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O que o tal do Compliance e a Lei Anticorrupção têm a ver com a sua empresa?

O que o tal do Compliance e a Lei Anticorrupção têm a ver com a sua empresa?

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Com a publicação do Decreto regulamentador da Lei Anticorrupção que incentiva expressamente a adoção de procedimentos de compliance, o momento é oportuno para que as empresas possam atuar preventivamente, implementando melhorias de suas práticas de governança corporativa.

RESUMO: O texto tem como objetivo apresentar a teoria de A. Sen sobre igualdade de capacidade, como meio de materializar a sua visão da igual consideração, e abordar alguns pontos, considerados importantes, acerca do liberalismo igualitário. A justificativa para o trabalho reside na importância da discussão da igualdade para as modernas teorias de justiça. De uma maneira nem sempre clara, a maioria das abordagens sobre justiça discute a melhor interpretação ou a melhor maneira de concretizar o princípio igualitário abstrato. Para tanto, utilizou-se uma abordagem de natureza teórica.

Palavras-chave: Igualdade, Amartya Sen, Liberalismo.

SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. FUNCIONAMENTOS, CAPACIDADE E LIBERDADE; 2. JUSTIÇA E DESIGUALDADE; 3. CLASSE E CLASSIFICAÇÃO; 4. INCENTIVO E IGUALITARISMO; 5. A IGUALDADE LIBERAL; 5.1. A justiça rawlsiana; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

Neste trabalho o objetivo é apresentar, de forma sucinta, as principais ideias contidas na obra Desigualdade Reexaminada de SEN (2008) e tecer algumas considerações a respeito da igualdade liberal.

Assim, tanto SEN (2008, pp. 43-62) quanto KYMLICKA (2006, pp. 5-7) endossam a noção que a igualdade é um elemento comum às diversas teorias políticas, pois estas tentam expressar a ideia de “tratar as pessoas como iguais”, cada uma à sua maneira. Isso não significa que toda teoria já inventada é igualitária nesse sentido. Ao revés, a tentativa de interpretar o princípio igualitário abstrato está presente somente nas teses mais plausíveis, pela dificuldade em rejeitá-las razoavelmente ou das demais serem arbitrariamente discriminatórias. Portanto, para estes autores, a questão é como interpretar a igualdade abstrata e não aceitar ou negar a igualdade como valor.

Para SEN (2008, pp. 42-7) existem duas questões centrais para a análise ética da igualdade: “por que a igualdade?” e “igualdade de que?”. Estas são perguntas distintas e interdependentes. Toda teoria que tenha resistido no tempo defende a igualdade em algum espaço considerado central – e acaba admitindo a desigualdade nos demais. Por isso que ser igualitário, como são Nozick, Rawls e Dworkin, pode parecer ser mais um fator que os distancia do que os aproxima, já que são colocados em grupos distintos que criticam a interpretação da igualdade uns dos outros. Mesmo quem rejeita a igualdade, o faz em algum aspecto explicitamente – e termina admitindo, mesmo que implicitamente, em outro. Desta forma, a pergunta “igualdade de que?” é fundamental.

Com efeito, ainda que se admita que todas estas teorias sejam igualitárias, ainda é necessário que se explique e se defenda a razão da igualdade naquele caso ser importante. Isso decorre da possibilidade da avaliação global ser feita para todos os participantes daquele sistema, em que haverá o núcleo da tese, na qual se defende a igualdade, e espaços periféricos, nos quais haverá desigualdade. A exigência de imparcialidade como requisito geral carrega consigo esse traço da igual consideração.

Como os seres humanos diferem uns dos outros de modos distintos – tanto em características externas e circunstâncias, quanto em particularidades pessoais – há uma pluralidade de variáveis (espaços de avaliação) em que é possível focar e que irá conduzir à igualdade num aspecto e desigualdade em outro. Um exemplo é a exigência de igualdade de direitos libertários de Nozick, que se aceitos (como mais importantes), levarão às desigualdades de rendas e de liberdades positivas (considerados menos importantes).

SEN (2008, p. 54) entende que não há um conflito genuíno entre igualdade e liberdade – pode haver uma disputa sobre a questão “igualdade de que?”. Porém, não se deve esquecer que “a liberdade está entre os possíveis campos de aplicação da igualdade, e a igualdade está entre os possíveis padrões de distribuição da liberdade”.

A pluralidade de espaços em que a igualdade pode ser avaliada não a torna uma concepção vazia ou menos importante: quando a variável focal é escolhida, ela se torna uma exigência substantiva e um requisito de avaliação, que traz consigo alguma forma de igual consideração. O problema da concentração da discussão na desigualdade de rendas como foco para examinar a desigualdade consiste em terminar ignorando as variedades de características físicas e sociais que afetam a sua conversão em realizações valorizadas. Além disso, acaba-se esquecendo da existência de outros meios capazes de gerar realizações e das variações interpessoais na relação entre meios e fins. Essa generalização, justificada na retórica da igualdade (“todos são iguais”) ou na facilidade da análise, é um dos alvos do autor em sua obra.


