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Colaboração premiada: o perdão judicial como direito subjetivo do colaborador

Colaboração premiada: o perdão judicial como direito subjetivo do colaborador

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Objetiva-se demonstrar que a colaboração premiada, sendo um acordo entre Estado e indvíduo infrator, deve dar amplitude a direitos e garantias individuais. Neste sentido o perdão judicial deve ser considerado direito subjetivo do colaborador.

Por força da recente investigação da Polícia Federal, a chamada Operação Lava Jato, são rotineiras as inúmeras referências a respeito do instituto da delação premiada (colaboração premiada nos termos da lei) nos noticiários, instituto este que tem sido de grande relevância para a evolução das investigações.

De maneira geral, o que vem sendo noticiado é que tal instituto representa um benefício a ser concedido para o investigado em troca de informações sobre as infrações penais praticadas.

Em que pese pareça ser um conceito simples, são de grande controvérsia no cenário jurídico os contornos da colaboração premiada.  Questões como o momento de sua propositura, a necessidade ou não de haver espontaneidade na delação, além dos próprios benefícios a serem concedidos em contrapartida às informações prestadas pelo delator remetem a grandes debates de ordem prática.

O objetivo deste ensaio é explicitar de maneira geral os direitos e deveres das partes envolvidas neste acordo de colaboração. Esta bilateralidade é de suma importância considerando que direitos fundamentais, tais como o direito de liberdade, estarão sendo “negociados”.

Sendo assim, o que o Estado como detentor exclusivo da persecução penal pode esperar com a atuação do colaborador e, na via inversa, quais direitos o colaborador pode esperar receber do Estado, sem margens ao subjetivismo e, ao final, concluir que o perdão judicial representa um direito subjetivo do colaborador.

O ponto de partida está na Lei 12.850/13 que em seu artigo 4º estabelece requisitos de ordem objetiva (relacionadas com o fato) e requisitos de ordem subjetiva (relacionadas com o agente colaborador) para a concessão da colaboração premiada. Note que não há juízo de oportunidade para a concessão ou não da colaboração premiada sendo certo que, preenchido tais requisitos, a sua concessão se impõe.

São requisitos de ordem objetiva as informações prestadas pelo colaborador que resultem em um ou mais dos seguintes resultados: identificação de coautores e partícipes, revelação da estrutura hierárquica da organização criminosa, a prevenção de infrações penais, a recuperação do proveito das infrações penais ou, ainda, a localização de vítimas. Os requisitos objetivos não são cumulativos, ou seja, basta a existência de apenas um deles para considerar tal requisito como preenchido.

Somado com os requisitos objetivos, aplicam-se os requisitos subjetivos que, por sua vez, são cumulativos, quais sejam: a análise da personalidade do colaborador, natureza, circunstâncias, gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a própria eficácia da colaboração.

A depender dos termos da colaboração premiada, também serão aplicáveis as disposições da Lei 9.807/99, adicionando-se a primariedade do delator como um dos requisitos subjetivos.

Com esta breve análise, resta claro que há um direito conferido ao Estado em ver realizado algum dos requisitos objetivos (resultados) advindos da colaboração premiada. Obviamente, os requisitos subjetivos servem para balizar o Estado para a realização ou não deste acordo, porém sem interpretá-los de forma a qualificar o “grau de cumprimento” dos requisitos objetivos.

Ultrapassado este ponto, cabe analisar os direitos do colaborador.

Vale destacar que o colaborador está em posição delicada ao firmar um acordo neste sentido. Primeiramente porque ao delatar companheiros e demais pessoas envolvidas em infrações penais, o sujeito poderá ser alvo de sanções “extrajurídicas”.

Não se trata aqui de uma análise moral sobre uma possível traição a seus colegas. Ao contrário, trata-se de uma análise pragmática em que estes tipos de sanções podem realmente ocorrer prejudicando não apenas o colaborador em si, mas também sua família, seus bens dentre outros.

Além disto, o colaborador é notadamente o elo mais fraco da persecução penal e deve ter todos os seus direitos e garantias fundamentais (liberdade, ampla defesa dentre outros) preservados. A preservação dos direitos e garantias fundamentais do colaborador, mormente a sua liberdade, dignidade e ampla defesa são imprescindíveis para que o acordo de colaboração atinja seus objetivos.

Importante frisar que, como é cediço, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo e, sem a colaboração premiada, o Estado estaria obrigado a promover toda a investigação de forma mais lenta e custosa. O objetivo então da colaboração premiada é justamente ter esta relação de ganhos mútuos. Se apenas o Estado sair com vantagens, não há como afirmar que o objetivo da colaboração premiada tenha sido cumprido.

