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A redemocratização: a conservação dos direitos sociais e a contribuição dos setores da sociedade civil na conquista de direitos no período de 1946 a 1964

A redemocratização: a conservação dos direitos sociais e a contribuição dos setores da sociedade civil na conquista de direitos no período de 1946 a 1964

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O texto constitucional de 1946 alargou as conquistas sociais, mas seu legado positivo, resultado da aceleração dos preceitos progressistas, foi mitigado pelos efeitos conservadores dos dispositivos reacionários.

1 Introdução

Em janeiro de 1946, ano em que se promulga o novo texto constitucional brasileiro, o general Eurico Gaspar Dutra assume o comando do País, no início de uma fase que pode ser considerada a de nossa primeira experiência democrática.

O período de 1946 a 1964 representa uma construção formidável no que toca à garantia dos direitos civis e políticos e à manutenção das conquistas sociais alcançadas. De fato, até 1964, apenas a título exemplificativo, houve liberdade de imprensa e de organização política e eleições regulares para diversos cargos eletivos, o que deriva da busca, pelo regime inaugurado, em tornar realidade os valores da democracia.

  O presente artigo volta-se a captar a contribuição dos setores organizacionais da sociedade civil na conquista de direitos sociais no período da redemocratização (1946-1964). Na esteira da Constituição de 1946, o papel dos múltiplos setores sociais no processo de amadurecimento democrático e o grau de organização e amplitude que esses novos atores políticos alcançam constituem, neste ponto, o objeto de estudo.


 2 A Constituição de 1946

Em 18 de setembro de 1946, promulga-se nossa quinta Constituição. Afastando-se explicitamente do teor autoritário constante da Carta do Estado Novo, é perceptível sua forte inclinação à tradição liberal. Optou-se pelo regime democrático-liberal, embora houvesse certos dispositivos que atendiam aos interesses conservadores dos partidários do modelo corporativista.

O liberalismo constante da Constituição de 46 nasceu de uma manifestação nacional de repúdio ao Estado Novo, regime de arbítrio que, desde o golpe de 1937, “paralisara a vida constitucional do País, sujeitando a Nação a uma ditadura pessoal de inspiração fascista e totalitária, inconciliável oito anos depois com a sorte da causa aliada na Segunda Grande Guerra Mundial”. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p. 135).

O novo texto constitucional define o Brasil como uma República Federativa, estabelecendo relevante autonomia para os Estados e Municípios e definindo as competências dos entes federados. Fixando-se as prerrogativas dos três Poderes, buscava-se devolver ao Legislativo e ao Judiciário as atribuições que lhes foram roubadas pela Carta de 1937.

O teor liberal banha a Constituição de 1946, cuja ideia central é restabelecer a tripartição e a paridade dos três Poderes da República como forma de restaurar a dignidade e a efetividade do regime democrático, deixado às sombras pela ditadura que havia vigorado. Consagram-se o sistema presidencialista de governo, o voto secreto e universal para maiores de 18 anos, excetuando-se soldados, cabos e analfabetos, e a preservação da estrutura de propriedade da terra, protegendo-se os latifúndios. Seguindo essas reflexões, Paes de Andrade e Paulo Bonavides (1991, p. 415) resumem que:

A Carta de 1946 recuperou com decisão o princípio federativo, estabelecendo uma valiosa autonomia para os Estados e Municípios. Além da liberdade de culto, estabeleceu-se a total liberdade de pensamento, limitada apenas no que dizia respeito aos espetáculos e diversões públicas. As liberdades e garantias individuais não podiam ser cerceadas por qualquer expediente autoritário, estando a aprovação do estado de sítio reservada unicamente ao Congresso Nacional, novamente composto pela Câmara e pelo Senado Federal, tendo os membros da primeira o mandato de 4 anos, e os senadores de 8 anos. A organização partidária era livre, apesar de que a ressalva que impedia a organização, registro ou funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrariasse o regime democrático, se tenha mostrado contraditória.

