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(In)constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos instituída pela Lei nº 12.711/12 e para membros do Ministério Público ou para Magistratura

(In)constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos instituída pela Lei nº 12.711/12 e para membros do Ministério Público ou para Magistratura

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O emprego das cotas raciais para acesso a cargos públicos é um ótimo passo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

1. Introdução

É grande a polêmica que gravita em torno do tema objeto deste pequeno artigo – pequeno em razão da grandiosa complexidade e multidisciplinariedade do tema, onde, ineludivelmente, argumentos pretensamente lógicos se amalgamam e se camuflam junto a outros de ordem emocional, religiosa, cultural e, dentre outros, todo tipo de “filosofia popular” que exsurge do seio social (com a necessária ressalva e respeito ao verdadeiro significado desta expressão).

Assim, a prudência recomenda que se faça a necessária advertência de que não se pretende aqui, e nem poderia ser diferente, a abordagem exaustiva de todas as questões atinentes ao debate das Cotas Raciais em concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos, tal como previsto no âmbito da administração pública federal por meio da Lei nº 12.990/2014 e no exemplo pioneiro do Concurso Público para Provimento de Cargos de Promotor de Justiça Substituto do Estado da Bahia iniciado em 02/09/2014.

Porém, é possível e indispensável, em curto espaço, uma mínima contextualização conceitual do tema do preconceito racial no Brasil, com a indicação dos seus traços característicos e origens históricas e do racismo já vivenciado em outros países, especialmente nos Estados Unidos da América (EUA) e na África do Sul (Apartheid), de onde se podem extrair referências válidas a fim de se compreender e diferenciar a questão racial em solo Brasileiro e a do mundo afora, e, por conseguinte, apontar posturas políticas e/ou jurídicas para o seu enfrentamento e tratamento.

Por fidelidade à honestidade que deve permear todo debate, há que se registrar a existência de posições contrárias às cotas raciais, sob o fundamento de que o Brasil não é um país racista, considerando, principalmente, o fato de que 50,7% dos brasileiros se autodeclararam negros ou pardos no censo realizado pelo IBGE no ano de 2010, bem como em razão da elevada miscigenação racial que sempre caracterizou a população brasileira.

Essa corrente de pensamento que nega a existência do racismo no Brasil, liderada por Gilberto Freyre na década de 1940, defende que o preconceito neste é exclusivamente social e não racial, o que nos caracterizaria, inclusive, como uma “Democracia Racial”, denominação esta que já constou até em estudos patrocinados pela UNESCO sobre a questão racial.

Sem olvidar a existência de posições contrárias à existência do racismo no Brasil – dos que negam a sua existência -, apreciaremos o acerto ou não da adoção de cotas raciais em concursos públicos, especialmente sob o ponto de vista jurídico.


2. Origens do Racismo

2.1. Breve Histórico do Racismo no Mundo 

Preliminarmente, cumpre registrar que, segundo renomados geneticistas e sociólogos, o conceito de raça é de ordem social e não biológica. Isto porque não há efetivamente raças humanas, mas apenas uma raça humana.

O que há, em verdade, é a existência de características físicas tradicionalmente relacionadas a “raças”, tais como o formato do nariz, a cor da pele, a obesidade, a miopia, a calvície, dentre outras, o que, inclusive, já restou observado por Guido Barbujani, um dos maiores geneticistas da atualidade, conforme afirmação por este proferida em seu livro “A invenção das raças”, citado por Edilson Vitorelli[1]:

“Mas alguma coisa sabemos: não há motivo para acreditar que a espécie humana se subdivide em grupos biológicos distintos, que evoluíram naturalmente, e que possamos chamar legitimamente de raças, qualquer que seja a definição de raça que adotamos. (...) No momento, com base naquilo que sabemos, caíram por terras razões tradicionais para pensar que nossa espécie se compõe de raças diferentes.”

E continua o citado autor:

“O conceito de raça não pode ser buscado na biologia. É um conceito social. As raças não existem nos genes, mas socialmente, na cabeça dos atores sociais.”

E de onde vem, então, este conceito social de raças? A resposta se encontra no fato de que as diferenças nos costumes entre os grupos humanos levaram a uma diferenciação entre os clãs, os grupos, e, mais adiante, as populações.