1. FUNCIONAMENTOS, CAPACIDADE E LIBERDADE

Para SEN (2008, pp. 69) a posição de uma pessoa num ordenamento social pode ser julgada por duas perspectivas diferentes (e não necessitam coincidir), a saber, a realização de fato conseguida e a liberdade para realizar ou oportunidade real que se tem para fazer aquilo que se valoriza. O utilitarismo, por exemplo, limita as comparações interpessoais para avaliação social às realizações e às identifica como as utilidades realizadas. Outras teorias também focam nas realizações e atribuem à liberdade para realizar importância instrumental.

Ocorre que esse viés foi atacado pela teoria de Rawls e de Dworkin, fazendo com que a avaliação política recaia nos meios para a realização (bens primários ou recursos). Todavia, ainda pode haver variações na conversão de bens primários e recursos em liberdade – devido às variações externas ou pessoais já referidas. O que faz com que seja necessário distinguir a “extensão da liberdade” dos “meios para a liberdade”. Os meios seriam os recursos e bens primários. As opções que a pessoa tem para, de fato, fazer, ser ou levar a vida que desejar, materializam a extensão da liberdade em si (ou seja, a conversão dos bens primários e recursos em liberdade).

A variação entre os indivíduos que existe nessa conversão é o que leva a perceber que duas pessoas com os mesmos bens primários ou recursos podem ter liberdades totalmente diferentes (devido às diferenças externas e pessoais).

Com a finalidade de explicar a relação entre “funcionamentos” e bem-estar, SEN (2008, pp. 79-82) ensina que “viver pode ser visto como consistindo num conjunto de funcionamentos inter-relacionados, que compreendem estados e ações. A realização de uma pessoa pode ser concebida [...] como o vetor de seus funcionamentos”. Os funcionamentos relevantes podem variar de coisas simples até realizações complexas e são constitutivos do estado (de bem-estar) de uma pessoa. Outra noção importante é a capacidade para realizar funcionamentos. Em outras palavras a capacidade é um conjunto de vetores de funcionamentos que uma pessoa pode realizar, refletindo a liberdade da pessoa para escolher dentre estilos de vidas possíveis.

O ponto central é que a capacidade consiste na liberdade da pessoa para ter bem-estar (“as oportunidades reais”), ao mesmo tempo em que ter algumas capacidades contribuem diretamente para ter bem-estar (“a possibilidade de escolha é em si uma parte valiosa do viver”). Há uma distinção da teoria de Rawls e de Dworkin, que tratam os bens primários e recursos como meios ou instrumentos para a liberdade. Enquanto aqui a capacidade reflete a liberdade para buscar os elementos constitutivos do bem-estar (realizar funcionamentos) e também exerce um papel direto no próprio bem-estar (decidir ou escolher a vida que se deseja). A igualdade “envolve a apreciação da vantagem individual por meio da liberdade para realizar, incorporando (mas ultrapassando) as realizações efetivas”.

Para ser possível efetuar uma avaliação é imprescindível identificar o objeto-valor ou espaço de avaliação. Nesse passo, na avaliação do bem-estar, o foco serão os funcionamentos e a capacidade. Todavia, isto não quer dizer que “todos os tipos de capacidades são igualmente valiosos, nem indica que qualquer que seja a capacidade necessita ter algum valor na avaliação do bem-estar dessa pessoa”. Como haverá incompletude, disparidade ou ambivalência nos pesos relativos o excesso de precisão pode descaracterizar a natureza desses conceitos. Por isso, é melhor capturar a ambiguidade que é intrínseca à ideia do que tentar perde-la tendo em vista a perfeição (é a “razão fundamental para a incompletude”). Uma segunda justificativa para o uso de uma ordenação parcial é a possibilidade de haver acordo sobre como lidar com algumas partes, o que permite a colocação em prática desta (é a “razão pragmática para a incompletude”).

Nesta discussão é relevante observar que é comum um individuo ter objetivos e valores que não coincidem com a busca pelo seu próprio bem-estar. SEN (2008, pp. 103-4) aborda o “aspecto da condição de agente”, cuja realização refere-se à realização de objetivos e valores que uma pessoa tem razão para buscar, independentemente de estarem conectados com o seu bem-estar. Este aspecto mantém conexão com a “liberdade da condição de agente”, que é a liberdade para realizar o que se valoriza. Esses conceitos são introduzidos para diferenciá-los do “aspecto do bem-estar”, que está ligado à “liberdade de bem-estar” – é a liberdade para realizar os elementos constitutivos do seu bem-estar e melhor reflete o seu “conjunto capacitário”. Os dois aspectos são distinguíveis e separados, porém, interdependentes: o aumento de um pode aumentar ou até diminuir o outro.

A liberdade da condição de agente pode crescer, enquanto a liberdade de bem-estar ou a realização do bem-estar diminuem. Entretanto, quando se trata da liberdade de bem-estar, “então nenhum conflito entre liberdade e bem-estar realizado pode surgir, é claro, da redução das oportunidades de realização do bem-estar com o aumento da liberdade (do bem-estar)”. O que não impede que a escolha de uma pessoa seja guiada por outros interesses diferentes da busca pelo seu bem-estar – fazendo com que o aumento da liberdade de bem-estar seja acompanhado da deterioração do bem-estar escolhido para ser realizado, sem que haja nenhum paradoxo, mesmo que pareça “um pouco estranho” (SEN, 2008, p. 109). Ainda que a liberdade e a realização do bem-estar possam andar em direções opostas, sendo indiferente a forma como se interpreta a liberdade (da condição do agente ou do bem-estar), a frequência do conflito é diferenciada. Isso porque maiores oportunidades para buscar bem-estar são geralmente aproveitadas. Desta forma, SEN (2008, pp. 111-2) afirma que:

