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Medida antidumping: estudo de caso da indústria calçadista

Medida antidumping: estudo de caso da indústria calçadista

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O presente trabalho realiza análise do Acórdão do MS 15142 / DF MANDADO DE SEGURANÇA 2010/0055195-9 (anexo ao artigo), aduzindo argumentos da jurisprudência nacional e alienígena acerca da medida antidumping. Conclui pela aplicação adequada da medida.

1 - O CASO[1]

                 Uma indústria calçadista instalada no Brasil impetra MS contra a autoridade coatora o Exmo. Sr. MINISTRO DE ESTADO DO DESENVOLVIMENTO INDÚSTRIA E COMÉRCIO EXTERIOR visando desconstituir Resolução CAMEX nº 14, de 3 de março de 2010, que estabelece medida antidumping prevista no Acordo Antidumping (AAD), aplicável aos países membros da OMC, na Lei 9.019/95, regulamentada pelo Decreto 1.602/95 (revogado pelo Decreto 8.058/13). O procedimento foi requerido pela Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) contra a importação de calçados chineses.

                 A impetrante tentou diferenciar o produto importado daquele produzido pela indústria nacional, mas não logrou êxito, em face das similitudes alegadas no procedimento antidumping (mesmo uso, mesma matéria prima e formato idêntico). Na apuração da prática de preços abusivos, a impetrante buscou fazer a comparação com a Indonésia, enquanto a autoridade coatora pesquisou os preços normais a partir da indústria italiana, alegando como critério desta seleção: 1) a Itália ser economia de mercado e a China não integralmente; 2) China e Itálica competirem no mercado internacional, em especial os EUA; 3) a Indonésia ter indústria calçadista forcada no segmento esportivo, funcionarem sob dependência de outras (facção) e menor penetração no mercado internacional.

                 No que tange ao dano à indústria nacional, a autoridade coatora utilizou alguns dados (receita líquida, volume de vendas, participação no mercado interno e outros), enquanto a impetrante requereu que o cálculo considerasse outros fatores previstos em norma (variação de ativo, de estoque, de recebíveis, retorno de investimento e outros). Outro fator questionado acerca da metodologia de cálculo de dano foi a fonte (não certificada) e o período (anterior à prática alegada). A possibilidade de contraditar prova foi alegada pela impetrante, sendo que não foi feita menção às razões de decidir da autoridade coatora. Por fim, questionou-se o valor da medida, defendendo a aplicação do “menor direito”, ficando o valor aplicado abaixo do máximo permitido.

2 - O DIREITO E ASPECTOS ECONÔMICOS[2]

O conceito de dumping[3] constante no GATT é “Para as finalidades do presente acordo, considera-se haver prática de dumping , isto é, oferta de um produto no comércio de outro país a preço inferior ao seu valor normal, no caso de o preço de exportação do produto ser inferior àquele praticado, no curso normal de atividades comerciais, para o mesmo produto quando destinado ao consumo do país exportador” (grifo nosso).

O dumping é danoso à concorrência internacional a medida que uma economia nacional estabelece preço desleal para ingressar em determinado mercado ou ampliar sua participação no mesmo. A proteção contra essa prática tem fundamento direto na proteção da indústria-mercado nacional(ais) e, secundariamente, da proteção do consumidor, ao longo do tempo[4]. Alguns autores alegam a defesa da concorrência como seu fundamento, mas concordamos que ela seria seu fundamento no caso de dumping predatório[5].

As medidas antidumping são previstas em acordos internacionais e na legislação brasileira, como vimos. Há acordos específicos em blocos econômicos, como por exemplo a União Europeia[6] e o MERCOSUL[7]. De acordo com Welber Oliveira Barral citado por SILVA (2009)[8], “os direitos antidumping possuem natureza jurídica de imposição paratarifária de intervenção no domínio econômico, fundada na função de incentivo do Estado”. Para análise de outras teorias acerca da natureza jurídica, veja GOULART (2006).

Em síntese, o procedimento que visa aplicar medidas antidumping precisa demonstrar[9]:

- Prática de dumping;

- Existência de dano ou de potencial de dano a indústria nacional;

- Nexo de causalidade entre as importações em dumping e o dano;

Note-se que esses são os requisitos gerais, os quais possuem regulamentação própria e analítica. Contudo, como nos debruçaremos acerca da interseção entre  aspectos econômicos e o direito, focaremos a análise em fatores mais gerais da medida antidumping.

