá conviver, pelo que se justifica o interesse público na questão.

Tendo isso em mente, a Constituição Cidadã de 1988, em seu artigo 227, determina, dentre outros deveres dos pais, a convivência familiar e comunitária, a salvo de todas as formas de negligência, como um dever dos genitores. Por fazê-lo, resta claro que, para o ordenamento pátrio, o exercício da paternidade não poderá limitar-se ao aporte material direcionado à prole, devendo ir além, no que toca a provisão aos menores do aporte afetivo, a fim de que bem se desenvolvam. Em assim sendo, como já se disse, a paternidade/maternidade é encarada como um múnus.

Sobre a relevância do afeto nas relações familiares, TÂNIA DA SILVA PEREIRA (2006) afirma ser a relação afetiva o diferencial definidor da entidade familiar, sendo um sentimento entre duas ou mais pessoas que se afeiçoam pelo convívio em virtude de uma origem ou de um destino comum. Hoje, já não restam dúvidas de que os vínculos familiares deixaram de ter razão nas questões patrimoniais e que as relações dessa ordem passaram a se constituir pelo elo afetivo. Dessa maneira, reconhece-se o princípio da afetividade como princípio implícito do ordenamento constitucional, o que demonstra sua importância valorativa ao sistema jurídico brasileiro.

Quanto ao cuidado, TÂNIA DA SILVA PEREIRA demonstra que este também merece lugar como valor jurídico, sendo uma responsabilidade humana como pessoa e como cidadã. A referida autora alerta que considerá-lo como tal ocorre em nome do interesse público e da ética da corresponsabilidade, fundada na solidariedade e na cidadania, a fim de que o cuidado seja usado como informante das relações privadas e institucionais, conduzindo a efetivos compromissos.

Além dessa característica marcante nas relações parentais, que é a responsabilidade, tais elos caracterizam-se também pela permanência do vínculo. A responsabilidade decorre da assimetria da relação, ou seja, das posições diferentes que as partes ocupam no elo, sendo uma delas dotada de particular vulnerabilidade (o menor ou o adolescente). A permanência é, pelo menos, a tendência, pois o término dessa relação é custoso e excepcional, ocorrendo, por exemplo, nos casos de risco elevado ou de abuso, que ensejam a perda do poder familiar. Ademais disso, ainda existem as hipóteses em que há o rompimento do vínculo de filiação em consequência do fim do matrimônio entre os genitores, podendo ser esse corte voluntário ou até mesmo decorrente da pressão a favor do afastamento exercida pelo ex-cônjuge guardião do infante.

Por essas características das relações parentais, a legislação vigente, em diversas passagens, determina que aos pais é dada a incumbência de guarda, sustento e educação dos infantes, bem como o dever de assegurar-lhes direitos como a vida, o lazer, a saúde, entre outros. Assim, pela idealização da parentalidade exercida em prol do melhor interesse do menor e da “defesa da ordem social a partir da criança”, é trazida à esfera pública a discussão da condução dos deveres da parentalidade, restando claro que o ordenamento determina a dedicação paterna/materna na criação de seus filhos, dadas implicações individuais e sociais decorrentes de uma possível omissão. Conclui-se, destarte, que a atitude cuidadosa, sobretudo nas relações parentais, recebe estímulos vários pelo sistema jurídico, o que demonstra o valor que o Direito lhe resguarda.

1.4 A Constitucionalização do Direito Civil no âmbito familiar

MARIA CELINA BODIN DE MORAES (2006) observa que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Direito Civil sofreu uma reviravolta para se adaptar à nova orientação que confere eficácia normativa ao texto constitucional. Esse novo rumo do constitucionalismo pós-moderno somente foi possível por dois motivos. Em primeiro lugar, em razão do afastamento da concepção de que a Constituição seria mera carta política e, em segundo lugar, através do desenvolvimento dos estudos da teoria geral do direito acerca da aplicação dos princípios constitucionais e da metodologia de sua ponderação.

Significa dizer que no pós-positivismo do Estado Democrático de Direito abandonou-se a legalidade em sentido estrito em direção a opções mais seguras, nas quais os princípios da democracia, da liberdade e da solidariedade são preponderantes. O regramento civil deve respeito à Lei Maior tanto do ponto de vista formal, quanto do ponto de vista material, devendo as normas infraconstitucionais refletir o valor sobre o qual se funda, qual seja o mais importante, o da dignidade da pessoa humana.


CAPÍTULO II 2. Os Princípios no Direito de Família

O positivismo jurídico não é capaz de acompanhar a realidade e a evolução social da família, pelo que esta, além de ter grande amplitude de possíveis relações, sofre mutações com facilidade tamanha que o regramento é incapaz de contemplar todas as hipóteses de situações possíveis, tão pouco de se adaptar a tempo.

É por esse pretexto que, em muitos casos, as leis não trazem os elementos necessários e suficientes para que o mais próximo ao justo seja alcançado. Desse modo, os operadores do direito partem em busca de fontes outras, como os princípios gerais, a fim de encontrar aquilo que mais se aproxime do ideal de retidão.

Nesse sentido, PEREIRA (2006) entende que são os princípios gerais do direito, dentre todas as demais fontes, o lugar em que se encontra a melhor viabilização para a adequação da justiça, especialmente no que corresponde ao ramo familiar.

O autor aduz ainda que os princípios exercem dupla função, sendo a primeira delas a função de otimização do direito.

Em outras palavras, a sua força deve alcançar toda organização jurídica, inclusive preenchendo lacunas legislativas, independente de serem expressos ou não expressos. Já a segunda função dos princípios jurídicos é a de possuírem papel sistematizador do ordenamento, dando-lhe suscetibilidade de valoração, bem como dinamicidade, na proporção em que conferem axiologia à interpretação das regras positivas. Com efeito, a utilização dos princípios como norte em casos concretos é o que afasta o engessamento e a sobreposição do direito sobre os fatos, conduzindo-nos à essência do direito, na direção de resguardar o sujeito, em detrimento de seu formalismo. Portanto, a partir da nova hermenêutica civil-constitucional, os princípios ganharam força normativa para apaziguar as relações familiares, sempre tendo em vista a pessoa humana.

2.1 Os Princípios em espécie

2.1.1 O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana

O princípio que mais importa ao presente estudo é o da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988, como fundamento da República Federativa do Brasil. Na atualidade é impossível pensar em direito sem considerar o conceito de dignidade da pessoa humana, pois hoje a dignidade é vista como um macroprincípio sob o qual irradiam e estão contidos os demais.

A palavra “dignidade” tem a raiz etimológica proveniente do latim dignus – aquele que merece estima e honra aquele que é importante. É o que distingue os seres humanos dos demais, sendo a dignidade inerente à espécie humana como um todo.

A dignidade da pessoa humana é um conceito que tomou os contornos presentes em 1788 através do pensamento de IMMANUEL KANT, em Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Nessa obra, o filósofo estabeleceu a moralidade em bases novas através do que chamou de “imperativo prático”, que determina aos sujeitos que ajam de maneira tal que possam usar a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente, como um fim e nunca simplesmente como um meio.

É que, a partir do raciocínio kantiano, o homem passou a ser considerado como um ser dotado de valor intrínseco, de dignidade, pois “o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade”.

Sobre a temática, a Ministra CARMEM LÚCIA ANTUNES ROCHA (2000) considera a dignidade como o pressuposto da ideia de justiça humana. Explica que assim o faz por entender a dignidade como ditadora da condição superior do homem como ser de razão e de sentimento e que, por sê-lo assim, independe de merecimento pessoal ou social. Sintetiza elucidando que a dignidade é inerente à vida e um direito pré-estatal.

Para KANT (2005), no mundo social existem duas categorias de valores, o preço e a dignidade. Na proporção em que as coisas têm um preço, um valor exterior (de mercado), as pessoas tem dignidade, cujo valor é interior (moral) e de interesse geral. Sendo o valor moral infinitamente superior ao valor de mercadoria, então impõe-se o “imperativo prático” segundo o qual as pessoas devem agir de tal sorte que seja considerada a humanidade, própria e alheia, sempre e simultaneamente como um fim e jamais como um meio.

Conclui-se, por tal noção filosófica do que seja dignidade, que se trata de tudo que não tenha preço e que não possa ser objeto de troca, porquanto inestimável e indisponível. É a dignidade que posiciona o homem em uma condição superior, como ser de razão e de sentimento50, motivo pelo qual é papel do julgador e do legislador ter em vista o valor humano no exercício de suas atribuições.

Tendo em conta que o princípio da dignidade da pessoa humana assenta o sujeito de direito e a sua dignidade como o núcleo de uma teoria de justiça, em que o Direito é considerado o instrumento de ordenação racional indissociável da realização do justo, não é razoável que instituições humanas sejam constituídas sem que a pessoa humana tenha a sua dignidade resguardada.

Com efeito, PEREIRA (2006) assegura que como a dignidade do homem é intangível, é papel do Poder Público respeitá-la e protegê-la. Expõe ainda que a dignidade é o atual paradigma do Estado Democrático de Direito, a determinar  a funcionalização de todos os institutos jurídicos condicionada à pessoa humana.

E é nesse mote que o Estado assume o papel de protetor do respeito à dignidade da pessoa humana, tanto do ponto de vista de conceder direitos, quanto de garantir que estes não sejam violados.

Conforme já dito, uma vez que a família é a base da sociedade, e também elemento indispensável ao desenvolvimento do ser humano, a organização estatal deve ser orientada para livrar seus membros de quaisquer medidas que venham a supri-los da convivência em ambiente familiar permeado de valores tais como o afeto e o cuidado.

Dizemos isso por entendermos que a supressão desses valores, principalmente nos primeiros estágios de vida da pessoa, reduz as possibilidades de que essa pessoa desenvolva todas as suas capacidades psicofísicas. Como crianças e adolescentes são vulneráveis e dependem de outros ao seu redor a fim de que possam crescer física e mentalmente, daí a importância desses valores e a relevância dos genitores no papel estruturante da personalidade da prole.

Portanto, o interesse público na conservação dos papéis paterno e materno reside na repercussão do exercício das atividades de cuidado e afeto precípuas do encargo dos genitores, em favor da dignidade dos menores.

2.1.2 O Princípio da Paternidade e da Maternidade Responsável

O princípio da paternidade ou da maternidade responsável decorre do imperativo constitucional, no que toca o dever de se fazer um planejamento familiar, preexistente ao próprio nascimento da criança.

A responsabilidade paterna ou materna não se esgota neste planejamento e na conscientização da importância do instituto. Ademais disso, a paternidade/maternidade responsável pressupõe o cumprimento das obrigações materiais e morais para com os filhos, a fim de propiciar o seu desenvolvimento regular. Com efeito, o normal desenvolvimento da pessoa somente é possível se ela tiver condições dignas de sobrevivência, motivo pelo qual não basta que sejam destinados recursos materiais a fim de criar e educar a prole, há que respeitá-la em sua dignidade (PEREIRA, 2006, p.52).

Isso porque pais e a mães responsáveis têm consciência de que o inadequado exercício de suas funções interfere de maneira prejudicial ao crescimento dos infantes.

De fato, o desprezo, a indiferença e a falta de afeto interferem na formação da personalidade e, conforme apontado por MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA (2008), resultam como consequência em uma pessoa agressiva, insegura, infeliz, o que é danoso não só para o indivíduo, como também para toda a sociedade, dada a maior criminalidade de indivíduos nessas condições.

A paternidade/maternidade responsável, portanto, se manifesta na consciência dos pais acerca dos encargos decorrentes da decisão de se ter um filho e na efetiva disposição do suporte material, moral, espiritual e afetivo para o pleno desenvolvimento da personalidade da prole, formando indivíduos aptos ao convívio social.

2.1.3 O Princípio da Afetividade

O princípio da afetividade é um dos desdobramentos do princípio do respeito à dignidade da pessoa humana, na medida em que toda a orientação jurídica desenvolve-se no sentido de garantir ao indivíduo uma vida digna, atribuindo valor jurídico ao afeto, sobretudo nas relações entre pais e filhos.

