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O regime do anistiado

um elo entre a democracia e a relação de trabalho

O regime do anistiado: um elo entre a democracia e a relação de trabalho

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SINOPSE: 1. Considerações iniciais; 2. O sentido histórico do termo anistia; 3. O sentido da política; 4. A inclusão no regime do anistiado; 5. Direito e espécies de reparação; 6. Outros direitos do anistiado; 7. A competência funcional dos ministérios e a Lei 10.559/2002; 8. Os litígios envolvendo anistiados e a transação judicial; 9. Conclusão; 10. Bibliografia.


1.CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Definitivamente o Brasil avança ao tentar reparar pelo menos parcialmente a todos os que sofreram graves violações de direitos humanos perpetradas pelo aparelho de repressão ideológica que se reproduziu em todos os setores da vida nacional, inclusive no âmbito das relações de trabalho.

Louve-se antecipadamente a preocupação do constituinte de 1988 que, além de reafirmar a competência da União para conceder anistia (art. 21, XVII) e de atribuir ao Congresso Nacional (art. 48, VIII) a tarefa de dispor sobre o perfil jurídico do referido instituto, disciplinou a matéria através do art. 8º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Essa anistia constitucional foi concedida a todos que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, foram punidos por decisões de cunho exclusivamente político, tais como atos de exceção ou medidas institucionais.

A Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, foi editada para regulamentar o art. 8º do ADCT e instituir finalmente o regime do anistiado político, contemplando assim os trabalhadores, públicos e privados, que foram punidos por motivação exclusivamente política no período compreendido entre 18.09.1946 e 5.10.1988, datas estas carregadas de inestimável sentido histórico, haja vista que coincidem com os dias de promulgação das duas constituições mais democráticas do país, a de 1946 e a de 1988.


2. O SENTIDO HISTÓRICO DO TERMO ANISTIA

A anistia surge com o sentido de perdão. Na Grécia antiga, em 594, a.C., Sólon anistiou todos os camponeses endividados. Júlio César ao vencer Pompeu, em 49 a.C, buscou uma integração da sociedade romana através da concessão da anistia aos vencidos na guerra.

Historicamente a anistia consolidou-se com o pensamento cristão como reação ao "olho por olho dente por dente" que imperou na antiguidade. A história cristã é repleta de exemplos de anistia como perdão, sendo merecedor de destaque a anistia do bom patrão aos seus devedores.

Perdoar, além de significar a oportunidade de ser absolvido em relação às conseqüências da ação, é uma forma de estancar a própria ação gerada pelo ressentimento. A rigor, o perdão remove a conexão com o resultado da ação, por isso não se trata de mera reação, mas de uma nova ação política que só pode existir na pluralidade, pois não se consegue o perdão isoladamente. Segundo Hannah Arendt (1981), Jesus é o descobridor do perdão, pois antes dele, os judeus entendiam que só Deus tinha a capacidade para perdoar. Jesus ensinou o perdão entre os homens como condição para que estes sejam perdoados por Deus. Esse era um diferencial dos ensinamentos do filho de Nazaré: o poder de punir é infinitamente menor do que o poder de abster-se de punir.

A anistia amparada no ideário cristão influenciou todos os movimentos de resistência ao despotismo no ocidente e serviu de inspiração aos mais célebres documentos de reverência aos direitos fundamentais da humanidade. Em 1689, por exemplo, os britânicos reconheceram através da Declaração de Direitos (Bill of Rights) que o respeito às liberdades incontestáveis é a condição imprescindível ao equilíbrio nas relações sociais. Com a emergência da revolução liberal houve intensa preocupação com a liberdade de opinião e com a pluralidade como marca da sociedade ocidental. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão prescrevia que a garantia dos direitos humanos necessita da força pública instituída pela vantagem de todos e não para a utilidade particular daqueles aos quais foi confiada. Embora premida de contradições, o citado documento, datado de 1789, estipulava que "qualquer sociedade na qual a garantia dos direitos não está em segurança, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição." Pouco tempo antes, a Declaração dos Direitos da Virgínia, em 1776, tinha estabelecido que em toda acusação deve ser assegurado ao acusado o direito de ampla defesa.

