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Licença compulsória de medicamentos para HIV/AIDS

Licença compulsória de medicamentos para HIV/AIDS

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Será apresentado o conceito do instituto da Licença Compulsória, sua regulamentação pela Lei de Propriedade Intelectual. Além disso, as informações aqui expostas visam apresentar uma solução aos altos custos de medicamentos antirretrovirais.

RESUMO

Será apresentado o conceito do instituto da Licença Compulsória, criado pelo Acordo TRIPS e sua regulamentação pela Lei de Propriedade Intelectual. As informações aqui expostas visam apresentar uma solução aos altos custos de medicamentos antirretrovirais: o uso do licenciamento compulsório de patentes. Demonstrarei que o governo brasileiro possui receio em utilizar tal acordo já ratificado pelo Estado. Além disso, será exposto os benefícios que podem ser obtidos caso fosse utilizado este mecanismo, contrapondo com seu impacto negativo obtido atualmente.

Palavras-chave: Licença compulsória. Medicamentos ARVs. Casos de HIV/AIDS.

1) Introdução:

            Licença compulsória é uma autorização de exploração de patente concedida pelo Estado a terceiros de confiança que não sejam o titular da patente, sem a autorização do mesmo.

            O “Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights” (“Acordo TRIPS”) fixou alguns princípios básicos para disciplinar o instituto da licença compulsória, que são:

                        a) Avaliação dos casos potenciais que exijam licença compulsória em base casuística;

                        b) Negociação prévia de licença voluntária com o titular da patente;

                        c) Determinação do escopo e duração da licença compulsória;

                        d) Concessão em base não exclusiva;

                        e) Não transferível;

                        f) Voltada eminentemente para as necessidades do mercado interno;

                        g) Pagamento obrigatório de remuneração ao titular da patente;

                        h) Possibilidade de impugnação e revisão das decisões de concessão da licença compulsória.

            O licenciamento compulsório não é sinônimo de expropriação da propriedade privada, pois se trata de uma exceção ao direito exclusivo dos titulares de patentes, empregada pelo Estado em casos de necessidade. Este instrumento é amplamente utilizado e previsto nas legislações de países desenvolvidos[1] e é utilizado pelos mesmos, como instrumento de política de desenvolvimento.

            O Brasil recorreu poucas vezes ao licenciamento compulsório como meio para fomentar o acesso sustentável a medicamentos essenciais.

            A Lei de Propriedade Intelectual (“LPI”) estabeleceu como fundamentos para a concessão de licenças compulsórias, os seguintes requisitos: o exercício de abuso de poder econômico por meio de patentes; o exercício abusivo dos direitos de patente; a não-exploração/exploração insuficiente do objeto da patente no território brasileiro; a não-satisfação das necessidades do mercado local; patentes dependentes; emergência nacional e interesse público.

2) Emergência nacional e Interesse público:

            Emergência nacional e interesse público são as únicas hipóteses legais de concessão ex officio de licença compulsória, ou seja, independentemente de negociação prévia com o titular da patente[2], nem de processo judicial e administrativo perante o INPI[3].

            A concessão da licença compulsória no caso de emergência nacional poderá ser feita para uso privado comercial, sendo assim, as empresas beneficiadas poderão produzir, com fins econômicos, o objeto da patente compulsoriamente licenciada pelo Poder Público. Normalmente, este caso se dá quando a empresa titular da patente não consegue cumprir a demanda em uma emergência nacional, cabendo, então, a um terceiro a produção dos medicamentos restantes.

            No caso de interesse público não se verifica o interesse econômico, mas sim, a finalidade de interesse público não-comercial. A exploração do objeto da patente pode se dar por laboratórios oficiais ou laboratórios privados, entretanto sua produção será integralmente revertida ao governo, visando o interesse público local. Não terá uso comercial, pois visará o suprimento de entidades públicas de saúde e distribuição gratuita de medicamentos ao público.

            O Decreto 3.201 de 1999 regulamenta as hipóteses de concessão de licença compulsória, entretanto não esclarece claramente o que venha a ser uma situação de emergência nacional ou de interesse público, explicitando genericamente que emergência nacional[4] é “o eminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional”; e por interesse público[5] “os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico e socioeconômico do Pais”. Sendo assim, esses entendimentos são diretrizes de interpretação ao aplicador da lei, podendo o mesmo utilizá-las em outras situações ou circunstâncias, além das previstas em lei. Entretanto, para não ocorrer extrapolações, o artigo 3o da Constituição Federal, restringe os possíveis entendimentos de interesse público, e o Acordo TRIPS expressa que somente as emergências críticas poderão se valer desse artifício.