Esta introdução a respeito da posição do colaborador é essencial para concluir que a preservação de direitos e garantias fundamentais somente irá ocorrer se não houver margem de subjetivismo, ou seja, discricionariedade estatal capaz de somente colher sua parte do acordo e não conceder ao colaborador a devida benesse por sua postura.

Estas benesses estão estabelecidas na lei da seguinte forma: “O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos (...)”.

Com todo respeito ao legislador, não se pode admitir o uso da expressão “poderá conceder”. Ora, se o colaborador exerceu a sua parte do acordo de colaboração premiada, a expressão correta deveria ser “deverá conceder”. É um direito subjetivo do colaborador ser agraciado com o benefício legal e não mero juízo de possibilidade.

Em caso análogo, o artigo 89 da Lei 9.099/95, que trata da suspensão condicional do processo mediante o preenchimento de determinados requisitos, também contém a expressão “poderá propor a suspensão do processo”. Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do HC 131.108-RJ considerou que a expressão “poderá” deverá ser lida como “deverá” dado que tal suspensão é um direito subjetivo do réu desde que preenchidos os requisitos legais, eliminando o subjetivismo.

Em outro caso ainda, com relação à Lei de Drogas, em seu artigo 33, §4º, que estabelece a hipótese de redução de pena para o crime de tráfico quando o agente for primário, de bons antecedentes e não se dedique a atividades criminosas e nem integre organizações criminosas (tráfico privilegiado), fez-se uso da expressão “as penas poderão ser reduzidas”. Na mesma esteira, a jurisprudência dominante considera que preenchidos os requisitos legais, o magistrado “deverá” aplicar a causa de redução de pena e não ficar sob seu arbítrio aplicar ou não o redutor.

Que as benesses da lei devem ser compulsoriamente concedidas não resta maiores dúvidas. Contudo, note que a lei cita três tipos de benefícios: o perdão judicial, redução da pena em 2/3 (dois terços) e a conversão da pena restritiva de liberdade por restritiva de direitos.

Estariam estas benesses a serem concedidas ao arbítrio do juiz? Não nos parece o mais adequado, pois não cabe ao magistrado renunciar o direito à punição (jus puniendi) a seu livre arbítrio dado que este direito não lhe pertence. Ao contrário, a renúncia ao direito de punição deve acontecer apenas e tão somente nos casos autorizados por lei.

Ainda, a Constituição Federal veda tratamento desigual entre cidadãos na aplicação da lei. Sendo assim, não há como admitir que diferentes colaborações premiadas tivessem diferentes tratamentos por conta de a benesse ser concedidas ao livre arbítrio do juiz.

Na fase atual do pensamento jurídico, os operadores do Direito devem buscar a maior amplitude possível na aplicação dos direitos e garantias fundamentais.

Neste sentido, a única das benesses previstas capaz de maximizar a aplicação dos direitos fundamentais de liberdade e dignidade da pessoa humana é justamente o perdão judicial.

Por perdão judicial, devemos entender o poder dever conferido ao magistrado em não aplicar a pena prevista para a infração penal levando em consideração o cumprimento pelo réu de formalidades legais (neste caso, os requisitos objetivos e subjetivos da colaboração premiada). O perdão judicial é, inclusive, causa de extinção da punibilidade conforme o Código Penal.

Autores de peso, tais como Damásio de Jesus [1] já lecionam que a liberdade é um direito público subjetivo do acusado, neste caso, o colaborador. Satisfeitos os requisitos legais o juiz está obrigado a deixar de aplicar a pena e extinguir o direito de punição – mero resultado de observância da lei e maximização dos direitos fundamentais.

Fixado o acordo e, considerando que o perdão judicial se impõe, não há que se falar em prisão cautelar no curso do processo penal (afinal não cabe prisão cautelar se não há aplicação de pena), sendo certo que o réu-colaborador deverá ser mantido em liberdade.


[1] JESUS, Damásio de. Perdão judicial e colaboração premiada: análise do art. 13 da Lei 9.807/99 - primeiras idéias. Boletim IBCCRIM, n. 82, set. 1999. 


Autor

  • Paulo Henrique Gomiero

    Especialista em Direito Tributário pelo IICS - Instituto Internacional de Ciências Sociais<br>L.L.M. em Direito Tributário pelo INSPER - Instituto de Ensino e Pequisa.<br><br>Advogado em São Paulo, atuante em Risk Compliance

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