Dentro dessa caracterização histórica, a palavra anistia enseja, sem demora, uma crítica ao modo como a mesma foi banalizada a ponto de sugerir uma mácula passada de quem se beneficia do seu título. No sentido mais comum anistiado sempre foi entendido pelo homem mediano como alguém que tendo cometido alguma falta foi perdoado por outrem.

Mas tal visão ofusca-se por si, haja vista que se perdoa aos que cometem excessos. Não fosse a riqueza dúctil que emerge da semântica dos vocábulos seria imperdoável chamar de anistiado quem foi punido de forma ilegítima.

Comumente a anistia é mais conhecida como o ato legislativo através do qual o Estado-Juiz renuncia ao jus puniendi. Em tal conceito, conforme relata Aurelino Leal, citado por Damásio de Jesus (1992, p. 603) e Magalhães Noronha (1985, p. 335), está explícito que "o fim da anistia é uma espécie de esquecimento do fato ou dos fatos criminosos que o poder público teve dificuldade de punir e achou prudente não punir. Juridicamente os fatos deixam de existir; o parlamento passa uma esponja sobre eles. Só a história os recolhe."

Proliferou-se a praxe de os governos despóticos "perdoarem" seus "algozes" os quais são chamados de "anistiados". A rigor, reitere-se, anistiado é quem cometeu infração. Todavia, a anistia consagrou-se no direito brasileiro com dois sentidos, um na órbita do direito penal e outro na esfera do direito político. Esse segundo sentido é o que interessa ao objeto da nossa análise.

Na órbita trabalhista a anistia é comumente identificada quando subsiste uma culpa recíproca ou, ainda, quando se verifica que a aplicação da punição foi efetuada sem a observância correta dos procedimentos formais.

A anistia política, no sentido mais restrito que lhe empresta a Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, revela-se como um meio de o Estado reconhecer que seus agentes, empregaram uma conduta no mínimo negligente ou imprudente e que culminou num prejuízo para o anistiado.


3. O SENTIDO DA POLÍTICA

O regime do anistiado é exclusivo daqueles que foram punidos por decisões de cunho exclusivamente político. Mas o que vem ser "decisão meramente política" ?

O termo "política" é polissêmico e, segundo Nicola Abbagnano (1992, p. 927), pode significar a doutrina do direito e da moral, a teoria do estado, a arte ou ciência de governar e, finalmente, o estudo dos comportamentos intersubjetivos.

Para Carl Schmitt a política é uma relação de amigo-inimigo, de sorte que o seu campo de atuação fundamenta-se na existência de forças contrárias que, além de se digladiarem pela subsistência, são incompatíveis com a pluralidade. Para essa concepção, "a função da política consistiria na atividade de associar e defender os amigos e de desagregar e combater os inimigos." (Urbani, 1995, p. 959).

Essa noção defendida por Schmitt começou a ser superada no Brasil a partir do marco simbólico da Nova República, notadamente quando se optou por uma tríplice ruptura: a) ruptura contra o maniqueísmo: as novas análises buscam convivência com a adversidade, fazendo prevalecer a "lógica política", ao invés da "lógica de guerra", ou seja, refuta-se assim a concepção segundo a qual qualquer reflexão política deve contemplar a destruição do adversário; b) ruptura contra o pensamento único: significa a exaltação do pluralismo, partindo-se da idéia de que a política democrática só frutifica num ambiente caracterizado pelas diferenças; c) ruptura contra a visão instrumental da política: para as metateorias, a ação política do presente é um instrumento de passagem que, como numa epopéia, resultará no triunfo de um ideal, como por exemplo, o sonho de um mercado livre, para os liberais, ou a sociedade sem classe, para os comunistas. "Para superar este enfoque se tem proposto uma reconceptualização da utopia como uma imagem de plenitude impossível, mas indispensável para se descobrir o possível," segundo Lechner (1990, p. 29).

Torna-se importante, para a formação de uma ordem que dê sentido à política, que o homem trabalhe não com o que deve ser feito, mas com o que pode ser feito. Esse realismo força, de certo modo, a se vislumbrar um conjunto de possibilidades de trocas políticas. Essas trocas devem construir uma nova ordem durável, pois as trocas e rupturas que não tiverem essa capacidade de elaboração de algo que perdura no tempo de nada valem. Na visão de Hannah Arendt (1981), a "lógica de guerra" é incompatível com a troca política, de sorte que qualquer tipo de violência é a própria negação da ação política no seu sentido altivo.