Assim, é importante anotar a conclusão do IPEA acerca da aplicação das medidas: “Em síntese, a experiência de todos esses anos revela que a maior busca de proteção através de medidas antidumping (e vice-versa) não está associada somente ao processo de liberalização comercial, mas a uma combinação desse com o desalinhamento cambial e os ciclos de crescimento econômico no país”[10].

O IPEA também indica que há concentração em alguns setores da indústria nacional, de modo que a prática antidumping pode facilitar o execício de monopólio ou oligopólio, de modo que a aplicação dessas medidas devem se restringir ao mínimo necessário.

Demonstra-se, portanto, que esse instrumento jurídico deve ser aplicado com vistas aos aspectos objetivos e finalísticos da intervenção no domínio econômico, autorizado na Carta Magna.

3 - BREVES COMENTÁRIOS CRÍTICOS

A aplicação da medida antidumping se deu para quase a totalidade do seguimento do mercado calçadista, sem diferenciar a faixa etária de uso, público alvo (masculino ou feminino) ou destinação (social, esportivo). Apesar de não haver conceito hermético em norma internacional, a orientação é para aplicar a maior similitude possível, cabendo a análise ao caso concreto[11]. O pano de fundo justificador para tal medida, nos parece, foi a fragmentação da indústria nacional[12] e os objetivos estratégicos para esse segmento[13];

A verificação do preço normal, a nossa primeira análise, não pareceu atender ao critério econômico adequado ao mercado global, já que deveria ser definido de modo a permitir, simultaneamente, identificar a prática de preço desleal, proteger a indústria nacional, sem privá-la da necessária modernização e ampliação da eficiência, como política de desenvolvimento estratégico[14]. Contudo, se considerado experiências internacionais, o julgado adota entendimento da Comunida Europeia[15];

O conceito de dano ou dano potencial à indústria nacional é abrangente. É preciso estabelecer claramente a metodologia de cálculo para evitar mero protecionismo. Apesar desta exigência doutrinária, é necessário dar flexibilidade para que, no caso concreto, seja adaptada sob o manto do princípio proporcionalidade e da ponderação de interesses. Esse tem sido o entendimento da a Zona Tripartida de Comércio Livre, (TFTA)[16], que adota técnicas similares ás apresentadas no acórdão.

O valor da medida a ser aplicada deve atender ao princípio do menor direito, ou seja, a aplicação da menor tarifa capaz de sanar a lesão ou ameaça de lesão a indústria nacional. Ocorre, contudo, por ausência de informação acerca do valor efetivamente praticado na importação e o valor da medida antidumping, a análise fica prejudicada. Reforce-se que a margem dumping deve ser calculada com base em comparação justa de preços, de modo que as metodologias de cálculo devem ser harmonizadas em âmbito internacional[17], contudo a prática zeroing[18] ainda é verificada;

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição da República e diversos acordos internacionais autorizam a aplicação de medidas antidumping. O debate que se realiza concentra-se no proveito econômico da sua aplicação.

A leitura especializada diverge sobre o grau de intervenção, contudo, é possível inferir que concordam que deve ser o menor possível, sendo que deve estar em consonância com aspectos estratégicos de desenvolvimento e não com mero protecionismo.

O caso estudado aponta a aplicação adequada do instituto, apesar da crítica recebida. Isso se deve, em geral, por entendermos que o emprego dessa medida em cenário internacional autoriza o Brasil a adotá-la, sob pena de ter seu desenvolvimento comprometido pela prática de dumping.

Note-se que o segundo os líderes de aplicação das medidas antidumping são EUA, U.E e Índia. Assim, não é possível olvidar questões geopolíticas e de estratégia econômica na aplicação dessas medidas.

