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A Reforma Previdenciária em confronto com o art. 60, § 4º da Constituição Federal

A Reforma Previdenciária em confronto com o art. 60, § 4º da Constituição Federal

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Muito se tem falado e discutido atualmente a respeito da reforma previdenciária, como meio capaz de diminuir o déficit público, sendo que o embate principal limita-se aos direitos adquiridos pelo funcionalismo público que possuem proteção contra lei que possa prejudicá-los. Contudo, raramente verificam-se debates a respeito da possibilidade ou não de alteração da Constituição Federal, através de emendas, para possibilitar a dita reforma.

Inicialmente, devemos ter em mente a afirmação de que qualquer projeto de emenda constitucional que seja tendente a abolir os direitos e garantias individuais assegurados na constituição, não poderá subsistir. A presente afirmação não se trata de nenhuma inovação jurídica, pois já é fartamente conhecido o disposto no § 4º do artigo 60 da Carta Magna. (1) Este dispositivo homenageia a segurança jurídica no Estado democrático de direito, impondo limitações ao Parlamento e à pessoa de seus integrantes quanto a modificações de ordem derivada na Constituição Federal.

Partindo dessa premissa, deveremos analisar se o direito conferido aos servidores públicos possui todas as características de um direito individual para ser relativamente imutável.

A seguridade social é definida como sendo um "conjunto integrado de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social". (2)

A Constituição Federal estabeleceu dois sistemas distintos de previdência, diferenciando os servidores públicos e os demais trabalhadores, sendo que, após a primeira reforma previdenciária ocorrida com o advento da Emenda Constitucional nº 20, os servidores ocupantes de cargo temporário ou emprego público passaram a observar o sistema previdenciário geral.

O Sistema Previdenciário previsto no artigo 201 e seguintes da C.F., estabelece o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), possuindo filiação obrigatória de todos os trabalhadores e observando um caráter contributivo possibilitando o equilíbrio financeiro e atuarial.

Neste Sistema, encontraremos a maior parte da população, entre eles, os trabalhadores da iniciativa privada e os servidores ocupantes de cargos temporários e de empregos públicos. Através das contribuições sociais de seus integrantes e dos empregadores, serão assegurados diversos direitos, dentre os quais destacamos a aposentadoria.

No RGPS, o limite máximo permitido para pagamento dos benefícios previdenciários, inclusive a aposentadoria, foi fixado em R$ 1.200,00 (reajustáveis) pelo artigo 14 da Emenda Constitucional nº 20/98. (3) A época da referida Emenda Constitucional, o artigo 201 do mesmo diploma, não dispunha expressamente sobre a necessária observância dos critérios que preservem o equilíbrio financeiro, e dessa forma, a referida limitação dos benefícios não incorreu nas óbices do § 4º do artigo 60, e dessa forma não se tornou inconstitucional.

Assim, no que tange às aposentadorias oriundas do regime geral de previdência social, existe uma limitação quantitativa legítima, que não contrariou o Poder Constituinte Originário, somente o complementou. O mesmo não se pode dizer das propostas para a nova reforma da previdência social, especialmente no que concerne às aposentadorias dos servidores públicos, senão, veja-se:

O Sistema Previdenciário Privativo dos Servidores Públicos está previsto no artigo 40 da Constituição da República, e engloba os servidores em cargos efetivos, tendo um caráter contributivo que obrigatoriamente tem que assegurar o equilíbrio financeiro e atuarial a tais agentes públicos.

Também, em comparação ao RGPS, podemos verificar que os servidores públicos têm direito a uma série de benefícios em razão das contribuições realizadas, inclusive o da aposentadoria, todavia, de forma diferenciada da dos demais trabalhadores.

Por força da Emenda Constitucional nº 20/98, foi inserido ao artigo 40, os parágrafos 1§ e 3§, dispondo sobre a forma do cálculo dos valores das aposentadorias e pensões, criando-se dessa forma, um direito constitucional do funcionalismo público. Tais normativos orientam-nos a calcular o montante devido à título de aposentadoria com base na remuneração do servidor à época da concessão deste benefício.

Isto importa em dizer, que, com o advento da Emenda Constitucional nº 20/98, o legislador constitucional derivado definiu como sendo critério para equilíbrio financeiro do funcionalismo público o total da remuneração percebida quando da aquisição do direito de se aposentar, ao contrário do RGPS, que definiu como sendo de R$ 1.200,00 o critério de equilíbrio financeiro para a classe daqueles que se subordinassem a referido sistema previdenciário.

