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União homossexual

reflexões jurídicas

União homossexual: reflexões jurídicas

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I – INTRODUÇÃO

            Para Kant, (1) o que caracteriza o ser humano e o faz dotado de dignidade especial é o fato de nunca poder servir de meio para outro ser humano. As pessoas não existem em função das outras e não podem servir como objeto para outras porque têm sentido em si mesmas.

            Assim, as pessoas são fim em si mesmas e as coisas (ou objetos) servem às necessidades humanas. Por isso, nunca se deve confundir pessoa com coisa, ou rebaixar as pessoas ao nível das coisas.

            Se a dignidade da pessoa é algo perceptível, coerentemente consagra-se esse estado como um dos alicerces fundamentais da sociedade brasileira (cf. Constituição Federal, art.1º, inc. III).

            Os Estados Democráticos de Direito têm consagrado como seus fundamentos não só a dignidade da pessoa humana, mas também a liberdade, suas manifestações, e a igualdade de todos perante a lei.

            Se a Constituição Federal repudia expressamente o preconceito, o racismo e qualquer forma de discriminação, se há lei infraconstitucional definindo os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor (2), é porque a sociedade caminha no sentido de afastar e repudiar essas práticas. Não se tolera qualquer prática discriminatória em sociedades ditas desenvolvidas.

            Não obstante, a letra da lei é fria, sem sentimentos, muito embora as pessoas não o sejam. Por isso, e motivadas por razões psicológicas, morais ou religiosas nutrem, dentro de si, a repugnância a pessoas de outra religião, de outra cor, de outra convicção política e até mesmo em relação à pessoa que torce por outro time de futebol.

            "O Direito não regula os sentimentos. Contudo, dispõe ele sobre os efeitos que a conduta determinada por esse afeto pode representar como fonte de direitos e deveres, criadores de relações jurídicas previstas nos diversos ramos do ordenamento, algumas ingressando no Direito de Família, como o matrimônio, e, hoje, a união estável, outras ficando á margem dele, contempladas no Direito das Obrigações, das Coisas, das Sucessões, mesmo no Direito Penal, quando a crise da relação chega ao paroxismo do crime, e assim por diante". (3)

            A união homossexual (não obstante os entraves da aceitação social, dos preconceitos etc) é, sem sombra de dúvidas, assunto com reflexos no mundo jurídico.

            Nosso ordenamento exclui de seu amparo a questão da união de pessoas do mesmo sexo. Mas quantas relações já não estiveram à sua margem?

            Há pouco tempo a mulher, apesar de não estar à margem do sistema, era "diminuída" em seus direitos, tratada, até o advento do Estatuto da Mulher Casada em 1962 (Lei nº 4.121, de 27 de agosto de 1962), como relativamente incapaz.

            Por séculos a fio a mulher foi tratada pelo sistema jurídico ora como objeto do direito, ora como incapaz, não como sujeito de direitos.

            E o que não dizer acerca dos filhos havidos fora do casamento? Embora fossem filhos não era juridicamente reconhecido como tal; no sentido natural o eram, mas no jurídico, "direito algum tinham em homenagem à ‘paz e à honra’ das famílias matrimonializadas". (4)

            Constata-se, ainda em relação à criança e ao adolescente, que somente com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8069/90) eles passaram a ser tratados como sujeitos de direito (5).

            Se à mulher e aos filhos bastardos já se negou ingresso na titularidade de direitos e obrigações o que dizer de sujeitos homossexuais? Aversão, preconceito, descaso, hipocrisia, tudo afasta a inserção desses sujeitos como titulares de direitos e obrigações.

            Por outro lado, impossível que essa situação fique assim, à deriva.

            Sabe-se que o Direito é regra de conduta, como também é norma surgida como fruto da necessidade de disciplinar a convivência humana. (6)

            Os fatos sociais são a fonte criadora do Direito. São meios pelo qual este pode se exteriorizar através da norma. O Direito busca na realidade seu sustentáculo, tendo-se o fenômeno jurídico o fato cultural e a sociedade o seu foco necessário e indispensável.