Conforme destacado por PEREIRA (2006), a família até o século XIX era claramente patriarcal e estruturava-se em torno do patrimônio, sendo um agrupamento de indivíduos cuja razão de ser era precipuamente de cunho econômico. Com a nova ordem civil constitucional, a estrutura familiar deixou de lado as motivações econômicas, que anteriormente tinham importância primária nessas relações, dando lugar a elos afetivos, justificados pela solidariedade mútua.

É o princípio da afetividade que confere substrato material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do artigo 227 da Carta Magna. É dito isso, pois, a convivência familiar é um direito da criança e do adolescente, no melhor interesse desses menores, bem como dever dos pais para com sua prole, tendo em vista a paternidade/maternidade responsável.

A ratio desse dispositivo está no reconhecimento da família como o lócus de realização do indivíduo, onde ele inicia seu desenvolvimento pessoal, seu processo de socialização, tomando suas primeiras lições de cidadania56. A convivência em ambiente familiar, permeado de afeto, é de especial essencialidade na vida dos menores; uma vez que, dada a sua peculiar condição de seres em desenvolvimento, merecem dispor do apoio e do afeto de seus pais a fim de que tenham uma formação adequada (PERREIRA, 2006, p.182).

No que toca os deveres paternos quanto aos filhos, este princípio é corolário do princípio da paternidade/maternidade responsável, pelo que determina que aos pais cumpre realizar o planejamento familiar. Já em relação aos filhos, o respeito ao princípio da afetividade, quanto à convivência familiar, é o que concretiza o melhor interesse dos menores, porquanto o afeto seja imprescindível em sua formação.

Dessa maneira, a partir dos fenômenos da despatrimonialização, decorrente da repersonalização das relações privadas, o foco das relações jurídicas passou a ser a pessoa humana, a realização dos membros da família e o relacionamento baseado no afeto, na importância da convivência familiar e na solidariedade mútua.

2.1.4 O Princípio do Melhor Interesse da Criança e do Adolescente

O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente é um resultado da nova família cuja relação está pautada na afetividade e no companheirismo. Nesse contexto, o menor ganhou destaque especial pelo fato de ser imaturo e vulnerável, precisando que os pais o conduzam em direção à autonomia.

Este princípio tem suas raízes na doutrina da proteção integral, que segue as orientações do já mencionado artigo 227 da Lei Maior, segundo o qual é assegurado como dever dos pais, do Estado e da sociedade, e também como direito fundamental dos infantes, o convívio familiar, na mesma medida em que assegura os direitos à vida, à saúde, à educação, à liberdade, ao respeito e à dignidade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

De acordo com MARIA ISABEL PEREIRA DA COSTA (2008, p.58), a proteção integral é um conceito pós-moderno, por tratar a criança e o adolescente em sua integridade, deliberando a convivência familiar, bem como a comunitária, como um direito fundamental dessas pessoas em desenvolvimento.

O especial apreço conferido aos infantes funda-se no reconhecimento de que

a família tem por objetivo a promoção do menor, enquanto pessoa frágil e vulnerável, para que bem desenvolva suas potencialidades no tocante a sua educação, formação moral e profissional.

Seguindo a orientação constitucional, foi elaborado o Estatuto da Criança e do Adolescente. O art. 1º do ECA elucida que suas disposições tratam da efetivação da doutrina da proteção integral. Dentre os direitos garantidos àqueles que se submetem ao ECA, está o direito à saúde. Conforme as normas do Estatuto, a saúde garantida aos menores abrange não só a física, alcançando a saúde emocional e espiritual. A preservação da saúde mental das pessoas em desenvolvimento – isto é, de sua integridade psicofísica - tem por escopo garantir a formação de uma personalidade sadia de um indivíduo realizado e integrado à sociedade.

Nesse diapasão, note-se que cabe aos pais, no cumprimento dos seus deveres legais, proteger a criança e o adolescente de forma integral, não omitindo afeto e cuidado no exercício da paternidade, porquanto sejam tais valores elementos indispensáveis à formação plena da personalidade das pessoas em desenvolvimento.

2.2 A ponderação dos princípios jurídicos na perspectiva civil-constitucional

É certo, como defende RODRIGO DA CUNHA PEREIRA (2005, p. 33), vive-se em uma sociedade pluralista e multicultural e que, por isso, a Carta Magna muitas vezes contempla interesses contrapostos.

Em várias situações jurídicas subjetivas lados em conflito parecem ter alguma orientação que venha a assegurar o ponto de vista de cada qual, sugerindo um conflito intransponível. Todavia, a solução dessa circunstância subjetiva encontra o interesse que merece proteção jurídica através da ponderação dos princípios que circundam o caso.

Sendo inevitável o choque de interesses, representados pelos princípios em jogo, cuidou-se de buscar vias que solucionem a suposta encruzilhada. De tal maneira, estudos jurídico-filosóficos elaborados por ROBERT ALEXY (2008, p. 93), em Teoria dos Direitos Fundamentais, trouxeram à baila a corrente de pensamento que resolve a colisão de princípios jurídicos através da ponderação, feita pelo intérprete, dos bens jurídicos em jogo.

Para ALEXY (2008, p.95): se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido-, um dos princípios terá que ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições, a precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso tem precedência.

Assim, havendo uma situação jurídica subjetiva, na qual dois ou mais princípios entram em conflito, é por meio do sopesamento entre os interesses conflitantes que será resolvida a controvérsia e decidido o princípio e interesse prevalecente no caso concreto.

Nesse viés, percebe-se que o “fiel da balança” tende a apontar em direção ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a pessoa como centro do ordenamento jurídico, ainda que não exista uma hierarquia entre os princípios jurídicos constitucionais.

A respeito desse tema, PEREIRA (2005, p. 35) comenta que não se proclama a hierarquia absoluta entre princípios, devendo-se observar a ascensão da dignidade humana na ordem jurídica, tendo em conta a prevalência do sujeito em detrimento do objeto nas relações jurídicas.

Dito isso, no caso de ocorrer uma colisão entre princípios, é papel do intérprete buscar a melhor forma de alcançar a dignidade da pessoa humana. Desse modo, no caso concreto, em havendo choque, a tendência é que o princípio a ceder em face de outro será aquele que se relacionar com a dignidade humana em menor amplitude. Logicamente, aquele que estiver mais ligado à dignidade tenderá a prevalecer.

Considerando que diversos são os setores da ordem jurídica que são alcançados pelo valor da dignidade, é imprescindível que sejam traçados os corolários desse princípio constitucional, sob pena de atribuir-lhe um grau de abstração tamanho que impossibilite sua aplicação.

Para tanto, desdobra-se o substrato material da dignidade em quatro postulados. São eles: a) o reconhecimento, por parte do sujeito moral (ético), e que existem outros sujeitos, iguais a ele; b) a consideração de que esses sujeitos iguais são merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; c) a ciência de que ele, como sujeito, é dotado de vontade livre, de autodeterminação; d) e, por fim, estar convencido de que ele é parte do grupo social, o que o garante de não vir a ser marginalizado. Esta elaboração tem por corolários os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica, da liberdade e da solidariedade.

Importa tal decomposição a fim de se mostrar que, em havendo conflitos entre duas ou mais situações jurídicas subjetivas, em que cada uma delas tem por amparo um desses princípios de igual importância hierárquica, então “o fiel da balança, a medida de ponderação, o objetivo a ser alcançado, já está determinado, a priori, a favor do princípio, hoje absoluto, da dignidade humana” (BODIN, 2003, p.84).

Em outras palavras, cumpre demonstrar que, embora possa haver um conflito entre duas situações subjetivas amparadas pelos princípios que conferem substrato material ao da dignidade humana, tal conflito é apenas aparente. Em verdade, se corretamente for feita a ponderação entre esses subprincípios no caso concreto, então é possível determinar aquele que prevalecerá.

Primeiramente, sobre o princípio da igualdade, este deve ser analisado sob seus dois aspectos, formal e material. Do ponto de vista formal, primeiro a ser concebido, o princípio reza pela garantia de que o sujeito não venha a receber qualquer tratamento discriminatório, tendo direitos iguais aos de todos os demais. Quanto à feição material, as diferenças entre os sujeitos de direito são reconhecidas, de modo a lhes conferir tratamento desigual na medida de suas desigualdades.

Acerca do princípio de proteção à integridade psicofísica da pessoa humana, contemplavam-se, tradicionalmente, apenas os direitos de não ser torturado e de ser titular de garantias penais. Todavia, na esfera cível moderna, trata-se também da garantia de diversos direitos da personalidade, compreendendo o “direito à saúde” em sentido amplo, que abrange o bem-estar psicofísico e social. O termo “integridade” vem do latim integritas, que significa inteireza, completude, totalidade (BODIN, 2003, p.93). É um estado de característica daquilo que está inteiro, que não sofreu qualquer diminuição. Transportada essa noção ao ordenamento jurídico, como princípio, a integridade psicofísica diz respeito ao direito de não ter a harmonia das capacidades físicas e psíquicas lesionadas ou diminuídas.

A respeito do princípio da liberdade e da autonomia privada, este passou por uma grande mudança desde as primeiras décadas do século XX. Isso porque, na época liberal, este princípio tinha como valor fundamental o indivíduo livre e igual, submetido à sua própria vontade. Naquele cenário, o direito cuidava de regular situações precipuamente patrimoniais e as restrições à liberdade ampla do indivíduo apenas existiam para proteger as liberdades dos demais particulares (BODIN, 2003, 94).

Na medida em que o Direito passou a cuidar de relações extrapatrimoniais, essa conjuntura deu lugar a uma nova, segundo a qual a autonomia privada encontra limites na ordem pública. É que, antes as limitações às situações subjetivos individuais constituíam exceção, passando, no quadro contemporâneo, a receber a tutela do ordenamento se e enquanto estiverem não apenas em conformidade com a vontade do titular, mas também se estiverem em sintonia com o interesse social (BODIN, 2003, p. 106).

Por fim, quanto ao direito-dever de solidariedade social, a concepção humanista, decorrente do pós-guerra no século XX, veio a combater todas as formas de agressão contra a coletividade. Por solidariedade, deve-se entender, em última análise, como “o conjunto de instrumentos voltados para garantir uma existência digna, comum a todos, em uma sociedade que se desenvolva como livre e justa, sem excluídos ou marginalizados”(BODIN, 2003, p. 114).

Destaque-se o caráter inovador do princípio da solidariedade esculpido no imperativo constitucional, a ser levada em conta na elaboração legislativa, na execução de políticas públicas e, também, na interpretação e aplicação do direito por seus operadores e demais destinatários. Na realidade, o princípio da solidariedade social tem força normativa capaz de tutelar o respeito a cada um do grupo, sendo, inclusive, “fundamento daquelas lesões que tenham no grupo sua ocasião de realização” (BODIN, 2003, p.110 e 111).

Nesse ponto, levanta-se a temática da contraposição entre dois dos princípios corolários da dignidade, quais sejam o direito de liberdade da pessoa e o direito de solidariedade social. A primeira vista, são incompatíveis, de modo que em situações subjetivas possam facilmente entrar em colisão. A solução do suposto conflito entre princípios se dá através da ponderação entre eles, tendo em mente o fim último do ordenamento, que é a realização da dignidade humana. Feito isso, ora um princípio prepondera, ora outro, a depender do caso concreto.

Na temática proposta no presente estudo, verifica-se que esses princípios entram em conflito nas ações que versam sobre a condenação a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações paterno-filiais. Uma situação subjetiva passível de reparação deve estar amparada em, ao menos, um dos quatro princípios corolários da dignidade humana, quais sejam igualdade, liberdade, integridade psicofísica e direito-dever de solidariedade social, para que seja possível conferir tutela jurisdicional dos danos à pessoa humana. Caso nessa situação subjetiva mais de um desses em princípios estejam em conflito, há que ser feita a ponderação entre eles no caso concreto para que seja encontrada a solução mais justa, mais próxima da proteção à dignidade.