Dessa forma, temos a seguinte situação:

  1. O legislador constitucional originário limitou-se a descrever de forma genérica a respeito do sistema de previdência social, tanto para os servidores públicos como para os demais trabalhadores;
  2. Por meio da Emenda Constitucional nº 20/98, o legislador derivado determinou que os benefícios concedidos pelo Sistema Previdenciário deveriam observar os critérios mantenedores da estabilidade financeira, de todos aqueles que se beneficiariam da previdência;
  3. Através da mesma Emenda Constitucional, foi definido um limite para a concessão do benefício da aposentadoria para os trabalhadores regidos pela égide do Regime Geral de Previdência Social, qual seja, R$ 1.200,00, sendo este valor o limite para se preservar o equilíbrio financeiro desta categoria de contribuintes previdenciários;
  4. Por outro lado, definiu-se que o critério para se manter o equilíbrio financeiro dos servidores públicos, seria a totalidade da remuneração percebida quando da concessão da aposentadoria, diferenciando-se do Regime Geral de Previdência Social.

Assim, verificamos claramente que por meio da Emenda Constitucional nº 20/98, foram criadas duas formas de cálculo de aposentadoria, contudo sem desrespeitar frontalmente qualquer dispositivo da Constituição original, além de que criou um direito para os servidores públicos que deverá ser respeitado por todos, inclusive pelo legislador.

Como se verificará, o direito reconhecido aos servidores de se aposentarem recebendo a totalidade de sua última remuneração, constituí uma garantia individual, e por conseqüência, trata-se de uma cláusula pétrea, impossível de ser alterada até mesmo por via de emenda constitucional.

Como visto, na redação original da carta da república, não havia a previsão, tanto para os integrantes do RGPS quanto para os demais segurados, que os benefícios deveriam observar a critérios capazes de se preservar o "equilíbrio financeiro" dos beneficiários, o que só veio a ocorrer com a inserção da EC nº 20/98, que inseriu tal direito no mundo jurídico, inclusive, determinando qual seria esse critério para cada classe de regime previdenciário.

Assim, criou-se um novo direito aos segurados pela previdência social, qual seja, o direito de ter os seus benefícios capazes de promover uma estabilidade financeira, cada qual com definições distintas dos critérios capazes a assegurar este direito.

Todos os novos argumentos e notícias a respeito da "nova" reforma previdenciária, visam igualar o regime previdenciário do funcionalismo público ao do RGPS, ou seja, unificar a definição do critério preservador da estabilidade financeira de acordo com o artigo 14 da EC 20/98.

A nosso ver, essas considerações estão totalmente eivadas de inconstitucionalidades e colidem frontalmente com a proteção das cláusulas pétreas garantidas pelo Constituinte Originário, e até mesmo pelo Constituinte Derivado, vejam-se os porquês:

  1. Como visto anteriormente, criou-se um sistema diferenciador da previdência social para os servidores públicos e os demais trabalhadores;
  2. Essa criação constitui uma verdadeira garantia constitucional, ao passo em que assegura o equilíbrio financeiro dos segurados na medida em que vão usufruindo os benefícios da previdência;
  3. Tratando-se de garantia constitucional, qualquer proposta de emenda que vise a sua abolição deverá ser totalmente rejeitada;
  4. Apesar de ser um direito criado através de Emenda Constitucional, tal fato não autoriza em absoluto a sua extinção pelo mesmo instrumento, como desejam os atuais interlocutores do governo;
  5. Com fundamentos no princípio constitucional da igualdade, se há alguma reforma previdenciária a ser realizada, a mesma deverá ser feita no RGPS, para que, não seja extinto o direito ao equilíbrio financeiro proveniente dos benefícios previdenciários, mas que o seu critério seja alterado a fim de alargar os benefícios práticos para seus segurados.

Em razão destes argumentos consideramos que a reforma do sistema previdenciário do funcionalismo público não poderá ser modificado da forma como querem os atuais políticos, pois para tanto, seria necessária uma revolução que originaria uma nova ordem jurídica, onde a criatividade legislativa não encontra nenhum obstáculo, estando livre para qualquer aberração jurídica, como a que desejam fazer no momento.