            Antes de instituir uma licença compulsória o poder público deve verificar se o titular da patente tem capacidade de atender as necessidades públicas emergenciais. Não é  verificado somente a disponibilidade em quantidades suficientes para atender à demanda local, mas também atendê-la sem demora e com preços acessíveis para não prejudicar o interesse público.

            Independente da autorização do titular da patente para a emissão da licença compulsória, o mesmo terá direito a receber uma remuneração arbitrada pelo poder público e por lei. Devendo estar estabelecido a periodicidade do pagamento de royalties, prazo de vigência, possibilidade de prorrogação, transferência de know-how da empresa licenciada, bem como as condições de liberação das informações não divulgadas necessárias para a obtenção expedida de autorização de comercialização do medicamento[6].

            O Decreto 3.201 de 1999 trata sobre a possibilidade de importação do objeto da patente licenciada compulsoriamente. Esse caso só é possível quando as empresas locais, que tiveram a permissão para explorar a patente licenciada, não conseguirem atender às situações de emergência nacional ou de interesse público, ou caso a exploração da mesma seja inviável. Nessas hipóteses, a União poderá importar o produto, preferencialmente aqueles colocados diretamente pelo titular da patente ou por seu licenciado[7].

            O Acordo TRIPS autorizou, em 30 de agosto de 2003, a importar e exportar medicamentos patenteados. Na hipótese de não dispor de capacidade técnica suficiente para explorar patente farmacêutica licenciada compulsoriamente em seu território e, na hipótese de outros países em desenvolvimento ou de menor desenvolvimento relativo não disporem de capacidade para exploração de licença compulsória emitida por seus poderes públicos.

3) AIDS e HIV no Brasil:

            a) AIDS:

            O início da epidemia de AIDS se deu em 1980. O Brasil tem 656.701 casos registrados de AIDS até junho de 2012. Em 2011, foram notificados 38.776 casos da doença e a taxa de incidência no Brasil é de 20,2 casos por 100 mil habitantes.

            Em um período de 10 anos, a epidemia decaiu no Sudeste, enquanto em todas as outras regiões foi registrado um aumento. Vale lembrar que o maior número de casos acumulados está concentrado na região Sudeste (56%). Hoje em dia, não há uma grande diferença quanto ao sexo dos infectados.

            A faixa etária em que a AIDS é mais incidente é a de 25 a 49 anos de idade. É importante ressaltar que o índice de infectados entre 13 a 19 anos é maior nas mulheres. Vários estudos apontam que há tendência do crescimento da doença entre os jovens, mesmo eles tendo conhecimento dela.[8]

            b) HIV:

            A Unaids (programa das Nações Unidas para HIV e AIDS), por meio de um relatório[9], revela que o número de infecções com o vírus aumentou 11% no Brasil entre 2005 e 2013, enquanto a média global apresentou queda. No México e no Peru, por exemplo, essas taxas caíram 39% e 26%, respectivamente.

            Um dado preocupante é de que cerca de 54% das pessoas infectadas no mundo não tem consciência disso, ou seja, 19 milhões das 35 milhões de pessoas que atualmente vivem com HIV no mundo não sabem que tem o vírus.

            O Diretor Executivo do Unaids[10] explica que: “Ampliar as ações de forma estratégica é crucial para diminuir a distância entre as pessoas que sabem e as que não sabem que têm HIV, entre as que têm acesso a serviços e as que não o têm – bem como entre as que são protegidas e as que são discriminadas”.

            No Brasil o índice de mortes aumentou 7% entre 2005 e 2013, assim como ocorreu no México (9%). É estimado que haja 1,6 milhão de pessoas portadoras do HIV na América Latina. A maioria desses casos estão concentrados em cinco países, incluindo o Brasil[11].

            A Unaids destaca que os esforços globais para ampliar o acesso à terapia antirretroviral aos infectados estão funcionando, valendo lembrar que é gratuito no Brasil.

4) Licenciamento compulsório das patentes relevantes de ARVs:

            Em 25 de junho de 2001, o Brasil e os Estados Unidos firmaram um acordo, devido a forte publicidade relacionada à importância do tema “acesso à saúde”. Os dois países se comprometeram a solucionar futuras disputas por meio de negociações bilaterais e o governo brasileiro deveria notificar previamente o governo americano sobre a possível concessão de licenças compulsórias baseadas no artigo 69 da LIP.