A inspiração de qualquer ato jurídico jamais poderá desprezar os direitos fundamentais da pessoa humana. Segundo o legislador brasileiro, a punição baseada apenas em conveniência política é juridicamente considerada um ato patológico, pois a essência de tal ato inspira-se numa "lógica de guerra" que é incompatível com os postulados democráticos.

A Portaria 1.104/66, do Ministério da Aeronáutica, é um exemplo de decisão com motivação exclusivamente política, conforme dispõe a primeira súmula editada pela Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça. O ato normativo mencionado provocou a expulsão de vários militares sob o argumento de que estes não contavam com dez anos de serviços e que por isso não havia óbice ao ato de "demissão". Subjacente a alegação estava a suspeita dos chefes militares no sentido de que os afastados eram pessoas vinculadas a grupos de esquerda.

A motivação meramente política de que trata a Lei 10.559/2002 exclui a possibilidade de o beneficiário ter sido punido por motivo sério e real, haja vista que a punição alicerçada em meros aspectos políticos é imperfeita. Essa imperfeição decorre do desvio de poder, ou seja, da extrapolação da autoridade que vai além do que lhe é permitido.


4. A INCLUSÃO NO REGIME DO ANISTIADO

A Lei 10.559/2002 considera anistiados as pessoas que foram punidas por força de critérios políticos durante o período compreendido entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, dentre os quais se destacam os que foram:

"I - atingidos por atos institucionais ou complementares, ou de exceção na plena abrangência do termo;

II - punidos com transferência para localidade diversa daquela onde exerciam suas atividades profissionais, impondo-se mudanças de local de residência;

III - punidos com perda de comissões já incorporadas ao contrato de trabalho ou inerentes às suas carreiras administrativas;

IV - compelidos ao afastamento da atividade profissional remunerada, para acompanhar o cônjuge;

V - impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5;

VI - punidos, demitidos ou compelidos ao afastamento das atividades remuneradas que exerciam, bem como impedidos de exercer atividades profissionais em virtude de pressões ostensivas ou expedientes oficiais sigilosos, sendo trabalhadores do setor privado ou dirigentes e representantes sindicais, nos termos do § 2º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

VII - punidos com fundamento em atos de exceção, institucionais ou complementares, ou sofreram punição disciplinar, sendo estudantes;

VIII - abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18, de 15 de dezembro de 1961, e pelo Decreto-Lei nº 864, de 12 de setembro de 1969;

IX - demitidos, sendo servidores públicos civis e empregados em todos os níveis de governo ou em suas fundações públicas, empresas públicas ou empresas mistas ou sob controle estatal, exceto nos Comandos militares no que se refere ao disposto no § 5º do art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

X - punidos com a cassação da aposentadoria ou disponibilidade;

XI - desligados, licenciados, expulsos ou de qualquer forma compelidos ao afastamento de suas atividades remuneradas, ainda que com fundamento na legislação comum, ou decorrentes de expedientes oficiais sigilosos.

XII - punidos com a transferência para a reserva remunerada, reformados, ou, já na condição de inativos, com perda de proventos, por atos de exceção, institucionais ou complementares, na plena abrangência do termo;

XIII - compelidos a exercer gratuitamente mandato eletivo de vereador, por força de atos institucionais (conta-se apenas para efeito de aposentadoria no serviço público e de previdência social);

XIV - punidos com a cassação de seus mandatos eletivos nos Poderes Legislativo ou Executivo, em todos os níveis de governo;

XV - na condição de servidores públicos civis ou empregados em todos os níveis de governo ou de suas fundações, empresas públicas ou de economia mista ou sob controle estatal, punidos ou demitidos por interrupção de atividades profissionais, em decorrência de decisão de trabalhadores;

XVI - sendo servidores públicos, punidos com demissão ou afastamento, e que não requereram retorno ou reversão à atividade, no prazo que transcorreu de 28 de agosto de 1979 a 26 de dezembro do mesmo ano, ou tiveram seu pedido indeferido, arquivado ou não conhecido e tampouco foram considerados aposentados, transferidos para a reserva ou reformados;

XVII - impedidos de tomar posse ou de entrar em exercício de cargo público, nos Poderes Judiciário, Legislativo ou Executivo, em todos os níveis, tendo sido válido o concurso."

