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Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?

Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?

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Trata da controvérsia sobre a composição do polo passivo da ação judicial de responsabilidade civil do Estado. É possível que o lesado acione diretamente o agente que imputa ser causador do dano?

INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil do Estado compreende o dever de reparação de danos causados pela ação estatal, seja comissiva ou omissiva. A Constituição define o modo pelo qual o Estado reage em relação ao administrado nas situações em que, por sua conduta estatal, cause dano. 

O modo de reação, conforme experiências históricas registradas na evolução da sociedade, já perpassou por mais de um sistema de responsabilidade, vislumbrando-se a fase da irresponsabilidade, lapidada nos estados absolutistas (“The king can do no wrong”) até o sistema da responsabilidade objetiva, vista em grande escala nos contextos atuais, em que não é necessário comprovação de dolo ou culpa na conduta estatal, bastando ao lesado a demonstração do dano e do nexo de causalidade.

Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB), o artigo 37, § 6º, dispõe que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

Deveras, o dispositivo acima mencionado é a base do regime adotado atualmente no Brasil acerca da responsabilidade civil do Estado, consagrando a teoria objetiva com base na Teoria do Risco Administrativo como regra, o que desperta amplo espaço de discussão pelos operadores do Direito, desde o campo material (até que ponto há o direito de ser indenizado) ao processual (como e contra quem a ação judicial deve ser proposta).

É de acordo com o sistema processual que o administrado poderá socorrer-se ao Judiciário, sendo o processo, portanto, instrumento do direito material, como destaca Cassio Scarpinella Bueno.

Uma das discussões atinentes a esse tópico está ligada à legitimidade passiva dos pedidos de reparação civil por atos ou omissões do Estado. Certo que o Estado se manifesta por seus agentes, é necessário verificar se o administrado, uma vez se sentindo atingido, poderá agir em face do Estado, enquanto pessoa jurídica de direito público ou privado prestadora de serviços públicos, ou atuar diretamente em face do agente.

Essa distinção caminha por institutos típicos do Direito Administrativo, devendo ser aquilatado a que título os agentes agem em relação ao Estado e perante terceiros. Sinaliza-se, desde logo, como exemplo, o princípio da impessoalidade, consagrado no artigo 37, caput, da CRFB, com a leitura que recebeu do constitucionalista José Afonso da Silva, com base em Agustín Gordillo, trabalhado por setor importante da doutrina administrativa capitaneado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro. Adota-se um sentido além do que acarreta no tratamento impessoal dos administrados, abordando, por outro lado, o viés da atuação da própria Administração, pontuando que a ação dos agentes estatais deve ser imputável ao órgão em nome de quem atuam e não ao próprio agente, consagrando, com isso, a Teoria da Imputação ou Teoria do Órgão.

A problemática ganha espaço quando se abre a possibilidade de o lesado agir contra Estado, contra o agente ou contra ambos, importando aferir se esses mecanismos de ação estão à disposição, ou seja, se há uma liberdade de escolha pelo administrado em acionar diretamente o agente ou a Administração Pública. 

Isso porque a leitura do disposto no citado artigo 37, § 6º, da CRFB, permitiu mais de uma conclusão, podendo sintetizá-las nas seguintes alternativas: (a) o lesado escolhe entre ajuizar em face do Estado ou do agente; (b) o lesado pode ajuizar somente em face do agente, permitindo-se ao Estado porventura postular a intervenção do agente na relação jurídica processual; ou (c) o lesado pode demandar diretamente o agente, sem a participação do Estado no processo.

Afinal, há somente uma leitura do dispositivo válida que exclua as outras? A composição do polo passivo da ação de responsabilização civil do Estado está a critério do lesado? Pode se inferir que o agente tem uma espécie de blindagem de ser acionado somente em regresso pelo Estado?

A relevância dos problemas acima formulados se revela no compromisso com a própria segurança jurídica. Quanto mais consagrada e linear for a forma de fazer-se justiça,  entendida esta como dar a resposta adequada ao problema submetido a exame, mais crédito o sistema trará aos jurisdicionados e administrados. 

Por outro lado, permitir que um tema de tamanha importância guarde indefinições em pontos tão básicos como a composição do polo passivo da relação jurídica acarreta sérios prejuízos tanto na atuação do Poder Judiciário, que se vê confuso no modo como levar o trâmite processual, como do próprio agente estatal, que pode sentir-se temido no seu mister a possíveis exposições ao figurar diretamente no polo passivo de uma demanda indenizatória em decorrência do exercício da função.

A resposta aos problemas formulados não pode ser indiferente a institutos consagrados do Direito Administrativo, tal como a Teoria da Imputação ou Teoria do Órgão. Também assim, soa necessário garantir ao agente uma liberdade no seu agir, evitando os temores que o exercício da sua função possa causar aos administrados. 

Essa liberdade para agir favorece a consecução dos interesses públicos em detrimento de algum interesse privado promíscuo que possa ser resultado de uma conduta assediadora erigida por ameaças de responsabilização direta do agente. Supõe-se, diante disso, que a leitura do disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, contempla uma proteção ao agente de ser acionado em regresso pelo Estado, somente nesta via.

Para a concretização do trabalho ensejado, tendo em vista os objetivos descritos acima, visa-se a buscar amparo bibliográfico em selecionado setor especializado da doutrina, trazendo o que cada um defende e as principais controvérsias da matéria. Para tanto, o método de abordagem será o dedutivo, ou seja, o exame das evidências, análises e a obtenção da síntese.

A hipótese é confirmativa, enquanto o processo é investigativo. 

Do ponto de vista da natureza, a metodologia utilizada é pesquisa aplicada, pois objetiva gerar conhecimentos para aplicação prática dirigida à solução de problemas específicos. Sobre a forma de abordagem, é uma pesquisa de cunho qualitativo, uma vez que aborda a doutrina e a jurisprudência. A pesquisa qualitativa consequentemente é descritiva, já que também é foco a descrição do modo como a norma se aplica aos casos concretos que envolvem o tema abordado.


I - SENSO COMUM: O TRATAMENTO JURISPRUDENCIAL DO TEMA

O exame da jurisprudência brasileira atual revela a existência de posicionamentos diametralmente opostos entre as Cortes Superiores. 

De um lado, o Supremo Tribunal Federal, ultimamente em decisões monocráticas, com base em um leading case da Primeira Turma, vem entendendo ser ilegítima a inclusão do agente estatal no polo passivo da ação indenizatória, aduzindo que a Constituição revela uma garantia também em seu nome no sentido de ser acionado apenas em regresso. 

Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça recentemente vem se posicionando no sentido de que o lesado pode livremente escolher em face de quem ajuizará a ação indenizatória, podendo fazê-lo diretamente em face do agente estatal, recebendo desta maneira benefícios especialmente no que diz respeito ao pagamento de eventual indenização fora do sistema de precatórios, que hoje funcionam em alguns Estados da federação como mera declaração vazia de direitos.

Inicie-se, então, pela descrição dos argumentos que, em suma, as Cortes fazem uso para assentar seus entendimentos.

1.1 - Superior Tribunal de Justiça: o Recurso Especial 1.325.862 como paradigma do entendimento de liberdade de escolha pelo administrado quanto ao polo passivo

O Recurso Especial (REsp) número 1.325.862/PR, julgado em 05/09/2013 pela Quarta Turma (DJe 10/12/2013), teve por Relator o Ministro Luis Felipe Salomão. Seu julgamento reacendeu as discussões em relação ao tema proposto, quando entendeu que o administrado pode livremente ajuizar a ação reparatória em face do agente estatal. Constou da ementa do julgado, no que interessa ao presente trabalho:

RESPONSABILIDADE CIVIL. [...] AÇÃO INDENIZATÓRIA AJUIZADA EM FACE DA SERVENTUÁRIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. [...] 

1. O art. 37, § 6º, da CF/1988 prevê uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público. Vale dizer, a Constituição, nesse particular, simplesmente impõe ônus maior ao Estado decorrente do risco administrativo; não prevê, porém, uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública quando o particular livremente dispõe do bônus contraposto. Tampouco confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, o qual, aliás, se ficar comprovado dolo ou culpa, responderá de outra forma, em regresso, perante a Administração. 

2. Assim, há de se franquear ao particular a possibilidade de ajuizar a ação diretamente contra o servidor, suposto causador do dano, contra o Estado ou contra ambos, se assim desejar. A avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios. Doutrina e precedentes do STF e do STJ. [...]