A liberdade é um conceito complexo. Deparar-se com mais alternativas não necessita ser invariavelmente considerado como uma expansão da liberdade de uma pessoa para fazer coisas que gostaria de fazer. Se for dado valor a uma vida sem complicações, a liberdade para realizar a forma preferida de vida não necessariamente aumentará com a multiplicação de escolhas triviais. [...] A questão realmente depende da necessidade de julgar quais opções são importantes e quais não são. A expansão das escolhas a serem feitas é tanto uma oportunidade e um ônus. É fácil conceber circunstâncias em que, apresentada a escolha de ter que fazer estas escolhas particulares, se teriam boas razões para dizer não. Isso não significa que a expansão destas obrigações e escolhas específicas não necessita ser considerada como uma expansão valiosa da liberdade.

Mas SEN (2008, pp. 118-22) rejeita a argumentação de que a pessoa seja considerada o melhor juiz sobre aquilo que deve ser considerado importante e que a condição de agente diga tudo o que é necessário para os demais saberem. Pois não é o fato de uma pessoa admirar alguém que a sociedade deva “erigir uma estátua em honra de algum herói”. Não é porque uma pessoa escolheu algo importante para si e deixou outras metas e valores de fora, que estes seriam destituídos de importância. Acontece que “dependendo do contexto, o aspecto da condição de agente ou o aspecto do bem-estar podem assumir proeminência”, pois ao lado da pluralidade de espaços existe a pluralidade de propósitos. Um exemplo pode ajudar a esclarecer estas afirmações. Quando a questão for sobre justiça social, qual dos dois aspectos deve ser utilizado? Como o aspecto de bem-estar é importante para avaliar questões de seguridade social e busca da justiça social, dentre outros, o foco de avaliação recairá sobre este, sem ignorar que existem outras variáveis possíveis.

Outra questão relacionada é a leitura da “liberdade como controle”, pois muitas liberdades “assumem a forma de nosso potencial para conseguir o que valorizamos e queremos, sem que os instrumentos de controle sejam diretamente operados por nós”. Então os controles são usados de acordo com o que uma pessoa valoriza ou deseja, aumentando a liberdade para viver a vida que se almeja. No entanto, a consequência clara desta explicação é que controle e liberdade não são sinônimos. A concepção “liberdade como controle” foca no aspecto instrumental, em que a pessoa é a parte ativa na ação que produz a realização – pode ser chamada de “êxito instrumental da condição de agente”. A “liberdade efetiva” está relacionada ao acontecimento dos objetivos da pessoa, não importando o seu papel na produção deste – pode ser chamada de “êxito acabado da condição de agente”.

A complexidade presente nas sociedades contemporâneas torna impossível ter um sistema que confira a cada individuo todos os instrumentos de controle sobre a sua vida. Por essa razão, a base informacional da avaliação das liberdades desfrutadas e da desigualdade neste aspecto deve levar em conta as escolhas contrafactuais (o que seria escolhido se fosse possível escolher). A tentativa de se concentrar somente sobre os instrumentos de controle é inadequada para avaliar liberdades.

Existem, pelo menos, dois argumentos que poderiam levar a conclusão contrária. O primeiro é que a falta de controle sobre o acontecimento impede que haja um aumento de liberdade e o segundo corresponde a entender que a liberdade implica na verificação de quais alternativas ou opções existem – e se não há controle não há opção a ser feita. Para SEN (2008, pp. 116-7) ambas são leituras erradas da liberdade. Inicialmente, a ausência de controle por parte de uma pessoa não compromete a importância do acréscimo de liberdade efetiva – o que a torna mais livre de qualquer maneira – para viver da maneira que escolheria se fosse possível decidir. Em seguida, a escolha contrafactual deve ser melhor compreendida: quando uma pessoa deseja uma vida e a teria escolhido, se tivesse escolha, é o mesmo que dizer que ser capaz de viver do modo ao qual se atribui valor é uma contribuição para a liberdade de alguém – “a liberdade para escolher viver do modo que se desejaria”.

O que justifica, ao menos em parte, entender essa ideia geral de liberdade é a sua relevância para a análise da igualdade e da justiça. Ao se avaliar as desigualdades na capacidade de escapar de doenças que não são inevitáveis ou da fome que pode ser evitada, está se avaliando diferenças no bem-estar e nas liberdades básicas que são valorizadas e apreciadas.


2. JUSTIÇA E DESIGUALDADE

A maioria das teorias da justiça traz consigo uma base informacional que consideram importante para efetuar juízos avaliatórios, que são a seleção de traços pessoais relevantes e escolhas de características combinatórias. A escolha de uma exigência particular de igualdade basal influenciará a escolha da variável focal para avaliar a desigualdade.

Rawls formula sua teoria da justiça e seus dois princípios de justiça, de modo a incluir no segundo o Princípio da Diferença, “no qual o foco está sobre a produção do ‘maior benefício dos que têm menos vantagens’, onde a vantagem é estimada pela parcela de ‘bens primários’” (como direitos, liberdades, oportunidades, renda e autoestima). Assim, por conceber sua teoria como uma concepção política, seu objeto são as instituições políticas, sociais e econômicas, tendo por fio condutor a tolerância das “doutrinas abrangentes possivelmente divergentes” (que enseja a proteção até dos intolerantes, até o limite em que não se cause dano a terceiros). Para SEN (2008, p. 131), mesmo que estes dois traços sejam apresentados como inseparavelmente juntos, uma abordagem “política”, no sentido especificado, pode ser concebida sem endossar a tolerância, como condição qualificativa da justiça.