Uma pessoa será considerada apta para receber os benefícios da lei do anistiado político somente após postular o reconhecimento de tal condição perante o órgão do Ministério da Justiça. Portanto, a materialização dos efeitos da Lei 10.559/2002 depende do exaurimento de uma fase prévia de declaração da qualidade de anistiado.

O interessado deverá dirigir petição ao Ministro da Justiça solicitando sua inclusão no regime do anistiado político, além de indicar qual o tipo de reparação econômica postulada, única ou permanente. O pleito poderá ser subscrito pelos sucessores ou dependentes do anistiado e poderá ser enviado pelo correio.

No pedido do anistiando deverão constar seus dados pessoais e informações sobre a sua vida profissional na época em que o mesmo foi punido. É razoável que o anistiando indique as provas e as diligências que são imprescindíveis à instrução do feito. Incumbe-lhe, ainda, declinar fundamentadamente qual seria a projeção da sua situação caso não tivesse ocorrido a punição por critério exclusivamente político, ou seja, qual seria o seu provável cargo, posto ou função, bem como qual seria a sua remuneração. Para isso é importante que, se for o caso, ele faça um histórico da evolução dos benefícios indiretos e dos reajustes de sua categoria decorrentes de acordos ou convenções coletivas, sentenças normativas, etc.

No âmbito do Ministério da Justiça existe uma Comissão de Anistia composta, dentre outros, por representantes do Ministério da Defesa e dos anistiados. A referida comissão, além de se encarregar de analisar os pedidos e de assessorar o Ministro em suas decisões, tem poderes para efetuar diligências, elaborar pareceres em relação aos pedidos, ouvir testemunhas, solicitar às pessoas físicas ou jurídicas quaisquer informações ou documentos que sejam imprescindíveis à instrução do pleito de declaração de anistiado. Todavia, a importância da Comissão torna-se mais relevante pelo fato de a mesma ter poderes inclusive para arbitrar o valor da indenização, isso quando não for possível delimitar-se com precisão o lapso temporal da punição que foi aplicada ao requerente.


5. DIREITO E ESPÉCIES DE REPARAÇÃO

O Tesouro Nacional suportará as reparações disciplinadas pela Lei 10.559, de 13 de novembro de 2002. Tais indenizações são de duas espécies: a reparação econômica em prestação única e a reparação econômica em prestação continuada. O legislador foi redundante ao dizer que as referidas reparações têm caráter indenizatório, além de ter sido intencionalmente claro ao explicitar que as mesmas não podem ser concedidas cumulativamente.

A reparação econômica em prestação mensal, permanente e continuada é concedida apenas aos anistiados que, à época da punição, figuravam como sujeitos de uma relação de trabalho. Nada impede, porém, que o anistiado opte pela prestação única.

A prestação mensal em nenhuma hipótese poderá ser inferior ao salário mínimo ou superior ao teto remuneratório estabelecido para os agentes do poder público, conforme os termos do art. 37, inciso XI, e § 9º da Constituição Federal de 1988.

Os anistiados que se encontram na inatividade, na aposentadoria ou na reserva, farão jus às promoções a que teriam direito se estivessem na ativa, de sorte que tal ascensão deverá ser computada para a fixação do valor da prestação mensal. Esta corresponderá ao valor da remuneração que o anistiado receberia se ainda estivesse na ativa, levando-se em conta a sua possível mobilidade na carreira, o prazo que seria suficiente para materializar as promoções, os cargos, funções, empregos ou proventos legalmente acumulados e, se necessário for, observando os paradigmas que servem de referência isonômica. O § 4º, do art. 6º, considera "paradigma a situação funcional de maior freqüência constatada entre os pares ou colegas contemporâneos do anistiado que apresentavam o mesmo posicionamento no cargo, emprego ou posto quando da punição."

A fixação do valor do benefício deve ser feita com base em provas razoáveis, em conformidade com documentos que gozam da presunção de legitimidade, de acordo com informações sinceras de pessoas jurídicas de direito público ou privado, inclusive sindicatos ou conselhos profissionais. Os efeitos financeiros da reparação só retroagirão, conforme o caso, até 05 de outubro de 1988, todavia é facultado à Administração suscitar a prescrição qüinqüenal, considerando-se os cinco anos anteriores à data do protocolo do pleito de reconhecimento da condição de anistiado.