            Os efeitos da questão da proteção patentária na indústria farmacêutica e acesso à saúde se tornaram mais evidentes no governo Fernando Henrique Cardoso. Em março de 2001, a empresa Merck negociou com o Ministério da Saúde em diminuir o preço dos seus medicamentos antirretrovirais Indinavir e Ritonavir em 65% e 59%, respectivamente, o que resultou no cancelamento, pelo governo brasileiro, das medidas jurídicas necessárias para concessão do licenciamento compulsório e consequente produção de medicamentos ARVs[12].

            Posteriormente, em agosto de 2001, o Ministro da Saúde anunciou que o Brasil outorgaria licença compulsória para a fabricação local de antirretroviral Nelfinavir (Viracept), cujo titular da patente é a empresa Roche, que não havia chegado em consenso nas tentativas de negociação previamente estabelecidas. O laboratório brasileiro que ficaria encarregado da produção do remédio seria o Far-Manguinhos, que fabricaria o medicamento com uma economia de 40% comparada ao preço de aquisição praticada pelo titular Roche.

            Essa licença compulsória permitiria que o Estado economizasse 88 milhões de reais por ano, pois era usado por quase 25% dos pacientes beneficiados pelo Programa Nacional de DST/AIDS. No ano 2000, o Ministério da Saúde registrou gastos de 303 milhões de reais com antirretrovirais, o Nelfinavir representava 28% do total do orçamento do Programa. Contudo, em agosto de 2001, o Governo Federal e a Roche celebraram um acordo pelo qual o medicamento Viracept seria vendido com uma redução de 40% do preço de aquisição, o que cancelou a emissão da licença compulsória.

            Após a entrada em vigor do Decreto 4.830/03, o ex-Ministro da Saúde Humberto Costa tentou negociar com as indústrias farmacêuticas titulares das patentes dos principais antirretrovirais (Lopinavir, Efavirenz e Nelfinavir), uma redução expressiva nos preços, o que era indispensável para a manutenção do Programa Nacional de DST/AIDS, não obtendo sucesso.

            A Portaria 985/GM, do Ministério da Saúde, de 24 de junho de 2005, mencionou o risco de falência do programa, em decorrência da importância de determinados medicamentos para o tratamento do HIV/AIDS e de seu impacto orçamentário representado pela aquisição dos mesmos. A Portaria declarou, igualmente, a situação de interesse público, embasando o licenciamento compulsório das patentes relativas aos medicamentos Lopinavir e Ritonavir.

5) Conclusão:

            O Estado brasileiro necessita adotar medidas que objetivem alcançar menores preços para a aquisição de medicamentos ARVs e que caminhem com as politicas de inovação e fortalecimento da indústria doméstica, visando a implantação de melhores e maiores parques farmacêuticos, o que permitirá um sistema de acesso universal a medicamentos sustentável a longo prazo.

            Visando isso, faz-se necessário analisar e implementar funções de institutos jurídicos, como o licenciamento compulsório, como mecanismos de economia pública, no que concerne aos custos relativos à aquisição de medicamentos e estabelecimento de produção local para a superação de crises sanitárias relacionadas ao HIV/AIDS.

            Observa-se que em países em desenvolvimento[13] existe atuação de empresas no segmento de genéricos voltados especificamente para a produção de ARVs, como é o caso do Brasil. A durabilidade e êxito do programa brasileiro dependem da relação entre sustentabilidade e acesso efetivo aos medicamentos. Um estudo[14] da OMS demonstrou que a demanda brasileira para esse tipo de medicamento apresenta 74% de pacientes utilizando os ARVs de primeira linha e 26% já utilizando aqueles de segunda linha, uma parcela muito insignificante para um país sem recursos significativos para a procura. Vale ressaltar que as terapias mais utilizadas no Brasil são baseadas nas combinações fixas entre AZT, 3TC, LPV e RTV, e que seus custos são exorbitantes. Uma pesquisa realizada pelos médicos sem fronteiras em 2011[15], mostra os preços originais comparados com os genéricos:

  1. Zidovudine (AZT): Preço original – U$ 301,00; Preço genérico – U$ 88,00; Lucro em 2005 – U$ 85 milhões.
  2. Lamivudine (3TC): Preço original – U$ 80,00; Preço genérico – U$ 29,00; Lucro em 2010 – U$ 186 milhões.
  3. Lopinavir (LPV): Preço original – U$ 410,00; Preço genérico – U$ 402,00; Lucro em 2010 – U$ 1,26 bilhões.
  4. Ritonavir (RTV): Preço original – U$ 183,00; Preço genérico – U$ 83,00; Lucro em 2004 – U$ 194 milhões.