Essa tendência humana ao agrupamento também acarretou uma tendência ao conflito contra aqueles que não pertenciam à mesma sociedade ou grupo. Criou-se, então, a distinção entre as “pessoas de dentro” e as “pessoas de fora”. Assim, o estabelecimento de alianças sociais com uns sempre implicou a exclusão dos outros, que não fossem incluídos no acordo original.

Assim é a organização social humana até hoje. O princípio de que o homem não sobrevive sozinho não acarretou a eliminação das fronteiras, mas, ao contrário, o seu fortalecimento.

Flávio Baroncelli, citado por Edilson Vitorelli[2], conclui:

“A distinção entre os “de dentro” e os “de fora” acarretou evolutivamente uma tendência universal: a de perceber características das pessoas encontradas, para entender imediatamente se elas representam perigo. A necessidade de caracterizar alguém como pertencente ou não a um grupo viria a ser a mola propulsora do conceito de raças, embora esse conceito não seja congênito às sociedades humanas.” 

 Todavia, as características físicas nem sempre foram definidoras dos agrupamentos humanos. Na Grécia antiga, não havia distinção física entre os habitantes da Pólis. Havia escravidão na antiguidade, porém esta decorria das derrotas nas guerras, não da cor da pele ou de qualquer outra característica física dos homens.

Assim também ocorreu no Império Romano, os povos dominados serviam os romanos em razão do jugo que a derrota na guerra os submetia, não porque eram diferentes em raça ou cor.

Foi a partir da descoberta do continente americano – 1942 – e com o início da colonização africana, contemporâneos, que a situação começou a mudar. A vastidão do continente americano e a resistência indígena criou o clima perfeito para o surgimento da necessidade de submeter o povo africano à escravidão para concretizar o plano de colonização.

Pronto, aí estava o cenário perfeito – dois grandes continentes a dominar e a resistência dos povos que a isto se opunham.

Contudo, era necessária uma justificativa racional para submeter os povos africano e americano nativos à vontade europeia colonizadora. E nenhum outro critério era mais evidente e conveniente do que a cor da pele para diferenciar os europeus dos referidos povos. A cor da pele estava no “local certo e na hora certa”.

Dessa breve análise histórica, pode-se afirmar que até o século XV não havia preconceito racial, que surgiu somente a partir da colonização das Américas, da África e do caminho para as Índias, pelo Pacífico.

Embora a escravidão tenha sido abolida no século XIX, o racismo e as ideias de superioridade racial ultrapassaram o século XX e causaram danos muito maiores que a própria escravidão. Quer exemplo? O massacre nazista ao povo judeu, o Aphartheid na África do Sul que durou de 1948 a 1994, e o Aphartheid dos Estados Unidos da América, relembre-se, também institucionalizado.

Na África do Sul, conquanto os negros constituíssem a maioria numérica no país, eram oprimidos pela minoria branca, capitaneada pelo Partido Nacional, institucionalizando uma política pública oficial de segregação racial. Houve a classificação dos cidadãos, separação dos serviços públicos, tais como saúde e educação, separação de praias, imunidade à execução de prisão de brancos por negros, remoções forçadas, supressão de cidadania e o confinamento de negros em bairros específicos – Bantustões.

Nos Estados Unidos da América – EUA – dividido entre o norte libertário e sul escravocrata, a guerra de secessão entre esses hemisférios, ocorrida em 1861, configurou-se no conflito mais sangrento já ocorrido naquele país, cuja principal causa era o conflito de interesse, entre o sul e o norte, que gravitava em torno da abolição da escravidão.

O norte dos EUA, vencedor no conflito, impôs o fim da escravidão com a aprovação da 13ª emenda à Constituição daquele país, em 1865, após árdua luta liderada pelo então presidente Abraham Lincoln. As mudanças jurídicas, felizmente, não pararam na referida emenda, sendo aprovada também a 14ª emenda que fixava a igualdade entre os cidadãos, e, por fim, a 15ª emenda que atribuía o direito de voto aos homens negros.

E, se parecia que este seria o fim da escravidão e o início da igualdade entre negros e brancos nos EUA, infelizmente não foi esta a interpretação da Suprema Corte daquele Estado ao julgar, em 1873, casos que ficaram conhecidos como Slaughterhouse Cases, nos quais restou assentado o entendimento de que a igualdade estabelecida na Constituição Federal não poderia vincular os estados federados, que, segundo a referida corte, possuíam uma cidadania estadual, paralela e coexistente à cidadania federal, desenhada pelas suas respectivas Constituições Estaduais.