ANEXO I – ACÓRDÃO

MS 15142 / DF MANDADO DE SEGURANÇA 2010/0055195-9

Data do Julgamento: 28/11/2012

Data da Publicação/Fonte: DJe 07/12/2012

PROCESSO CIVIL. ADMINISTRATIVO. INTERNACIONAL. DIREITO ANTIDUMPING. CALÇADOS DE ORIGEM CHINESA. REPRESENTATIVIDADE DE ASSOCIAÇÃO. EXISTÊNCIA. CORRETA DELIMITAÇÃO DO PRODUTO INVESTIGADO. VALOR NORMAL. UTILIZAÇÃO DE TERCEIRO PAÍS. POSSIBILIDADE. DANO À INDÚSTRIA NACIONAL CONFIGURADO. VÍCIO NO PROCEDIMENTO. INEXISTÊNCIA.  ADEQUAÇÃO E RAZOABILIDADE DA MEDIDA. SEGURANÇA DENEGADA.

1. Desde que regularmente autorizada, a associação que congrega a quase totalidade das indústrias nacionais do setor calçadista possui a representatividade necessária para requerer a instauração de procedimento antidumping, nos termos do art. 20, § 3º, do Decreto 1.602/95. Precedente.

2. Não há vício na definição do objeto investigado quando a decisão administrativa é suficientemente justificada com base nos requisitos da similaridade entre os produtos nacional e estrangeiro e da efetiva concorrência entre eles.

3. O art. 7º do Decreto 1.602/95 permite a escolha de um terceiro país para servir como parâmetro na fixação do valor normal, quando houver dificuldades na determinação do preço comparável, como ocorre na hipótese em que o exportador não se qualifica como uma economia predominantemente de mercado.

4. No caso, a indicação da Itália para o cálculo do valor normal respaldou-se na constatação de que o país é grande exportador de uma variedade de calçados concorrente dos produtos chineses.

5. O dano à economia nacional e o nexo de causalidade com as importações subcotadas foram devidamente demonstrados pela autoridade competente, após extenso e minucioso estudo técnico, que avaliou corretamente os dados oficiais fornecidos pelo IBGE e as informações colhidas dos fabricantes do produto similar nacional, atendendo às exigências contidas nos arts. 14 e 15 do Decreto 1.602/95.

6. O processo administrativo transcorreu de forma absolutamente regular. As informações essenciais para a comprovação do dumping foram apresentadas durante a fase instrutória do procedimento e se submeteram ao crivo das partes interessadas, que tiveram ampla oportunidade de exercer o direito de defesa.

7. O direito antidumping deve corresponder à quantia necessária para restabelecer os danos à indústria nacional, não podendo ultrapassar a margem de dumping apurada, haja vista que possui a finalidade precípua de proteger a indústria doméstica. Na espécie, a medida observou os limites do art. 45 da Decreto 1.602/95, estando dentro da razoabilidade.

8. Não sendo o caso de evidente excesso, descabe ao Judiciário revisar os valores da tarifação empregada pela autoridade administrativa, sob pena de investir-se em atribuição inerente ao Executivo, em flagrante desrespeito à separação e independência entre os Poderes.

9. Segurança denegada.

NOTAS E BIBLIOGRAFIA


[1] Mais informações disponíveis em http://www.camex.gov.br/legislacao/interna/id/838.

[2] Em função das limitações deste trabalho, deixamos de apresentar questões específicas dos dispositivos citados na decisão.

[3] Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/conheca-o-ministerio/tecnologicos/cgc/solucao-de-controversias/mais-informacoes/texto-dos-acordos-da-omc-portugues/1-1-1-acordo-geral-de-tarifas-e-comercio-1994-gatt-1994/at_download/file.

[4] GOULART, Cyrus Egharari. A EFICIÊNCIA E A EFICÁCIA DAS NORMAS ANTIDUMPING NA OMC  E SUAS REPERCUSSÕES NO DIREITO CONCORRENCIAL BRASILEIRO. Dissertação de Mestrado em Comércio Internacional, UNESP, 2006.

[5] SILVA, Dario Zani. Adoção das medidas antidumping e o princípio da livre concorrência. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano VI (2009) nº 6. Disponível em http://web.unifil.br/docs/juridica/06/ARTIGO_5.pdf.

[6] Regulamento (CE) n. o  1225/2009 do Conselho, de 30 de Novembro de 2009 , relativo à defesa contra as importações objecto de dumping dos países não membros da Comunidade Europeia , disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/;jsessionid=KT8ST2GJsJ24mS6Pp5NVKGgQJcRfMQ8v5kyRj8gdYhfMdpgMp4yL!154773483?uri=CELEX:32009R1225.