A separação é justificada para que se perceba que mesmo sem que haja a tolerância da forma esboçada (na hipótese em que todos são intolerantes), é possível que existam questões de justiça a serem avaliadas (como desigualdade, privação e injustiça nas disputas entre os grupos opositores). Por conseguinte, a finalidade é adotar uma abordagem menos restritiva.

 O mérito da perspectiva rawlsiana é que concentrar a atenção nos bens primários (que seriam meios para a implementação dos projetos de vida ou concepção de bem de cada individuo), caminha-se na direção das liberdades disfrutadas e não se restringe aos resultados alcançados. A igualdade de recursos de Dworkin também segue o mesmo percurso. Porém, dois pontos não podem ser olvidados: os bens primários e recursos são meios para a liberdade (não se confundindo com a liberdade em si) e é difícil valorar os meios sem saber a quem fins se destinam (os meios são importantes pelo resultado que produzem).

Com vistas ao que poderia ser considerado um refinamento na teoria de justiça de Rawls – não se quer dizer que este seja o objetivo de SEN (2008, pp. 135-7) e sim que este demonstra uma insuficiência na concepção de justiça daquele autor – a introdução do conceito de capacidade consegue captar melhor a diversidade humana. Isso decorre da constatação de que uma pessoa, portadora de alguma necessidade especial, pode ter mais bens primários ou recursos e menos capacidade de conversão destes meios em liberdade efetiva para realizar funcionamentos (devido às limitações pessoais ou circunstanciais). A igualdade de bens primários ou recursos não é sinônimo de igualdade de liberdade. Por isso, a concepção de justiça baseada na capacidade seria mais justa, pois representa a liberdade real das pessoas, sem importar a concepção de bem de cada um. 

Deve-se ainda fazer uma observação sobre a crítica de SEN (2008, p. 142) sobre a teoria de Rawls: a preocupação com a liberdade não deve ser confundida com a atribuição da prioridade total recomendada pelos princípios de justiça na ordem lexicográfica rawlsiana – em que há prioridade da liberdade sobre a igualdade.

Mas então fica a indagação de como avaliar a desigualdade da liberdade. Por isso SEN (2008, p. 149-50) afirma que:

A igualdade entre as pessoas pode ser definida em termos de aproveitamentos ou em termos de insuficiências com relação aos valores máximos que cada uma pode respectivamente realizar. Para a igualdade de aproveitamento de realizações, nós comparamos os níveis de realização. Para a igualdade de insuficiência, comparam-se as insuficiências das realizações efetivas com relação às respectivas realizações máximas. [...] Se a diversidade humana tem tanta força que torna impossível igualar o que é potencialmente realizável, então existe uma ambiguidade básica na apreciação da realização e na avaliação da igualdade de realização e da liberdade para realizar.

A opção pela utilização de uma abordagem em detrimento da outra não pode ser basear na inexequibilidade ou insuficiência da outra. O argumento da equidade usado por Rawls demonstra o porquê de focalizar os menos favorecidos, em especial no campo das incapacidades para realizar funcionamentos (que é uma extensão para além dos bens primários para alcançar as capacidades e que o autor rejeitaria). A sua proposta, de melhorar tanto quanto possível os que estão na pior situação (em relação aos bens primários), é apresentada na forma de tentar maximizar o menor potencial para realizar funcionamentos. Logo, o argumento para “manter o interesse em mover-se na direção da igualdade de aproveitamento pode sobreviver às dificuldades em realiza-la completamente”.

A literatura sobre a economia do bem-estar que avalia a desigualdade tende a ignorar as diversidades humanas ao considerar todas as pessoas como exatamente similares. Modelos que não deixam espaço para variações interpessoais substanciais na conversão de rendas individuais e que não atribuem a adequada importância à liberdade como elemento constitutivo da boa sociedade têm a sua utilidade limitada. “As operações terão de movimentar-se desde o espaço de rendas para o espaço dos elementos constitutivos do bem-estar e também da liberdade”. A análise assumiria uma forma diferente e a avaliação da desigualdade teria de refletir essa transformação.

Trilhando o mesmo caminho, a abordagem, outrora dominante, de identificação da pobreza especifica uma linha divisória, geralmente definida em torno da renda: os que estão abaixo desta linha são classificados como pobres. O índice de pobreza de um determinado local (cidade, país, continente) é comumente calculado com base na proporção da população que está abaixo dessa linha. A informação ou distinção que não é captada nesse sistema é que existem pessoas que estão um pouco abaixo da linha e outras que estão muito abaixo – o que faz com que a distribuição de renda entre pobres seja passível de grandes desigualdades.