Os direitos adquiridos do trabalhador, inclusive as vantagens conquistadas pela categoria, devem ser sopesados na fixação do quantum da prestação. Nada obsta, e a lei até permite expressamente a hipótese, que o valor da prestação mensal seja fixado através de pesquisa de mercado.

O beneficiário da prestação terá até 02 anos, contados a partir da data de início da vigência da Lei 10.559/2002, para postular a revisão do valor do benefício. O órgão revisor terá seis meses para apreciar o pleito de revisão, contados a partir da data de protocolo da postulação revisional. O reajuste do benefício deverá coincidir com a época de concessão de aumento da remuneração do pessoal da ativa.

As prestações de que trata a Lei 10.559/2002 têm caráter indenizatório, de sorte que os valores que lhes são correlatos estão isentos de imposto de renda e não integram o salário de contribuição que serve de base para os recolhimentos previdenciários. Portanto, não são devidas contribuições ao INSS, caixas de assistência ou fundos de pensão ou previdência. Em contrapartida, o legislador eximiu tais instituições de quaisquer responsabilidades estatutárias relativamente ao período em que o anistiado sofreu as conseqüências pecuniárias do ato de punição por motivo exclusivamente político.

A reparação econômica em prestação única será concedida ao anistiado que não conseguiu comprovar a sua condição de sujeito de um vínculo laboral relativamente ao tempo em que for punido. O legislador fixou um teto máximo para a reparação única, de modo que não haverá indenização superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais). Esse valor será fixado levando em consideração o tempo em que comprovadamente o anistiado sofreu os impactos da punição. O período inferior a 12 meses será considerado como um ano completo para fins de fixação do valor da indenização.


6. OUTROS DIREITOS DO ANISTIADO

Além da prestação econômica, única ou continuada, o anistiado tem outros direitos que gravitam nas órbitas trabalhista, educacional e previdenciária.

Na esfera da relação de trabalho, o anistiado fará jus à readmissão ou a promoção na inatividade, todavia a indenização só retroagirá até 05.10.1988. A medida atinge todos os trabalhadores efetivos da administração pública, direta e indireta, que foram punidos ou demitidos em virtude de greve. Por disposição expressa do art. 8º do ADCT, a referida medida não favorece os grevistas vinculados aos ministérios militares. A readmissão é devida somente aos que foram punidos a partir de 1979. Em relação ao período anterior, a lei que instituiu o regime do anistiado assegura à reintegração ao trabalhador do setor público que foi punido por motivo de greve ou por ter realizado greve em atividade essencial de interesse da segurança nacional.

A Lei 10.559/2002 vai além e contempla com reintegração os trabalhadores que foram punidos de forma kafkiana, com base em legislação de exceção, em decorrência de instauração de processo administrativo no qual deixaram de ser observados os princípios da ampla defesa e do contraditório. Enquadra-se na referida situação todos os que foram impedidos de tomar conhecimentos dos fundamentos da decisão ou de outra forma não tiveram o direito de recorrer a um órgão revisor.

O anistiado político fará jus ainda aos benefícios indiretos (p. ex., planos de seguro, de assistência médica, odontológica e hospitalar, financiamento habitacional, etc) mantidos pelo órgão patronal a que estava vinculado na época da punição. Todavia, a legislação não permite ao anistiado acumular pagamentos ou indenização que têm a mesma causa.

Na esfera previdenciária, a medida mais relevante consiste na contagem do tempo de afastamento. Assim, o lapso temporal durante o qual o anistiado foi punido por motivação política, obrigado, em conseqüência, a afastar-se das suas atividades profissionais, será computado como tempo de efetivo serviço para todos os efeitos legais, não lhe sendo exigível, em relação ao referido período, qualquer valor referente às contribuições previdenciárias.

Na esfera da educação, a Lei 10.559/2002 possibilita ao anistiado, que estudava em escola pública, retomar a sua formação educacional que foi interrompida em decorrência do ato de motivação exclusivamente política. Com efeito, o legislador permite que o anistiado conclua seu curso em escola pública. Inexistindo esta, o anistiado terá prioridade para receber bolsa de estudo do poder público. O texto da lei referida assegura a validação do diploma em relação ao anistiado que concluiu seu curso em instituições de ensino do exterior, desde que estas sejam detentoras de "reconhecido prestígio internacional".