No mesmo contexto, no que atine aos valores da cidadania, lembra Fausto (2004, p. 400) que o direito e a obrigação de votar foram outorgados aos brasileiros alfabetizados, maiores de dezoito anos, de ambos os sexos. “Completou-se, assim, no plano dos direitos políticos, a igualdade entre homens e mulheres. A Constituição de 1934 determinava a obrigatoriedade do voto apenas para as mulheres que exercessem função pública remunerada”.

Dois dispositivos demonstram alguns aspectos que se extraem do texto. O primeiro – art.141, § 16 – representa uma garantia para o elemento conservador em matéria de direto de propriedade, assentando-se que, a partir de então, exigir-se-á justa e prévia indenização em dinheiro no que toca a desapropriações, o que retrata uma concessão às forças agrárias dominantes, ainda tão bem representadas na conjuntura política vigente.

Outra disposição restritiva também se acrescentou ao artigo 146, no que se refere à “intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, quando se lhe deu por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais assegurados na Constituição”. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.418).

Finalmente, um dos melhores aperfeiçoamentos introduzidos pela nova Constituição encontra-se no dispositivo consoante o qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual”, intitulado por Pontes de Miranda (apud MEDINA, 2005, p.44) de princípio da ubiquidade da Justiça, mais bem conhecido como princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, plasmado, em nosso atual texto constitucional, no art.5º, XXXV.


3 O aspecto social

Já é possível aferir, neste ponto, que o constitucionalismo social brasileiro, em sua evolução histórica, jamais operou eliminando conteúdos das declarações de direitos consignadas nas Cartas anteriores ou suprimindo conquistas e garantias até então conquistadas, obrando, ao contrário, majoritariamente, por meio de um processo de conservação dos direitos antecedentes e inspiração de novos direitos imediatamente vindouros.

A Constituição de 1946, nesse diapasão, compromete-se com a estrutura formalmente implantada pelo Estado social brasileiro, inaugurado de maneira concreta pelo governo provisório de Vargas. O liberalismo, seu alicerce, não empana a enorme relevância de seus preceitos revestidos de teor social, os quais, agora, enfatizar-se-ão.

O capítulo sobre a ordem social e econômica definiu os critérios de aproveitamento dos recursos minerais e de energia elétrica. Estabeleciam-se os benefícios mínimos que a legislação deveria garantir e previa-se, pela primeira vez, a participação obrigatória dos trabalhadores nos lucros das empresas. (FAUSTO, 2004, p.400). Somado a isso, acolhiam-se o direito de greve e a aposentadoria facultativa do funcionário com 35 anos de serviço, previa-se a inserção da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário e instituía-se o repouso semanal remunerado.

Determina a Constituição Federal que a ordem econômica deve pautar-se segundo a “justiça social”, assegurando a todos os indivíduos “trabalho que possibilite existência digna”, elevando-o a “obrigação social”. Vincula-se o uso da propriedade ao “bem-estar social”, proclama-se “assistência aos desempregados”, determina-se “indenização ao trabalhador despedido”, amplia-se o sistema previdenciário às “vítimas da doença, da velhice, da invalidez e da morte” e reconhece-se a “livre associação profissional ou sindical”. O texto impõe que a educação inspire-se “nos princípios da liberdade e nos ideais da solidariedade humana” e insere o “amparo à cultura” como tarefa do Estado.

No tocante às matérias sobre a organização dos trabalhadores, depreende-se que os constituintes volveram-se ao sistema corporativista do Estado Novo. Não se extirpou o imposto sindical, e uma regra contraditória estabelecia a liberdade de associação profissional ou sindical desde que “reguladas por lei a forma de constituição, a representação legal nos contratos coletivos de trabalho e o exercício de funções delegadas pelo poder público”, o que reflete a noção de sindicato como órgão de colaboração com o Estado. Mantinha-se, desse modo, o poder estatal para intervir na vida sindical. (FAUSTO, 2004, p.401).