            O Direito, destarte, entra na seara das relações privadas, na intersubjetividade, regulando as relações subjetivas, ou seja, a conduta de uma pessoa em relação a outra pessoa. Neste aspecto, o Direito passa a ser um conjunto de normas que disciplinam as relações intersubjetivas.

            Direito vem do latim dirigere. Tem o sentido, pois, de guiar a vida em sociedade.

            Pode-se concluir que o os sentimentos humanos, na sua essência, não têm, por si só, relevância para o Direito. Este não se interessa por aqueles isoladamente entendidos. O Direito se preocupa com as condutas (comportamentos) das pessoas no seio da sociedade.

            Somente a exteriorização dos sentimentos, demonstrada por meio de atos, gestos ou palavras, é que passa a ter significado e relevância jurídica. O elemento interno das pessoas, psíquico, tem relevância para outras ciências, como a medicina psiquiátrica ou a psicologia. Para o Direito interessa a vontade exteriorizada através de condutas, seja por ação, seja por omissão.

            Os sentimentos, externados pelas condutas, terão relevância quando estas repercutirem na órbita jurídica. As condutas determinadas pelos sentimentos é que criarão as relações jurídicas.

            Nesse raciocínio, se houver a união (convivência ou parceria) de duas pessoas de sexo oposto pode ser hipótese, como será oportunamente analisado, de casamento, de união estável, ou de concubinato. O sentimento puro e simples de uma pessoa para com a outra nada reflete no mundo, mas se há uma conduta motivada por esse sentimento haverá situações tuteladas pelo Direito.

            Se há a possibilidade de haver a união de pessoas de sexo oposto, há, também, a possibilidade de haver a união de pessoas do mesmo sexo.

            Em ambos os casos há o sentimento. Mas, se exteriorizado por certas pessoas a conduta ou ato final terá relevância jurídica, se, por outras, estará, essa mesma conduta ou ato, à margem do Direito.

            Não obstante, os fatos se impõem perante o Direito e a realidade força a sua adaptação a eles. Essa realidade se faz presente pela constante alteração dos costumes, mormente nas relações familiares, que evoluíram e se impregnaram de autenticidade, sinceridade, amor, compreensão, diálogo, paridade e realidade, afastando-se a hipocrisia, a falsidade institucionalizada e o fingimento, do que não pode negligenciar o ordenamento jurídico. (7)


II – A Família (8)

            Não se pode pensar em sociedade sem antes se pensar na família. A família é a célula mater da sociedade. Forma-a, desenvolve-a e a consolida.

            Em todos os tempos da humanidade se verificou a sua formação e o seu desenvolvimento por meio da família. Esta é, portanto, o "embrião" da sociedade. (9) Todo agrupamento humano é formado por um elo a ligar cada um de seus indivíduos. Este elo é o fato de pertencerem ao mesmo tronco familiar, ou seja, o elo é a família.

            Num sentido amplo, família é a reunião de pessoas, ligadas entre si pelo nexo de parentesco, procedentes dum tronco comum. Incluem-se os ascendentes, descendentes e colaterais de uma linhagem, juntamente com os ascendentes, descendentes e colaterais do cônjuge, que são denominados de parentes por afinidade ou afins. Há, deste modo, a inclusão do cônjuge, que não é parente.

            Pode-se considerar a família restritivamente, compreendendo o núcleo formado por pais e filhos que vivem sob o poder familiar. Neste aspecto, há previsão constitucional no sentido de se ter como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (Constituição Federal, art. 226, § 4º).

            Considera-se a família, ainda, sob o aspecto sociológico, no qual se encontram as pessoas que vivem sob um mesmo teto, sob a autoridade de uma pessoa.

            Há notícia de que nas civilizações primitivas a família era formada pela mãe e sua prole, por ser desconhecido o pai. Isso ocorria pelas constantes guerras entre tribos, que faziam as mulheres ser subjugadas por bravos guerreiros vindos de outras tribos. Até, talvez por instinto natural (ou animal), os homens das tribos tinham relações sexuais com diferentes mulheres, engravidavam-nas e deixavam com elas o produto de tais relações. Neste contexto fala-se do surgimento da poligamia, conduta que seria mais tarde relegada a poucas tribos, hoje pouquíssimas civilizações.