Em relação às crianças e aos adolescentes e à garantia constitucional ao convívio familiar em ambiente permeada de afeto, vislumbra-se na esfera dos menores a afronta ao seu bem-estar psicofísico e social, pautado no princípio da integridade psicofísica, além do desrespeito, tocante ao princípio da solidariedade familiar, garantia de que o sujeito não seja marginalizado. Já na esfera dos pais omissos em prover afeto à prole, nota-se o princípio da liberdade/autonomia.

Com tal atitude omissiva, o pai ou a mãe que abandona afetivamente o menor desrespeita, além da dignidade da pessoa do filho, princípios específicos do Direito de Família, como o da paternidade/maternidade responsável e o da afetividade, em que o agrupamento familiar se dá com base planejamento familiar, no afeto e na solidariedade entre seus membros.

Nesse contexto, há que se verificar a possibilidade dos danos sofridos por tais “grandes traumatizados”, decorrentes da inatividade dos pais em prover afeto à sua prole, de serem enquadrados dentre os danos que geram a obrigação de compensar a vítima a título de danos morais. Isto é, cumpre examinar se estão os danos por abandono afetivo nas relações paterno-filiais entre os danos morais indenizáveis, levando em conta as construções doutrinárias e jurisprudenciais hodiernas sobre o tema posto (STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil . 5ª ed. São Paulo: RT, 2001, p. 89).


CAPÍTULO III- A Responsabilidade Civil por Abandono Afetivo nas Relações Paterno-Filiais

3.1 Noções Gerais de Responsabilidade Civil

3.1.1 Conceito e Finalidade da Responsabilidade Civil

STOCCO (2001, p.91) traz o significado etimológico da palavra responsabilidade, afirmando que a noção do que ela exprime pode ser haurida de sua própria origem, do latim respondere, responder a alguma coisa. Ou seja, é a necessidade de que alguém dê uma resposta, por ser responsável pelo advento de atos danosos, próprios ou alheios.

De acordo com os ensinamentos de SERGIO CAVALIERI FILHO (2009, 1-2), o objetivo principal da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito através do estabelecimento de deveres jurídicos. Tais deveres dependerão da natureza do direito a que correspondem, bem como das pessoas a quem atingem. A imposição desses deveres se dá em virtude da necessária convivência social e importam na criação de obrigações.

Os deveres impostos pelo ordenamento jurídico dividem-se em deveres originários e deveres sucessivos. Os deveres jurídicos originários dizem respeito à conduta positivada no ordenamento, a qual o sujeito deve seguir. Caso não o faça, em acarretando danos a outrem, os deveres originários impõem o dever sucessivo de reparação do dano.

É neste mote que surge a noção de responsabilidade civil, segundo CAVALIERI FILHO (2009, p.4), que a conceitua sinteticamente como o “dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário”. A relação jurídica da qual decorre o dever originário a que se alude pode tanto advir de um contrato (que enseja a responsabilidade contratual), quanto de uma lei ou do ordenamento (que dá origem à responsabilidade extracontratual).

Fala-se no presente estudo da responsabilidade civil extracontratual, mais especificadamente da subjetiva. Os fundamentos legais da responsabilidade civil subjetiva estão previstos nos artigos 186 e 927, do Código Civil de 2002. O primeiro dispõe que “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O segundo determina o seguinte: “Aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Em outras palavras, o civilmente responsável tem a obrigação, imposta legalmente, de indenizar a vítima do dano a que ele deu causa. É esta indenização, pois, a finalidade precípua da noção de responsabilidade.

À primeira vista, o fim da obrigação de indenizar é colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso. Esta pretensão de obrigar o agente causador do dano a repará-lo tem por inspiração sentimento de justiça tal que restabeleça o equilíbrio jurídico-econômico anteriormente existente entre vítima e agente.

Importante destacar que o dano pode ser extrapatrimonial ou patrimonial.

Nos casos em que o dano é extrapatrimonial, esse equilíbrio não diz tanto respeito à natureza econômica, vez que a condenação por responsabilidade civil não é de cunho indenizatório, mas sim compensatório. Assim, propõe-se retribuir à vítima do dano moral em pecúnia de alguma maneira que possa a dor sentida ser compensada.

3.1.2 Pressupostos da Responsabilidade Civil Subjetiva

O conjunto de pressupostos apontados comumente pela doutrina, que caracterizam o dever de indenizar por responsabilidade civil subjetiva, são: a conduta culposa ou dolosa do agente, o dano e o nexo causal entre este dano e o ato.

Primeiramente, acerca da noção de ato, pela redação do artigo 927, CC, o ato, para que ensejasse o dever sucessivo de indenizar, deveria ser ilícito.

No entanto, a noção de ato ilícito foi abandonada em favor do que entendemos hoje por dano injusto, de modo que a redação deste artigo não pode ser considerada em sua literalidade.

Esse dano, a princípio, era conceituado como sendo a efetiva diminuição do patrimônio da vítima.

Contudo, com o advento da noção de danos morais, esse conceito foi modificado para considerar também os danos de ordem extrapatrimonial. Hoje, dano é visto como “a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima” (CAVALIERI FILHO, 2009, p.24).

Logo, para o ordenamento atual, o dano é a efetiva lesão a um bem jurídico, podendo ser este bem de ordem tanto patrimonial como moral.

Sobre a conduta, cujo conceito é “comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo consequências jurídicas” (CAVALIERI FILHO, 2009, p.24).

Note-se que a conduta pode ser tanto uma ação, sendo esta um comportamento comissivo e positivo, quanto uma omissão, que é a inatividade ou abstenção de uma conduta devida.

ORLANDO GOMES (Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In.: Estudos em homenagem ao Professor Sílvio Rodrigues. Prefácio e organização José Roberto Pacheco di Francesco. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 292 e ss.), há cerca de vinte anos, já anunciava que uma das grandes novidades no campo teórico da responsabilidade civil foi o giro conceitual de ato ilícito para a noção de dano injusto. Antes, o ato ilícito desdobrava-se em dois elementos, objetivo e subjetivo. O elemento objetivo consistia na violação de um direito legal que atribuísse direito subjetivo a particular, enquanto o subjetivo dizia respeito à culpabilidade na atuação. Os dois elementos conjuntamente considerados eram vistos como o fato gerador da responsabilidade. Essa construção lógica não mais prospera na perspectiva atual. A perspectiva da responsabilidade civil mudou, deixando de ter o foco no agente causador do dano para a pessoa que sofre o dano. Logo, o comportamento reprimido na lei civil não é mais somente a atuação antijurídica, reprime-se também a injustiça do dano. A expressão “dano injusto” tem origem na doutrina da Itália e está prevista no artigo 2.043 do Código Civil de 1942 daquele país, cuja redação é “Qualinque fatto doloso o colposo, che cogiona ad altri um danno ingiusto, obbliga colui che há commesso il fatto a risarcire Il danno” (BODIN DE MORAES [3], op. cit., p. 177. A autora traduz o artigo assim: “Qualquer fato doloso ou culposo que cause a outros um dano injusto obriga quem cometeu o fato a ressarcir o dano.”).

Nesse diapasão, GOMES (1989) define dano injusto como “a alteração in concreto de qualquer bem jurídico do qual o sujeito é titular”, prescindindo de que tal alteração seja resultado de uma conduta ilícita. Entre tais bens jurídicos, o autor elenca direitos da personalidade, certos direitos de família e os interesses legítimos.

Sendo assim, na busca de critérios mais amplos de proteção, que englobassem interesses dignos de tutela, e não somente direitos subjetivos, modernamente desvinculou-se da idéia da atuação antijurídica para a ideia da injustiça do dano (BODIN DE MORAES, 2003, p. 178)

A omissão torna-se juridicamente relevante quando o omitente responsável tinha dever jurídico de agir. Neste caso, não impedir o resultado tem a mesma consequência prática de permitir que a causa opere, aceitando que o resultado se concretize.

A conduta humana pode se dar por dolo ou por culpa. SÍLVIO RODRIGUES (1989, p.24) vê o dolo como a ação ou omissão do agente que antevê o dano e deliberadamente prossegue com o propósito mesmo de alcançar o resultado danoso. Relativamente à culpa em sentido estrito, pela concepção normativa, caracteriza-se esta como sendo uma omissão de diligência exigível, que nem sempre coincide com uma violação da lei.

O Desembargador CAVALIERI FILHO (2009, p. 31) destaca que a vida em sociedade obriga o homem a viver de modo a não causar dano a ninguém, sendo esta a premissa do dever de cuidado objetivo. Este dever compreende dois momentos. O primeiro desses momentos é a compreensão de qual seja o comportamento adequado para atingir o fim que lhe é proposto, fazendo juízo de ponderação entre as vantagens e os inconvenientes das diversas atuações possíveis. O segundo momento, após o primeiro de compreensão e ponderação, abrange a efetiva atuação nos moldes do comportamento adequado.

A inobservância do dever de cuidado, quando o agente devia e podia agir de outro modo, causando dano, é que caracteriza a conduta culposa. Diferentemente do que ocorre no dolo, não se procede com intuito de causar o ato ilícito. Em verdade, atua-se de maneira lícita; mas, por adotar uma conduta inadequada aos padrões sociais, que poderia evitar, acaba causando um dano. Tal dano poderá ser fato gerador de responsabilidade.

A conduta adequada pode estar prevista na lei ou não, haja vista a incapacidade do ordenamento de prever todas as hipóteses de violação de cuidado das atividades humanas. É por isso que, em alguns casos, há culpa mesmo que não haja um dever previsto em texto expresso de lei ou regulamento. Nesse sentido, o ordenamento impõe ao homem comum o dever jurídico genérico para que ele aja de modo a não violar o direito de ninguém, em prol da harmonia social. Por esta razão, CAVALIERI FILHO (2009, p. 33) assegura que o dever de cuidado enseja que o dever de cuidado objetivo tem por padrão o homem médio, levando em consideração os conhecimentos e a capacidade ou aptidão exigíveis das pessoas.

O último pressuposto da responsabilidade civil a ser tratado antes de adentrar no dano em si, partindo para o dano moral, é o nexo causal. Antes mesmo da discussão acerca da conduta do agente ter sido com dolo ou culpa, cumpre analisar se com sua conduta ele deu causa do resultado dano. Na preleção de SERPA LOPES (1996, p.197), “nexo causal diz respeito às condições mediante as quais o dano deve ser imputado objetivamente à ação ou omissão de uma pessoa”. Por nexo causal, requer-se que haja uma relação necessária entre a conduta do agente e o dano sofrido pela vítima, ou seja, que exista entre ambos uma relação de causa e efeito. AGUIAR DIAS (2006, p.24) determina categoricamente que é preciso demonstrar sempre no intento de uma ação indenizatória que, sem o fato alegado, o dano não se teria produzido.

Diferentemente do Direito Penal, que adotou a teoria da equivalência dos antecedentes causais, para a qual “causa é toda ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido, sem distinção da maior ou menor relevância que cada uma teve”; CAVALIERI FILHO (2003) sustenta que o Direito Civil adotou a teoria da causalidade adequada, em que “nem todas as condições que concorrem para o resultado são equivalentes, mas somente aquela que foi mais adequada a produzir concretamente o resultado”. Ou seja, na seara da Responsabilidade Civil, será verificado se a causa é ou não idônea a produzir o dano, somente sendo causa aquilo que for adequado a produzi-lo.

Existem causas que excluem o nexo causal e que, por conseguinte, são aptas a excluir a responsabilidade. A ratio da concepção dessas excludentes é que ninguém pode responder por um resultado a que não tenha dado causa. Em resumo, “causas de exclusão do nexo causal são, pois, casos de impossibilidade superveniente do cumprimento da obrigação não imputáveis ao devedor ou agente” (CAVALIERI FILHO, p.64).

3.2 Danos Morais ou Danos à pessoa?

Óbice considerável à aceitação dos danos morais como danos ressarcíveis em pecúnia diz respeito à sua própria nomenclatura. Tal designação dá ensejo à discussão acerca do vínculo entre Moral e Direito, considerada hoje aquela fora do domínio deste.

Normalmente, o termo “moral” é vinculado a conceitos éticos e a costumes, sendo dificultoso ao cérebro não realizar essa analogia apriorística (SANTOS, Antônio Jeová. Danos Morais Indenizáveis. 2ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Lejus, 1999, p. 86).