Na mesma visão, afirmam Costa e Mello (1999, p.330): “A estrutura sindical de cunho fascista foi mantida, embora algumas inovações progressistas tivessem sido aprovadas, como a implantação de um sistema tributário que fixava taxas mais altas para os detentores de maiores rendas”.

Outra inovação relevante do texto constitucional, a respeito da matéria social, depreende-se das disposições atreladas à vinculação obrigatória da renda tributária à ajuda econômica que a União deveria conceder a regiões praticamente esquecidas por nossos legisladores, celeiras de mazelas sociais e de desigualdades econômicas preocupantes, que passariam, em tese, a despertar os governantes para a realidade fática, especialmente na Amazônia e no Nordeste. Com efeito:

O Nordeste ficava, pois, altamente aquinhoado pela Constituição de 1946, como área de convergência de recursos federais, num montante de quatro por cento da renda tributária da União e que deveriam ser aplicados, planejadamente, já através de obras e serviços de assistência econômica e social – para fazer face aos calamitosos efeitos da seca – já mediante uma ação de envergadura, tendente ao aproveitamento do potencial econômico da bacia do São Francisco. [...] e o art.199 da Constituição de 1946 ministrava à Amazônia tratamento quase tão privilegiado quanto aquele que se concedeu ao Nordeste. Dispunha sobre a execução de um plano de valorização econômica daquela região, na qual seriam aplicadas durante pelo menos vinte anos consecutivos quantias não inferiores a três por centro da renda tributária da União. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.419).

É sintomático que o Estado social de direito, no interregno de 1946 a 1964, alargava suas conquistas, e, em que pese a forte tradição liberal candente, a tese social – atrelada às promessas de bem-estar e segurança material –, mera miragem no texto imperial, vindoura, mas descuidada em 1891, alimentada e crescida em 1934, ganhava mais consciência e amadurecia em 1946, ainda que num ambiente que insistia em inviabilizar-lhe a maioridade.


4 Estado liberal ou Estado social? Os conflitos inevitáveis e a inefetividade de direitos

O elemento conservador presente no liberalismo-democrático em que se lastreava o novo texto fundamental possuía instrumentos constitucionais aptos a obstar a atuação dos que desejavam o mínimo que fosse de aceleração da transformação social.

De fato, é nítido que o constituinte de 1946 buscou a harmonização das disposições naturais do Estado social com os preceitos liberais tradicionais. Havia uma esperança de conseguir um “compromisso de bom senso realista, uma trégua institucional entre as forças de renovação e as de conservação”. Com o texto constitucional, revela-se inequívoco que existia uma busca de alcançar um meio termo entre princípios tradicionalmente antagônicos, entre valores que, no temor de se verem perdidos pela conjuntura vigente, haveriam de ter os efeitos, advindos de sua natureza desarmônica, atenuados. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991).

No entanto, mais uma vez em nossa história, deram-se mostras de que a consignação de uma declaração de direitos em um texto, a mais avançada que seja, é incapaz, por si só, de prover as modificações a que se destina sua produção. Em outras palavras, evidenciou-se a dificuldade de realizar direitos e concretizar valores tão-somente introduzindo um novo ordenamento jurídico. Uma Constituição, isolada, não é capaz de garantir os princípios que seu texto busca materializar, mormente se constatado o enorme abismo entre as normas e a realidade a elas subjacente.

O texto constitucional de 1946 alargou as conquistas sociais que lhe antecederam, mas encontrou, ao mesmo tempo, uma maneira de furtar-se a sua efetividade, a fim de evitar a aceleração paulatina das mudanças sociais que poderiam radicalizar-se e culminar prejudicando os interesses continuístas que ainda se desejavam resguardar.