Desse modo, estaria vedada a escravidão, mas não a discriminação racial por parte dos estados que compunham a federação dos EUA.

Com suporte na decisão da Suprema Corte dos EUA, no caso Plessy v. Ferguson[3], restou assentado entendimento que perdurou até a década de 1950 e que justificou a instituição de política pública de apartheid entre negros e brancos no transporte ferroviário do estado da Louisiana, consistente na destinação de vagões exclusivos para “coloured people”, vagões esses que eram de qualidade inferior.

Somente em 1954 viria o fim de políticas públicas de segregação racial nos EUA, após o julgamento do caso Brow v. Board of Eduacation of Topeka, class action ajuizada contra a junta de educação da cidade de Topeka, no Kansas, em razão da obrigatoriedade da separação de crianças negras das brancas, restando às crianças negras as piores e mais distantes escolas. A Suprema Corte, neste caso, reconheceu as implicações sociais e psicológicas da segregação racial nas escolas, pondo, então, fim à segregação racial nos EUA.

Estranha a constatação de que os EUA, país que se auto rotula protetor do mundo e defensor da liberdade, cujo símbolo de uma de suas maiores cidades New York é a Estátua da Liberdade, possuía políticas públicas institucionalizadas de segregação racial até o ano de 1954.

Se até aqui o caminhar da história sinaliza para o amadurecimento do pensamento dos norte-americanos em relação à questão racial nos EUA, e para que nenhum leitor destas breves linhas sinta-se desavisado, apresenta-se oportuno registrar um curioso caso ocorrido no estado do Alabama em relação à questão racial.

A Constituição do estado do Alabama, datada de 1901, ainda contém em seu texto um dispositivo determinando a segregação racial nas escolas, dispositivo este ineficaz há mais de 50 anos, em virtude de decisão proferida pela Suprema Corte dos EUA no caso aludido acima (Brow v. Board of Eduacation of Topeka).

Em 2004, o Poder Legislativo daquele estado convocou referendo para retirar o referido dispositivo de sua Constituição, o que foi rejeitado por 50,1% da população. Em 2012, repito, no ano de 2012, novo referendo popular foi convocado para nova tentativa de extirpar o aludido dispositivo do texto constitucional daquele estado federado. O resultado foi que 60,67% dos eleitores votaram pela manutenção do artigo preconceituoso de segregação racial nas escolas.

Portanto, se o leitor é negro e estiver pensando em tirar férias no estado do Alabama nos EUA, sugiro, com a devida vênia e respeito, que se não tiver um motivo forte para ir escolha outro lugar, não porque não é livre, digno ou covarde, mas porque o “povo superior” que lá habita não é digno da visita de ninguém que não seja complacente e tolerante com injustiça e irracionalidade desse jaez.

2.2. Racismo no Brasil

A corrente que advoga não existir preconceito racial no Brasil adota o raciocínio de que o preconceito existente aqui é social e não racial, o que seria evidenciado pela dificuldade de ascendência social conforme a classe a que pertence o brasileiro, e não conforme a sua cor da pele.

Nessa linha seguiu o sociólogo Gilberto Freyre, com seus estudos na década de 40, asseverando que o Brasil seria um exemplo de “democracia racial” para o resto do mundo, conforme já dito.

Na atualidade, quando se fala em cotas raciais o primeiro e principal argumento que se ouve é exatamente este defendido pelo citado sociólogo. A origem do preconceito no Brasil é social, e não racial. Outro argumento que se opõe é o de que a questão racial no Brasil se deve ao fato de que há uma presunção de coincidência de que os negros, em sua maioria, são pobres? Será? Vejamos.

Evidentemente que o preconceito racial na “Pátria Mãe Gentil” não é tão fácil de demonstração em razão do caráter difuso, dissimulado, velado e hipócrita que assume em nossa cultura. Não é e nunca foi institucionalizado como o foi lá fora. É cultural e inegavelmente camuflado em questões sociais. Entretanto, ainda assim, o preconceito racial, uma hora ou outra, apresenta-se sem nenhum despudor, como ocorreu nos estádios de futebol, recentemente, em que jogadores negros foram ofendidos com xingamentos do tipo “macacos”.