            Mais tarde, por questões morais, religiosas (10) e éticas, a concepção dominante era de que a família deveria surgir do casamento, ser monogâmica e ser liderada pelo ente detentor de maior força física: o homem.

            A família brasileira teve como fundamentos os princípios herdados de Roma antiga.

            Em Roma a família tem o sentido de grupo de pessoas sob o poder e autoridade do pai (pater familias). O pater tinha sob suas ordens e autoridade os servos, a esposa e os filhos.

            O poder do pater familias compreendia: a patria potestas, ou o poder sobre os filhos e netos dos filhos masculinos; a manus, ou o poder sobre as mulheres casadas com o mesmo pater familias ou com um seu descendente; o mancipium, ou o poder de pater sobre as pessoas a ele vendidas como escravos (in mancipio); a dominica potestas, ou o poder sobre os escravos. (11)

            Observe-se que em relação aos escravos, apesar de serem pessoas, eram tratados como coisas, e como tais não eram sujeitos de direitos e obrigações, eram meramente objetos da relação jurídica.

            A mulher, a seu turno, estava subjugada, não era capaz de agir por si, dependia, antes de se casar, das ordens do pai, e, enquanto estivesse casada, das ordens do marido, para todo ato que pretendesse praticar. Sua obrigação era educar os filhos e cuidar do lar.

            Os filhos estavam sujeitos ao poder do pai até a morte, a qual se equipara a capitis deminutio, sob três formas: a maxima, pela qual a pessoa se tornava escravo, perdendo toda a capacidade; a media, pela perda do status de cidadão romano; a mínima pela mudança do status familiae, desaparecendo a relação de parentesco civil (adgnatio) sobre o qual se funda o poder do pater familias. Ainda, o pai que por três vezes houvesse vendido o filho como escravo perderia o patripotestas, se o pai os houvesse dado em adoção, também perderia o referido poder. Quanto às filhas, além de todas as hipóteses anteriores, desligavam-se desse poder quando se casassem, quando, então, estariam sob o poder de seu marido (conventio in manum).

            Na família romana, exceto o paterfamilias, todas as outras pessoas eram alieni iuris, sujeitas ao seu poder e, em princípio, sem direitos e sem poderem adquiri-los para si. (12)

            Porém, a tendência social atual é de se afastar a idéia de poder e autoridade da vontade de um indivíduo, igualando-se os direitos familiares, principalmente do marido em relação à esposa.


III – A evolução da família.

            "A família é um fato natural. Não a cria o homem, mas a natureza. (...) O legislador não cria a família, como o jardineiro não cria a primavera. Fenômeno natural, ela antecede necessariamente ao casamento, que é um fenômeno legal, e também por ser um fenômeno natural é que ela excede à moldura em que o legislador a enquadra. (...) Agora dizei-me:que é que vedes quando vedes um homem e uma mulher, reunidos sob o mesmo teto, em torno de um pequenino ser, que é fruto do seu amor? Vereis uma família. Passou por lá o juiz, com a sua lei, ou o padre, com o seu sacramento? Que importa isto? O acidente convencional não tem força para apagar o fato natural. De tudo que acabo de dizer-vos, uma verdade resulta; soberano não é o legislador, soberana é a vida. Onde a fórmula legislativa não traduz outra cousa que a convenção dos homens, a vontade do legislador impera sem contraste. Onde porém ela procura regulamentar um fenômeno natural, ou ele se submete às injunções da natureza, ou a natureza lhe põe em cheque a vontade. A família é um fato natural, o casamento é uma convenção social. A convenção é estreita para o fato, e este então se produz fora da convenção. O homem quer obedecer ao legislador, mas não pode desobedecer à natureza, e por toda a parte ele constitui a família, dentro da lei, se é possível, fora da lei, se é necessário". (13)

            Se a família é fenômeno natural, justo que haja a família de fato, ou seja, aquela formada à margem do matrimônio.