Viu-se que a nova Constituição acolheu o direito de greve, tão almejado pelos movimentos operários do período. Contudo, é aqui que reside uma das restrições mais severas ao exercício da liberdade, já que se reconhecia tal direito com a ressalva de que este se faria segundo a regulamentação da lei e mediante a autorização da Justiça do Trabalho.

Logo que assumiu o poder, nessa linha, o general Dutra baixou o Decreto-lei 9.070, regulamentando o direito de greve e definindo as atividades consideradas essenciais, nas quais a paralisação não seria permitida. Era tamanho o rol dessas atividades que praticamente todas as greves do período, uma vez deflagradas, considerar-se-iam ilegais e abusivas. Esse Decreto permaneceu ao longo dos anos, e a democratização “ficou assim a meio caminho quando se tratava de direitos dos trabalhadores”. (FAUSTO, 2004, p.402). Nesse diapasão, afirmam D´Araujo e Soares (1994, p.90) que:

Dutra logo revelaria o caráter do seu governo. Assim, diante da onda de greves que aumentava desde a redemocratização, tendo como ponto de partida o congelamento salarial imposto a partir de 1943, aprovou decreto-lei que tendia a suprimir o direito de greve, ou a tornar a greve uma forma inócua de pressão dos trabalhadores. O Decreto-lei nº 9.070 garantiu a continuidade da legislação sindical de orientação corporativista, sobretudo na medida em que, pouco adiante, a Constituição legislou com grande fluidez sobre as questões do mundo do trabalho, deixando intacto o sistema de tutela dos sindicatos pelo Estado.

Paralelamente, a previsão de que a desapropriação far-se-ia mediante “prévia e justa indenização em dinheiro” qualificou-se como outro meio de garantia do elemento conservador mencionado. O Estado não tinha recursos para indenizar os proprietários a serem desapropriados, e tal dispositivo permaneceu quase inoperante, o que inviabilizou, ademais, a efetivação da reforma agrária, que urgia à época.

Por último, registra-se a novidade do preceito constitucional referente à participação direta e obrigatória dos trabalhadores no lucro das empresas, com a advertência de que se a previa conforme “os termos e pela forma que a lei determinar”. Carente de autoaplicabilidade, pois, a norma tornou-se inteiramente ineficaz com o tempo, porquanto jamais regulamentou o Legislativo as disposições de que ela dependia para concretizar-se.

Que a Constituição de 1946, como os textos magnos antecedentes, curvou-se à questão social resulta evidente. Entretanto, a imaturidade do constituinte provocou a introdução de princípios cujo vanguardismo não obteve efeito prático frente às incertezas e às indefinições que se seguiram na moldura geral do texto. Novas ideologias, a partir de então presentes, ainda não haviam sido absorvidas por inteiro, somando-se a isso os receios de medidas que, por demais revolucionárias, pudessem eclodir desfavoravelmente aos interesses dos grupos dominantes.

Sob essa ótica, é possível compreender a dubiedade do sistema constitucional inaugurado em 1946. Se o legislador constituinte acelerou, por um lado, nos preceitos progressistas, por outro, promoveu técnicas conservadoras com alta dosagem, e dessa contradição o baixo grau de efetividade de vários dos direitos sociais enunciados é seu produto mais lamentável. Nessa linha:

A compreensão meramente programática dos princípios afirmados na Constituição de 1946 pôde fazê-los aceitáveis status quo social dos estamentos dominantes, visto que, grande parte deles compunham menos uma declaração positiva de direitos do que uma carta de boas intenções, ficando desse modo sempre um fosso entre o formalismo da Constituição e a concretude da realidade, como se a Constituição naquela parte houvesse sido redigida mais para o futuro do que para o presente, ou pertencesse menos às gerações vivas do que às porvindouras. Demais, os princípios, quando avançam muito, como aquele inciso IV do art.157 da Constituição, que dispunha sobre a participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa, logo se vêem tolhidos ou embargados pela carência de auto-aplicabilidade. [...] Era sempre o que constava de uma fórmula habitual para conter a eficácia próxima do princípio, ou seja, segundo o caso daquele artigo, um princípio a ser aplicado ‘nos termos e pela forma que a lei determinar’. (ANDRADE; BONAVIDES, 1991, p.425).