No Brasil, dano moral e dano extrapatrimonial são tratados como sinônimos, sendo gênero de que surge a espécie “danos à pessoa”. Os danos relativos à pessoa são os que reduzem-na à condição de objeto, não respeitando seu valor intrínseco, sua dignidade. JUDITH MARTINS-COSTA (2002, p. 417) afirma que “danos à pessoa constituem fattispecie em construção”, termo este oriundo da doutrina italiana, mais especificamente de GUIDO GENTILE. Seriam os danos incidentes em qualquer aspecto do ser humano considerado em sua integridade psicossomática e existencial. Embora para o conceito que adotamos de danos morais, como lesão à dignidade humana, seja o termo “danos à pessoa” mais adequado, por apresentar maior rigor técnico e co-relação com o dano versado, entendemos que não há justificativa para modificação do termo no ordenamento, se superadas as dificuldades semânticas.

Logo, concorda-se com SANTOS (1999, p.92) no que se posiciona para manter a expressão “danos morais” no ordenamento jurídico brasileiro, muito embora não tenhamos escolhido este termo para designar o trabalho aqui realizado. Isso porque a terminologia já foi disseminada e aceita pela grande maioria da doutrina, restando apenas à pequena parte da jurisprudência o cometimento de equívocos ao relacionar os danos morais à ética e aos costumes. Sendo assim, no presente estudo usar-se-á indiscriminadamente tanto o termo danos morais, como o termo danos à pessoa, como sinônimos que indicam lesões extrapatrimoniais.

3.3 A Problemática da Conceituação dos Danos Morais

Certamente, na ocasião de se adentrar no estudo de qualquer instituto, o ideal é que, a priori, seja apresentado o conceito do objeto de análise. A importância disso é acórdão de apelação cível no. 2004.001.13664 do TJRJ negou intentada indenizatória por danos morais decorrentes de abandono afetivo parental tendo em conta que há distinção entre as normas jurídicas e a moral, advertindo que essa seria uma das primeiras lições ministradas na faculdade de Direito. Os danos à pessoa e a natureza de sua reparação. In.: A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitas fundamentais constitucionais no direito privado (COSTA, 2002, p. 417 e ss). Adiante, esclarece-se que hoje existem quatro conceitos aceitos na doutrina de danos morais. São eles: a) danos não patrimoniais; b) os efeitos extrapatrimoniais da lesão; c) danos aos direitos da personalidade e d) danos à dignidade humana.

Ocorre que, atualmente, o problema dos danos morais reside exatamente neste ponto, vez que não há uma conceituação única e pacífica dessas lesões. A falta de um conceito assentado na doutrina e jurisprudência para as lesões morais é um dos maiores desafios enfrentados pelos operadores do Direito no campo da Responsabilidade Civil; pois, em verdade, não havendo uma conceituação uníssona, é de todo problemática a determinação de quais entre os danos sejam os indenizáveis.

Inclusive, CAVALIERI FILHO (2003, p.79) ironiza ao afirmar que “nesse particular, há conceitos para todos os gostos”. O referido autor elenca algumas tentativas de definição, que são por ele negadas, para depois dissertar sobre os conceitos que lhe parecem mais aceitáveis. A primeira delas é criação da doutrina que parte de um conceito negativo de danos morais, considerando todos os que não tiverem caráter patrimonial ou, na concepção de RENÉ SAVATIER (2000, p. 54), “dano moral é qualquer sofrimento que não é causado por uma perda pecuniária”. A segunda delas aborda um conceito subjetivo para o qual dano moral é dor, vexame, sofrimento, desconforto, humilhação ou, em última palavra, dor da alma. Ou seja, para essa doutrina, o dano moral é o “efeito não-patrimonial da lesão”, não se restringindo aos danos a direitos da personalidade, que é o que parte da doutrina defende, como será falado adiante. A noção subjetiva sustenta que “a distinção entre dano patrimonial e dano moral não decorre da natureza do direito, bem ou interesse lesado, mas do efeito da lesão, do caráter de sua repercussão sobre o lesado” (BONDIN, 2006, p. 156). Nesse sentido, orientam-se a doutrina e a jurisprudência majoritárias, valendo citar MARIA HELENA DINIZ, SÍLVIO RODRIGUES, J. DE AGUIAR DIAS.

A fim de minorar tal subjetivismo, a abrangência desta definição costuma ser mitigada para considerar apenas danos graves, de acordo com o voto proferido pelo MINISTRO FRANCISCO REZEK, em que o Eminente magistrado, tentando conceituar dano moral, assim ponderou: “Penso que o que o constituinte brasileiro qualifica como dano moral é aquele dano que se pode depois neutralizar com uma indenização de índole civil, traduzida em dinheiro, embora a sua própria configuração não seja material. Não é como incendiar-se um objeto ou tomar-se um bem da pessoa. É causar a ela um mal evidente”.

Tecendo críticas sobre essas duas vertentes, em relação ao conceito negativo, CAVALIERI FILHO (2009) afirma que o critério conceitual por exclusão, na realidade, nada diz. Realmente, não há como estabelecer quais seriam os danos indenizáveis a partir da ideia de que são danos extrapatrimoniais tão somente.

Já em relação ao conceito subjetivo, esse mesmo autor diz que os sentimentos descritos (quais sejam, dor, vexame e sofrimento), que definiriam os danos morais, podem ser conseqüências do dano, mas não causas, afirmando existir uma ofensa à dignidade da pessoa humana sem tais resultados, bem como a existência de tais sentimentos sem violação ou ofensa à dignidade. Para exemplificar esse entendimento, compara: “assim como a febre é o efeito de uma agressão orgânica, a reação psíquica da vítima só pode ser considerada dano moral quando tiver por causa uma agressão à sua dignidade”.

BODIN DE MORAES (2009, p. 105) também nega a conceituação subjetiva de danos morais, pelo que conclui: O conceito de dano moral não deve se vincular, pois, a sentimentos ou sofrimentos, isto é, a disposições emocionais complexas, sejam quais forem o seu teor, nem tampouco a sensações íntimas ou, menos ainda, a percepção psicológica que são, necessariamente, aspectos subjetivos, intangíveis e inverificáveis, e que variam, por definição e de modo significativo, de pessoa para pessoa.

Assim, ressalte-se a necessidade de que os conceitos tradicionais sejam abandonados para dar lugar a um novo e pacífico, fundado na nova diretriz civil constitucional que consagra a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito, inserido como tal pela letra do artigo 1º, III, da Constituição Federal de 1988.

Impende salientar que CAVALIERI FILHO (2003) não faz alusão a uma distinção entre conceito objetivo e subjetivo tão explicitamente, é BODIN (2006) quem distingue o conceito objetivo e o subjetivo de danos extrapatrimoniais. No conceito subjetivo, os danos morais são definidos como “os efeitos morais da lesão a um interesse juridicamente protegido”. No conceito objetivo, definem-se danos morais como lesão a um direito da personalidade, cujo expoente de renome é o jurista PAULO LUIZ NETTO LÔBO. A autora critica esse primeiro conceito tendo em conta a subjetividade e a arbitrariedade a que dão ensejo. Realmente, por essa definição fica a cargo do magistrado, a seu bem entender, conceder ou não a indenização a título de danos morais. Por esse motivo, o conceito objetivo surgiu para conferir maior rigor técnico no exame dos casos “evitando a praxe recorrente de avaliar a ofensa com base no senso comum”. BODIN DE MORAES (2006, p. 246).

Desse modo, à luz da Lei Maior vigente, CAVALIERI FILHO (2006) expõe as duas vertentes mais aceitas atualmente sobre a definição dos danos morais, a saber: o conceito em sentido estrito e o conceito em sentido amplo.

Na visão do Desembargador, por sentido estrito, dano moral é violação do direito à dignidade. Já por sentido amplo, o dano moral abrange todas as ofensas contra os direitos da personalidade da pessoa, considerada esta em seu âmbito individual e social, o que significa dizer que no conceito amplo a lesão vai além de sua dignidade.

Tendo em vista esses apontamentos, considera-se que hoje na doutrina o melhor método definidor dos interesses que, sob a perspectiva civil-constitucional, merecem a tutela ressarcitória é o que considera os danos morais como danos à claúsula geral de tutela da pessoa humana, conforme passamos a demonstrar.

3.4 Danos morais como danos à cláusula geral da tutela da pessoa humana

Considerando que existam situações jurídicas subjetivas, relativas à pessoa humana, que demandam proteção, mas não correspondem a um direito subjetivo específico, acredita-se que a melhor corrente a ser adotada na conceituação dos danos morais, para identificá-los, é a que garante especial atenção à pessoa humana, vista a partir de sua natureza frágil e vulnerável.

Nesse sentir, o dano moral trata-se da violação à cláusula geral de tutela da pessoa humana, prevista no art. 1°, III, do imperativo constitucional, ofendendo-lhe a dignidade, mesmo que essa ação não seja reconhecida em alguma categoria jurídica específica. Essa corrente confere especial proteção à pessoa humana de forma ampla, geral e irrestrita, partindo da ideia de que o Direito existe para proteger as pessoas. Em última análise, por essa teoria, “socorre-se da opção fundamental do constituinte para destacar que a ofensa a qualquer aspecto extrapatrimonial da personalidade, mesmo que não se subsuma a um direito subjetivo específico, pode produzir dano moral, contanto que grave o suficiente para ser considerada lesiva à dignidade humana” (BONDIN, 2009, p. 147).

BODIN DE MORAES (2009) aponta algumas vantagens dessa linha que concebe um núcleo irredutível, qual seja a dignidade, como anteparo “à tutela que se deseja proceder e mediante a qual o sem-número de situações em que a pessoa humana pode se envolver”, passando, assim, a ter garantias imediatas através da cláusula geral de tutela.

A primeira vantagem importa ser mencionada no presente estudo. Para a autora, a consequência de se ter o dano moral como lesão à dignidade humana, é que toda e qualquer lesão que reduza o sujeito de direitos a uma condição de objeto, negando sua qualidade de pessoa, será considerada automaticamente como causadora de dano moral a ser reparado. Afastam-se assim situações que geram sofrimento às pessoas, mas que não afetem sua dignidade em seu substrato material.

O substrato material da dignidade divide-se em quatro postulados: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não ser marginalizado”.

Transportando esse substrato à esfera jurídica, determinam-se os corolários do princípio da dignidade. São eles: o princípio da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade/autonomia e da solidariedade social ou familiar.

Ora, se dano moral é lesão à dignidade, e se a dignidade humana subdividisse nesses quatro corolários, então a lesão a algum desses substratos é o que enseja a reparação. Realmente, “dano moral será, em conseqüência, a lesão a algum desses aspectos ou substratos que compõem, ou conformam, a dignidade humana, isto é, a violação à liberdade, à igualdade, à solidariedade ou à integridade psicofísica de uma pessoa humana” (BODIN, 2009). Dessa maneira, pretende-se demarcar a área de atuação dos danos morais para determinar, a partir desse conceito, quais são os danos morais passíveis de compensação.

3.5 Os Danos Morais Compensáveis

Conforme já dito, o dano é um dos pressupostos da responsabilidade civil. Para RODOTÀ (apud MORAES, p. 239), ele é a própria razão de ser do dever de indenizar. A partir da imputação de um evento danoso indenizável a um agente, nasce a responsabilidade, ou seja, o dever sucessivo de indenizar.

Em sede de Direito Civil, as hipóteses comportamentais que fazem nascer a obrigação de indenizar não são tipificadas; ao contrário, tal obrigação está prevista na legislação civil em cláusulas gerais, nos artigos 186 c/c o art. 927, CC.

MORAES (2009) adverte que é cabível identificar quais eventos fazem nascer a obrigação de indenizar, “circunscrevendo a área dos danos ressarcíveis, de modo a evitar a propagação irracional dos mecanismos de tutela indenizatória”. Primeiro para afastar pedidos contra atividades lícitas que, embora causem desconforto e prejuízos a terceiros, são meras atividades cotidianas, autorizadas pelo ordenamento. Segundo para acatar pedidos que, embora sejam também lícitas as atividades ou ações realizadas, a vítima não merece suportar os danos sozinha, devendo ser ressarcida.