Um aspecto merece registro para melhor compreensão do preconceito racial no Brasil: o preconceito racial, para os que admitem sua existência é baseado no fenótipo – cor da pele – e não no genótipo – ascendência ou código genético. Negro, no Brasil, se define pela cor da pele.

Por este motivo, o IBGE adota o critério da autodeclaração para classificar a “cor da população” em seus censos. Não se olvide as polêmicas e críticas a este critério, bem como aos demais critérios já testados em algumas instituições oficiais – análise por comissão racial, como o exemplo da Universidade de Brasília.

Sem desprezar a existência de teses que sustentam a origem do preconceito em questões sociais, negando o preconceito racial no Brasil, restrinjo-me, pela necessária limitação do tema proposto, à análise dos elementos e dados que confirmam a tese contrária.

Como reação ao pensamento defendido por Freyre, alguns pensadores resolveram ir a campo e testar, com base em dados empíricos (estatísticas), se há ou não preconceito racial no Brasil e qual a sua natureza.

Merecem destaques os estudos do sociólogo Carlos Hasenbalg, e de Carlos Antonio Costa Ribeiro que posteriormente reavaliou e utilizou os estudos do primeiro.

Carlos Hasenbalg, em pesquisa realizada na década de 1970, sugere que a discriminação racial continuaria sendo um importante fator de estratificação social na sociedade, ao constatar que pessoas nascidas nos níveis ocupacionais mais inferiores, 98% dos indivíduos pesquisados negros permanecem no mesmo nível ocupacional dos pais, enquanto, entre os brancos esse percentual é de 79%. Para o referido autor, este seria um forte indício da existência de barreiras raciais na busca por ascensão social.

Por sua vez, Carlos Antonio Costa Ribeiro, trabalhando com dados mais recentes, referentes ao ano de 2006, constatou, após rigorosa pesquisa estatística, que[4]:

“Em suma, as chances de mobilidade descendente e de imobilidade de pessoas com origens em classes mais altas – profissionais e trabalhadores não manuais de rotina – são significativamente influenciadas pela cor da pele. Há desigualdade racial nas chances de mobilidade descendente e de imobilidade de pessoas com origem nas classes altas.”(grifei).

E continua:

O que as análises sugerem é que o preconceito racial se torna mais relevante na medida em que subimos na hierarquia de classes no Brasil. Pessoas com origem nas classes mais baixas encontram dificuldade de mobilidade ascendente porque são de classes mais baixas, não por sua cor ou raça. No entanto, há evidências importantes sugerindo que, tendo origens nas classes mais altas, pessoas negras tenham desvantagens, ou seja, tenham menos chances do que os brancos com origem nessas mesmas classes de permanecer no topo e mais chances de mobilidade descendente. As análises revelam que a desigualdade de oportunidades de mobilidade social é racial apenas nas classes altas, mas não o é nas classes baixas. Esta conclusão é bastante importante porque indica que o preconceito racial deve estar presente com mais força no topo e não na base da hierarquia de classe”. 

Das conclusões extraídas da pesquisa realizada pelo mencionado sociólogo, observa-se que há sim desigualdades de oportunidades em razão da classe social e não da cor ou raça, mas isto ocorre em relação à possibilidade de ascensão nos níveis mais baixos.

Todavia, quando se trata de ascensão social para classes sociais mais elevadas o cenário é outro, é mais racial do que social o preconceito, pois, nestes níveis, indivíduos que ocupam a mesma classe social (branco ou negro, ricos) há evidências empíricas (estatísticas) da existência de diferenças de oportunidades de acesso baseadas na cor da pele.

Um dado interessante que confirma a veracidade das conclusões apontadas acima é o percentual mínimo de negros que conseguem acessar os altos cargos do centro poder no setor público ou privado, cargos com relevante poder de decisão política, tais como os cargos de Membros do Poder Judiciário, magistrados.

O último Censo do Poder Judiciário Brasileiro, realizado pelo Conselho Nacional de Justiça com o objetivo de subsidiar a discussão acerca da adoção ou não do sistema de cotas para ingresso na magistratura, divulgado em 16/06/2014, utilizando os critérios de classificação da cor adotados pelo IBGE, apontou que, entre os magistrados brasileiros, apenas 1,4% (um por cento e quatro décimos) são negros e 14% (catorze por cento) são pardos.