(REsp 1325862/PR, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/09/2013, DJe 10/12/2013)

O pano de fundo do caso julgado é desinfluente para a discussão da tese aqui proposta. Apenas contextualizando a situação submetida ao crivo do STJ, um Procurador do Estado ajuizou ação de indenização por danos morais em face de uma Escrivã de Cartório Judicial. No primeiro grau de jurisdição, o pedido indenizatório foi julgado improcedente, cuja sentença foi mantida em grau de apelação pelo correspondente Tribunal de Justiça.

O Relator Ministro Salomão, ao enfrentar a questão da legitimidade passiva, reconheceu que a questão controvertida divide a jurisprudência. Ressaltou que a jurisprudência do Supremo “sempre foi linear em admitir a ação direta do lesado em face do servidor público”. Apontou conhecer o precedente do STF que afasta a legitimidade passiva do agente público (Recurso Extraordinário número 327.904), mas o considerou isolado e com situação fática bastante peculiar (ato de agente político de cunho essencialmente político).

Prosseguindo o trato da problemática, o Ministro Relator fez a leitura do art. 37, § 6º, da CRFB, no sentido de que prevê “uma garantia para o administrado de buscar a recomposição dos danos sofridos diretamente da pessoa jurídica que, em princípio, é mais solvente que o servidor, independentemente de demonstração de culpa do agente público”. Disse, ademais, que o dispositivo não prevê uma demanda de curso forçado em face da Administração Pública, nem mesmo confere ao agente público imunidade de não ser demandado diretamente por seus atos, tanto que, caso fique comprovado dolo ou culpa, deverá responder em regresso perante a Administração.

Para o Ministro, quando a Constituição pretendeu “blindar” os agentes públicos o fez de modo explícito, cujo conteúdo excepcional deve ser interpretado restritivamente, como na imunidade parlamentar por opiniões, palavras e votos (art. 53). Indicou o disposto no art. 9º da Lei de Abuso de Autoridade (Lei n.º 4.898/1965), que prevê a possibilidade de ação direta do particular em face do servidor.

Na sequência, seu voto cita doutrina dos eminentes autores Celso Antônio Bandeira de Mello e de Rui Stoco, além de outros precedentes do STJ, concluindo:

    Assim, a avaliação quanto ao ajuizamento da ação contra o servidor público ou contra o Estado deve ser decisão do suposto lesado. Se, por um lado, o particular abre mão do sistema de responsabilidade objetiva do Estado, por outro também não se sujeita ao regime de precatórios, os quais, como é de cursivo conhecimento, não são rigorosamente adimplidos em algumas unidades da Federação.

    Destarte, com a licença do entendimento diverso, não tenho dúvidas em afirmar a legitimidade passiva do servidor público para responder diretamente pelo dano gerado por atos praticados no exercício de sua função pública, sendo que, evidentemente, o dolo ou culpa, a ilicitude ou a própria existência de dano indenizável são questões meritórias.

Em julgamentos anteriores também foi esse o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça, como se vê do REsp 731.746/SE, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 05/08/2008, DJe 04/05/2009; e REsp 759.272/GO, Rel. Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2005, DJ 19/06/2006, p. 138.

1.2 - Supremo Tribunal Federal: o Recurso Extraordinário 327.904 como “leading case” a favor da dupla garantia

O Recurso Extraordinário (RE) 327.904, do qual foi Relator o Ministro Carlos Britto, julgado pela Primeira Turma em 15/08/2006 (DJ 08/09/2006), vem sendo utilizado pelo Pretório Excelso como precedente que representa o entendimento do Supremo na questão da legitimidade passiva da ação indenizatória que cuida da responsabilidade civil do Estado.

Contextualizando a situação fática que ensejou a atuação do STF, apenas para fins de conhecimento, porquanto somente a tese discutida interessa ao presente trabalho, um ex-Prefeito editou Decreto de Intervenção em face de hospital e maternidade de propriedade de uma senhora, o que resultou prejuízos financeiros à entidade beneficente e justificou a propositura da ação indenizatória.

No primeiro grau de jurisdição, o processo foi extinto sem resolução do mérito ante o reconhecimento da ilegitimidade passiva do ex-Prefeito, o que foi mantido em grau de apelação. O Recurso Extraordinário foi interposto com a alegação de desrespeito ao art. 37, § 6º, da CRFB.

A argumentação do Ministro Ayres Britto é enfática, sendo oportuno transcrevê-la:

    9. À luz do dispositivo transcrito [art. 37, § 6º, da CRFB], a conclusão que a chego é única: somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns.

    10. Quanto à questão da ação regressiva, uma coisa é assegurar ao ente público (ou quem lhe faça as vezes) o direito de se ressarcir perante o servidor praticante de ato lesivo a outrem, nos casos de dolo ou de culpa; coisa bem diferente é querer imputar à pessoa física do próprio agente estatal, de forma direta e imediata, a responsabilidade civil pelo suposto dano a terceiros.

    11. Com efeito, se o eventual prejuízo ocorreu por força de um atuar tipicamente administrativo, como no caso presente, não vejo como extrair do § 6º do art. 37 da Lei das Leis a responsabilidade “per saltum” da pessoa natural do agente. Tal responsabilidade, se cabível, dar-se-á apenas em caráter de ressarcimento ao Erário (ação regressiva, portanto), depois de provada a culpa ou o dolo do servidor público, ou de quem lhe faça as vezes. Vale dizer: ação regressiva é ação de “volta” ou de “retorno” contra aquele agente que praticou ato juridicamente imputável ao Estado, mas causador de dano a terceiro. Logo, trata-se de ação de ressarcimento, a pressupor, lógico, a recuperação de um desembolso. Donde a clara ilação de que não pode fazer uso de uma ação de regresso aquele que não fez a “viagem financeira de ida”; ou seja, em prol de quem não pagou a ninguém, mas, ao contrário, quer receber de alguém e pela vez primeira.

    12. Vê-se, então, que o § 6º do art. 37 da Constituição Federal consagra uma dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente, perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular.

É possível dizer que este entendimento é o proclamado pelo Supremo considerando algumas decisões anteriores ao RE 327.904, como, por exemplo: RE 228977, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Segunda Turma, julgado em 05/03/2002, DJ 12-04-2002; AI 167659 AgR, Relator(a):  Min. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 18/06/1996, DJ 14-11-1996; e AI 550296, Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO, julgado em 09/01/2006, publicado em DJ 09/02/2006.

O fato é que o julgamento supra transcrito se tornou referência no trato da matéria pelo STF, sendo mencionado como razões de decidir em inúmeros casos julgados sequentemente. Neste sentido: AI 552366 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 06/10/2009, DJe-204 PUBLIC 29-10-2009; RE 549126, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, julgado em 09/08/2011, DJe-173 PUBLIC 09/09/2011; RE 551156 AgR, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 10/03/2009, DJe-064 PUBLIC 03-04-2009; AI 406.615, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, decisão monocrática de 20/11/2009, publicada no DJE n.º 233, divulgado em 11/12/2009; RE 470996 AgR, Relator(a): Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 18/08/2009, DJe-171 PUBLIC 11-09-2009; RE 235025, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 26/10/2010, publicado em DJe-222 PUBLIC 19/11/2010; RE 601104, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, julgado em 26/08/2009, publicado em DJe-173 PUBLIC 15/09/2009; e RE 344133, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 09/09/2008, DJe-216 PUBLIC 14-11-2008.

1.3 - Panorama atual: insegurança jurídica, o mito da “última palavra” e o dever de diálogo efetivamente crítico entre os tribunais com vistas à estabilização da matéria

Os elementos jurisprudenciais apresentados indicam a existência de forte controvérsia entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal. Considerando que o espectro de atuação de ambas as Cortes é distinto, nos termos dos artigos 102 e 105 da CRFB, é possível (e comum) que situações semelhantes acabem tendo desfechos distintos, notadamente quando a decisão do STJ não é enfrentada pelo STF. Este cenário compromete a segurança jurídica.

De todo modo, não há como negar que a discussão acerca do tema tem por fundamento o disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, que, como dito, é o dispositivo norteador da responsabilidade civil do Estado no sistema brasileiro. Como a guarda da Constituição compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal, é natural dar a este Colegiado maior ênfase no modo como a jurisprudência brasileira trata da matéria. Reflexamente, seria natural também que os demais tribunais, com vistas à estabilização da matéria, promovessem um tratamento adequado da celeuma, seguindo a posição do STF ou criticamente a rebatendo, o que não é visto na prática atual.