Por derradeiro, deve-se admitir o legado positivo da Constituição de 1946, que assina uma declaração de direitos representativa do reinício de um ciclo iniciado em 1934, o qual se caracteriza pela incorporação de valores do Estado social. A despeito do reacionarismo conservador destacado em vários de seus dispositivos, houve um considerável avanço do texto de 1946 frente aos retrocessos da Carta outorgada em 1937.

Realmente, a ampla quantidade de normas programáticas de que essa primeira se revestiu, antes de representar a intenção de obstar sua efetividade, mais constitui fruto da imaturidade do constituinte, que, inspirado em novos influxos ainda não completamente assimilados, não logrou introduzir princípios e regramentos condizentes com a realidade, seja porque não quis, seja porque não soube.


5 As mobilizações politicas

O período de 1930 a 1937 vivenciou diversas manifestações políticas, apesar do baixo grau de amplitude e de organização da participação popular. Não houve tempo suficiente para o amadurecimento dos partidos, e a ANL e a AIB também não eram inteiramente simpáticas ao regime democrático.

Durante o Estado Novo, envolto juridicamente por um texto constitucional outorgado por um ditador, sem imprensa livre, sem partidos políticos e rodeado de um grande acervo de normas que desprezaram inúmeras garantias outrora instituídas, o País se encontrou significativamente fechado em suas próprias fronteiras, padecendo de maiores esperanças e entregue aos caprichos dos governantes de plantão. Asseveram Costa e Mello (1999, p.315-316) que:

[...] nos seus aspectos fundamentais, podemos dizer que o Estado Novo caracterizou-se pela: centralização absoluta do poder nas mãos do Executivo, representado por Vargas e seus auxiliares mais próximos, anulando a autonomia federalista dos estados; ausência de preocupação governamental no tocante à institucionalização e definição ideológica do regime; ação intervencionista do Estado no campo social e econômico, buscando desarmar as tensões sociais tanto no âmbito das classes dominantes como entre estas e as forças populares.

Após 1945, os fundamentos do regime democrático, substancialmente violados pelo sistema político do Estado Novo, encontraram novamente um ambiente onde se restaurar. Apesar de certas limitações, a participação do povo na política foi paulatinamente crescendo, “tanto pelo lado das eleições como da ação política organizada em partidos, sindicatos, ligas camponesas e outras associações”. (CARVALHO, 2001, p.146).

Corolário dessas modificações, a batalha pelo controle estatal do petróleo havia se tornado, no início da década de 1950, o grande símbolo do nacionalismo e do antiamericanismo. As manifestações por sua criação aglutinaram diversos setores da sociedade, dentre os quais se inseriam líderes sindicais, estudantes universitários e militares nacionalistas. Houve discursos violentos, envolvendo mobilizações públicas cujo alvo principal era as companhias estrangeiras de petróleo.

As mobilizações políticas avançavam rapidamente, e os conflitos davam mostras do crescimento do potencial reivindicatório popular. Ensina Carvalho (2001, p.137) que:

Surgiram organizações como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), financiado por empresários nacionais e estrangeiros; o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), que apoiava financeiramente políticos da oposição e organizações sindicais e estudantis contrárias ao governo; a Ação Democrática Parlamentar (ADP), que reunia deputados conservadores de vários partidos. Essas organizações vinham unir-se a outras mais antigas, como as associações comerciais e industriais, as associações de proprietários rurais, parte da hierarquia da Igreja Católica, e a ESG.

Também são produto desse ambiente democrático que se restaurava as várias greves despontadas no período. A liberalização do movimento sindical e os problemas decorrentes da alta do custo de vida tornavam as manifestações trabalhistas inevitáveis, e nem mesmo o retrógrado Decreto-lei 9070 supracitado conseguiu inviabilizá-las.