O aludido censo traçou o perfil básico do juiz no país, qual seja, homem (64%), branco (84%), casado e heterossexual.

Relembre-se que o Ministro Joaquim Barbosa foi o primeiro Presidente do Supremo Tribunal Federal negro na história do país.

Este cenário fático-ontológico trazido pelo Censo do Poder Judiciário confirma as conclusões apontadas no trabalho do sociólogo Carlos Antonio Costa Ribeiro a respeito da existência de óbices raciais no acesso às classes mais altas da sociedade.

Não se deve ignorar que o Brasil jogou na lógica neoliberal famílias antes escravizadas sem nenhum amparo estatal e que o resultado disto é a existência da infeliz coincidência do grande número de negros pobres.

Não se pretende, com isto, afirmar que a situação dos negros no Brasil se deve exclusivamente à formação histórica da sociedade brasileira, pois não se está aqui apenas apontando para dados históricos a fim de justificar o presente, mas sim tentando identificar os aspectos e condições sociais e jurídicas que perpetuam essas desigualdades.

O que se está propondo, em verdade, é a análise de dados atuais que demonstram e identificam a perpetuação da estratificação social em relação à população negra, em uma sociedade cuja maioria numérica é negra e miscigenada, mas o monopólio dos cargos integrantes do centro de poder decisório continua nas mãos da população exclusivamente branca.

Os dados do Censo do Poder Judiciário realizado pelo Conselho Nacional de Justiça constituem-se não apenas em indícios da existência de preconceito racial no âmbito da magistratura, mas, em minha concepção, a prova e o reflexo do preconceito racial velado e dissimulado existente no Brasil.

Desafio qualquer pessoa sensata e sincera a olhar a sua volta, questionando-se sobre a existência de eventuais conhecidos em seu círculo de convivência – família, amigos, ambiente de trabalho, escola, igreja etc. – que possivelmente guardem sentimentos ou postura preconceituosa em relação à questão racial. Certamente e lamentavelmente, o índice de respostas absolutamente negativas seria ínfimo.


3. Ações Afirmativas 

Em síntese, ações afirmativas são políticas públicas ou privadas visando assegurar a concretização do princípio da igualdade material ou substancial, garantindo-se proteção às minorias vulneráveis em face da maioria - maioria inerente ao princípio majoritário nas democracias - como fundamento de legitimidade material do Estado Democrático de Direito.

As situações desfavoráveis a que podem estar submetidos alguns grupos de pessoas, que as tornam vulneráveis, podem advir de diferentes situações, como ocorre com os deficientes, indígenas, afrodescendentes, mulheres, idosos, crianças, dentre outros grupos que possam ser identificados como vulneráveis. Daí a justificativa sociológico-política para as Ações Afirmativas de Cotas para Deficientes, por exemplo. Espécie do gênero Ações Afirmativas.

Chamo a atenção para um detalhe importante consistente na relação de gênero e espécie entre as Ações Afirmativas Lato Sensu e o Sistema de Cotas, e, ainda, para o caráter mais específico do Sistema de Cotas Raciais.

Explico: As Ações Afirmativas são, essencialmente, Políticas Públicas ou Privadas destinadas a promover a igualdade substancial, ou material, através da discriminação positiva, mediante tratamento favorável e diferenciado, de pessoas que estejam em situação desfavorável na sociedade, geralmente experimentando discriminação e estagnação social, a fim de garantir o acesso dessa pessoas aos bens sociais. Como exemplo de ação afirmativa lato sensu pode-se apontar o art. 7º, inciso XX, da Constituição Federal, que protege constitucionalmente o mercado de trabalho da mulher.

Por sua vez, o Sistema de Cotas para Raciais, configura-se em subespécie de Ação Afirmativa, o que não altera ou afeta o seu fundamento de validade e aplicação prática.

O principal e mais equivocado argumento que se opõe às ações afirmativas, especialmente em relação ao sistema de cotas, é o critério da meritocracia pura. A mínima reflexão derruba este argumento que se constitui em discurso repugnante e falacioso.

Defende-se a ideia que os processos seletivos a cargos públicos e a universidades devem ser baseados no critério exclusivo da meritocracia pura, a fim de selecionar os melhores. O famoso ditado “que vença o melhor!”.