Um governo poderia, por exemplo, estar tentado em investir nos “mais ricos” dentre os “pobres” para reduzir mais facilmente a proporção de pobres dentre de seu território. Isso motivou SEN (2008, pp. 167-8) a construir um axioma sensível às variações entre os chamados pobres, em que os mais pobres dentre os pobres tenham maior peso ponderado, e os mais ricos, o menor. Contudo, ainda que hoje haja mais sensibilidade à distribuição na medição da pobreza, persiste a relevância da renda para a avaliação. Daí a necessidade de primeiro proceder à análise descritiva da pobreza, para depois escolher políticas adequadas. A “objetividade na descrição não requer invariância social, como é suposto algumas vezes”, de forma que a análise seja elaborada de modo dependente da sociedade na qual a pobreza é avaliada – porque aquilo que é considerado valioso num lugar pode não ser em outro.

Não se nega que haverá maior densidade no exame, todavia, isso não implica que não existam acordos sobre o que é uma privação grave. Por essa razão, a pobreza pode ser compreendida de forma mais adequada em termos de deficiência de capacidade (de evitar a fome ou subnutrição severa) do que em falhas na satisfação das necessidades básicas de mercadorias especificadas (como tipos específicos de carne ou de legumes).

Com isso se redefine o conceito de pobreza, que passa a ser o da incapacidade de buscar bem-estar pela falta de meios econômicos. O critério relevante é o da inadequação (“para gerar capacidades minimamente aceitáveis”) e deixa de ser o baixo nível (“independente das características pessoais”).


3. CLASSE E CLASSIFICAÇÃO

Desde o primeiro capítulo, a diversidade humana é usada para justificar que quando se busca a igualdade num espaço é comum que surjam desigualdades em outros. Uma proposta que não reconheça isso se inclina a ter pouca utilidade e não ser capaz de resolver problemas de justiça no tocante à distribuição e desigualdade. Entrementes, saber identificar quais diversidades são relevantes (e quais não são) é imprescindível para a operacionalização deste estudo. Em cada contexto deve-se questionar qual a diversidade significativa.

Portanto, as análises gerais da desigualdade, em muitos casos, devem proceder em termos de grupos – e captariam variações intergrupais. Mesmo que um primeiro critério a ser usado seja o de classe econômica, após o reconhecimento da diversidade humana, não se deve permanecer restrito àquele. SEN (2008, p. 190) sugere que sejam usados raça, cor e sexo, conforme o contexto. Já que cada um desses aspectos vai demonstrar diferenças entre divisão de trabalho, renda, educação, atenção médica e até tratamento pela polícia. O problema da desigualdade (conforme o contexto) focado nas capacidades evidenciará que este é, em última análise, (um problema) de liberdades – e não necessariamente de bens primários ou recursos.

Com uma descrição mais adequada da desigualdade, a formulação de uma política para corrigir as injustiças pode ser formulada também mais adequadamente. A divisão em grupos como regra para muitos casos não é feita para impedir a visualização das diferenças interpessoais – o que é defendido desde o começo: que a distribuição e a igualdade sejam realizadas levando em conta a diversidade das pessoas. É apenas um reconhecimento de que muitas situações de privações não se restringem a uma única pessoa.


4. INCENTIVO E IGUALITARISMO

Com vistas à redução da desigualdade, a existência de políticas igualitárias pode ser mais bem justificada, conferindo um novo olhar ao problema do incentivo. Um exemplo pode ilustrar melhor o que se está afirmando. Uma assistência médica gratuita oferecida à parcela da população doente ou a um grupo vulnerável não incentivará que estes cultivem doenças ou passem a se precaver menos porque o tratamento é gratuito.

“Políticas igualitaristas para desfazer desigualdade associadas à diversidade humana” são menos problemáticas, em relação à questão dos incentivos, do que políticas para desfazer desigualdades que surgem de diferenças em esforços e empenho, sendo estes o objeto de boa parte da literatura sobre incentivos.

Para SEN (2008, p. 220) não há injustiça num sistema de seleção para cargos de responsabilidade que seleciona os mais habilitados (baseado no mérito) em face da eficiência desse sistema. Este ordenamento social sugere que as exigências de igualdade de vantagens individuais devem ser complementadas por considerações sobre a eficiência em gerar essas vantagens. A diferença, é que ao introduzir a avaliação das capacidades (sem se restringir apenas aos bens primários), o registro das desigualdades permite examinar se estas podem ou não ser justificadas por argumentos de eficiência. Se for criado um tipo de “‘meritocracia’ que não é assim tão eficiente e faz com que as pessoas dos grupos menos favorecidos sejam tratados desigualmente, então aquela justificação não valerá mais.”

O liberalismo de Rawls e Dworkin enfatiza a necessidade de ver cada pessoa como responsável por coisas sobre as quais tem controle. Ao revés, não se atribui nem se confere crédito ao que não poderia ser mudado. Esse pensamento também foi adotado, ainda que se reconheça difícil traçar a linha divisória entre o que pode ou ser controlado. Por isso se sustenta a relevância da capacidade como liberdade para realizar. Uma pessoa que tinha condições financeiras e sociais, com capacidade para realizar diversos funcionamentos e mesmo assim desperdiça as oportunidades ficando sem nada (ainda que haja uma rede de proteção que lhe assegure o mínimo) não pode alegar injustiça na distribuição.


5. A IGUALDADE LIBERAL

RAWLS (2008) foi o autor da filosofia política mais influente do século passado e, em parte, SEN (2008) usa sua teoria para apontar numa direção mais atenta às diferenças entre os indivíduos, que aquele não fez. As duas teorias possuem divergências claras, assim como semelhanças. Como forma de melhor explicar isso será resumido uma pequena parte do pensamento de RAWLS (2008) a seguir e, após, serão tecidas algumas conclusões.