Houve várias delas durante o período, na maioria apoiadas pelo Ministério do Trabalho e pelas grandes companhias estatais. Ferroviários, portuários, metalúrgicos, petroleiros e operários de empresas estatais estavam quase sempre entre os apoiadores dos movimentos grevistas e das movimentações políticas, seja a favor de interesses pessoais ou coletivamente determinados, seja em busca de interesses mais amplos, como as reformas de base, termo geral para indicar as reformas da estrutura agrária, fiscal, educacional e bancária.

Não era raro que as manifestações grevistas fossem, parcial ou completamente, prontamente atendidas. O ministro João Goulart costumava atuar como intermediário dos conflitos e, em alguns casos, como a greve ocorria em um setor de interesse público, submetido à normatização econômica do Estado, pôde impor o atendimento da maioria das reivindicações. (FAUSTO, 2004, p.413).

Adiciona-se a essas mobilizações o movimento estudantil, sob a liderança da União Nacional dos Estudantes (UNE), cujo dinamismo e influência direta no jogo político intensificavam-se, radicalizando-se suas propostas de transformação social.

Ocorreram ainda mudanças importantes no comportamento da Igreja Católica, da qual muitos integrantes, principalmente a partir da década de 1950, começaram a preocupar-se com as camadas populares que constituíam sua base social, investindo nos movimentos estudantil, operário e camponês e na educação de base. Dos seus quadros originou-se a Ação Popular (AP), organização com objetivos revolucionários e participante ativa das lutas políticas da época (FAUSTO, 2004, p.446).

Os movimentos sociais e os novos atores políticos evidenciavam, cada vez mais, seu grau de extensão. As camadas esquecidas do campo penetravam, de vez, a política nacional, e pequenos proprietários, trabalhadores rurais e posseiros organizaram as Ligas Camponesas, movimento rural mais importante do período, organizado em vários pontos do País, em especial no Nordeste.

A radicalização de suas mobilizações ensejou a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural pelo governo, relevante avanço na esfera legislativa, aprovado em março de 1963, estendendo pela primeira vez ao campo a legislação social e sindical. Ademais, a lei instituiu a carteira profissional para o trabalhador do campo, regulou a duração do trabalho e a observância do salário mínimo e previu direitos como o repouso semanal e as férias remuneradas. Atento à importância desse inédito catálogo de direitos, José Murilo de Carvalho (2001, p.140) assinala:

O impacto maior do Estatuto foi sobre o processo de formação de sindicatos rurais, tornando agora muito mais simples e desburocratizado. Impulsionado por grupos de esquerda, inclusive a Igreja e a AP, o sindicalismo rural espalhou-se com rapidez pelo país, relegando as Ligas Camponesas a segundo plano. Em 1964, a Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), formada nesse ano, já englobava 26 federações e 263 sindicatos reconhecidos pelo Ministério. Quase 500 sindicatos aguardavam reconhecimento. Os sindicatos, em regime populista, tinham sobre as ligas a enorme vantagem de poder contar com o apoio do governo e da grande máquina sindical e previdenciária. A vinculação ao governo reduz mas não destrói a importância da emergência do sindicalismo rural. Em 1960, 55% da população do país ainda morava no campo, e o setor primário da economia ocupava 54% da mão-de-obra. Desde a abolição da escravidão, em 1888, o Estado não se envolvera nas relações de trabalho agrícola, se excetuarmos a lei de 1903, que teve pouca aplicação. Nem mesmo as lideranças de 1930 e o governo populista de Vargas tiveram vontade ou força para fazê-lo. Os trabalhadores agrícolas tinham ficado à margem da sociedade organizada, submetidos ao arbítrio dos proprietários sem gozo dos direitos civis, políticos e sociais. Agora eles emergiam da obscuridade e o faziam pela mão do direito de organização e num regime de liberdade política.