            O Brasil realizou a primeira licença compulsória de medicamento na América Latina em 4 de maio de 2007. O Estado decidiu licenciar o Efavirenz, cuja patente pertence ao laboratório Merck Sharp & Dohme. De acordo com o Ministério da Saúde o medicamento é o mais utilizado no tratamento da AIDS, 38% das pessoas que estão se tratando o utilizam. O custo paciente/ano gasto nesse medicamento era de US$ 580, o que representou um orçamento anual de US$ 42,9 milhões em 2007. O preço do produto genérico é cerca de US$ 165, paciente/ano, o que reduziu os gastos em 2007, para US$ 30 milhões. A estimativa de economia até 2012 era de US$ 236,8 milhões.

            Verifica-se com esses dados que é necessário que o governo brasileiro, implemente a licença compulsória efetivamente, seja por iniciativa governamental, a qual é escassa e hesitante nessa área, seja por meio de decisões judiciais em demandas para esse fim movidas por entidades legitimas. Impondo-se, portanto, a necessidade de concessão de licenças compulsórias para a fabricação local ou importação paralela, baseando-se em emergência nacional e interesse público, pois como visto os casos de HIV/AIDS aumentam exponencialmente no Brasil e os preços dos medicamentos ARVs são cada vez mais caros, o que influencia drasticamente no orçamento do Programa Nacional de DST/AIDS. O orçamento para a compra de medicamentos antirretrovirais no Brasil é de 770 milhões em 2014, uma parcela pequena comparada a necessidade e o preço dos medicamentos, sendo assim a maior utilização de genéricos permitiria o tratamento de um número superior de pessoas.

REFERÊNCIAS:

BASSO, Maristela; SALOMÃO FILHO, Calixto; POLIDO, Fabrício; César, Priscilla. Direitos de Propriedade Intelectual & Saúde Pública – o acesso universal aos medicamentos antirretrovirais no Brasil. Editora IDICID, 2007.

LIMA, Deputado Newton – Relator, A revisão da lei de patentes: Inovação em prol da competitividade nacional. Centro de Estudos e Debates Estratégicos, 2013.

BRASIL. Decreto 3201 de 06 de outubro de 1999. Publicado no Diário Oficial da União em 22 de dezembro de 1999.

BRASIL. Lei 9.279 de 14 de maio de 1996. Publicado no Diário Oficial da União em 15 de maio de 1996.

UNAIDS. The Gap Report.  Publicado em julho de 2014 e atualizado em setembro de 2014.

MÉDECINS SANS FRONTIÈRS. Untangling the web of antiretroviral price reductions. Campaing for access to essential medicines, 2011.

DEPARTAMENTO DE DST, AIDS, HEPATITES VIRAIS. Boletim Epidemiológico HIV e AIDS. 2012.

PINHEIRO, Eloan dos Santos. A importância da produção local para garantir o acesso aos medicamentos. 2006.

http://www.inpi.gov.br/images/stories/27-trips-portugues1.pdf

http://www.ictsd.org/bridges-news/pontes/news/a-primeira-licença-compulsória-de-medicamento-na-américa-latina

http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,pacientes-com-hiv-terao-tratamento-antecipado-pelo-menos-cem-mil-novos-casos-serao-atendidos,1085688

http://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/factsheet_pharm00_e.htm

http://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/tripfq_e.htm

http://www.wto.org/english/tratop_e/trips_e/public_health_faq_e.htm

[1] É principalmente utilizado pelo Canadá e pelos Estados Unidos.

[2] Art. 31.b, acordo TRIPS: Uso sem autorização do titular.

[3] Art. 71, LPI: Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular.

[4] Art. 2o, §1 o, Decreto 3.201/99.

[5] Art. 2o, §2 o, Decreto 3.201/99.

[6] Art. 5o, §1 o, Decreto 3.201/99.

[7] Art. 5o, Parágrafo Único , Decreto 3.201/99.

[8] Dados contidos no boletim de 2012 sobre HIV/AIDS do Ministério da Saúde.

[9] UNAIDS Gap report.

[10] Michel Sidibé.

[11] UNAIDS Gap report.

[12] Direitos de Propriedade Intelectual e Saúde Pública, p. 110.

[13] São exemplos a Índia e Malásia.

[14] Global Price Reporting Mechanism for ARVs in Developing Countries, WHO.

[15] Untangling the web of antiretroviral price reductions.


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