Dentre diversos fatores, pelo menos dois são importantes para explicar a teoria de Rawls (e não Dworkin ou outros autores): a construção de uma teoria que aponta no caminho da liberdade – importante historicamente, pois rompe com a doutrina utilitarista, preocupando-se mais com a distribuição inicial de bens, do que com o resultado final – e pelo fato de grande parte dos teóricos posteriores se definirem em oposição a Rawls (KYMLICKA, 2006, p. 66).

5.1. A justiça rawlsiana

Na época da publicação da obra Uma Teoria da Justiça, na década de 70, o principal alvo do autor (RAWLS, 2008) era construir uma alternativa mais atraente de justiça que a concepção utilitarista, que predominava na teoria política, cujo princípio norteador pode ser entendido como a maior felicidade do maior número possível de pessoas. Esta doutrina ética apresentava problemas, como o fato de fazer o conceito de justiça andar a reboque do bem (seja a felicidade, prazer ou satisfação), ou de considerar o bem-estar geral, mas não o individual (ou o individuo como pessoa). O bem é definido independentemente do justo e o justo é aquilo que produz ou que eleva o bem a maiores patamares, constituindo uma teoria teleológica.

Ainda que este não seja o propósito final, esta teoria acabava sacrificando um grupo em detrimento do outro (geralmente uma minoria ou grupo sem poder político/econômico) e quando é usado pelo Estado, em muitos casos, sacrifica a parcela da população que justamente mais precisa do aparato estatal. Como é cediço, este comportamento não é divulgado, prejudicando a transparência e publicidade da atuação estatal – no máximo, o que é divulgado é que se atendeu à maioria.

RAWLS (2008) oferece uma teoria deontológica, em que o justo existe prescindindo da definição de bem. Pois a justiça seria uma virtude cuja concepção mais racional é aquela que todos aceitariam se estivessem em condições de igualdade uns para com os outros. Uma das razões que demonstram a relevância de sua teoria foi a forma a liberdade foi articulada com a igualdade, em que compete ao Estado (guiado por princípios de justiça) se preocupar com a distribuição de bens primários. Isto é feito sem interferir nos planos individuais ou nas concepções de bem que cada um possui. Por ser uma concepção política de justiça, ela deve ser pública está direcionada às principais instituições políticas, econômicas e sociais do Estado e seria aplicada a uma sociedade bem ordenada – seu objeto principal é a estrutura básica da sociedade.

A justiça como equidade (ou como imparcialidade) quer associar a liberdade com a equidade, o que demanda a escolha dos princípios de justiça no acordo original feito por pessoas livres, racionais e em posição de igualdade, para reger os acordos subsequentes. Isso não significa que todos terão as mesmas coisas. A justiça como equidade permite desigualdades, desde que justificadas – ninguém terá tudo, mas todos farão jus aos bens sociais primários.

Para isso, todas as pessoas são colocadas na denominada posição original – que seria uma leitura da teoria do contrato social, todavia, sem a finalidade de inaugurar determinada sociedade. Ali é colocado o véu da ignorância sobre os indivíduos para que todos estejam em posição de igualdade e não sejam movidos por suas preferências, interesses ou condições pessoais. Nem é necessária a adoção da regra de maioria, já que o pacto é feito entre pessoas éticas como seres racionais com objetivos próprios e capazes de ter um senso de justiça.

O véu da ignorância reduz a complexidade e contingência no momento da escolha, impedindo atritos e força a todos que adotem uma postura prudencial: como ninguém sabe a sua situação, é melhor adotar princípios que beneficiem a todos. Os fatos genéricos são de conhecimento de todos, o que inclui a base da organização social. Com essa construção, rejeita-se o princípio utilitarista – na medida em que ninguém sabe se será sacrificado para favorecer terceiros. A justiça como equidade é uma justiça procedimental pura, em que não há um critério independente do justo, mas há um procedimento adequado para chegar a um resultado justo – posição original sob o véu da ignorância.

Para guiar a discussão a respeito dos princípios de justiça, deve-se trazer à baila a distribuição dos bens sociais primários (para o autor seriam direitos, liberdades, oportunidades, renda, riqueza, autorrespeito e autoestima). Estes são bens que todos desejam, independentemente do que mais desejam ou de seus planos racionais. Como existe uma multiplicidade de posições sociais relevantes, os princípios devem tentar reduzir as loterias naturais e sociais. Os princípios devem ser gerais, ter aplicação universal, ser públicos e a concepção do justo deve impor uma ordenação às reivindicações conflitantes.

Quando os princípios são apresentados, eles devem ser interpretados de acordo com algumas outras regras (RAWLS, 2008, p. 333). Aqui reside uma ordenação em que há prioridade para liberdade (somente podendo ser limitada em nome da liberdade) em detrimento da igualdade econômica e social. Há uma justificativa para essa ordenação: os interesses e objetivos fundamentais devem ser protegidos pelo primeiro princípio e a sua limitação em nome de fruições econômicas enfraquecem a posição política dos indivíduos e o seu autorrespeito, o que destrói a autoestima. Portanto, haveria uma igualdade de direitos no primeiro princípio – “igualdade na base social do respeito”.