No início de 1964, o governo, pressionado pelos discursos do meio oposicionista, começava a realizar, por meio de decretos, as reformas de base exigidas. O primeiro consistia na desapropriação das refinarias de petróleo que ainda eram controladas pela Petrobrás, e o segundo, inerente à reforma agrária, declarava sujeitas a desapropriação propriedades subutilizadas e especificava a dimensão e a localização das que estariam sujeitas à medida.

Tais atos trouxeram consequências que contribuiriam para o fim do governo João Goulart, visto que alimentaram os argumentos dos setores oposicionistas de que o presidente ameaçava a legalidade e o próprio sistema democrático.

A evolução democrática alcançada pode ser aferida na evolução partidária. Verdadeiramente, afora a relevância das mobilizações políticas mencionadas, trata-se do primeiro período da história brasileira em que houve partidos nacionais de massa, “distintos dos partidos nacionais do Império, concentrados em estados-maiores, dos partidos estaduais da Primeira República e dos movimentos nacionais não partidários da década de 30”. E, a despeito das influências regionais, “os partidos de 1945 eram organizados nacionalmente e possuíam programas definidos. Eram partidos no sentido moderno da palavra, e apenas necessitavam de tempo para criar raízes na sociedade”. (CARVALHO, 2001, p.140).


6 A tênue evolução dos direitos sociais

Já se observou que a Constituição de 1946 conservou a índole social constante das declarações de direitos e garantias anteriores e, apesar de situar-se em um período de intensa heterogeneidade ideológica, consignada esta na conjugação de ideias liberais e sociais que geravam algumas reflexões retrógradas e outras inovadoras, comprometeu-se com a tese de igualdade material gerada e nutrida no período varguista.

Reitere-se que esse texto constitucional alargou as conquistas sociais, mas que seu legado positivo, resultado da aceleração dos preceitos progressistas, foi mitigado pelos efeitos conservadores dos dispositivos reacionários, os quais revelam, por sua vez, o caráter paradoxal de que tal documento se reveste.

A relativa acomodação da capacidade mobilizadora dos sindicatos, em função das circunstâncias de conciliação política e cooptação da época, exerceu forte influência no processo de restauração do regime democrático. Tal fenômeno pode ser justificado pela necessidade de os ideólogos do governo e dos dirigentes sindicais agirem para fortalecer o esquema populista em um ambiente de pressões sociais exponenciais, intensificadas, em especial, após a posse de Goulart na presidência da República. Esse esquema

[...] deveria assentar-se na colaboração entre o Estado, onde se incluíam os oficiais nacionalistas das Forças Armadas e os intelectuais formuladores da política do governo, a classe operária organizada e a burguesia industrial nacional. O Estado seria o eixo articulador dessa aliança, cuja ideologia básica era o nacionalismo e as reformas sociopolíticas denominadas de reformas de base. (FAUSTO, 2004, p.447).

Percebendo que o crescimento das greves indicava o avanço da mobilização social, o governo passou a agir para consolidar seus objetivos, incentivando inúmeras das mobilizações políticas do período como forma de forçar a aceitação de medidas de seu próprio interesse. A aproximação com o poder, por outro lado, enfraquecia o movimento operário, e a escalada grevista, bastante dependente do regime político, não refletia, na prática, os anseios da classe trabalhadora, fortalecendo o esquema corporativista consolidado no Estado Novo.

É sintomático, portanto, que os direitos sociais não evoluíram muito durante o período de 1946 a 1964. Na verdade, dificilmente conseguiriam, visto a relutância dos legisladores ou dos próprios grupos dominantes em acolher os avanços revolucionários atrelados à questão social, a qual ganhava, cada vez mais, forças em uma sociedade dinâmica e esperançosa, recém-saída de um Estado autoritário extremamente limitativo de direitos.