[7] Conforme Protocolo de Defesa da Concorrência do Mercosul, disponível em http://www.cade.gov.br/internacional/Protocolo_Defesa_Concorrencia_Mercosul.pdf Antes mesmo de haver norma específica, eram aplicadas as outras  normas do MERCOSUL, conforme Laudo do Tribunal Arbitral relativas à controvérsia entre a República Federativa do Brasil (Parte Reclamante) e a República Argentina (Parte Reclamada), identificada como controvérsia sobre "Aplicação de Medidas Antidumping contra a exportação de frangos inteiros, provenientes do Brasil, Resolução Nº 574/2000 do Ministério de Economia da República Argentina", disponível em http://www.sice.oas.org/dispute/mercosur/laudo4_p.asp#IID6.

[8] SILVA, Dario Zani. Adoção das medidas antidumping e o princípio da livre concorrência. REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano VI (2009) nº 6. Disponível em http://web.unifil.br/docs/juridica/06/ARTIGO_5.pdf.

[9]  Guia Prático de Aplicação de Salvaguardas – o caso da china. Disponível em : http://www.cebc.org.br/sites/default/files/guia_pratico_de_aplicacao_de_salvaguardas_-_o_caso_china.pdf.

[10] Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/td_1037.pdf

[11] CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA COMÉRCIO E DESENVOLVIMENTO. SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS OMC. GATT 3.5. 2003, disponível em http://unctad.org/pt/docs/edmmisc232add33_pt.pdf

[12] Conforme RESOLUÇÃO N.º 14, DE 04 DE MARÇO DE 2010 e seu anexo, disponível em http://www.camex.gov.br/legislacao/interna/id/838.

[13] FILHO, WAGNER DE MACEDO PARENTE FILHO. O antidumping como parte de políticas comerciais e industriais estratégicas. Dissertação em Direito das Relações Econômicas Internacionais, 2010, PUC. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cp135756.pdf.

[14] Idem. Anote-se, contudo, não pode consistir em política protecionista. O debate se aprofunda acerca da intervenção do Estado na economia, em especial a utilidade da medida. ““Conclui-se que as intervenções clássicas devem ser constituídas por intervenções estratégicas emanadas dos modelos shumpeterianos, as quais induzam as industrias de capital estatal e privado – nacional ou estrangeiro – a gerar inovações, a absorver tecnologias externas, a aumentar a capacitação e a incrementar e a diversificar as exportações, o que, apesar de talvez prejudicar o equilíbrio Nashi, poderia levar mais desenvolvimento para regiões carentes” (pp. 221 e 222). Frise-se, mais uma vez, que o autor entende justificável a aplicação da medida antidumping para a indústria calçadista brasileira.

[15] “É especialmente conveniente especificar que o valor normal pode ser determinado de acordo com as regras aplicáveis aos países de economia de mercado nos casos em que possa ser demonstrada a existência de condições de mercado para um ou mais produtores sujeitos a inquérito no que se refere ao fabrico e à venda do produto em causa.” REGULAMENTO (CE) N. 000/2009 DO CONSELHO de 30 de Novembro de 2009 relativo à defesa contra as importações objecto de dumping dos países não membros da Comunidade Europeia. Disponível em http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/ALL/;jsessionid=KT8ST2GJsJ24mS6Pp5NVKGgQJcRfMQ8v5kyRj8gdYhfMdpgMp4yL!154773483?uri=CELEX:32009R1225.

[16] Disponível em http://trademarksa.org/sites/default/files/documents/01-07-2013%20TFTA%20Anti-Dumping%20Training%20Module%20Portuguese_0.pdf.

[17] CROCCO, Fábio Weinberg. O contencioso do zeroing na OMC: uma análise de precendetes. Monografia em Direito, FGV-SP.  2010.

[18] Consiste em calcular a margem de medida antidumping desconsiderando o “dumping negativo”, ou seja, em que o preço de venda do exportador é maior que do valor normal. Isso ampla a possibilidade de se apurar dumping e por majorar sua margem


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