Por último, é importante notar a importância atribuída às escolhas pessoais, visto que isso distinguiria aquilo que pode ser decidido do que não pode (como circunstâncias). Mesmo que ninguém fique abaixo de um patamar mínimo, os mais talentosos não devem, por causa disso, receber mais bens sociais do que os menos favorecidos. A responsabilidade pelo custo das escolhas e decisões faz, inclusive, com que a justiça esteja mais relacionada com a distribuição de bens primários, do que com o bem-estar alcançado ou realizado. A diferença no resultado não justificaria redistribuição de bens, respeitado o mínimo, o que distancia esta teoria das teorias de bem-estar.


CONCLUSÃO

Existem três autores liberais contemporâneos muito influentes: A. Sen, R. Dworkin e J. Rawls. Cada um deles apresentou suas ideias de forma consistente com doutrina chamada de liberalismo de princípio ou igualitário. No entanto, existem algumas claras divergências sobre os seus modelos teóricos e o que corresponderia a uma aplicação prática.

Rawls direcionou sua teoria para as principais instituições políticas, mas não apresentou um modelo de distribuição de recursos além de um sistema tributário progressivo. É possível usar o princípio da diferença para tentar justificar determinadas medidas ou ações que tentem melhorar as condições econômicas e sociais da população que está em pior situação de bens primários (incluindo aí a renda), mas é difícil ir muito além disso. Em especial, devido à ordem lexical, em que há prioridade da liberdade sobre a igualdade econômica, e devido à exclusão de bens primários naturais como critério de avaliação dos que estão em pior situação.

Não existe muito espaço para diferenças naturais ao focar, exclusivamente, na renda ou em classes econômicas ou bens sociais: duas pessoas com a mesma renda podem estar em diferentes posições e com diferentes condições de vida, em face de talentos, deficiências ou saúde. O princípio da diferença permite a adoção de políticas ou de distribuição que beneficiem os que estão na pior situação em termos de bens sociais primários. Não existe muito espaço para acidentes naturais e circunstâncias sociais no tocante à distribuição.

A desigualdade de renda entre pessoas que escolheram estilos de vidas diferentes (um foi produtivo e ou outro tem gostos dispendiosos) poderia levar, em face do princípio da diferença, a que uma pessoa (que trabalha mais) banque o estilo de vida de outrem (que além de não produzir possui gostos extravagantes). Esta objeção pode ser vista por dois ângulos. Um é que o princípio da diferença não distingue entre estilos de vida e circunstâncias, gerando injustiças na distribuição. O outro é que ninguém, mesmo aquele com gosto extravagante, deve ficar aquém do mínimo, porém, isso não é o mesmo de dizer que ele tem direito ao máximo ou que seu estilo de vida será bancado pelos demais. Logo, numa redistribuição de renda essa crítica parece mais atentar para o percentual da parcela transferida, para garantir a justiça, ao invés de chegar à conclusão de que toda e qualquer transferência será, per si, justa ou injusta em face dos estilos de vida extravagantes bancados por quem trabalha.

Com efeito, DWORKIN (2005) entende essa objeção pelo primeiro ângulo e vai propor um modelo de distribuição que seja mais “sensível à ambição” e “insensível à dotação”. A sua construção teórica passa por um “leilão hipotético” (que deve passar por um “teste de inveja”) e esquemas de “seguros” (obrigatório e facultativo). Este (seguro) seria um mecanismo que reduziria a discrepância nas circunstâncias sociais (entre pessoas desfavorecidas e aquelas que não têm maiores limitações) e as igualaria, tanto quanto possível, para que todos possam executar os seus planos de vida com os recursos escolhidos (no leilão hipotético).

Na prática, seria necessária a utilização de um sistema tributário (progressivo sobre a renda e propriedade) e de uma rede de proteção social (como previdência social, assistência médica gratuita), em que o resultado final seria a tributação dos ricos e assistência gratuita ou subsidiada para os pobres (KYMLICKA, 2006, p. 107). Ao final, a distância entre o modelo teórico e a prática deste autor acaba mais o aproximando do que o distanciando da proposta de Rawls. A razão é que é difícil identificar o que seria um talento natural antes de saber qual o projeto de vida de cada um. Portanto, algumas informações somente estariam disponíveis após o leilão. O segundo motivo é que é impossível igualar todas as circunstâncias ou mesmo tentar fazer isso ao máximo, caso a contrapartida seja a utilização dos recursos aos quais as pessoas teriam direito para executar seus projetos de vida. Quanto mais for usado no seguro, menos haverá disponível para cada um. Um percentual muito alto significaria a escravização dos mais talentosos.

A virtude da distribuição de Dworkin é que ele consegue realizar alguns dos objetivos de Rawls, como um esquema que respeita a igualdade moral de cada um (que em Rawls justificaria a prioridade da liberdade sobre a igualdade econômica), a compensação de certas circunstâncias que geram desigualdade e a atribuição da responsabilidade pela escolha das pessoas.

De acordo com a tese desenvolvida por SEN (2008), explicada alhures, existem três diferenças marcantes na teoria, que depois produzirá algumas semelhanças no pensamento dos três autores.