7. A COMPETÊNCIA FUNCIONAL DOS MINISTÉRIOS E A LEI 10.559/2002

O Ministro de Estado da Justiça tem papel relevante na aplicação da Lei 10.559/2002, tendo em vista que lhe cabe decidir sobre os pedidos de anistiados. Além do mais, nesse aspecto, suas decisões ou requisições deverão ser cumpridas pelos órgãos públicos, no prazo máximo de sessenta dias, exceto se o ato ministerial envolver despesas incompatíveis com as disponibilidades orçamentárias do órgão demandado.

Ao Ministro da Defesa compete efetuar as anistias aos militares, bem como é sua a atribuição de executar a reintegração, efetivar as promoções e determinar as reparações econômicas, tudo em 60 dias, contados do recebimento de expediente do Ministro da Justiça.

Ao Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão incumbe viabilizar o pagamento das reparações econômicas, devidas aos civis. Para isso o referido órgão tem o prazo de sessenta dias, a contar da comunicação oriunda do Ministério da Justiça.


8. OS LITÍGIOS ENVOLVENDO ANISTIADOS E A TRANSAÇÃO JUDICIAL

A existência de litígio judicial não impede o interessado de postular a declaração da sua condição de anistiado. Incumbe à Comissão de Anistia analisar o pleito do requerente, ainda que este figure como autor de uma ação judicial na qual se discuta o direito à reparação decorrente de punição com motivação exclusivamente política. É obrigatório, porém, que o anistiando comunique à Comissão de anistia sobre a existência da ação judicial, possibilitando o acesso dos membros da comissão às provas produzidas nos autos da ação judicial e, ainda, evitando que haja a duplicidade de ordens de pagamento, uma determinada pelo órgão judicial e a outra pelo Ministro da Justiça.

O anistiado, assim reconhecido nos termos da Lei 10.559/2002, que estiver em litígio judicial com o objetivo de reivindicar o direito à reparação prevista no art. 8º do ADCT, da Constituição Federal de 1988, poderá transigir com a União, as autarquias e fundações públicas federais. Se o trabalhador ao qual se referiu a anistia é falecido, vislumbra-se a legitimidade dos seus sucessores ou dependentes para a transação.

O Acordo deverá ser firmado pela Advocacia Geral da União ou, se for o caso, pelas procuradorias das autarquias ou fundações envolvidas. A homologação da transação incumbe ao juízo no qual tramita a ação judicial.


9. CONCLUSÃO

O Brasil ainda padece de problemas decorrentes da cruel desigualdade social, tais como má distribuição de renda, estrutura fundiária perversa, violência crônica e desrespeito aos direitos humanos de presos, mulheres, negros, índios, velhos e crianças. Todavia, não se pode deixar de reconhecer que a lei do anistiado político consolida a reconciliação democrática como traço novo no perfil do estado brasileiro. Ela serve de fio de esperança de um Estado que começa a reatar a paz entre os seus filhos. Ela promove a anistia tão ampla quanto possível. Por isso é correto afirmar-se que os infortúnios políticos do passado foram tão previsíveis quanto são previsíveis os efeitos dessa lei inspirada em razoável senso de justiça. O regime do anistiado político não é apenas um texto de reparação. Trata-se, mais do que se percebe, de um manifesto de condenação aos que se aboletaram do poder para atender conveniências políticas mesquinhas em detrimento dos direitos políticos fundamentais.


9. BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de filosofia. 2ª ed. 9ª tiragem. México: Fondo de Cultura Económica, 1992.

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal (v. 1). 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1992.

LECHNER, Norbert. Los pátios interiores de la democracia. Flacso: Chile, 1990.

NORONHA, Edgard Magalhães. Direito Penal (v. 1). 23ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1985.

URBANI, Giuliano. Dicionário de política [verbete: política]. 8ª ed., Brasília: Ed. UNB, 1995.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PALMEIRA SOBRINHO, Zéu. O regime do anistiado: um elo entre a democracia e a relação de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 62, 1 fev. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3736. Acesso em: 26 abr. 2024.