O debate acerca de danos indenizáveis gira em torno de duas teorias, a saber: uma primeira teoria, que identifica os danos pela sua antijuridicidade, ou seja, pela violação culposa de um direito ou de uma norma expressa no sentido de não lesar bem ou direito tutelados; e uma segunda teoria, hoje majoritária, que identifica os danos como lesão a um interesse ou a um bem juridicamente protegidos.

A teoria que identifica o dano com a antijuridicidade do ato interpreta a sistemática da responsabilidade civil como se típica fosse, pois apenas diante da violação de normas que reconhecem direitos subjetivos absolutos surgiria a obrigação de indenizar.

Ocorre que essa teoria é incompatível com as cláusulas gerais da responsabilidade civil, previstas nos artigos 186 e 927, CC, e também com a orientação constitucional para conferir plena tutela à pessoa humana, esta no papel de foco do ordenamento jurídico. De fato, conforme já mencionado, o ordenamento é incapaz de prever todas as hipóteses lesivas à pessoa humana, de modo que restringir a tutela indenizatória aos casos previstos em norma diminuiria, certamente, a eficiência do mecanismo tutelar.

Diante disso, modernamente vem sendo mais aceita a segunda teoria do interesse para a qual o dano está vinculado à lesão de um interesse ou bem juridicamente protegido. Por essa teoria, não apenas direitos absolutos ou relativos são objeto de proteção, mas também interesses, “porque considerados dignos de tutela jurídica e, quando lesionados, obrigam a sua reparação” (RODOTÁ, apud MORAES, p. 240).

Partindo dessa ideia de que não só direitos, mas também interesses merecem tutela, a ampliação da noção de danos ressarcíveis restou inevitável, o que justifica a preocupação exposta por RODOTÀ  (apud MORAES, p. 241) de que “a multiplicação de novas figuras de dano venha a ter como únicos limites a fantasia do intérprete e a flexibilidade da jurisprudência”.

Dessa feita, surge o problema da identificação da qualidade dos interesses que merecem tutela jurídica. Verdadeiramente, com a falta de critérios para identificá-los, podem ocorrer duas situações indesejadas. Por um lado, a multiplicação de ações indenizatórias pode dar lugar a situações extravagantes, em que tudo é condenável; e por outro, o temor pela banalização dos danos morais acarretaria na ojeriza dos aplicadores quanto ao instituto, julgando pelo indeferimento dos pleitos indenizatórios indiscriminadamente, argumentando-se para tanto que a situação seria um mero acontecimento, a que todos estão suscetíveis, e que a pretensão do autor seria meramente mercantilista.

É por essa razão que se urge por um conceito pacífico de danos morais, bem como pela demarcação dos danos morais compensáveis para coibir a “indústria do dano moral” (MEDEIROS, apud MORAES, p. 107), sob pena desse poderoso utensílio de proteção à pessoa humana vir a se tornar de fato uma espécie de “loteria dos espertos” (MEDEIROS, apud MORAES, p. 107) ou, em direção diversa, um instrumento de proteção marcadamente inócuo.

Nesse contexto, a doutrina apontou algumas alternativas para solucionar esse impasse. São elas: para PIERO SCHLESINGER (BIANCA, apud MORAES, p. 178-179), um ato não autorizado por uma norma ensejaria a reparação por danos; já para STEFANO RODOTÀ, a indenização seria cabível quando o interesse atingido fosse suscetível de tutela partindo do princípio da solidariedade social; finalmente, para GUIDO ALPA (ALPA, apud MORAES, p. 179), a depender da relevância do dano, este seria indenizável, segundo uma ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais.

Entendemos, assim como BODIN DE MORAES, que o critério mais consistente reside na consideração de ALPA. De acordo com o escólio da jurista, “o dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressarcida”.

Ante uma situação subjetiva contemplada por mais de um dos substratos da dignidade humana (que são a igualdade, a liberdade/autonomia, a integridade psicofísica e a solidariedade familiar ou social), em contraposição, é que a lição de GUIDO ALPA reluz toda a sua valia. Pela sua lição, na colisão de princípios jurídicos cuja hierarquia é a mesma, há que ser feita a ponderação, através do exame dos interesses em conflito, verificando qual o preponderante na situação concreta, tendo em conta que o fim último do ordenamento é a tutela do sujeito de direito. Ou seja, a ponderação deve ser feita entre os princípios e o seu fundamento, que é a dignidade humana.

E é exatamente nesse mote que a indenização por danos morais nas relações afetivas entre pais e filhos encontra seu amparo jurídico-filosófico, pois nesse caso depara-se com interesses contrapostos, pautados nesses princípios corolários.

3.6 Responsabilidade Civil no Direito de Família

Sob a ótica privada, o civilmente responsável por um ato danoso deve repará-lo. Por muito tempo, a reparação só era aceita nos danos de cunho patrimonial, negadas as pretensões por danos morais. O pretium doloris (preço da dor) era, pois, inadmissível.

A dificuldade em aceitar a incidência da responsabilidade civil no ramo do Direito de Família residia no fato de que os temas de família são questões existenciais, de valores inestimáveis, e que a reparação civil é de cunho pecuniário.

BODIN DE MORAES (2009) aclara que até relativamente pouco tempo atrás todo e qualquer pagamento indenizatório em caso de lesão de natureza unicamente extrapatrimonial era tido por imoral e, por conseguinte, contrário ao Direito nos ordenamentos de tradição romano-germânica, excetuados os casos expressamente previstos em lei.

Além desses argumentos, a negativa em aceitar os danos morais residia na dificuldade de se verificar a existência e a extensão do dano sofrido. Por esse pensamento, aquilo que não se podia medir, não se podia indenizar, vez que a indenização deveria ser exatamente a medida do dano. Na época, “tanto do ponto de vista moral quanto do ponto de vista dos instrumentos jurídicos disponíveis, a reparação do dano moral parecia impraticável”.

Entretanto, com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, não há mais lugar para essa discussão, tendo em vista a mutação da consciência coletiva acerca do conceito de justiça. É que, na medida em que o ordenamento focou-se no sujeito de direito, sob o ponto de vista da vítima, passou a ser considerado intolerável que essa remanescesse irressarcida; ao passo que, sob o ponto de vista do causador do dano, passou a ser vista como injusta a sua impunidade diante dessa lesão. Dessa feita, finalizando qualquer dúvida acerca da possibilidade de compensação por danos morais, a Lei Maior passou a admitir entre os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos a reparação por danos morais, nos termos dos incisos V e X, do artigo 5º.

Conforme bem elucida BODIN DE MORAES (2009, 147), esse pensamento foi superado no sentido de que seja aceita socialmente a compensação por dano moral.

Nesse mesmo diapasão, A. VON TULER (1989, p. 298) clarifica que o ressarcimento tem por escopo propiciar uma satisfação (ou vantagem) ao ofendido, acalmando seu sentimento de vingança, que lhe é inato.

Assim também é o escólio de GOMES (1989, p. 298), ensinando que a compesatio doloris é hoje considerada um benefício de ordem, uma atribuição patrimonial que se reconhece satisfatória, e não como pretium doloris, nem como indenização propriamente dita, mas como um contrapeso da sensação dolorosa causada ao ofendido proporcionando-lhe uma sensação agradável. Por essa esteira, acaso ocorra lesão a direito da personalidade ou afronta à dignidade da pessoa humana, não é aceitável que a vítima não obtenha uma compensação, motivo pelo qual o ordenamento jurídico criou mecanismos de tutela da pessoa humana, a fim de restabelecer o equilíbrio da situação jurídico-financeira, considerando a dignidade como o “valor precípuo do ordenamento, configurando-se como a própria finalidade-função do Direito”.

De fato, pela nova perspectiva civil-constitucional, em que o princípio da dignidade da pessoa humana é o vetor das relações privadas, houve uma variação de ponto de vista no campo da Responsabilidade Civil. É que, neste ramo a sistemática orienta-se hoje no sentido de estender as hipóteses de tutela da pessoa da vítima, deixando de lado o foco anterior que residia na pessoa do ofensor.

Além disso, pela nova sistemática, não há mais um número taxativo de direitos absolutos da pessoa humana que merecem tutela. “A pessoa, à luz do sistema constitucional, requer proteção integrada, que supere a dicotomia direito público e direito privado e atenda à cláusula geral fixada pelo texto maior, de proteção da dignidade” (TEPEDINO, 2004, p. 53).

Aplicando essas noções no âmbito familiar, e levando em consideração o que foi anteriormente dito, sobre a família ser o locus de afeto e de formação e desenvolvimento da personalidade de seus membros, não parece razoável deixar as relações de família de fora desse poderoso mecanismo de tutela da pessoa humana, qual seja a compensação por danos morais, sob o argumento de que não haveria uma previsão legal de dano moral decorrente das relações familiares.

Mais especificamente, sobre as relações parentais, vislumbram-se deveres dos pais quanto aos seus filhos que, se descumpridos, acarretam danos de ordem extrapatrimonial. Sobre isso, “as opiniões hoje divergem entre duas posições opostas: aqueles que continuam a sustentar uma postura de isenção, imunidade ou privilégio dos pais na relação intrafamiliar, e os que começam a se manifestar favoravelmente às reparações” (MORAES, 2009, p. 109).

BODIN DE MORAES (2009, p. 108) ensina que a imunidade parental nas ações judiciais movidas pela prole é uma tradição da Common Law, sistema que sequer questiona o injustificado privilégio dos pais nessas intentadas. Sustenta-se que, nesses casos, os custos do dano que sofreria presumivelmente o ofensor já seriam muito altos, de modo que não seria produtivo incrementá-los. Dessa feita, pelo exemplo anglo-saxão, a Responsabilidade Civil encontra no Direito de Família uma seara de imunidade.

Em sentido oposto ao modelo do Common Law, países de origem romanogermânica, como a França e Portugal, já inseriram em seus textos legislativos a aceitação do Direito de Família no âmbito da Responsabilidade Civil, tendo sido o papel da jurisprudência de suma importância a esse intróito.

A tendência brasileira é seguir os países europeus, pois com a mudança na forma como as famílias hoje se relacionam, para um plano de igualdade e liberdade, sendo facilmente desintegradas, já não há mais como negar a reparabilidade de danos morais sob o argumento da proteção da integridade familiar. Por vezes, sustenta-se que uma ação de danos morais desfaria de vez os elos afetivos entre os membros do agrupamento, não atingindo o eventual escopo de restabelecer o liame de afeto.

Ocorre que esse argumento não prospera por dois motivos. O primeiro deles é que essa linha de raciocínio só faria sentido na maneira como as famílias se relacionavam no passado, sem possibilidade de romperem os laços. Hoje, com as facilidades de se promover separações e divórcios, tais elos rompem com facilidade. Nesses rompimentos, normalmente quem sofre mais são as crianças, pois com o fim do matrimônio é possível que sejam desfeitos também os laços de filiação. O segundo motivo é que o simples fato do autor recorrer ao Poder Judiciário pleiteando condenação de membro familiar em pecúnia já demonstra que, há muito, a relação estava por acabada. Assim, o objetivo da intentada não é o restabelecimento da relação, mas sim a compensação pela dor sentida em face da injustiça do dano (MORAES, 2009, p. 108).

Ademais, no caso específico das relações de filiação, não é razoável que genitores restem impunes ante o descumprimento de suas responsabilidades para com sua prole, esta em posição de vulnerabilidade e desamparo por não ter seu desenvolvimento físico e mental completo.

Dessa feita, justifica-se o intento na medida em que se proporciona à prole alguma forma de ressarcimento pelos danos sofridos.

Outrossim, a doutrina aponta ainda outros fundamentos que tornem legítima a condenação por danos morais decorrentes de abandono afetivo, são elas: a função dissuasória da condenação, assim como a punitiva.

Quanto à função punitiva, busca-se punir o agente que venha a lesionar o conteúdo imaterial de outrem.