Não se está a dizer que o Supremo Tribunal Federal dê a “última palavra”. Aqui vêm de molde os argumentos de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, arrimados na ideia de pluralização do universo de intérpretes, que tem em Peter Häberle um importante expoente da tese da “sociedade aberta dos intérpretes da constituição”:

    A literatura jurídica mais tradicional concebe a interpretação constitucional como tarefa eminentemente judicial, com destaque para o papel das cortes constitucionais e das supremas cortes. Não discordamos do papel proeminente do Poder Judiciário nesse campo, nem tampouco da posição privilegiada ocupada pelos tribunais constitucionais na matéria. Assiste-se hoje, no mundo inteiro e também no Brasil, um fenômeno de judicialização da política, que tem na interpretação constitucional realizada pelas cortes o seu eixo principal. Aliás, o texto constitucional brasileiro é claro, ao estabelecer que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição” (art. 103). Não é por outra razão que damos grande destaque neste livro à interpretação constitucional que provém do STF.

    Sem embargo, é um erro grave pretender que o Poder Judiciário ou o Supremo Tribunal Federal seja o intérprete exclusivo da Constituição. Na verdade, a atividade interpretativa se processa, em grande parte, por meio de um diálogo permanente entre corte constitucional, outros órgãos do Judiciário, Parlamento, governo, comunidade de cidadãos, entidades da sociedade civil e academia. Há também interpretação constitucional fora dos processos judiciais, como, por exemplo, na atividade desempenhada na esfera pública informal. A interpretação constitucional é, na verdade, obra do que Peter Häberle denominou “sociedade aberta dos intérpretes da constituição.

    [...] não é verdade que, na prática, o Supremo Tribunal Federal dê sempre a última palavra sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato de que não há última palavra em muitos casos. As decisões do STF podem, por exemplo, provocar reações contrárias na sociedade e nos outros poderes, levando a própria Corte a rever a sua posição inicial sobre um determinado assunto. Há diversos mecanismos de reação contra decisões dos Tribunais Constitucionais, que vão da aprovação de emenda constitucional em sentido contrário, à mobilização em favor da nomeação de novos ministros com visão diferente sobre o tema. Há formas de reação mais ou menos legítimas.

O que se busca é demonstrar que o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, quando menciona ser baseado em precedentes do STF (para dar-lhe maior legitimidade), acaba incorrendo em equívoco, uma vez que o Supremo está consolidado no sentido contrário ao exposto pelo STJ, consoante item 1.2 supra.

Além disso, o entendimento do STF nos parece meritoriamente acertado e de acordo com a norma do disposto no art. 37, § 6º, da CRFB, como será demonstrado no capítulo seguinte, em que enfrentamos os argumentos do STJ com o intuito de firmar a tese da dupla garantia.


II - PELA DUPLA GARANTIA: DESCONSTRUÇÃO DOS ARGUMENTOS DO STJ E AFIRMAÇÃO DA LINHA SEGUIDA PELO STF COMO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO VIGENTE

Neste capítulo do trabalho, buscaremos assentar a tese empregada pelo Supremo Tribunal Federal quando diz que não é possível que o particular acione diretamente o agente estatal na pretensão indenizatória, cabendo-lhe aforar o pedido em face do Estado que, nos casos de dolo ou culpa, atuará regressivamente contra o causador do dano.

2.1 - Um argumento histórico: os regimes de solidariedade e de regressividade previstos nas Constituições brasileiras

O panorama histórico das Constituições brasileiras revela que o tratamento dado à temática foi distinto, podendo-se estabelecer três sistemas bem definidos: um que orientou as Constituições de 1824 e 1891; outro, as Constituições de 1934 e 1937; e um terceiro, as Constituições de 1946 em diante.

Em linhas gerais, as Constituições de 1824 e 1891 estabeleceram que os funcionários públicos responderiam estritamente por abusos e omissões no exercício do cargo ou função, bem como pela indulgência ou negligência na apreciação dos atos dos inferiores hierárquicos (artigos 179, XXIX, e 82, respectivamente). Portanto, previa a responsabilidade exclusiva do funcionário público, havendo inclusive um Decreto que determinava a exclusão da União em decorrência de atos criminosos de seus funcionários, ainda que praticados no exercício do cargo, emprego, função ou desempenho de serviços públicos federais (Decreto n.º 24.216, de 9 de maio de 1934).

Por outro lado, as Constituições de 1934 e de 1937 estabeleceram o sistema da solidariedade, prevendo que “os funcionários públicos são responsáveis solidariamente com a Fazenda nacional, estadual ou municipal, por quaisquer prejuízos decorrentes de negligência, omissão ou abuso no exercício de seus cargos” (art. 171 da Constituição de 1934). Note-se que o § 1º do aludido dispositivo previa a obrigatória citação do funcionário como litisconsorte na ação proposta contra a Fazenda Pública e fundada em lesão praticada por agente estatal. O art. 158 da Constituição de 1937 reproduziu o disposto no art. 171 da Constituição de 1934.

Já a partir da Constituição de 1946, o sistema adotado foi o da regressividade, ao passo em que os dispositivos passaram a contemplar o manejo da ação regressiva nos seguintes termos: 

Constituição de 1946

Art. 194 - As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros. 

Parágrafo único - Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes.

Constituição de 1967

Art. 105 - As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único - Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.

EC n.º 1 de 1969

Art. 107 - As pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros.

Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo.

Essa diferenciação foi bem apanhada por Pontes de Miranda, conforme aborda J. Cretella Jr. em seus comentários à Constituição de 1988:

Pontes de Miranda elucida que, pelo princípio da responsabilidade em ação regressiva, da última Constituição, a de 1946, em vez do princípio da solidariedade, das Constituições de 34 e 37, os interesses do Estado passaram à segunda plana - não há litisconsórcio necessário, nem solidariedade, nem extensão subjetiva da eficácia executiva da sentença contra a Fazenda Nacional, Estadual ou Municipal, ou contra outra pessoa jurídica de direito público interno. Há, apenas, o direito de regresso (Comentários à Constituição de 1946, 2.ª ed., 1953, vol. 5, p. 263). O mesmo se pode dizer das Constituições de 1967 e de 1969, que adotaram, como a de 1946, o princípio da regressividade.

[...]

O princípio da regressividade das Constituições Federais (de 1946, de 1967 e de 1969) derrubou o princípio da solidariedade das Constituições Federais anteriores (de 1934 e 1937) [...].

Pois bem. Na lição de Barroso, “a Constituição merece uma apreciação destacada dentro do sistema, à vista do conjunto de peculiaridades que singularizam suas normas”. Para ele, “a superioridade jurídica, a supralegalidade, a supremacia da Constituição é a nota mais essencial do processo de interpretação constitucional”.  É isso o que confere caráter paradigmático e subordinante de todo o ordenamento, “de forma tal que nenhum ato jurídico possa subsistir validamente no âmbito do Estado se contravier seu sentido”. 

Desta forma, se é possível estabelecer uma alteração paradigmática no trato da matéria entre as Constituições, isso deve ser levado em consideração pelo intérprete e operador do Direito. Uma vez que o princípio da regressividade “derrubou” o princípio da solidariedade, utilizando a expressão de Cretella Jr., força compreender que não mais vige a solidariedade.

Sem delongar o ponto, parece evidente que era o regime da solidariedade que permitia ao lesado escolher contra quem irá mover o processo judicial, porquanto esse sistema contempla a concorrência de mais de um credor ou devedor numa mesma obrigação. Assim, outorga-se ao credor o direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum (utilizando os termos previstos nos artigos 264 e 275 do Código Civil).

Quando o sistema constitucional molda a atuação do Estado em regresso contra o agente estatal, fica transparente a ideia de que ao lesado cabe agir apenas em face do Estado, não diretamente contra o agente.

Então, a conclusão do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que não se prevê uma “demanda de curso forçado em face da Administração Pública” soa equivocada. Há, sim, curso forçado no acionamento em busca da responsabilidade civil do Estado, pois não há mais solidariedade na legitimação do Estado e do agente estatal.

2.2 - Um argumento orgânico: a que título age o agente estatal, senão em nome do Estado?