            Durante muito tempo nosso legislador viu no casamento a única forma de constituição de família, negando efeitos jurídicos à união livre. União livre e concubinato são expressões semelhantes, abrangendo uma e outra a relação entre homem e mulher fora do matrimônio.

            A origem da palavra concubinato está no vocábulo latino concubinatus que significa mancebia, amasiamento; do verbo concumbo, is, ubui, ubitum, ere ou concubo, as, bui, itum, are (derivado do grego), cujo sentido é o de dormir com outra pessoa, deitar-se com, repousar, descansar, ter relação carnal, estar na cama.

            O conceito de união livre ou concubinato é variável. No concubinato existe a convivência do homem e da mulher, sob o mesmo teto ou não, mas more uxorio, isto é, convívio como se marido e esposa fossem.

            Há, portanto, um sentido amplo para concubinato, no qual está o sentido de qualquer união sexual livre adulterina, ou não, e um sentido estrito, como a união duradoura, a formar a sociedade doméstica de fato baseada na fidelidade.

            A assimilação legal do concubinato pelo direito pátrio foi paulatina, dependendo, primeiro, de grandes discussões doutrinárias e, segundo, de decisões jurisprudenciais.

            A jurisprudência, de início, reconheceu direitos obrigacionais no desfazimento da sociedade conjugal concubinária, determinando a divisão entre os cônjuges do patrimônio amealhado pelo esforço comum. Em outras situações, quando isso não era possível e para impedir o desamparo da concubina, os tribunais concediam a ela uma indenização por serviços domésticos.

            O Supremo Tribunal Federal entendia que esses efeitos patrimoniais decorriam de relações obrigacionais criadas pela convivência do casal, afastando efeitos de Direito de Família. Essa posição foi sintetizada na Súmula 380: "Comprovada a existência da sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum".

            A partir de então foram sendo concedidos direitos, principalmente à concubina, como por exemplo: concedeu-se o direito de perceber a indenização do companheiro morto por acidente de trabalho e de trânsito, desde que não estivessem casados e ela estivesse incluída como beneficiária (Decreto-lei 703/44; Lei 82131/91). Foram consolidados os direitos previdenciários da companheira na legislação respectiva (Leis nº 4297/63 e 6194/74), permitindo que ela fosse designada beneficiária do contribuinte falecido, tendo a orientação jurisprudencial se encarregado de alargar o conceito, permitindo o mesmo direito também na falta de designação expressa, se provada a convivência ou a existência de filhos comuns. Deste modo, permitiu-se a divisão da pensão entre a esposa legítima e a companheira (Súmula 159 do extinto TRF).

            A Lei de Registros Públicos (Lei nº 6015/73), no art. 57, §§ 2º e 3º, com redação dada pela Lei nº 6216/75, autorizou a companheira a adotar o sobrenome do companheiro, após cinco anos de vida em comum ou na existência de prole, desde que nenhum deles tivesse vínculo matrimonial.

            Os desenvolvimentos legislativo e jurisprudencial demonstram que, sem concorrer com o casamento, o concubinato passou a ser reconhecido como relação válida, produzindo efeitos no âmbito patrimonial do casal.

            Tanto se fez que a Constituição Federal, no art. 226, § 3º, prescreve que "para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento".

            O casamento não é requisito essencial para a existência da união estável. Se esta tem por objetivo a formação da família, o legislador entende que somente o casamento legitima a "verdadeira" família. Observe-se que a expressão "entidade familiar" significa "como se fosse família", mas realmente não sendo uma.

            Insta salientar que a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a qual instituiu o Código Civil, reconhece como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir família (art. 1723, caput, cuja redação é igual a do art. 1º da Lei 9278/96, a qual regula o §3º da Constituição Federal).

            Além de definir a união estável, o Código Civil de 2002 inova e a distingue do concubinato. Desse modo, "as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato" (art. 1727).

            Ao lado da união estável e do concubinato surgem outras situações que alteraram a noção de família.