No abandono afetivo, a função disuassória é compatível com o fim almejado, pois, de fato, condenações dessa índole inibiriam genitores negligentes a continuarem com a conduta lesiva. Já a função punitiva não guarda razão sob a ótica da Responsabilidade Civil focada na vítima. Em verdade, não é desígnio da condenação punir o pai faltoso, mas sim indenizar a vítima pelo dano injusto (FACCHINI, apud SANTOS, 1999, p. 26).

Entendemos, portanto, que embora a função punitiva não seja acolhida nos moldes em que é construída hoje a estrutura do nosso ordenamento jurídico, a condenação atende funções outras, quais sejam a compensatória e a disuassória, tornando legítima a possibilidade no caso concreto de condenação civil por danos morais nas relações familiares, a depender da presença dos requisitos gerais da responsabilidade.

3.7 A omissão de afeto e cuidado como dano à pessoa humana compensável

A melhor doutrina brasileira que cuida do tema dos danos morais nas relações parentais já aceita a tese de possibilidade de reparação nesse âmbito.

Em nossa compreensão, a condenação à indenização a título de danos morais por abandono afetivo nas relações paterno-filiais decorre das peculiaridades da forma como se relacionam os pólos do enlace e dos interesses jurídicos em jogo.

As relações entre pais e filhos possuem certas distinções, quais sejam a assimetria entre os polos, a permanência da relação e a ingerência estatal, e todas elas ensejam o dever de indenizar.

Tanto é verdade a especialidade das relações familiares parentais, que, além de se aplicarem os princípios gerais do direito nessa seara, existem princípios próprios do ramo familiar, como é o caso dos princípios da paternidade responsável, da afetividade e do melhor interesse do menor e do adolescente, este último com base na doutrina da proteção integral.

Hodiernamente o “poder familiar” é um múnus conferido aos pais, em caráter teoricamente permanente, quanto à sua prole, o que decorre de um dos substratos anteriormente mencionados do princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja o princípio da solidariedade familiar, e também do princípio da paternidade responsável. O exercício desse encargo deve ser pautado fundamentalmente na responsabilidade e na solidariedade familiar. Com efeito, os pais são responsáveis pelos seus filhos menores e, na medida em que estes são marcados pela vulnerabilidade, cumpre àqueles realizar esforços para conferir aos infantes a máxima proteção, haja vista o princípio do melhor interesse do menor e do adolescente.

Quanto à permanência da relação, os elos de filiação são mais estreitos que os matrimoniais, por exemplo, tendo em conta que o desfazimento do vínculo parental é excepcional e indesejável.

Aliás, relativamente à ingerência estatal nas questões de Direito de Família nesse ponto, é a assimetria existente entre as partes da relação de filiação que justifica as intervenções jurídicas com vistas à proteção dos menores indefesos. “Como os filhos menores não estão em condições de se protegerem por si sós, o legislador e o juiz tomam a si o encargo de tutelá-los em face de todos, inclusive dos próprios pais” (MORAES, 2009, p. 195).

É por essa razão, inclusive, que a Constituição prevê proteção à criança e ao adolescente “com absoluta prioridade”, nos moldes da redação do artigo 227 desse texto. De fato, com base no cuidado como valor jurídico, a defesa da prole é uma matéria prioritária ao interesse público, dada a importância da defesa social através do menor e, também, dele como pessoa em fase de desenvolvimento da personalidade, merecedora de dignidade.

Em virtude da exigibilidade de tutela por parte dos pais e da situação de dependência e vulnerabilidade em que os filhos se encontram, é nessa relação que a responsabilidade e a solidariedade familiares encontram sua máxima projeção.

Na falta de tal solidariedade, em que os pais furtam-se de prover as necessidades materiais, morais e afetivas à sua prole, agindo irresponsavelmente, são lesados direitos do estado de filiação, além de desrespeitados deveres expressos nos textos da Carta Maior, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Esse quadro de negligência acarreta prejuízos ao desenvolvimento dos menores, tendo em conta que as assistências materiais, moral e afetiva são pressupostos para o crescimento sadio e equilibrado do indivíduo, bem como de inserção dele no meio social.

Conclui-se, destarte, que na ausência de meios que possibilitem o pleno desenvolvimento dos infantes, restará afetada a sua dignidade, pelo que esta também não se consolida na falta de condições dignas de vida.

É inegável que a omissão paterna em prover afeto ao infante é uma conduta passível de gerar lesão à dignidade daqueles em desenvolvimento da personalidade. Diante disso, há que se verificar acaso esse dano teria condão de ensejar a condenação compensatória a título de danos morais.

Para tanto, utilizar-se-á os mandamentos de ALPA (apud MORAES, 2009, p. 196), reforçados por BODIN DE MORAES (MORAES, 2009, p. 196), relativamente à ponderação dos interesses contrapostos, sempre com a finalidade última de assegurar a dignidade humana, a partir dos princípios que lhe são corolários.

Já ficou estabelecido que o dano moral é a lesão à dignidade em um de seus substratos materiais, e que o sujeito moral tem sua dignidade desdobrada no reconhecimento: i) de que existem demais, iguais a ele; ii) merecedores da mesma integridade psicofísica a que faz jus; iii) e que, embora dotado de liberdade e autonomia; iv) é parte de um grupo social, ao qual tem a garantia de não ser marginalizado e o dever de não marginalizar.

Ao se trazer esses substratos à órbita jurídica, encontramos quatro princípios gerais do Direito que servem de corolários do ordenamento, são eles: i) igualdade; ii) integridade psicofísica; iii) liberdade/autonomia e iv) solidariedade social e familiar.

Haja vista que se resolve adotar o conceito para o qual dano moral será a lesão à dignidade, formada por esses substratos que a compõem; então, acaso alguém atente contra a igualdade, a liberdade, a integridade psicofísica ou a solidariedade social e familiar de outrem, estaremos diante de uma lesão de cunho extrapatrimonial.

Ocorre que, por vezes, no caso concreto, esses princípios podem entrar  em colisão. É o que acontece no caso do abandono afetivo nas relações de filiação. De um lado, estão os genitores, que se fundam no princípio da liberdade/autonomia para justificar a atitude omissiva perante os filhos. Do outro, os filhos que, além de sofrerem lesão quanto à sua integridade psicofísica, no que toca o óbice ao desenvolvimento de suas capacidades físicas e psíquicas em toda a sua completude na falta de uma figura paterna, este no papel de elemento estruturante do indivíduo; também têm o direito à solidariedade familiar afetada, quanto à garantia de não serem marginalizados ante os meios familiar e social.

No caso, os três princípios contrapostos deverão ser ponderados, a partir dos interesses em conflito, em relação a seu fundamento, ou seja, relativamente à própria dignidade humana. Os interesses conflitantes dizem respeito às vontades dos genitores em oposição às necessidades dos infantes.

A fim de realizar a ponderação entre tais empenhos, há que se levar em consideração as peculiaridades das relações estabelecidas entre pais e filhos: a vulnerabilidade dos menores; a responsabilidade dos pais na criação, sustento e educação (em sentido amplo) dos pequenos; a permanência da relação e a ingerência estatal justificada na repercussão social que decorre desse vínculo.

Nesse contexto, é incabível considerar que o princípio de liberdade/autonomia, fundamento da ação omissiva em prover afeto das figuras paternas, prevaleceria em face dos princípios da solidariedade familiar e da integridade psicofísica dos menores, tendo em mente que a figura paterna é imprescindível ao pleno desenvolvimento das aptidões psíquicas e sociais do menor.

Afora disso, ressalte-se que a autonomia privada, na concepção pós-guerra, encontra limites na ordem pública e, sendo a paternidade um múnus público, esse princípio não merece ser invocado para justificar a falta de cuidado e afeto nas relações de filiação.

Assim, ponderando os interesses dos pais em oposição ao dos menores, prevalece o interesse da prole, o que pode vir a justificar uma posterior condenação por danos morais decorrentes de abandono afetivo. De fato, não seria justo que o menor vulnerável viesse a suportar os danos decorrentes da ausência afetiva paterna e que o pai omisso restasse impune. Essa também é a linha de raciocínio de BODIN DE MORAES: Ponderados, pois, os interesses contrapostos, a solidariedade familiar e a integridade psíquica são princípios que se superpõem, com a força que lhes dá a tutela constitucional, à autonomia dos genitores que, neste caso, dela não são titulares. Nesta hipótese, a realização do princípio da dignidade da pessoa humana se dá a partir da integralização do princípio da solidariedade familiar que contém, em si, como característica essencial e definidora a assistência moral dos pais em relação aos filhos menores. Em ausência deste cuidado, com prejuízos necessários à integridade de pessoas a quem o legislador atribui prioridade absoluta, pode haver dano moral a ser reparado.

Diz-se que a reparação é uma possibilidade, pois a ausência paterna pode não gerar qualquer lesão aos menores, existindo ainda outras variáveis, além dessa ponderação, às quais o julgador deve se atentar antes de prover ou negar o pedido indenizatório por abandono afetivo.

A doutrina aponta diversas hipóteses em que a compensação é cabível e outras em que é descartada, tendo em mente os demais elementos da responsabilidade civil, que são a conduta, o nexo de causalidade e o dano injusto. Passamos, portanto à análise desses requisitos.

3.8 Os Requisitos da Condenação a título de Danos Morais Decorrentes de Abandono Afetivo nas Relações Paterno-Filiais

3.8.1 O Pressuposto da Condenação: A existência de uma efetiva relação paterno-filial

Finda a fase de averiguação, em tese, da ressarcibilidade por abandono afetivo, GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA (2002) estabelece o pressuposto necessário ao provimento da ação compensatória, qual seja a efetiva relação paterno-filial.

HIRONAKA (2002) afirma que pouco importa a relação que deu origem à prole, pois, efetivamente, o que deve ser perquirido, a fim de se verificar se cabe ou não indenização a título de dano moral por abandono afetivo, é se há ou não a efetiva existência de uma relação paterno-filial. Entende-se, assim como a autora, que a responsabilização do genitor por abandono afetivo depende de sua consciência da condição de pai, de modo que resta descartada de pronto a hipótese de um filho que venha a pleitear a ação de um pai que não tenha conhecimento do fato de ter se tornado pai ou do acúmulo do pedido de indenização por danos morais em ações investigatórias de paternidade.

Em que pese a lógica desse argumento do ponto de vista processual, entendemos que a reparação nos casos em que o pai não sabia de sua condição de paternidade exclui a possibilidade de reparação na medida em que a culpa na omissão em prover afeto e cuidado é requisito da responsabilidade civil subjetiva nesse ponto, pelo fato de que a culpa na omissão depende da inação consciente relativa a um dever legal prévio, conforme passamos a demonstrar.

3.8.2 Dos Deveres da Condição de Pai: A Conduta Omissiva

O exercício da paternidade tem função estruturante no desenvolvimento da prole. A função do pai pode ser vista por três aspectos: de reprodução (função biológica); de educação (função psicopedagógica) e de transmissão de um nome e um patrimônio (função social).

Ao presente estudo, importa a função psicopedagógica a fim de caracterizar o que seja abandono afetivo ou moral. GISELDA MARIA FERNANDES NOVAES HIRONAKA (2002) disserta acerca do que seja a condição de pai, verificando a amplitude legal desse encargo.

Para tanto, afirma que são três os deveres de que os genitores não podem furtar-se: sustento, guarda e educação, nos moldes do art. 22, ECA. Além desses deveres, ANDERSON SCHEREIBER, antevê como deveres paternos a direção da criação e da educação da prole, pelo que determina o art. 1.634, I, CC e, ainda, o encargo de tê-los em sua companhia e guarda, nos termos do inciso II do mesmo artigo da lei civil. Finalmente, reza o artigo 227 da Constituição Federal que é dever dos pais, do Estado e da sociedade assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, a convivência familiar, além de colocá-la a salvo de qualquer tipo de negligência.