Para enfrentar o presente tópico, são essenciais as palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello a respeito da ação do Estado. Antes, porém, uma advertência há de ser feita: o administrativista, no seu Curso, conclui que o particular pode ajuizar a demanda diretamente em face do agente estatal, cabendo a ele a decisão. Não concordamos com essa proposta, no entanto, é preciosa sua manifestação acerca da ação do Estado:

38. Como pessoa jurídica que é, o Estado, entidade real, porém abstrata (ser de razão), não tem vontade nem ação, no sentido de manifestação psicológica e vida anímica próprias. Estas, só os seres físicos as possuem. Tal fato não significa, entretanto, que lhe faltem vontade e ação, juridicamente falando. Dado que o Estado não possui, nem pode possuir, um querer e um agir psíquico e físico, por si próprio, como entidade lógica que é, sua vontade e sua ação se constituem na e pela atuação dos seres físicos prepostos à condição de seus agentes, na medida em que se apresentem revestidos desta qualidade.

39. Assim como o Direito constrói a realidade (jurídica) “pessoa jurídica”, também constrói para ela as realidades (jurídicas) vontade e ação, imputando o querer e o agir dos agentes à pessoa do Estado.

    A relação entre a vontade e a ação do Estado e de seus agentes é uma relação de imputação direta dos atos dos agentes ao Estado. Esta é precisamente a peculiaridade da chamada relação orgânica. O que o agente queira, em qualidade funcional - pouco importa se bem ou maldesempenhada -, entende-se que o Estado quis, ainda que haja querido mal. O que o agente nestas condições faça é o que o Estado fez. Nas relações não se considera tão só se o agente obrou (ou deixou de obrar) de modo conforme ou desconforme com o Direito, culposa ou dolosamente. Considera-se - isto, sim - se o Estado agiu (ou deixou de agir) bem ou mal.

    Em suma: não se bipartem Estado e agente (como se fossem representado e representante, mandante e mandatário), mas, pelo contrário, são considerados uma unidade. A relação orgânica, pois, entre o Estado e o agente não é uma relação externa, constituída exteriormente ao Estado, porém interna, ou seja, procedida na intimidade da pessoa estatal.

Com efeito. A responsabilidade civil do Estado é, como a denominação do instituto já revela, uma responsabilidade do próprio Estado, cujos atos são praticados por seus agentes. A imputação da conduta recai sobre o Estado nos casos em que as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros. Com escusas pela tautologia, mas a responsabilidade civil do Estado é do Estado. 

Bulos aprecia de forma interessante este ponto, com base em Renato Alessi:

Por meio dos agentes públicos, o Estado encontra quem exprima sua vontade.

Como observou Renato Alessi, o Estado não é um ser personificado, a ponto de praticar ações por si mesmo, tomando decisões próprias. Como organismo lógico que é, precisa de seres físicos para vivificar o seu querer e o seu agir (Sistema instituzionale del diritto amministrativo, p. 80).

Por isso entendemos, com José Afonso da Silva, que a leitura da impessoalidade prevista no art. 37, caput, da CRFB, pode trazer a ideia de que o governo é impessoal, ou seja, a conduta do Estado não é “pessoalizada”. Todos agem em nome da Administração Pública, cabendo-lhe a imputação dos atos e provimentos administrativos:

    O princípio ou regra da impessoalidade da Administração Pública significa que os atos e provimentos administrativos são imputáveis não ao funcionário que os pratica mas ao órgão ou entidade administrativa em nome do qual age o funcionário. Este é um mero agente da Administração Pública, de sorte que não é ele o autor institucional do ato. Ele é apenas o órgão que formalmente manifesta a vontade estatal. Por conseguinte, o administrado não se confronta com o funcionário x ou y que expediu o ato, mas com a entidade cuja vontade foi manifestada por ele. É que a “primeira regra do estilo administrativo é a objetividade”, que está em estreita relação com a impessoalidade.

    Logo, as realizações administrativo-governamentais não são do funcionário ou autoridade, mas da entidade pública em nome de quem as produzira. A própria Constituição dá uma consequência expressa a essa regra, quando, no § 1º do art. 37, proíbe que constem nome, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos em publicidades de atos, programas, obras, serviços a campanhas dos órgãos públicos.

    Por isso é que a responsabilidade, para com terceiro, é sempre da Administração, como veremos logo mais.

    A personalização, ou seja, a individualização do funcionário, pode ser recomendável, quando atue não como expressão da vontade do Estado, mas como expressão de veleidade, capricho ou arbitrariedade pessoal. Então, como nota Gordillo, “o ataque ou impugnação concreta à pessoa do funcionário só é um meio direto de lograr que ela mesma ou seu superior corrija o fato ou omissão danosa”. A personalização vale assim para imputar ao funcionário uma falta e responsabilizá-lo perante a Administração Pública, a fim de que esta lhe imponha a punição cabível.

A ideia da impessoalidade apresentada foi endossada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, quando reproduz a lição de José Afonso da Silva acima apresentada (in Direito Administrativo, 25ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 68). Também Diógenes Gasparini refere em sua obra a ideia de impessoalidade ora analisada (in Direito administrativo. 17ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 63).

É possível, neste sentido, fazer uma ligação entre o sentido de impessoalidade trazido por José Afonso da Silva e a atribuição jurídica a uma vontade e a uma ação ao Estado que Celso Antônio Bandeira de Mello refere, visto acima. De fato, não dotando o Estado de manifestação anímica e vida psicológica próprias, seus atos são exercidos por seus agentes, cujas consequências, quando exercidos no desempenho das funções estatais, revela a responsabilidade civil do Estado.

Sobre governo impessoal, valemo-nos da doutrina de André Ramos Tavares, citando Cármen Lúcia Antunes Rocha:

Estado de Direito e governo impessoal

Como afirma Cármen Lúcia Antunes Rocha, “O Direito dota de personalidade própria o Estado, que não assume a pessoalidade do governante”. O Estado de Direito ignora a pessoa que momentaneamente estiver no centro do poder. Apresenta características próprias, inconfundíveis com as características do detentor do poder.

[...]

Significado do princípio da impessoalidade

O princípio em epígrafe apresenta duas vertentes na análise de seu conteúdo.

[...]

De outra parte, o princípio da impessoalidade aplica-se internamente à Administração, para evitar que esta apresente-se com a marca pessoal do ocupante momentâneo do poder ou outra fórmula de identificação de sua pessoa. Nesse sentido, todos os atos praticados no exercício de função pública são imputáveis à Administração, e não à pessoa que o executa.

Para correlacionar a imputação das ações dos agentes, o Direito Administrativo passou por algumas teorias, inicialmente estabelecendo que os agentes eram mandatários do Estado (teoria do mandato). A seguir, sobreveio a teoria da representação, em que considerava os agentes representantes do Estado. Finalmente, com Otto Gierke, se apresentou a teoria do órgão, que traz a ideia de imputação da ação dos agentes à vontade jurídica da pessoa jurídica. Vejamos a evolução na relação órgão/pessoa, com apoio em José dos Santos Carvalho Filho:

Primitivamente se entendeu que os agentes eram mandatários do Estado (teoria do mandato). Não podia prosperar a teoria porque, despido de vontade, não poderia o Estado outorgar mandato.

Passou-se a considerar os agentes como representantes do Estado (teoria da representação). Acerbas foram as críticas a essa teoria. Primeiro, porque o Estado estaria sendo considerado como uma pessoa incapaz, que precisa da representação. Depois, porque se o dito representante exorbitasse de seus poderes, não se poderia atribuir responsabilidade ao Estado, este como representado. A solução seria, à evidência, iníqua e inconveniente.

Por inspiração do jurista alemão OTTO GIERKE, foi instituída a teoria do órgão, e segundo ela a vontade da pessoa jurídica deve ser atribuída aos órgãos que a compõem, sendo eles mesmos, os órgãos, compostos de agentes.

Na teoria do órgão, o que se destaca é o denominado princípio da imputação volitiva que, nas palavras de Carvalho Filho, “a vontade do órgão público é imputada à pessoa jurídica cuja estrutura pertence”, exatamente como exposto. Prossegue o autor, dizendo que “há, pois, uma relação jurídica externa, entre a pessoa jurídica e outras pessoas, e uma relação interna, que vincula o órgão à pessoa jurídica que pertence”.

Ou seja, pela imputação volitiva, ressoa coerente entender que a relação entre o Estado e o lesado é a relação externa, a qual não diz respeito ao órgão e o agente que executa as funções. A relação entre o órgão e a pessoa jurídica a que pertence é interna, fora do diâmetro jurídico entre o lesado e o Estado. Assim, de qualquer ângulo que se observe, não há como entender possível o lesado ajuizar a ação diretamente em face do agente, dado que este somente responderá perante a Administração, nos casos de comprovação de dolo ou culpa, em regresso (relação interna).