Não se pode, apoiando-se em aspectos puramente financeiros e econômicos do Estado, fundamentar a "anulação" de um direito constitucionalmente garantido e protegido pela Constituição Federal, pois se assim procedermos, estaríamos rasgando o texto constitucional e voltando para o arcaico regime onde o autoritarismo vive e reina em detrimento das garantias e direitos, individuais e sociais.

O que se poderia realizar através do Poder Constituinte derivado é, o alargamento dos benefícios concedidos aos segurados do Regime Geral de Previdência Social, igualando-os aos dos servidores públicos, fazendo dessa forma uma verdadeira justiça social, e incentivando a formalização dos empregos de ordem privada, que como é notório atualmente, encontra-se totalmente à mercê da clandestinidade.

Não podemos admitir, em hipótese alguma, que, a toque de caixa, seja realizada a malfadada reforma previdenciária, sob pena de ignorarmos os esforços e sacrifícios realizados pelo povo brasileiro.

O que realmente deve ocorrer é uma política de fiscalização dos gastos públicos, aliada a plena aplicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, sendo certo que a correta aplicação da lei e o bom senso dos administradores (e também dos administrados) bastará para o restabelecimento das finanças estatais.

Por outro lado, o direito como instrumento da Justiça deveria fornecer instrumentos hábeis para o combate aos atos fraudulentos, notoriamente conhecidos, que ocorrem no âmbito da Previdência Social. Não haveria necessidade de buscarmos uma reforma na previdência se efetivamente houvessem diligências neste sentido, punindo com rigor aqueles que se utilizam do patrimônio público para seus próprios fins escusos.

Para finalizarmos, devemos ter em mente que a questão previdenciária é um verdadeiro problema, não só brasileiro, mas universal, pois se iniciou em uma premissa já ultrapassada, qual seja, a média de vida dos beneficiários.

Na instituição e criação dos diversos regimes previdenciários mundiais, levou-se em consideração a expectativa média de vida da população. Ocorre, que felizmente, a qualidade de vida mundial e brasileiro, evoluiu de tal forma que possibilitou um alargamento nesse conceito.

Dessa forma, com a idade de vida aumentada no Brasil, a Previdência Social arca por mais tempo com os benefícios a serem distribuídos. O mesmo se diga da questão dos beneficiários, pois antigamente, normalmente os casais não realizavam um planejamento familiar tão adequado, sendo que normalmente, essas uniões de pessoas com baixa idade geravam descendentes cada vez mais cedo.

Com a vida moderna, passou-se a planejar mais a criação de uma família, e dessa forma, os filhos nasciam quando os pais já estavam em idade, diga-se, avançada, e dessa forma, até que houvesse a formação total dos descendentes, estes já eram beneficiados por pensões.

Por esses argumentos, mostramos claro o nosso entendimento de que somos a favor de uma reforma no sistema previdenciário de forma ampla, até mesmo porque, o direito é uma ciência e técnica por excelência dinâmica, evolui com a sociedade. Contudo, o meio pelo qual estão propondo esta dita reforma, agride todos os direitos e garantias brasileiras, e assim, deve ser rechaçado.

Em síntese, este é o nosso humilde entendimento a respeito da Reforma Previdenciária, e esperamos que a democracia, o direito, o bom senso e a justiça prevaleçam neste novo embate vivido por toda população brasileira.


NOTAS

(1) Art. 60. (omissis)

§ 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

IV – os direitos e garantias individuais.

(2) Art. 194 da Constituição Federal.

(3) Art. 14 - O limite máximo para o valor dos benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201 da Constituição Federal é fixado em R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais), devendo, a partir da data da publicação desta Emenda, ser reajustado de forma a preservar, em caráter permanente, seu valor real, atualizado pelos mesmos índices aplicados aos benefícios do regime geral de previdência social.


Autor

  • Rafael Jorge Leite Martins Verri

    Rafael Jorge Leite Martins Verri

    consultor tributário em São Paulo, contabilista com formação em Comércio Exterior, acadêmico de Direito pela UniFMU, consultor de Direito Empresarial e Tributário da Classe Contábil, sócio do Escritório Nogueira Verri Consultoria Empresarial

    é também membro associado da Academia Brasileira de Direito Tributário (ABDT) e membro da Associação Paulista de Estudos Tributários (APET).

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERRI, Rafael Jorge Leite Martins. A Reforma Previdenciária em confronto com o art. 60, § 4º da Constituição Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 63, 1 mar. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3822. Acesso em: 28 mar. 2024.