1.O momento da distribuição dos bens considerados fundamentais

Enquanto Rawls não apresenta de forma clara uma forma de distribuição, pode-se dizer que Dworkin e Sen o fazem. A teoria de Rawls somente consegue produzir igualdade (ou equidade) na posição original, o que faz com que a distribuição ocorra posteriormente. Dworkin e Sen fazem a distribuição desde o começo de suas teorias. Na prática existe uma aproximação: todos eles acabarão recorrendo a esquemas estatais (como saúde e educação pública) ou políticas aliadas ao sistema tributário, pois muitos bens já estão distribuídos – outras alternativas estariam disponíveis numa sociedade que está no começo de sua formação ou que passasse por alguma reforma radical.

2.O que servirá de baliza para a distribuição

Em Rawls apenas os bens sociais primários serão usados. Na formulação de Dworkin, os recursos leiloados não incluem os recursos pessoais (GARGARELLA, 2008, p. 69), o que acaba excluindo as características pessoais como critério de distribuição (todos recebem o mesmo número de conchas). Para Sen as circunstâncias pessoais têm relevância porque o critério norteador será a capacidade para realizar funcionamentos, que poderia ser chamada de liberdade efetiva ou real. Portanto, quando ocorrer a distribuição já será levado em consideração as características pessoais de cada um. Na prática, todos os modelos podem justificar a adoção de políticas ou esquemas de redistribuição. Porém, a teoria de Sen fornece mais subsídios para elaborar políticas adequadas às necessidades do seu destinatário (mulheres, crianças, idosos, indígenas, pessoas com deficiência, etc.); Dworkin poderia ser utilizado em favor de grupos vulneráveis e Rawls foca apenas em classes econômicas.

3.Justiça transcendental ou comparativa

Em Rawls e Dworkin existem pretensões de universalidade no sentido de estar se falando em um “modelo transcendental de justiça”, aplicáveis a diversas sociedades, desde que bem ordenadas, democráticas, etc. Após algumas críticas comunitaristas, muitos liberais passaram limitar certas pretensões universalistas, incluindo aí Rawls (GARGARELLA, 2008, p. 155).

SEN (2008b) não se vincula a este pensamento por achar que propor um modelo teórico (justo) que pode ser usado para julgar as sociedades reais (injustas), é menos adequado do que a utilização de modelos comparativos reais. Em alguns casos, o autor argumenta, é mais fácil identificar a injustiça, do que entrar em acordo sobre o que é justo.

Existem algumas razões para isso, a principal é a preocupação de Sen: ele tende a dar maior atenção à pobreza extrema (injustiça sobre a qual não haveria tanto desacordo). Nesse passo, pode-se falar em reduzir a injustiça. Todavia, defende direitos políticos, algumas liberdades e regime democrático, o que o aproxima substantivamente daqueles autores citados acima, sem esquecer de que muitos desses direitos não são exclusivos do “ocidente”, havendo amplo debate sobre os mesmos no “oriente” (SEN, 2000).

Existem ainda outros pontos importantes. Como a neutralidade estatal diante da concepção de bem de cada individuo – o que não é o mesmo de inatividade estatal diante de determinadas situações. O pensamento liberal torna viável pensar em proteção estatal para grupos (como ações afirmativas), mas é difícil fundamentar a existência de direitos coletivos. A atenção dada para a responsabilidade individual implica em limites para aquilo que pode ser exigido do Estado: ninguém fica abaixo de certo patamar, mas não é possível exigir mais do que isso. Essa questão, inclusive, é o que faz com que a distribuição seja pautada nos bens primários, recursos e capacidades e não no bem-estar alcançado.

Com efeito, as diversas críticas de variadas correntes que diferem quanto ao que pode ser considerado justo numa sociedade permitiu ao liberalismo igualitário uma construção teórica mais robusta. Um exemplo pode ser dado pelo comunitarismo e feminismo, que fizeram com que o liberalismo valorizasse mais a comunidade e tratasse de assuntos que antes ignorava. Por isso, muitas das críticas feitas pelo feminismo não minaram o pensamento liberal – ainda que muitos dos seus pontos de vista sejam semelhantes aos de um liberal, persistem divergências teóricas (GARGARELLA, 2008, pp. 85-100). O comunitarismo, em contrapartida, permanece uma corrente criticada pelo liberalismo (e que com ela não se confunde), devido às distintas culturas ou “justiças”, que podem requerer a intervenção estatal para impor determinada concepção de bem aos indivíduos – sistema de castas, escravidão, etc.

Um liberal, ainda que numa perspectiva mais modesta – sem querer impor a universalização – não aceitaria um Estado que não respeita as diversas concepções de bem e trate a todos os cidadãos com igual consideração – mesmo que eles não entrem em acordo sobre o que a igual consideração requer.


BIBLIOGRAFIA

GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. Trad. Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. 3. ed. Trad. De Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

SEN, Amartya. Desigualdade reexaminada. 2. ed. Trad. Ricardo Doninelli Mendes. Rio de Janeiro: Record, 2008.

____________. Idea of justice. In: Journal of Human Development, Vol. 9, No. 3, Novembro, 2008b, pp. 331-42. Acessível em <http://www.ucl.ac.uk/spp/seminars/colloquium-in-legal-and-social-philosophy-downloads/The_Idea_of_Justice.pdf>.

____________. Desenvolvimento como liberdade. Trad. de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTUGAL, Bernardo Lopes Portugal . O que o tal do Compliance e a Lei Anticorrupção têm a ver com a sua empresa?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4283, 24 mar. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37437. Acesso em: 4 maio 2024.