2.3 - Um argumento estrutural: a democracia republicana e a institucionalização da organização administrativa

Marçal Justen Filho faz uma abordagem interessante acerca da democracia republicana e os reflexos na Administração Pública. Ressalta uma natureza institucional, que, organizadamente, garanta a promoção de valores fundamentais. 

Certo que esse desiderato vai ser melhor alcançado se institucionalmente a Administração Pública tiver uma estrutura que permita aos seus agentes agir somente para a busca do interesse público. Isso era prejudicado enquanto adotada uma “concepção napoleônica” da Administração Pública, ou seja, um modelo estruturalmente hierarquizado, em que as decisões são centralizadas no escalão mais elevado, sem distribuição de responsabilidades e reconhecimento dos demais agentes. São suas palavras:

14.3 A democracia republicana: a proteção ao ocupante da função relevante

    A Administração Pública não é apenas um conjunto de pessoas. Ela tem natureza institucional, o que significa um conjunto de pessoas atuando de modo organizado, permanente e contínuo, segundo regras específicas e comprometidas com a promoção de valores fundamentais.

14.3.1 A concepção napoleônica da Administração Pública

    A organização administrativa dos agentes estatais é fortemente influenciada pelo modelo napoleônico, que organizou as atividades administrativas segundo uma feição militar. Isso se traduz numa estrutura piramidal hierarquizada, em que todas as decisões são centralizadas no escalão mais elevado.

Marçal defende a institucionalização da organização administrativa, já que a concepção anterior (“napoleônica”) se torna incompatível com a democracia e o risco de ineficiência. O autor traz como um dos elementos base do modelo institucionalizado o reconhecimento de garantias aos servidores públicos. Busca, com Max Weber, uma estrutura burocrática estável, que, assim, vai neutralizar as influências indevidas:

    A estruturação da atividade administrativa em carreiras estáveis, com o reconhecimento de garantias aos servidores públicos, reflete a diferenciação entre o corpo administrativo burocrático e os cargos de direção superior. Não é possível impor a todos os exercentes das funções administrativas uma vinculação subjetiva à vontade da autoridade superior.

    A estruturação hierárquica da organização administrativa não significa a necessidade de que o conteúdo de cada ato praticado pela autoridade inferior seja compatível com a vontade da autoridade superior. Cada agente administrativo é responsável pelos atos que praticar, sendo incabível reputar que a validade do ato praticado por um agente administrativo dependa da concordância com a vontade do superior hierárquico.

    Tal como apontado por Max Weber, a estrutura burocrática estável é condição inafastável para a legitimidade democrática do poder político. A democracia exige que as funções públicas sejam exercidas por pessoas físicas integradas de modo permanente nas instituições estatais, sujeitas a um regime jurídico que lhes imponha e assegure atuação orientada à realização do direito. Isso significa a neutralização de influências indevidas, provenientes seja dos poderosos, seja da própria massa popular.

A argumentação exposta é muito procedente. Se não estivermos diante de uma estrutura burocrática com estabilidade, a sujeição dos agentes a influências externas indevidas, advindas dos poderosos ou mesmo da massa popular, pode comprometer uma Administração Pública eficiente, uma boa Administração Pública.

Por boa administração entendemos, com Cirne Lima, aquela que prima pela “ausência de subjetividade”, o que reflete na busca eficiente da finalidade pública. Há uma correlação entre os princípios da impessoalidade, moralidade e eficiência, com base na ética e probidade:

Como se pode observar, as três acepções [do princípio da impessoalidade] confluem para definir a correta atuação do Estado enquanto administrador, relativamente à sua indisponível finalidade objetiva, que vem a ser aquela expressa na legislação, ou seja, totalmente despida de qualquer inclinação, tendência ou preferência subjetiva, mesmo em benefício próprio, condição que induziu Cirne Lima a afirmar que a boa administração é a que prima pela “ausência de subjetividade” [...].

A autonomia deste princípio [da moralidade], que, como se alertou, não deve ser confundido com a moralidade tout court, tampouco com o conceito de moralidade média, pois decorre de seu sentido rigorosamente técnico, correlacionado aos conceitos administrativos. Com efeito, enquanto a moral comum é orientada por uma distinção puramente ética, entre o bem e o mal, a moral administrativa é orientada por uma diferença prática entre a boa e a má administração.

[...]

Como excelentemente expôs Antonio José Brandão, “tanto infringe a moralidade administrativa o administrador que, para atuar, foi determinado por fins imorais ou desonestos (‘moral comum’), como aquele que desprezou a ordem institucional e, embora movido pelo zelo profissional, invade a esfera reservada a outras funções, ou procura obter mera vantagem para o patrimônio confiado à sua guarda”. Em ambos os casos há imoralidade administrativa, porque o ato praticado se desviou de seu reto fim institucional. Em ambos, também, a ineficácia do ato não decorrerá diretamente da violação de qualquer regra da moral comum, mas, indiretamente, da violação do princípio da boa administração, que deve ser o inafastável suporte ético da atividade administrativa pública.

Temos, primeiro, que a expressão burocracia não traz de forma inexorável uma carga negativa, já que fazemos uso do seu conteúdo atrelado à organização. A burocracia, neste sentido, é o que garante a institucionalização da Administração Pública. Deste modo, também fazendo uso de uma expressão perigosa, cremos que uma certa “blindagem” do servidor público faz com que se sinta mais infenso à parcialidade, permitindo que aja livremente na consecução do bem comum, escopo maior da Administração Pública.

Até mesmo essa “blindagem” (as aspas não são em vão) deve ser entendida com cautela. Não há uma blindagem no sentido de amesquinhar a responsabilidade do agente que se porta com dolo ou culpa na criação de um mal ao administrado. 

Muito pelo contrário, será em regresso acionado, na manifestação de um poder-dever do órgão a que pertence. Esse proceder está positivado na Lei n.º 4.619/65, que dispõe sobre a ação regressiva em face do agente público federal, ditando que o Procurador da República (hoje deve ser lido, à luz da CRFB, Advogado da União) está obrigado a ajuizar a ação (art. 1º). Também assim reza o art. 122, § 2º, da Lei 8.112/1990.

A “blindagem” a que nos referimos é um dos vetores da dita dupla garantia pelo Supremo Tribunal Federal, abordada no item 1.2 do presente trabalho no voto do Min. Ayres Britto interpretando o art. 37, § 6º, da CRFB, que assegurar ao servidor estatal somente responder administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular, não diretamente ao administrado/lesado.

2.4 - Um argumento estrutural ilegítimo: “escolha” do lesado entre receber via precatório ou atingindo o patrimônio do agente - violação da regra do art. 100 da CRFB - crise de identidade do devedor diante da pluralidade de relações jurídicas (interna e externa)

Consoante exposto no item 1.1, o Min. Salomão, em seu voto, referiu que a opção pelo ajuizamento da ação de responsabilidade civil diretamente em face do agente estatal iria afastar o lesado de submeter-se ao sistema de precatório, beneficiando-o.

Ocorre que os pagamentos devidos pela Fazenda Pública, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão, conforme art. 100 da CRFB, exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Aqui voltamos a reiterar, com base no sistema da regressividade, presente nas Constituições brasileiras desde 1946, que não tem mais vigência o modelo da solidariedade.

Era, de fato, o modelo da solidariedade que permitia ao credor optar por qualquer um dos devedores acionar ou receber seu crédito. Essa sistemática, sim, poderia autorizar uma escolha entre receber via precatório (acionando o Estado) ou diretamente do agente estatal (comprovando sua culpa ou dolo).

O ponto nevrálgico é que não se pode aproveitar uma situação de crise econômica, que afeta algumas unidades da federação quanto ao pagamento de suas dívidas, para quebrar uma garantia prevista expressamente na Constituição da República e decorrente do atual sistema de distribuição de responsabilidades entre o agente estatal e o Estado (sistema da regressividade).

Isto é, sendo definida a existência de duas relações, uma interna (entre agente estatal e Estado, de regresso) e outra externa (entre Estado e administrado), há uma crise de identidade, perante o terceiro, daquele que realmente deve arcar com a indenização (perante ele, o Estado) e daquele que, internamente, caso comprovado culpa ou dolo, vai responder em regresso.

O argumento da situação calamitosa de algumas unidades da federação em relação ao pagamento de seus precatórios não é legítimo. Faz do agente estatal um instrumento para a consecução de um fim econômico do lesado visando a superar um déficit institucional da Administração Pública. A instrumentalização do ser humano põe em risco até mesmo a autonomia do agente estatal, ferindo sua dignidade, pilar da Constituição (art. 1º, III).