Quanto ao dever de sustento, trata-se da questão patrimonial na relação pai e filho. A maneira de que se reveste o cumprimento desse dever é com a colocação de meios condizentes às necessidades da prole, tendo em vista as possibilidades de que dispõe os genitores. Há quem defenda que encerrariam no dever de sustento os deveres paternos sujeitos à tutela do Poder Judiciário. Ou seja, somente o descumprimento relativo à pensão alimentícia poderia sugerir alguma penalidade ao genitor faltoso. Conceber a tutela jurídica apenas do ponto de vista material aos menores é uma visão reducionista da relação de filiação, além de retrógrada, dado que já enfatizamos a mudança de paradigma no que toca o elo familiar, antes de cunho patrimonialista e atualmente baseado no afeto. É por essa razão que o ordenamento prevê deveres outros, de ordem imaterial, que merecem a tutela jurisdicional assim como os deveres materiais supramencionados.

Em relação ao dever de guarda, é o que diz respeito à manutenção dos filhos em companhia de ambos os pais, salvo nas hipóteses em que, pelo melhor interesse da criança, seja melhor que ela esteja sob a guarda de apenas um ou de outrem, respeitado o direito de visitas. Enfim, devem os pais prover a criação, bem como a educação, de sua prole, como forma de se garantir a ela uma perfeita conformação moral e intelectual. É através da educação e da autoridade familiar que os pais criam um ambiente propício para o desenvolvimento da personalidade dos menores, assegurando-lhes a convivência familiar do imperativo constitucional.

Realmente, HIRONAKA ressalta a importância de que as crianças recebam uma educação condigna e uma noção de autoridade no seio familiar, sob pena de não se ajustarem em outros ambientes sociais. São diversas as atividades diárias que competem aos pais realizar, quanto ao planejamento de refeições, vestes, higiene e transporte dos menores, bem como o auxílio nas questões de saúde e também no ensino de boas maneiras, de educação religiosa, moral, social e cultural.

É na conduta omissiva deste dever de afeto, em sentido amplo, tangido de educação, cuidado e atenção, que se configura o abandono afetivo. Entende-se por conduta “o comportamento humano voluntário que se exterioriza através de uma ação ou omissão, produzindo conseqüências jurídicas”. A omissão é uma atividade negativa, ou seja, é um não-fazer que, em tese, não poderia produzir resultado algum. No entanto, a omissão adquire relevância jurídica quando o omitente tem o dever legal de agir. Tal dever consiste na prática de atos que impediriam o resultado. Caso a pessoa esteja em uma situação jurídica que a obrigue a impedir a ocorrência do dano, e não o faça, ela será responsabilizada pelo evento.

É o caso dos pais omissos em prover afeto e cuidados aos menores. Dada a situação jurídica em que se encontram – de responsáveis pela criação da prole nos moldes do ordenamento -, os encargos da paternidade são deveres legais assumidos pelos genitores, devendo eles impedir a ocorrência de eventos danosos.

Salienta-se que se reconhece a impossibilidade de obrigar um pai a amar seu filho, motivo pelo qual muitos negam a possibilidade da indenização a título de danos morais decorrentes de abandono afetivo. Por essa razão, estabelecemos aqui critérios mais objetivos de cuidado e afeto nas relações parentais. De fato, é impossível que se obrigue alguém a amar outrem. Porém, defendemos que o genitor, consciente de seus deveres legais e de sua responsabilidade no desenvolvimento da integridade psicofísica de sua prole, deve conferir a ela ao menos amparo nas questões relativas à educação e aos cuidados de criação, possibilitando meios para o pleno desenvolver da dignidade dos infantes.

Nesse diapasão, é possível que o Poder Judiciário responsabilize o pai que mal desempenha suas funções, não merecendo prosperar o argumento de que a “falta de prazer” na paternidade o eximiria do seu encargo. Efetivamente, “o interesse por trás da demanda de abandono afetivo, portanto, não é, como muitas vezes se diz equivocadamente, um interesse construído sobre a violação de um dever de amar” (SCHREIBER,2009, p. 179). Há, de fato, o descumprimento de um dever de prover educação, criação e convivência familiar, que faz do abandonado merecedor de tutela.

A conduta omissiva do abandono afetivo, desvinculada da noção de amor, o qual não se pode obrigar, é considerada, na nossa visão, um ato lícito, porém compensável.

Para tanto, adota-se a concepção normativa da culpa, em que há um erro de conduta por parte do agente. A “culpa seria um desvio do modelo de conduta representado pela boa-fé e pela diligência média” (PEREIRA, 2000, p. 211) que lesa direito alheio. É na medida em que o comportamento do agente se afasta de um padrão (standard) de diligência, ganhando a reprovação social, que se verifica a culpa na atuação.

Pelo disposto no art. 186, do Código Civil, aquele que por culpa viola direito e causa dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, está a cometer ato ilícito.

Embora não se possa dizer que exista direito subjetivo ao afeto, que seria requisito para caracterizar a ilicitude do ato paterno, e, por conseguinte, indispensável à responsabilização do genitor, em sede de danos morais é cabível indenização ainda que por ato lícito.

O pai omisso em prover afeto ao seu filho atua, a um primeiro ver, licitamente. Todavia, na medida em que essa atuação se afasta dos padrões de comportamento do homem médio, há um desrespeito ao dever jurídico genérico de não causar prejuízo a outrem, o que deflagra a contrariedade do ato com os standards almejados socialmente. Nesse sentido, é a violação do padrão que enseja a culpa, não havendo necessariamente um direito preexistente ao afeto, mas apenas a caracterização do prejuízo suportado pelo infante, incidindo a noção de dano injusto (que veio a substituir o requisito do ato ilícito).

Além disso, o pai omisso desrespeita deveres expressos de conduta que lhe são atribuídos em decorrência do seu estado parental. Tais deveres o impedem de exercer a paternidade livremente, o que significa dizer que seu múnus público encontra limites de atuação no próprio ordenamento.

Já estabelece, pela teoria do interesse, adotada por nós, que a ressarcibilidade dos danos morais é cabível quando há lesão a interesses ou bens jurídicos dignos de tutela, ponderados os interesses contrapostos, independente da antijuridicidade na atuação. Como os menores e os adolescentes merecem proteção com absoluta prioridade e o abandono afetivo é uma afronta à dignidade dessas pessoas, marcadamente vulneráveis porquanto ainda em estágio de formação das suas capacidades psicofísicas, é certo que seus interesses preponderam diante dos interesses paternos.

Sendo assim, o pai, que se abstém de prover afeto e cuidado à sua prole, deixando de seguir os padrões de diligência do homem médio, estabelecidos no ordenamento, agindo com culpa, ainda que a sua conduta não seja propriamente ilícita, deverá ser responsabilizado, quando tal conduta for idônea a produzir o dano injusto. A idoneidade da conduta à produção do evento danoso é condição do nexo de causalidade, como veremos a seguir.

3.8.3 Nexo de Causalidade entre a Conduta Omissiva e o Evento Danoso

Já se expôs que o Direito Civil brasileiro adotou a teoria da causalidade adequada em sede de Responsabilidade Civil. Para esta teoria, será causa do evento danoso somente aquela que for mais adequada a produzi-lo.

Logo, deverá ser verificado se a conduta omissiva é idônea a produzir danos à pessoa do filho. Nesse mote, importa a perícia técnica avaliar se, a partir dos fatos apresentados e provados, a omissão foi causa adequada à produção da lesão à dignidade do menor, nos seus aspectos psicofísicos e de inserção social e familiar.

A importância do nexo causal dá-se em decorrência da sua habilidade em impedir o regresso das causas ao infinito. É ele quem limita as hipóteses de relação causa/consequência, inviabilizando o provimento de pleitos indenizatórios de danos gerados por outras causas além dos fatos alegados na causa de pedir, ressaltando-se que excluem o dever de indenizar, por quebrarem o nexo de causalidade, o caso fortuito, a força maior e os fatos exclusivos da vítima ou de terceiro.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente estudo busca-se demonstrar que, diante dos novos paradigmas do ordenamento civil-constitucional, principalmente em relação à proteção da dignidade da pessoa humana, tanto o Direito de Família quanto responsabilidade Civil adquiriram novas feições, permitindo a compensação pecuniária por danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações parentais.

A entidade familiar evoluiu de uma relação eminentemente patrimonialista, de cunho econômico, a uma relação baseada no afeto, na solidariedade e na vontade de mútua constituição de uma história em comum. Nesse novo contexto, ganhou maior apreço a figura da prole, marcadamente vulnerável, por serem sujeitos ainda em fase de crescimento, desenvolvendo suas capacidades psicofísicas e sociais no seio familiar.

Diante disso, o Direito de Família teve que se adaptar, o que resultou na ampliação de normas dessa matéria no ordenamento jurídico brasileiro, e também na criação de princípios próprios que norteiam a sistemática do ramo. De fato, a Constituição Federal de 1988, o Código Civil de 2002 e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA -, Lei n°. 8.069 de 1990, passaram a tratar incisivamente das questões familiares, sobretudo acerca da relação de responsabilidade que se dá entre pais e filhos, pautados nos princípios da dignidade da pessoa humana, da afetividade, da paternidade/maternidade responsável e do melhor interesse do menor e do adolescente.

A Lei Maior de 1988 foi um marco na história jurídica brasileira, pois representou a mudança de paradigma na interpretação das leis de todo o sistema. Afirma-se isso, pois na atual sistemática a dignidade da pessoa humana ganhou o papel de fundamento do nosso Estado Democrático de Direito Brasileiro, sendo o novo parâmetro interpretativo do sistema de normas brasileiras. Por esse novo enfoque, entende-se que as relações patrimoniais sucumbiram em prol das relações existenciais, passando a ser a tutela das pessoas a prioridade das nossas leis.

Assim, o paradigma atual do ordenamento, que atinge inclusive a Lei Civil, é a dignidade da pessoa humana e a sua proteção, sendo essa orientação que confere unidade valorativa a todas as regras estatais.

Nesse quadro, as crianças e os adolescentes ganham destaque, por serem indivíduos que ainda estão em desenvolvimento de suas personalidades. Isso porque o ordenamento confere proteção prioritária à dignidade dos menores, porquanto frágeis e vulneráveis. E, sob a nova ótica civil-constitucional, todo o regramento orienta-se no sentido de prover aos infantes a tutela prioritária, tendo a figura paterna/materna ganho função estruturante ao desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, o que repercute na esfera individual da prole, assim como na esfera social em que ela convive.

Com efeito, crianças que crescem em ambiente permeado de afeto e cuidado têm possibilidades maiores de bem desenvolverem sua psique, o que implica em indivíduos mais aptos a conviverem em sociedade. Dessa feita, o ordenamento passou a encarar a paternidade/maternidade como um múnus público dos genitores, tendo em conta a defesa da ordem social a partir da criança.

Relativamente à Responsabilidade Civil, esta também sofreu mutações a partir do novo paradigma civil-constitucional, pautado nas relações existenciais. Desse modo, a Constituição Federal de 1988 deu fim às discussões acerca da reparabilidade de danos que não fossem patrimoniais, prevendo no artigo 5°, incisos V e X, que é assegurada a indenização por danos morais.

Embora já não restem mais dúvidas de que os danos morais, melhor denominados como danos à pessoa, são compensáveis, ainda hoje subsistem controvérsias sobre o conceito desses danos e de quais sejam os passíveis de indenização.

O problema da identificação da qualidade dos interesses que merecem tutela jurídica acarreta na falta de técnica na aplicação do instituto tutelar. Em função da falta de demarcação científica dos danos indenizáveis, estes vêm sendo criados pelo senso comum, o que gera duas situações indesejáveis. De um lado, pode haver a multiplicação de ações indenizatórias desmesurada; e por outro, pode ocorrer do mecanismo de tutela tornar-se inócuo em função do temor pela banalização dos danos morais. Assim, a Responsabilidade Civil precisa ser mais bem elaborada, sob pena de cometer incertezas e injustiças aos jurisdicionados.

A partir da análise das construções doutrinárias que tratam do conceito de danos morais, verificamos que existem quatro. São eles: a) danos morais como danos nãopatrimoniais; b) danos morais como os efeitos da lesão, ou seja, o mal evidente e o sofrimento; c) danos morais como lesão a direitos da personalidade e d) danos morais como lesão à dignidade humana em ao menos um de seus substratos materiais.