Com efeito, eram inúmeras as resistências, e, especificamente no que tange à questão previdenciária, diz José Murilo de Carvalho (2001, p.153) que a burocracia dos institutos sempre receou “perder poder e influência. Seguradoras privadas que cobriam a área de acidentes de trabalho igualmente resistiam à mudança. Um projeto de lei enviado ao Congresso em 1947 fora seguidamente adiado”. E prossegue criticando que a grande inovação do período, o Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963, que previa a extensão da previdência ao campo, “tornou-se letra morta”, pois nem mesmo foram previstos recursos para a implantação e o funcionamento dos benefícios, de modo que “os trabalhadores rurais continuaram excluídos”, assim como os trabalhadores autônomos e as empregadas domésticas.

Infere-se que o período da redemocratização deve ser enxergado mais como um alimentante de uma consciência igualitária que já vinha amadurecendo do que como um gerador de preceitos avançados que se fizeram vigorosamente efetivos a seu tempo. Realmente, manteve-se a evolução do quadro sistemático da declaração de direitos anterior, mas o que se nota é que a relativa acomodação da força atuante dos sindicatos impediu um alargamento mais qualitativo da tese social, o que, de fato, poderia ter ocorrido num cenário de retomada do regime democrático.


7 Conclusão 

Após a ditadura do Estado Novo – 1937 a 1945 –, o regime democrático encontrou-se novamente em um ambiente propício ao seu exercício e expansão. Sem embargo de certas restrições, a participação do povo na política cresceu de modo paulatino nos anos de 1946 a 1964, reunindo, em algumas manifestações da época, diversos setores da sociedade.

O avanço das mobilizações políticas reflete o significativo crescimento do potencial reivindicatório da participação popular, sendo produto desse ambiento democrático, exemplificativamente, as várias greves eclodidas no período e os movimentos estudantil, operário e camponês.

A organização e a amplitude alcançadas pelos novos atores políticos deram ensejo a relevantes conquistas no campo legislativo, como o Estatuto do Trabalhador Rural, aprovado em 1963, que estendia ao campo, de modo inédito, a legislação social e sindical.

Ressalta-se que o grau de contribuição dos setores da sociedade civil para esse processo de amadurecimento democrático pode ser aferido na evolução partidária, pois se trata do primeiro período da história brasileira que conviveu com partidos políticos de massa, nacionalmente organizados e possuidores de metas teoricamente definidas.

A Constituição de 1946, já no período de redemocratização do país após a ditadura do Estado Novo, manteve a substância do quadro esquemático da declaração de direitos e garantias individuais, buscando construir, em nome da justiça, os mais legítimos postulados constitucionais. É de se notar que, apesar da retomada do regime democrático, muito pouco se inova em termos legislativos em relação ao período anterior, o que sugere provavelmente uma relativa acomodação da capacidade mobilizadora dos sindicatos, em função das circunstâncias de conciliação política e cooptação da época.


8 Referencial Teórico

ANDRADE, Paes de. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O Longo Caminho. São Paulo: Civilização Brasileira, 2001.

COSTA, Luís Amad. MELLO, Leonel Itaussu. História do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Scipione,1999.

D' Araujo, Maria Celina. DILLON SOARES, Gláucio Ary. 21 anos de Regime Militar. Rio de Janeiro. Editora da FVG, 1994.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2004.

MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito Processual Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Livraria do Advogado, 2005.


Autor

  • Lucas Sales da Costa

    Juiz de Direito Substituto do TJDFT. Ex-Advogado da União. Ex-Técnico Judiciário do TRF da 5ª Região. Pós-Graduado em Direito Processual Civil Individual e Coletivo pela Faculdade Christus (CE). Pós-Graduado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP/DF). Aprovado nos concursos de Analista do TRT da 7ª Região e de Juiz Federal Substituto do TRF da 4ª Região.

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COSTA, Lucas Sales da. A redemocratização: a conservação dos direitos sociais e a contribuição dos setores da sociedade civil na conquista de direitos no período de 1946 a 1964. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4488, 15 out. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36171. Acesso em: 28 mar. 2024.