Para controlar o caos referente à crise dos precatórios, a própria CRFB dispõe do instituto da intervenção federal, nos termos do art. 34, inc. V, “a)”, que permite uma relativização da autonomia do Estado federado em busca do restabelecimento da ordem. 

Por outro lado, o fato de ser tímida a aplicação desse instituto pelo Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente entende que não basta o simples inadimplemento do precatório devido à insuficiência transitória de recursos financeiros, sem omissão voluntária e intencional do ente federado, indeferindo os múltiplos pedidos de intervenção, não pode autorizar uma manobra jurídica que satisfaça o interesse econômico do lesado perante a Administração Pública.

Reiteramos a necessidade de preservação dos caracteres mínimos da instituição e da burocracia, naquele sentido positivo que propomos no item acima, com o escólio de Marçal Justen Filho e Max Weber. Arruinar disposições institucionais emanadas diretamente da CRFB para atender interesse econômico acaba por empregar odiosa utilidade do sistema, que corrompe a identidade do verdadeiro responsável civil. Lembremos: o agente age em nome do Estado (teoria do órgão), sendo sua conduta imputada ao Estado. Se o Estado é o responsável pelo dano, ele, por ser o devedor da obrigação, deve arcar com a indenização conforme o sistema previsto no art. 100 da CRFB.

2.5 - Conclusões parciais

O Supremo Tribunal Federal, guardião precípuo da Constituição, vem aplicando o correto entendimento da matéria, em detrimento das posições vistas no Superior Tribunal de Justiça.

Servem de auxílio os argumentos acima listados no sentido da necessária identificação do devedor e superação do regime de solidariedade, que não mais vige no ordenamento pátrio. Portanto, entendemos que age com total razão o STF ao proclamar, nas suas últimas decisões, que não se admite o ajuizamento direto em face do agente estatal em casos de responsabilidade civil do Estado, ainda que o lesado aponte a ele conduta dolosa ou culposa. 

No ponto, José Afonso da Silva é conclusivo:

A obrigação de indenizar é da pessoa jurídica a que pertence o agente. O prejudicado há que mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente causador do dano. O princípio da impessoalidade vale aqui também.

Contudo, apesar de acertada a decisão do Supremo, ela nos parece incompleta. Isso porque inadmitir o agente estatal no polo passivo da ação não significa o mesmo que rejeitar qualquer espécie de sua participação na ação indenizatória. Entendemos pela existência de interesse do agente estatal no sentido de colaborar de alguma forma com o Estado na defesa da imputação de ato contra si, até porque, na ação de regresso, é o agente que arcará, alfim, com o valor da indenização.

Por isso, no capítulo a seguir lançamos mão de uma ideia que contemple um processo justo, equânime, participativo, que legitime a ação regressiva sem violação a contraditório e ampla defesa, isso considerando a relação interna entre Estado e agente, que pode se desenvolver de forma autônoma no processo que contempla a relação externa entre Estado e lesado. É o que chamamos da busca pelo “giusto processo”.


III - EM BUSCA DE UM “GIUSTO PROCESSO”: A ADESÃO VOLUNTÁRIA DO AGENTE ESTATAL NA RELAÇÃO PROCESSUAL ENTRE O LESADO E O ESTADO

3.1 - Esclarecimentos iniciais

Defendemos no presente trabalho que o administrado não pode ajuizar sua pretensão indenizatória diretamente em face do agente estatal, cabendo-lhe buscar a reparação em face do Estado que, nos casos de dolo ou culpa, agirá em regresso contra o agente faltoso. Com isso, apoiamos a tese da “dupla garantia” que vem sendo consagrada pelo Supremo Tribunal Federal.

Essa premissa se mantém incólume, no entanto buscamos neste momento aprimorar a relação jurídica que nasce diante de uma conduta comissiva ou omissiva do Estado, que tenha como protagonista uma conduta dolosa ou culposa de agente estatal. Lembre-se que, segundo Yussef Said Cahali, 

A identificação dos sujeitos que devem integrar o polo passivo da ação indenizatória, para saber se a demanda pode ser proposta contra o Estado e o agente em litisconsórcio facultativo possível, se deve ser proposta apenas contra o Estado ou se pode ser proposta apenas contra o agente, e se seria admissível, em qualquer caso, a denunciação recíproca da lide, deve ser examinada necessariamente a partir de uma distinção fundamental, que decorre do art. 37, § 6º, da Constituição.

Assim: a) se a pretensão inicial deduzida pelo prejudicado funda-se na responsabilidade civil objetiva do Estado, com arguição da culpa anônima do serviço público, de falha administrativa, de risco da atividade estatal desenvolvida; ou b) se a pretensão inicial deduzida pelo prejudicado funda aquela responsabilidade em ato doloso ou culposo imputado ao agente individualizado.

Desta forma, como esclarecimento inicial, impõe delimitar nosso estudo na ideia de que o lesado requer em juízo a responsabilidade civil do Estado utilizando como argumento a existência de agir culposo ou doloso de agente seu. Neste sentido, conquanto defendamos a necessidade de que o processo tenha no polo passivo, ordinariamente, somente o Estado, é certo que, pelo poder-dever de regresso, o que for decidido nos autos da ação indenizatória repercutirá na esfera de interesse jurídico do próprio agente estatal.

Com base nisso, propomos uma forma que se garanta ao agente estatal, sponte sua, intervir no feito para proteger interesse próprio, ao mesmo tempo em que ressaltamos a autonomia entre a relação existente entre o Estado e o lesado (relação externa) e o Estado e o agente estatal (relação interna).

3.2 - Pensando a intervenção do agente como terceiro: sobrevôo nas modalidades previstas no CPC

Com vistas a obter o “giusto processo”, entendemos ser crucial a participação do agente estatal sobre o qual recai a imputação de agir com dolo ou culpa na consecução do dano a ser reparado pelo Estado. Participação esta que deve advir da vontade do agente estatal, não ao talante do lesado. Eis a distinção: o que pretendemos é que o agente, instado sobre a acusação de ter, por sua conduta em nome do Estado, dolosa ou culposa, causado dano a terceiro, possa intervir nos autos da ação indenizatória em busca de proteger interesses próprios da relação interna que mantém com o Estado, a qual fundamentará a ação regressiva.

É neste sentido que propomos a intervenção do agente como um terceiro. Quando Athos Gusmão Carneiro inicia as ideias do conceito de terceiro em sua clássica obra “Intervenção de terceiros”, revela que tal conceito é obtido por negação. A seguir, identifica situações em que os terceiros são (i) totalmente indiferentes a determinada demanda; (ii) atingidos pela demanda no plano dos fatos, daí serem juridicamente indiferentes; (iii) os que possuem interesses jurídicos refletidos na demanda, mas de forma indireta e mediata; (iv) finalmente, os que, também com interesses jurídicos na demanda, ostentam interesse jurídico direto e imediato na causa.

Idealizamos o interesse do agente estatal, no caso proposto, como um interesse jurídico indireto e mediato, já que não podemos falar que seja ele um co-titular da relação jurídica pendente e, desta forma, ser um litisconsorte. Lembremos, uma vez mais, que o sistema atual, desde a Constituição de 1946, é o da regressividade, não da solidariedade.

Assim, afastamos de plano qualquer ideia de chamamento ao processo, porque não se trata de solidariedade; de nomeação à autoria, porque não há detenção da coisa em nome alheio; de oposição, porque não há pretensão sobre coisa ou direito que controvertam as partes originárias. Restam-nos as figuras da assistência e da denunciação da lide.

A denunciação da lide representa, numa primeira leitura, um encaixe com a ideia de regresso prevista no art. 37, § 6º, da CRFB, pois uma das sua hipóteses é, justamente, a situação de o terceiro estar obrigado, pela lei ou pelo contrato, a indenizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

Ocorre que, neste particular, há um problema estrutural. O Estado, para denunciar à lide o agente estatal, deverá reconhecer que ele agiu com dolo ou culpa, que representa a conditio sine qua non para o regresso, comprometendo, a um só tempo, a própria defesa do Estado e o seu ônus em responder a demanda, já que estaria transferindo o encargo ao agente estatal de defender-se. Cahali, quando aborda a denunciação, trouxe o seguinte argumento: “se na contestação a Administração defende seu servidor, sustentando que o mesmo não agiu com dolo ou culpa, não pode, ao mesmo tempo, denunciá-lo à lide. Tal contradição inviabiliza a utilização do instituto, sendo de se decretar a inépcia do pedido de intervenção”.