Contudo, não se leva em consideração as condições ofertadas a cada um dos agentes envolvidos na disputa. Segundo Daniel Sarmento[5], a expressão “ação afirmativa” surge em uma executive order do Presidente Kennedy em 1961, e ganha força no governo Lyndon Johnson, que se estende de 1963 a 1969. Este afirmava: “você não pega uma pessoa que foi tolhida por correntes e a liberta, a põe na linha de partida de uma corrida e então diz – ‘você está livre para competir com os outros’ – e ainda acredita que está sendo totalmente imparcial.”.

A identificação de situações desiguais a que submetidos os agentes concorrentes deu origem a Teoria do Impacto Desproporcional (disparate impact doctrine), questão pioneiramente levantada no Brasil pelo ex-ministro Joaquim Barbosa, que dita que a verificação da desigualdade material deve ser aferida com foco no resultado da situação fática, e não no tratamento jurídico-formal estabelecido na norma.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de declarar a constitucionalidade da adoção de cotas raciais para ingresso em universidades – ADPF 186-DF – o que demonstra o acerto e conformidade jurídica deste tipo de ação afirmativa com o ordenamento jurídico.


4. Destinatário das Ações Afirmativas

Edilson Vitorelli, citando Rogério Nunes dos Anjos Filho, denuncia a existência de confusão conceitual entre as expressões “minorias” e “grupos vulneráveis”, apontando a necessidade de diferenciação e definição destes termos. Ainda Edilson Vitorelli[6], citando, desta feita, Muniz Sodré, conceitua minoria da seguinte forma:

“Vulnerabilidade jurídico-social, pois não é institucionalizada pelas regras do ordenamento vigente, possui identidade em constante estado de reconstrução e luta contra o poder hegemônico mediante estratégias discursivas. Em síntese, minoria não é algo que se define por números, mas pela participação efetiva na sociedade e nos órgãos de poder.”(grifei).

Embora a definição conceitual de minoria já tenha sido inclusive debatida no âmbito da ONU até a década de 80, o debate restou abandonado por parte de Órgãos Oficiais, tarefa que coube a doutrina finalizar, e que sobreleva pontuar, conforme supracitado.

Nesse vértice, o grupo que detém o poder em um Estado (poder político, social e econômico), mesmo sendo numericamente menor, não se apresenta vulnerável e, portanto, não se enquadra no conceito de minoria.

Minorias, assim, não é um conceito relacionado necessariamente a quantidade numérica, de forma que é possível afirmar que grupos numericamente superiores, que não gozem de acesso aos bens sociais, podem ser classificados como grupos vulneráveis, como minorias.

Conquanto haja quem pretenda distinguir minorias de grupos de vulneráveis, entendo desprovida de relevância prática essa distinção, razão pela qual utilizarei o termo minoria como sinônimo de grupos vulneráveis

Dessa forma, considerando que as ações afirmativas são políticas públicas ou privadas voltadas à concretização do princípio da igualdade material às minorias vulneráveis, ineludivelmente, este é o público destinatário delas.


5. Da Constitucionalidade das Cotas Raciais em Concursos Públicos

Os principais argumentos contrários à constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos, mesmo para aqueles que são favoráveis às cotas com outros critérios como o social, são:

1) concurso público não seria sede para a concretização da igualdade material ou da justiça social, pois o seu objetivo, constitucionalmente fixado, seria o de selecionar os melhores e mais eficientes agentes públicos em razão do princípio da eficiência que rege a administração pública, e, por isto, não seria meio adequado para a efetivação de políticas públicas afirmativas;

2) o concurso público deve assegurar o princípio democrático de acesso aos cargos e funções públicos, o que seria prejudicado com a reserva de cotas raciais.

Ora, se o concurso público busca sempre a seleção dos melhores a fim de concretizar o princípio da eficiência (art. 37, caput, CF/88) e, por isto, as cotas raciais em concursos públicos não seriam compatíveis com a constituição, o que dizer, então, a respeito das cotas para deficientes físicos.

É possível dizer que nos concursos públicos em que há a reserva de cotas a deficientes físicos estar-se-ia sempre garantindo, prioritariamente e exclusivamente, a seleção dos melhores tecnicamente? Com o devido e merecido respeito à capacidade profissional das pessoas portadoras de necessidades especiais, é evidente que a resposta deve ser negativa.