            Avanços tecnológicos proporcionados após a Revolução Industrial permitiram o avanço da sociedade, e como não poderia deixar de ocorrer, avanços na família.

            A família estratificada, inerte, dependente dos mandos e desmandos do pater familias, foi cedendo espaço para a atuação da mulher. A necessidade de o pai sair de casa para trabalhar, o aumento da produção de bens de consumo e a eterna necessidade humana para a aquisição de bens materiais e sua constante troca por outro mais novo e diferente, fizeram com que a mulher tivesse papel mais ativo nos negócios da família.

            A sociedade de modelo capitalista sentiu a necessidade de forçar a mulher a entrar no mercado de trabalho, mormente se se pensar que havia a necessidade de fazer com que a família ganhasse mais dinheiro, ou tivesse maior recurso financeiro, para continuar mantendo o padrão capitalista e consumista de vida.

            As famílias ocidentais, sob a égide do american way of life - situação alcançada após a I Guerra Mundial e confirmada e consolidada após a II Guerra Mundial-, sentiram a necessidade de serem prósperas.

            A mulher, contribuindo com a manutenção da família, atuando cada vez mais no mercado de trabalho e desenvolvendo enorme variedade de serviços, ofícios e profissões, foi ganhando espaço no comando da família. Isso, conseqüentemente, surtiria, como surtiu, efeitos na sociedade, fato hoje presenciado e sentido por todos.

            Surgiram famílias fruto do divórcio, em que a mulher, na maioria dos casos, ficava com a guarda dos filhos. A mulher, que já havia conquistado espaço no mercado de trabalho, passa, agora, a desempenhar, sozinha, o papel de líder da família, muitas vezes trabalhando fora de casa, cuidando da casa e educando os filhos.

            Mulheres cada vez mais independentes e desligadas do "poder" do homem começaram a formar famílias sem a presença deste. Por não sentirem necessidade de viver junto de um homem, ou seja, por não sentirem necessidade ou vontade de casar, começaram a sentir necessidade de ter filho ou filhos e viver somente com ele(s). Surge na sociedade a família formada pela mãe solteira e sua prole.

            Diante dessas duas realidades, a primeira surgida com o divórcio e a segunda das denominadas "mães solteiras", a Constituição Federal prevê e aceita como família a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º).

            Cumpre salientar, ainda, que é cada vez mais comum o pai ter a guarda dos filhos deferida em seu favor, ou porque a mãe abdicou desse direito ou porque o próprio pai demonstrou ter melhor situação econômica, social e psicológica para cuidar e educar os filhos.

            A permissão da dissolução do casamento pelo divórcio, o reconhecimento de filhos ilegítimos (ou a legitimidade dos filhos havidos fora do casamento), o concubinato, a união estável e a autonomia ou independência feminina foram fatores decisivos para a alteração do conceito de família.

            Em relação a este avanço é precisa a lição de Márcio Antonio Boscaro, para quem "a entidade familiar não mais se constitui para a proteção do próprio grupo que representa, ou do instituto do casamento e, sim, para procurar defender os interesses individuais de cada um dos seus membros, unidos por opção pessoal e não mais por imposição social e na busca de um ideal comum de felicidade e de realização própria, ao lado de pessoas que lhes são caras". (14)

            Deste modo, família não tem mais o significado contido em seu vocábulo, como grupo de pessoas organizado, hierarquizado e chefiado pelo pater familias.

            O conceito de família amplia-se ainda mais, não se atendo aos moldes propostos pelo legislador. O que se entende, hoje, por família? Podemos, com o que foi exposto até o momento, e seguindo os entendimentos de Rui Geraldo Camargo Viana (15) e de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka (16), apresentar alguns modelos de família, de acordo com a origem ou à própria estrutura de composição: a família comportamental, a família concubinária, a família monoparental, a família homossexual e a família matrimonial.

            A família comportamental surge entre a união estável e o casamento civil, onde, desde o início da convivência e independentemente de qualquer cerimônia, estabelece-se presumidamente o casamento, conversível neste por simples registro. Essa modalidade não tem regulamentação legislativa no Brasil.