Outro problema é que na denunciação da lide o julgamento será conjunto nos próprios autos, e isso compromete a ideia da regressividade atinente à relação interna entre o Estado e o servidor, que é diferente, por exemplo, de uma relação entre seguradora e segurado (exemplo ordinário de denunciação da lide pela sistemática do CPC). Isso porque o agir em regresso do Estado em face do servidor não pressupõe apenas a condenação, o título executivo, mas sim o efetivo dispêndio, ou seja, a “viagem de ida” a que alude o STF nos precedentes citados no item 1.2.

Acerca da ação regressiva, Gasparini ressalta que

[...] a recuperação é feita mediante a interposição da competente ação regressiva. Ao Estado também se assegura, nessas hipóteses, o direito de regresso, como ocorre em nosso ordenamento jurídico, e assim prescrevem tanto a Constituição Federal (art. 37, § 6º) como o Código Civil (art. 43), ainda que em termos não absolutamente iguais. A ação regressiva é medida judicial de rito ordinário, que propicia ao Estado reaver o que desembolsou à justa do patrimônio do agente causador direto do dano, que tenha agido com dolo ou culpa no desempenho das suas funções.

[...]

São requisitos dessa ação: a) a condenação da Administração Pública a indenizar, por ato lesivo de seu agente; b) o pagamento do valor da indenização; c) a conduta lesiva, dolosa ou culposa do agente causador do dano. Desse modo, se não houver pagamento, não há como justificar o pedido de regresso, mesmo que haja sentença condenatória com trânsito em julgado e o agente tenha-se conduzido com dolo ou culpa.

São estas as razões pelas quais entendemos que o regresso previsto no art. 37, § 6º, do CRFB, no “giusto processo”, não é comportado pela referida via de intervenção de terceiro.

Resta-nos enfrentar a assistência, que se divide em assistência simples e assistência litisconsorcial. Acerca do tema, comenta Barbi:

Espécies de assistência - Modernamente, distinguem-se dois tipos de assistência: a) simples, ou adesiva, que se verifica quando não está em litígio um direito do terceiro, mas ele tem interesse na vitória do assistido, porque ela pode beneficiar outro direito do assistente. Esse outro direito do assistente, porém, não está em discussão na causa. [...] b) qualificada, ou litisconsorcial, quando a intervenção do terceiro se justifica porque o direito em litígio é do assistido, mas também do assistente, o qual teria legitimação para discuti-lo sozinho, ou em litisconsórcio com outros co-titulares dele. [...] Como o terceiro nesse caso é também co-titular do direito em debate, e poderia litigar como parte inicialmente, dá-se a essa assistência o nome de litisconsorcial, e o assistente tem posição de litisconsorte.

Como já defendemos que não há co-titularidade entre o Estado e o agente estatal, já que isso foi fruto do sistema anterior de solidariedade presente nas Constituições de 1934 e 1937, entendemos que a única forma legítima de intervenção do agente estatal como um terceiro é por meio da assistência simples (adesiva).

O interesse jurídico, na espécie, se traduz quando, “entre o direito em litígio e o direito que o credor quer proteger com a vitória daquele, houver uma relação de conexão ou de dependência, de modo que a solução do litígio pode influir, favorável ou desfavoravelmente, sobre a posição jurídica de terceiro”. No caso, para além do interesse jurídico representado pela dependência que emerge a ação de regresso da condenação na ação indenizatória, há, também, um outro interesse de roupagem econômica mas que não perde a sua juridicidade.

Referimo-nos à quantificação do título judicial que se está a formar, uma vez que é pelo valor pago pelo Estado que seguirá a ação de regresso.

Com efeito, a busca do “giusto processo” deve admitir a participação do agente estatal, por vontade própria, até mesmo para que contribua para a formação do título que, posteriormente, será contra si agido em regresso. O interesse do agente estatal também está na quantificação do dano, pois, reflexamente, arcará com aquilo que foi pago pelo Estado na ação indenizatória.

Como assevera Cretella Jr., 

Caracteriza-se o direito de regresso, por meio da propositura da denominada ação regressiva, ou seja, o direito subjetivo público do Estado de exigir do funcionário público a devolução (solve et repete) da quantia que ele, Estado, pagou adiantadamente ao particular, em casos de responsabilidade civil, ocasionada por ato danoso do agente público, nas hipóteses de dolo ou culpa, conforme o que preceituam os dispositivos constitucionais e leis federais pertinentes.

Atente-se que não é nem mais, nem menos do que o Estado pagou. Nem mais, para evitar enriquecimento sem causa pelo Estado; nem menos, para evitar que a sociedade como um todo arque com um ônus cuja legitimidade para saldá-lo está identificada na pessoa do agente causador do dano (com dolo e culpa).

No subitem seguinte escrevemos algumas linhas sobre uma proposta destinada a alcançar um processo dialogicamente adequado, que torne legítima a ação em regresso do Estado.

3.3 - Uma ideia de “lege ferenda” ante a insuficiência das modalidades de intervenção de terceiro previstas no CPC para o trato da relação jurídico-administrativa interna entre o Estado e o agente estatal causador do dano com dolo ou culpa

A abordagem das figuras de intervenção de terceiro, com base nos modelos previstos no CPC, revela sua insuficiência para o trato da matéria. Até chegar à conclusão de que a alternativa mais aceitável seria a assistência simples, levando em consideração a qualidade das partes envolvidas (solidariedade, litisconsórcio etc.), outras nuances devem ser destacadas, típicas da relação administrativa, que não são comportadas pelo ordenamento processual civil ordinário.

Com efeito, a assistência simples é tida como uma adesão voluntária do terceiro, o que deve ser visto cum grano salis na relação proveniente de uma ação indenizatória em face do Estado (unicamente em face do Estado, como defendemos). Isso porque nem sempre o agente estatal a que se atribui dolo ou culpa pelo dano tomará ciência do processo aforado, até porque, não sendo parte, não tem necessidade de ser citado para a angularização processual. 

Desta feita, um “giusto processo” que se propõe assegurar uma dimensão maior de contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CRFB), inclusive na relação interna entre o agente estatal e o Estado, pressupõe um mecanismo em que seja notificado o agente para, querendo, intervir no processo. O que fica difícil quando o CPC autoriza isso, por exemplo, apenas em caso de litisconsórcio, parágrafo único (e, dissemos, a figura do litisconsórcio na ideia de solidariedade não mais se admite).

Dado que ao magistrado incumbe conduzir o processo, não se lhe é permitido, em regra, interferir na abertura ou restrição do polo passivo, sob pena de malferimento ao princípio da congruência. O que nos parece possível é expedir uma notificação ao agente estatal que se imputa a prática de ato doloso ou culposo, tal como ocorre, por exemplo, na Lei do Mandado de Segurança (Lei n.º 12.016/2009), art. 7º, II, segundo o qual o juiz ordenará, ao despachar a inicial, que se dê ciência do feito ao órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da inicial sem documentos para que, querendo, ingresse no feito.

Talvez este seja um mecanismo que vá ao encontro da adesão voluntária do terceiro de que cuida a assistência simples e possa, sem comprometer o regular andamento do processo, a participação ativa do agente estatal, caso seja do seu interesse.

Um outro problema que exsurge do tratamento ordinário dado pelo CPC à figura da assistência é que o agente estatal receberia o processo no estado em que se encontre ao tempo do seu ingresso (art. 50, parágrafo único). Caso o curso esteja avançado nesta ocasião, com a produção probatória encerrada, por exemplo, pouco pode agir para contribuir de alguma forma, perdendo efetividade a sua participação e tolhendo a possibilidade de discutir o título judicial que se formará e baseará a ação de regresso.

Tomemos como base que a repartição a que presta as funções e onde se criou o dano a ser reparado simplesmente encaminhará “a conta”, na ação regressiva, ao servidor que tenha agido com dolo ou culpa. Neste caso, por óbvio o título de que falamos já transitou em julgado, pouco lhe restando fazer para quebrar a força da coisa julgada. Neste ponto, nos surgem dúvidas acerca da validade e aplicação do CPC, quando lista hipóteses em que o assistente poderá discutir a justiça da decisão, desde que e somente quando comprove que foi impedido de produzir provas suscetíveis de influir na sentença ou que desconhecia a existência de alegações ou de provas, de que o assistido (Estado), por dolo ou culpa, não se valeu.