Diante do choque entre o princípio da eficiência e o princípio da igualdade – em sentido material – deve sempre prevalecer o primeiro? Seria esta a solução apontada pelo supraprincípio da proporcionalidade quando instado a orientar a atividade ponderativa do intérprete diante da colisão entre valores com envergadura constitucional? A par de opiniões em contrário, entendo ser óbvio que não!

A reserva de cotas em concursos públicos para deficientes físicos exsurgiu exatamente da necessidade de se tratar desigualmente os desiguais na exata medida em que se desigualam, como forma de assegurar a igualdade substancial dessas pessoas consideradas vulneráveis, diante das condições materiais desfavoráveis em que se encontram comparativamente à ampla concorrência.

Disto, nota-se que este primeiro argumento – a garantia e prevalência do princípio da eficiência - é mais um argumento falacioso para tentar justificar a impossibilidade de cotas raciais em concursos públicos e, por conseguinte, deve ser descartado.

Por outro lado, o argumento da inconstitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos por suposta ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos também é inválido, porém apenas parcialmente. Parcialmente porque há casos em que este princípio constitucional deve preponderar, uma vez que nesses casos sequer há choque com o princípio da igualdade, conforme adiante será demonstrado.

Ressalte-se que as cotas raciais não impedem o acesso da ampla concorrência aos cargos públicos, e que elas obedecem ao princípio da temporariedade da mesma forma como ocorre com toda e qualquer ação afirmativa – até que se as situações de injusta desigualdade desapareçam e tornam-se desnecessárias.

Outrossim, o referido argumento de ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos, entendido e aplicado de forma irrestrita, constitui-se apenas em forma dissimulada e transmudada do já referido argumento falacioso da meritocracia pura, e deve ser rejeitado pelos mesmos motivos já apontados em relação a este.

Contrario sensu, este argumento não é totalmente equivocado, pois há situações em que a presença de preconceito racial não ameaça ou dificulta o acesso a cargos públicos por parte da população negra, fazendo com que o fundamento de validade e justificação da exigência de cotas raciais desapareça.

E quais seriam essas situações em que mesmo se admitindo a existência de preconceito racial este seria indiferente na disputa? Em concursos públicos cujos critérios de avaliação sejam exclusivamente objetivos, o que afasta a possibilidade de subjetivismos e parcialidades (espaços onde surgiriam oportunidades para a discriminação racial).

Nesses casos, os verdadeiros obstáculos e desequilíbrios na disputa adviriam apenas, muito possivelmente, de diferenças sociais (condições materiais desiguais – pobres e ricos), e não raciais, o que poderia, em tese, justificar eventuais cotas sociais.

Portanto, afigurar-se-ia inconstitucional e injustificável o critério de discriminação positiva baseado na cor da pele em certames cujos critérios avaliativos sejam exclusivamente objetivos. Por isto, a afirmação da validade parcial do argumento de ofensa ao princípio do acesso democrático aos cargos públicos.

Agora, para retornar à questão do preconceito racial como obstáculo ao acesso a cargos públicos de relevante poder decisório, o que justificaria a exigência de cotas raciais, relembre-se as conclusões a que chegou o sociólogo Carlos Antonio Costa Ribeiro a respeito da existência de obstáculos de ordem racial no acesso às classes mais altas da sociedade, o que restou ratificado pelo Censo do Poder Judiciário efetivado pelo Conselho Nacional de Justiça recente no ano de 2014 – apenas 1,4% dos juízes são negros.

Soma-se à circunstância apontada no parágrafo supra a inegável existência de preconceito racial velado ou dissimulado existente em nossa cultura combinada e agravada pela insegurança jurídica, que atinge os candidatos negros, decorrente da existência de fases e critérios subjetivos em concursos públicos, tais como provas orais e entrevistas pessoais, estas últimas cuja existência nos dias de hoje apresenta-se injustificável sob o ponto de vista constitucional.

Todos que já se submeteram a provas orais e a outras fases subjetivas de avaliação, em que o candidato é identificado, sabem a insegurança jurídica que representa o subjetivismo existente nestas fases/avaliações, que, com muita frequência, constituem-se em espaços para o arbítrio puro dos examinadores.

Além disso, há jurisprudência assente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, interpretando o art. 70, §1º, da Resolução nº 75 de 12/05/2009, que regulamenta concursos públicos no âmbito da magistratura que preceitua que não é possível a revisão, em sede de recurso, da nota e dos critérios de avaliação de provas orais – critérios esses que não existem e/ou não são declarados na maioria dos concursos.