            A família concubinária advém da união estável ou do próprio concubinato, com a diferenciação estabelecida pelo Código Civil de 2002.

            Quanto à família monoparental, extrai-se sua noção do texto constitucional (Constituição Federal, art. 226, § 4º) como sendo a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. Deixa-se de lado, aqui,a noção de casal, ou seja, a família não necessita, para existir, da figura do pai e da mãe juntos, ela existe mesmo na ausência de um deles.

            Deixa-se para o final a análise jurídica acerca da família homossexual.

            A mais comum e a que se faz mais presente (apesar da constante e cada vez mais freqüente situação no meio social: "Pra que casar? Vamos morar juntos, é melhor!") é a família matrimonial. Esta tem sua formação no casamento. (17)


IV – O casamento.

            O casamento no molde da nossa legislação teve sua origem em Roma. Lá ele era dividido em três espécies distintas: a confarreatio, a coemptio e o usus.

            A confarreatio era o procedimento reservado ao patriciado, consistia na oferta a Júpiter Farreus de um pão de farinha de trigo, em ritual religioso, perante dez testemunhas, acompanhado de palavras solenes do sacerdote de Júpiter.

            A coemptio era privativo dos plebeus, onde havia a venda simbólica da mulher ao marido, como numa forma de se adquirir a propriedade.

            O usus era o casamento pela coabitação ininterrupta do homem e da mulher.

            Álvaro Villaça Azevedo, fundamentado na explicação de Paul Fréderic Girard, dispõe que a confarreatio era o casamento religioso, a coemptio era como uma espécie de casamento civil, e o usus uma forma de aquisição pela posse prolongada. (18)

            O instituto evolui até o casamento livre. Neste exigia-se apenas a capacidade dos nubentes, o consentimento e a inexistência de impedimentos.

            Verifica-se, a seguir, a expansão e o fortalecimento do cristianismo, e a Igreja se apodera dos direitos sobre a regulamentação e celebração do matrimônio.

            No Brasil-Império, por força da Constituição Imperial de 1824 (a qual instituiu como oficial a religião Católica Apostólica Romana, embora permitindo outros cultos) o casamento acontecia entre católicos, e era celebrado por sacerdotes dessa religião.

            Com a proclamação da República, em 1889, houve a separação entre a Igreja e o Estado, e o casamento civil foi instituído no Brasil pelo Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1891. Posteriormente, a Lei nº 379, de 16 de janeiro de 1937, regulamentou o casamento religioso que, se cumpridas certas formalidades, geraria efeitos civis. Atualmente a eficácia da celebração eclesiástica é prevista na Lei nº 6015/73 (Lei de Registros Públicos, arts. 71 a 75), no Código Civil de 2002 (arts. 1515 e 1516) e na Constituição Federal (art. 226, § 2º).

            Quanto à definição de casamento, Washington De Barros Monteiro apresenta alguns "panegiristas, como Laurent, que o chama de ´fundamento da sociedade, base da moralidade pública e privada´, como Goethe, para quem o matrimônio é a base e o coroamento de toda cultura, e como Lessing, que dele diz ser a ´grande escola fundada pelo próprio Deus para a educação do gênero humano´". (19) Continua o autor, mas enumera aqueles contrários ao instituto, como Shopenhauer, para quem "casar é perder metade de seus direitos e duplicar seus deveres"; como Somerset Maugham que a um dos seus personagens faz dizer que "o casamento é uma ridícula instituição dos filisteus"; como Aldous Huxley, para quem o casamento "é um ato inoportuno e obsceno", e Lockeridge, que afirma ser o casamento "um tipo de funeral no qual emprestamos uma parte de nós mesmos".

            A definição de casamento no nosso Direito a muito se assemelha à do Direito Romano, sua gênese. Neste, estavam presentes dois elementos distintos: o objetivo, resultante da convivência do marido e da mulher, e o subjetivo, representado pela afeição marital.