A bem da verdade, o que idealizamos é que o agente estatal tenha oportunidade de participar de forma ativa e efetiva da ação indenizatória desde o princípio, recebendo notificação com cópia da petição inicial para, querendo, ingressar no feito e acompanhá-lo até o fim.


CONCLUSÃO

O texto foi dividido em três capítulos, com temas bem definidos que se concatenam para o nosso propósito de, além de revelar o atual tratamento dado à matéria, de forma crítica, expor, talvez, uma ideia que possa aprimorar o sistema.

A responsabilidade civil do Estado, no viés aqui apresentado, comumente não é tratada na doutrina. As exposições findam no ponto em que se anuncia que o agente, se agir com culpa ou dolo, será demandado em ação regressiva. Contudo, a operacionalização desse regresso é ponto omisso na maioria dos manuais.

Um elemento que nos moveu a abordar a temática foi, inicialmente, a controvérsia instalada entre o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, mormente quando o STJ, nos seus julgamentos, aponta que a jurisprudência do Pretório Excelso é linear no sentido de admitir o acionamento direto do agente estatal. Não é, como visto no item 1.2.

Isso já compromete a força da decisão do STJ, a qual também foi por nós combatida no mérito, sempre defendendo que a leitura mais adequada do art. 37, § 6º, da CRFB, contempla uma segunda garantia, para além daquela destinada ao lesado, que prevê o acionamento do agente estatal apenas em regresso.

Esse regresso de que falamos não é um regresso ordinário, contemplado pelo CPC na figura da denunciação da lide, por exemplo. É um regresso que deve adequar-se às linhas do Direito Administrativo, contendo especificidades. Estas especificidades não podem ser ignoradas, já que são previstas justamente para dar uma institucionalização à Administração Pública, conferindo-lhe plena estrutura para realizar de forma livre o seu mister da consecução do interesse público, na visão democrática que propomos.

Por isso, a premissa inicial em que nos fundamos é de que, efetivamente, o agente estatal não pode ser demandado diretamente pelo administrado. Para tanto, fizemos uso do regime de regressividade que está em vigência desde a Constituição de 1946, que veio em detrimento do regime de solidariedade previsto nas duas Constituições anteriores.

O sistema da regressividade representa uma inovação jurídica advinda de uma nova ordem constitucional. Até então (Constituições de 1934 e 1937), vigia o sistema da solidariedade, que consagrava uma concorrência de devedores e anunciava a possibilidade legítima de o lesado agir, a sua escolha, diretamente contra o agente ou em face do Estado. Por isso entendemos que os defensores da solidariedade não argumentam um sistema de total impossibilidade jurídica, apenas está em descompasso com a ordem constitucional contemporânea.

Também preocupa o fato da instrumentalização desenfreada do processo com o fim de obter vantagem econômica com brevidade. Referimo-nos ao argumento de que o administrado/lesado, agindo diretamente em face do agente estatal, estaria se beneficiando em não receber pelo pagamento do precatório. 

Neste ponto, não somos indiferentes à situação atual desesperadora de algumas unidades da federação (e o Estado do Rio Grande do Sul é exemplo disso), no sentido de que o regime de precatórios pode representar, hoje, uma declaração vazia de direito a receber crédito, que será vivenciado somente por descendentes remotos do destinatário dos valores.

Ocorre que o sistema não pode ser quebrado por interesses que não são albergados pela ordem constitucional. Isso porque a escolha entre receber do Estado e receber do agente não está à disposição do lesado/administrado. Se assentamos que o Estado é o causador do dano, e o agente estatal age em seu nome (teoria do órgão), é o Estado que deve arcar com a indenização a que for condenado. E o modo desse pagamento, definido pela Constituição, é o sistema de precatórios (art. 100).

Este regime decorre da dualidade de relações que existe entre o lesado e o Estado (relação externa) e entre o Estado e o agente estatal (relação interna). Há autonomia nestas relações, que devem ser levadas em consideração, de modo a tratar a matéria com suas nuances típicas do Direito Administrativo.

Estabelecer uma faculdade de receber diretamente do agente estatal por não ser eficiente o pagamento por meio do precatório também viola uma outra autonomia, a sua como elemento da dignidade da pessoa humana. O agente estatal tem uma confiança de ser acionado somente em regresso quando houver comprovação de dolo ou culpa. 

A ação regressiva, também vimos, possui elementos que são distintos das regras ordinárias, como por exemplo requer a comprovação do pagamento da indenização pelo Estado, não bastando o trânsito em julgado da condenação.

É por esse motivo, igualmente, que entendemos não ser possível a denunciação da lide ao agente estatal, uma vez que, segundo o CPC, o julgamento do processo principal será em conjunto com a denunciação da lide, quebrando a sistemática da ação regressiva típica da Administração Pública que visa ao ressarcimento de indenização por responsabilidade civil do Estado.

Ao mesmo tempo, identificamos um interesse relevante do agente estatal em acompanhar o processo, como terceiro, tendo em vista que o valor constituído na sentença condenatória é o que servirá para a ação de regresso. Então, nada mais adequado que assista ao Estado na relação processual, motivo pelo qual lançamos mão da assistência simples como a modalidade de intervenção de terceiros, dentre as previstas no CPC, que se amolda com menos dificuldades.

A ideia de o agente estatal acompanhar o processo, contribuindo, sobretudo, para a quantificação do dano, efetiva interesse jurídico posto a sua disposição, daí por que essa participação não anula nossa conclusão de que o lesado não pode acionar diretamente o agente estatal. Há uma distinção muito clara entre permitir que o lesado ajuíze a demanda em face do agente estatal e que o agente estatal, querendo, acompanhe por sua vontade o processo.

Ocorre que nem mesmo a figura da assistência, tal como prevista no CPC, consegue de modo exitoso permitir a formação do almejado “giusto processo”. Há alguns elementos que precisam ser aprimorados, como a forma de ingresso do agente (sugerindo seja mediante notificação, com ciência do processo, semelhantemente à previsão do art. 7º, II, da Lei do Mandado de Segurança), bem como os efeitos do recebimento do processo no estado em que se encontre que, se não for relativizado, pode comprometer de modo definitivo qualquer efetividade na sua participação. Deixamos estas proposições, na medida em que não puderem ser cumpridas pelo poder geral de cautela do juiz, de lege ferenda.

Ante tudo o que foi exposto, concluímos que há um grande passo na definição do tema, conforme vem decidindo o Supremo, cabendo ao STJ, se não preferir amoldar-se à conclusão do STF, rebatê-lo pelo menos criticamente. O sistema processual dos recursos pode auxiliar na estabilização da matéria.

Além disso, reflexões sobre a participação voluntária do agente estatal, considerando seu interesse eminentemente jurídico na formação do título, na demanda indenizatória devem impulsionar a criação de um modelo que permita chegar-se ao “giusto processo”, como aquele que, com dialeticidade, dá voz aos comandos do contraditório e ampla defesa, no que diz respeito a uma discussão independente da relação interna entre Estado e agente no bojo da relação processual formada entre o administrado e o Estado, sem comprometer a razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII, CRFB).

Somente acompanhando o curso inteiro do processo, e prestando auxílio ao Estado, poderemos entender que houve um “giusto processo” e extrair legitimidade da ação regressiva que a Administração Pública deverá ajuizar em face do agente estatal.

As ideias básicas devem estar bem claras: a conduta do agente no exercício do seu mister deve ser imputada ao Estado (teoria do órgão - impessoalidade), que, se causar danos, leva o lesado a buscar reparação civil com base na responsabilidade civil do Estado. O lesado deve ajuizar a ação contra o Estado, causador do dano que, se houver identificação do agente estatal que tenha agido com dolo ou culpa, faz nele surgir um interesse jurídico de acompanhar o processo, assistindo ao Estado, caso ele – o agente – entenda prudente. 

Com a participação do agente estatal, que será agido em regresso caso comprovado dolo ou culpa, a busca pelo ressarcimento do valor definido no título judicial vai ser muito mais legítima, já que formada com uma base dialógica sólida.

É esta a solução adequada que propomos à temática, sem quebrar as propriedades e peculiaridades do regime administrativo que há na relação entre o agente estatal e o Estado nas situações em que o Estado cause danos a terceiros.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANCHOTENE, Danilo Gomes. Dupla garantia na responsabilidade civil do Estado: garantia em função do servidor ou do administrado?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5160, 17 ago. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37322. Acesso em: 5 maio 2024.