 Transcrevo o aludido dispositivo:

“Art. 70. O candidato poderá interpor recurso, sem efeito suspensivo, no prazo de 2 (dois) dias úteis, contado do dia imediatamente seguinte ao da publicação do ato impugnado.

§ 1º É irretratável em sede recursal a nota atribuída na prova oral.” (Grifei).

Isto dificulta ainda mais a possibilidade de sindicabilidade dos atos administrativos das bancas examinadoras em provas orais de caráter inegavelmente subjetivo, o que contribui para o aumento da possibilidade do cometimento de arbitrariedades em avaliações de natureza subjetiva em que o candidato fica à frente de seus examinadores e à mercê de critérios de avaliação não revelados e irrecorríveis.

Conquanto a vulnerabilidade decorrente do subjetivismo das avaliações referidas acima atinja a todos os candidatos, independentemente da cor ou classe social, a combinação desse subjetivismo irrecorrível com o reconhecimento da existência de racismo velado na cultura da sociedade brasileira, especialmente nas classes mais altas, conforme apontado nos estudos do multicitado sociólogo e no Censo do Poder Judiciário - CNJ, refletem e explicam o porquê do inexpressivo número de juízes negros – 1,4% do total em todo o país.

A par do exemplo da magistratura, é evidente que este é só um exemplo, e ninguém há como negar que essa proporção também possa ser verificável em outras carreiras ou áreas profissionais se perscrutados os seus dados em relação ao número de integrantes que as compõe, como, por exemplo, no âmbito do Ministério Público.

Diante desse quadro, feliz o elogio feito pelo Procurador Geral da República – Janot – ao apreciar Procedimento de Controle Administrativo nº 1283/2014-11, instaurado no âmbito do Conselho Nacional do Ministério Público – CNMP -, ao Ministério Público do Estado da Bahia pela iniciativa pioneira de reservar cotas raciais para negros no Concurso Público para Provimento de Cargos de Membros do Ministério Público, considerando a relevância deste cargo para a sociedade, assim como o resultado positivo dessa iniciativa para toda a coletividade.

Não se deve pretender a resolução de todos os problemas sociais da população negra ou parda através do emprego das cotas raciais para acesso a cargos públicos, como se fosse a Panacéia - na mitologia grega Panacéia (ou Panacea em latim) era a deusa da cura, filha de Asclépio e neta de Apollo. O termo Panacéia também é muito utilizado com o significado de remédio para todos os males - que irá resolver todos os problemas sociais referentes ao racismo no Brasil.

Contudo, é um ótimo passo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, que reconhece seus defeitos e distorções atacando as causas que perpetuam as desigualdades e injustiças, com vistas à construção de uma sociedade democrática não só do ponto de vista formal, mas também material e substancial.    


Notas

[1] BARBUJANI, Guido, A invenção das raças. Ed. Contexto, 2007, p. 156. Apud Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 34.

[2] Apud VITORELLI, op. Cit, p. 36.

[3] Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 45-46.

[4] Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição. Pág. 56.

[5] Sarmento, Daniel. Direito Constitucional e Igualdade Étnico-Racial. In Piovesan, Flávia; Martins de Souza, Douglas. Ordem Jurídica e Igualdade Étnico-Racial. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. Apud: Vitorelli, Edilson. Estatuto da Igualdade Racial e Comunidades Quilombolas. Ed. JusPodivm. 2ª Edição.

[6] Apud VITORELLI, op. Cit, p. 25.


Autor

  • Paulo Henrique Mendonça de Freitas

    Promotor de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça do Estado de Goiás. Especialista em Direito Penal e Processual Penal. Aprovado no Concurso para Promotor de Justiça Substituto do Estado do Acre. Ex-analista Judiciário da Justiça Federal, no Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Aprovado em 6 (seis) concursos de Analista Judiciário em Tribunais Federais, 4 (quatro) concursos de Técnico Judiciário de Tribunais Federais, Ex-Agente de Polícia Científica, ex-servidor do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul.

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FREITAS, Paulo Henrique Mendonça de. (In)constitucionalidade das cotas raciais em concursos públicos instituída pela Lei nº 12.711/12 e para membros do Ministério Público ou para Magistratura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4310, 20 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38167. Acesso em: 4 maio 2024.