            Nas Institutas de Justiniano (I,9,1) constava uma definição: "as núpcias, ou matrimônio, são a união do varão e da mulher, implicando uma comunhão indivisível de vida" (Nuptiae autem sive matrimonium est viri et mulieres coniunctio, individuam vitae consuetudinem continens).

            O casamento, nos dias atuais, pode ser conceituado como a união entre o homem e a mulher, de conformidade com a lei, a fim de se ajudarem mutuamente e de criarem os seus filhos, sejam estes concebidos naturalmente, havidos por fecundação artificial, decorrentes de concepção artificial homóloga ou inseminação artificial heteróloga, homóloga, ou adotados. (20)

            Quanto à natureza jurídica do casamento há três correntes doutrinárias. Para a primeira o casamento tem natureza contratual (21), para a segunda o casamento é uma instituição (22) e para a terceira é um ato complexo (doutrina eclética ou mista) (23).

            Na concepção contratualista, o casamento é estabelecido por acordo entre os cônjuges. Seria um contrato, ao qual se aplicariam as regras ordinárias a todos os contratos civis, sendo o consentimento dos nubentes o elemento essencial da sua existência.

            Para os institucionalistas, o casamento constitui uma instituição social que nasce da vontade dos contraentes mas que recebe sua forma, suas normas e seus efeitos da autoridade da lei.

            Os ecléticos entendem o matrimônio como ato complexo, ou seja, ao mesmo tempo contrato (na formação) e instituição (no conteúdo); é mais que um contrato, mas não deixa de o ser também.

            Estamos com Silvio de Salvo Venosa para quem "não resta dúvida que a celebração, conclusão material do negócio jurídico familiar, tem essa natureza (contratual). Se visto o casamento, porém, como um todo extrínseco sob o ponto de vista da vida em comum, direito e deveres dos cônjuges, assistência recíproca, educação da prole, ressaltamos o aspecto institucional, que é mais sociológico do que jurídico O casamento faz com que os cônjuges adiram a uma estrutura jurídica cogente predisposta. Nesse sentido apresenta-se a conceituação institucional. Trata-se, pois, de negócio complexo, com características de negócio jurídico e de instituição. Simples conceituação como contrato reduz por demais sua compreensão". (24)

            Até 1977 a família era constituída pelo casamento com vínculo indissolúvel e merecendo a proteção do Estado. Nesse mesmo ano foi instituído o divórcio através de Emenda Constitucional, regulamentado pela Lei nº 6.515/77 (denominada de Lei do Divórcio).

            A sociedade brasileira, principalmente a partir dos anos 60, foi se conscientizando de que não é necessário que haja a solidez do matrimônio para existir felicidade na família. Muitos casamentos terminam justamente por causa de brigas ou traições e, portanto, o casal decide por bem se separar até para preservar os filhos.

            Nenhum filho gosta de ver os pais se separando, passando a não viver mais justos. O ideal seria que a família permanecesse unida e feliz para sempre.

            O divórcio foi o instrumento legal para regularizar o término do casamento e da sociedade conjugal, fazendo com que não haja mais laços unindo o homem e a mulher que não se amam mais para que, assim, cada um possa voltar a viver feliz.

            O casamento pressupõe comunhão de interesses e de sentimentos. O ideal, repita-se, é que isso fosse eterno, principalmente que o amor entre marido e mulher fosse também eterno. Se não há mais motivo para que duas pessoas permaneçam casadas, para o bem delas e de seus filhos, é melhor que haja a separação e o conseqüente divórcio.

            Se por um lado é bom que os filhos tenham os pais morando juntos e cuidando deles, por outro lado é horrível que os filhos vejam seus pais brigando, trocando insultos e um menosprezando e ignorando o outro.

            A família deve ser um conjunto de pessoas unidas pelo amor, pelo carinho, pela sinceridade, pela honestidade e pela lealdade e o casamento deveria ser o principal meio de se alcançar e de se constituir essa família.

            Não se pode conceber o casamento somente como algo tendente à satisfação sexual e à procriação. É sensato ou razoável que haja um ato extremamente solene, com procedimentos e celebrações prévias, com direitos e deveres impostos por lei ao marido e à mulher, (25) para que a pessoa tenha satisfação sexual e possa ter filhos? Não, o casamento é muito mais e significa muito mais do que isso.