Após analisar cada um deles, acura-se que o último conceito, que liga a lesão à dignidade humana em ao menos um de seus substratos materiais, é o mais pertinente, tendo em vista as vantagens dessa concepção, além de ser mais coerente com o escopo do ordenamento brasileiro, cuja prioridade é a pessoa humana.

Por substrato material da dignidade, entende-se como o desdobramento que segue: “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele; ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não ser marginalizado”

Transportando à esfera jurídica essa noção de dignidade, determinam-se os corolários do princípio da dignidade. São eles: o princípio da igualdade, da integridade psicofísica, da liberdade/autonomia e da solidariedade social ou familiar.

Assim, sendo o dano moral considerado como lesão à dignidade em algum de seus substratos materiais, averiguamos que medidas que atentem contra a igualdade, a integridade psicofísica, a liberdade e a solidariedade social ou familiar acarretam na possibilidade de reparação a título de danos.

Ocorre que, em alguns eventos, tais princípios podem entrar em colisão, tendo ambas as partes interesses contemplados no ordenamento. Nesses casos, resta realizar a ponderação dos interesses em jogo à luz dos princípios constitucionais a fim de verificar aquele que seja preponderante, indicando se passível de reparação os danos à pessoa, uma vez que considerado o dano injusto, ou se incabível a compensação, por não ser injusto o dano, a depender do caso concreto.

Nesse sentido, “o dano será injusto quando, ainda que decorrente de conduta lícita, afetando aspecto fundamental da dignidade humana, não for razoável, ponderados os interesses contrapostos, que a vítima dele permaneça irressarcida” (MORAES, 2009, p. 247). Diante disso, trazendo à baila o caso do abandono afetivo nas relações de filiação, entendemos ser cabível a indenização por danos morais a esse título.

Em primeiro lugar, identifica-se que a Responsabilidade Civil incide no Direito de Família, tendo em conta que ao primeiro ramo não escapam as relações existenciais e o segundo ramo é marcado pela solidariedade e pela responsabilidade entre seus membros.

Em segundo lugar, analisa-se as peculiaridades da relação que se estabelece entre pais e filhos, marcada pela assimetria entre os pólos do enlace, pela permanência do vínculo e pela ingerência estatal legítima nesse elo. Sendo o poder familiar um múnus público e o exercício da paternidade/maternidade determinante ao desenvolvimento das capacidades da prole, marcada pela dependência e vulnerabilidade, não poderia o genitor alegar que a ele não seja dado o dever de prover afeto e cuidado aos filhos, fundado no princípio da liberdade/autonomia, vez que este encontra limites na solidariedade familiar e na integridade psicofísica dos menores, princípios mais caros ao interesse social no caso.

Realmente, o interesse da prole nessa colisão prepondera, haja vista as peculiaridades da relação e a importância da defesa da ordem social a partir das crianças. Assim, conclui-se pela possibilidade de reparação a título de danos morais por abandono afetivo nas relações parentais.

É uma possibilidade, pois no caso concreto existem outras variáveis a serem analisadas, sob a ótica das noções gerais da Responsabilidade Civil, de que depende a condenação. São elas: o pressuposto, a conduta e o nexo de causalidade.

O pressuposto da condenação é de que haja, de fato, uma efetiva relação de filiação. Ou seja, o genitor somente poderá ser condenado se, sabendo da sua condição de pai, agiu negligentemente no que toca à provisão de afeto e cuidados ao infante.

Em relação à conduta que considera-se adequada a causar lesão (caracterizando o nexo causal), vislumbra-se que seja o mau desempenho das funções psicopedagógicas, além da negligência em proporcionar cuidados de criação, educação e convivência familiar em ambiente propício ao menor, de acordo com as possibilidades do genitor e das necessidades do menor.

Estando presentes tais requisitos, conclui-se finalmente que a sistemática normativa hodierna permite a compensação em pecúnia a título de danos morais decorrentes do abandono afetivo nas relações parentais.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGUIAR DIAS, José de. Da Responsabilidade Civil. XI ed., revista, atualizada e ampliada de acordo com o Código Civil de 2002 por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução da 5ª ed. alemã por Virgílio Afonso da Silva. Malheiros: São Paulo, 2008.

ALVES, Eliana Calmon. Responsabilidade Civil no Direito de Família. Disponível em: http://bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/353/4/Responsabilidade_Civil_Direito.pdf. Acesso em 16/10/2009.

ANGELUCI, Cleber Affonso [1]. Amor tem preço? In.: Revista CEJ, n. 35, p.47-53, out./dez. Brasília: 2006.

_________. [2]. Abandono Afetivo: considerações para a constituição da dignidade da pessoa humana. In.: Revista CEJ, n. 33, p. 43-53, abr./jun. Brasília: 2006.

_________. [3]. O valor do afeto para a dignidade humana nas relações de família. Revista Jurídica, n. 331, p. 75-85, mai., 2005.

BODIN DE MORAES, Maria Celina. [1] Danos Morais em família? Conjugalidade, Parentalidade e Responsabilidade Civil. In.:A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

_________. [2] A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a responsabilidade civil. In.: Direito, Estado e Sociedade – v.9, n. 29, p. 233 – jul/dez 2006. Disponível em: http://publique.rdc.puc-rio.br/direito/media/Bodin_n29.pdf Acesso: 15/02/2013.

_________. [3] Danos à pessoa humana: uma abordagem civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

_________. [4] Deveres Parentais e Responsabilidade. In.: Repertório de Jurisprudência IOB, 1ª quinzena de fevereiro de 2009, no. 03/2009, v. III.

_________. [5] Afeto, ética, família e o novo Código Civil brasileiro: anais do IV Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 399-415.

BOFF, Leonardo. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. Petrópolis, Vozes: 2003

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: Revista dos Tirbunais, 2010.

DINIZ, Maria Helena. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2009.

BRASIL. STF. RE n° 567.164/MG, Rel. Min. Ellen Gracie, publ. em 02/06/2009.

_________. STJ. REsp n. 757.411/MG, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julgado em 29/11/2005.

__________. STJ, AG n°. 633.801, Rel. Min. Fernando Gonçalves, julg. em 14/02/2005.

__________. Comarca de Capão da Canoa, Rio Grande do Sul. Processo n°. 141/1030012032-0, julgado em 16/09/2003.

__________. TJMG, 7ª C.C., AP 408.550, Rel. Juiz Unias Silva, julg. em 1°/04/2004.

__________. TJRJ, AC 2004.0001.13664, 4ª C. Cível, Rel. Des. Mário dos Santos Paulo, julgado em 08/09/2004.

CAHALI, Yussef Said. Dano moral. 2 ed. rev. Atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

CANEZIN, Claudete Carvalho. Da reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial. In.: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 36, p. 71-87, jun/jul, 2006.

CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 8ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Atlas, 2009.

DIAS, Maria Berenice. A ética na jurisdição de família. In.: A Ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

__________. Síndrome da alienação parental, o que é isso? Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=463. Acesso: 18 de novembro de 2008.

FERREIRA, Alcionir Urceno Aires. O princípio da afetividade e a reparação civil por abandono filial. In.: Revista Jurídica Consulex, v. 12, n. 272, p. 59-63, maio 2006.

GOMES, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In.: Estudos em homenagem ao Professor Sílvio Rodrigues. Prefácio e organização José Roberto Pacheco Di Francesco. São Paulo: Saraiva, 1989.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume VI: Direito de Família. 5ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008.

GROENINGA, Gisele Câmara. O Direito à integridade psíquica. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=192. Acesso: 04/01/2013.

HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, coordenadora. Direito e Responsabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2002.

__________. Pressuposto, Elementos e Limites do Dever de Indenizar por Abandono Afetivo. In.:A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

__________. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva na relação entre pais e filhos – além da obrigação de caráter material. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=289. Acesso: 04/01/2013.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. Tradução: Leopoldo Holzbach. São Paulo: Martin Claret, 2005.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. [1] A repersonalização das relações de família. Revista brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, v. 6, n. 24, jun/jul 2004.

__________.[2] Danos morais e direitos da personalidade.página 1 Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4445. Acesso em 16/07/2009.

__________. [3] Entidades familiares constitucionalizadas: para além do numerus clausus. In.: Rodrigo da Cunha Pereira (Coord.) Família e cidadania. O Novo CCB e a vacatio legis.

Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Belo Horizonte. IBDFAM/ Del Rey, 2002.

MADALENO, Rolf. Dano Moral na investigação de Paternidade. Disponível em: http://www.rolfmadaleno.com.br/site/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=29. Acesso em: 10/02/2013.

MARIA DA SILVA, Cláudia. Descumprimento do dever de convivência familiar e indenização por danos à personalidade do filho. In.: Revista de Brasileira de Direito de Família, v. 6, n. 25. Porto Alegre: Síntese, IBDFAM, ago/set, 2004. p. 122-147.

MARTINS-COSTA, Judith. Os danos à pessoa e a natureza de sua reparação. In.: A Reconstrução do Direito Privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais constitucionais no direito privado. Judith Martins-Costa (org.) São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 408-446.

MENEZES DA COSTA, Maria Aracy Menezes da. Responsabilidade Civil no direito de família. In.: ADV. Advocacia dinâmica: seleções jurídicas, n. 2, p. 27-31, fev. 2005.

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade Civil. 9ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha [1]. Princípios fundamentais para o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

_________. [2]. Pai, Por que me Abandonastes? In.:Temas Atuais de Direito e Processo de Família – Primeira Série. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004.

_________. [3] Direito de família: uma abordagem psicanalítica. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

PEREIRA, Tânia da Silva. O cuidado como valor jurídico. In.:A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e

Rodrigo da Cunha Pereira. p.231-256. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

PEREIRA DA COSTA, Maria Isabel Pereira da. A responsabilidade civil dos pais pela omissão do afeto dos pais em relação aos filhos. In.: Revista jurídica, Porto Alegre, v. 56, n.368, p.45-69, jun. 2008.

RODRIGUES, Sílvio. Responsabilidade Civil. 12ª edição, v. 4. São Paulo: Saraiva, 1989.

SANTOS, Antônio Jeová. Danos Morais Indenizáveis. 2ª ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Lejus, 1999.

SCHREIBER, Anderson. Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil: Da erosão dos filhos da reparação à diluição dos danos. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009.

SERPA LOPES, Miguel Mário de. Curso de Direito Civil. 8° ed, VI. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996.

STEIN, Thais Silveira. O Estabelecimento da paternidade e a dignidade da pessoa nas Relações Familiares. In.: A ética da convivência familiar e sua efetividade no cotidiano dos tribunais. Coordenação: Tânia da Silva Pereira e Rodrigo da Cunha Pereira. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

STOCCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil. 5ª ed. São Paulo: RT, 2001.

TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Responsabilidade Civil e ofensa à dignidade humana. In.: Revista de Direito de Família, v. 7, n. 32, p. 138-158, out/nov, 2005.

TEPEDINO, Gustavo. [1] A tutela da personalidade no ordenamento civil-constitucional brasileiro. In.: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.

__________. [2] Novas Formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimonio. In.: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

VARELA, João de Matos Antunes. Direito de Família. In.: Czajkowoski, Reiner. União Livre à luz das Leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1997


Notas

[1] DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias . 4. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.409.

[2] Vade Mecum / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de  PINTO  Antonio Luiz de Toleto; WINDT, Marcia Cristina Vaz dos Santos e CESPEDES, Lívia.  – 11. ed atual e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2013.


Autor


Informações sobre o texto

Trabalho de Curso apresentado à Coordenadoria de Pesquisa da Faculdade de Direito da ITAUNA -Universidade de Itaúna – Campus em Almenara, com exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do professora Isméria Espindula Abdala

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUTO, Pacífico Ferraz. Relações paterno-filiais e os danos morais decorrentes do abandono afetivo dos pais. Como o Judiciário pode intervir nessas relações entre pais e filhos e qual o dano cabível. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4825, 16 set. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/35433. Acesso em: 28 mar. 2024.