            O casamento é o meio (visto até como sagrado) mais nobre de se constituir família. É a situação na qual duas pessoas, que se amam, se unem para partilhar uma vida comum.

            Não se concebe, nos dias atuais, casamento por interesses e imposição dos pais. Pior ainda é a exigência dos pais em fazer com que os filhos se casem, ou porque o filho engravidou uma moça ou porque a filha está grávida.

            Deve-se abandonar a idéia de que com o filho duas pessoas devem necessariamente morar e viver juntas. Atualmente é cada vez maior o número de pais e mães adolescentes. Deve-se forçar uma menina de 16 anos a se casar com um garoto de 17 anos? Por quanto tempo eles vão viver juntos? Por quanto tempo conseguirão ser felizes juntos? Por quanto tempo eles irão se agüentar?


V – A união homossexual no mundo

            Pode-se alegar que países de primeiro mundo, modernos, desenvolvidos em vários aspectos, até mesmo no jurídico, aceitam e regulamentam não só a união homóloga, como também o casamento homossexual.

            A França aprovou o "Pacto Civil de Solidariedade", que estende a uniões informais – homo ou heterossexuais – os mesmos direitos válidos para casamentos formais.

            Na Holanda, há lei que prevê a união civil entre pessoas do mesmo sexo e já aceita até mesmo que elas adotem crianças.

            A Islândia, a Dinamarca e a Noruega reconhecem a união civil homossexual e a custódia conjunta sobre os filhos de um dos parceiros, mas não permitem a adoção.

            Na Suécia, desde 1º de janeiro de 1995, quando entrou em vigor Lei de 23 de junho de 1994, reconhece-se a partenariat, que oficializa os laços entre pessoas do mesmo sexo.

            O Parlamento da Grã-Bretanha deve discutir, ainda em 2003, um projeto acerca da união civil entre casais homossexuais, garantindo a eles os mesmos direitos dados a heterossexuais em situação semelhante. A união civil daria aos homossexuais direito a propriedades e heranças pela primeira vez na história da Grã-Bretanha. Atualmente, casais homossexuais que vivem sob o mesmo teto não têm direito aos mesmos benefícios garantidos aos heterossexuais. Apenas em Londres há o reconhecimento legal da união de pessoas do mesmo sexo, mas que ainda não lhes dá direitos como isenções fiscais ou pensões do parceiro, por exemplo. A secretária britânica para Exclusão Social, Barbara Roche, afirmou que há um forte movimento para permitir que casais do mesmo sexo possam registrar a sua união civil. Segundo o projeto, aqueles que oficializassem sua união também seriam considerados parentes próximos perante a lei. Sem isso, entre outros inconvenientes, não é possível que os parceiros sejam consultados sobre tratamentos hospitalares. (26)

            Nos Estados Unidos existem algumas cidades, como São Francisco e Nova Iorque, que reconhecem a casais homossexuais alguns direitos relativos a bens e seguro saúde. Aliás, o New York Times, um dos mais respeitados jornais do mundo, publicou em 01 de setembro de 2002, seu primeiro anúncio de união homossexual na seção de "Casamentos/Comemorações" no caderno intitulado Sunday Style. O Times passou a ser mais um diário norte-americano a publicar anúncios de casamentos entre gays e lésbicas. Nas páginas retrancadas apenas como "Casamentos", o jornal colocou a foto de Daniel Gross e Steven Goldstein, que uniram laços em uma cerimônia civil em North Hero, Vermont. Ainda, nos Estados Unidos, o Washington Post, o Chicago Tribune e o San Francisco Chronicle são alguns dos jornais que anunciam uniões entre pessoas do mesmo sexo. (27)

            A capital da Argentina tornou-se, em 13 de dezembro de 2002, a primeira cidade da América Latina a legalizar a união civil de homossexuais, depois de um debate acalorado na câmara local, interrompido em várias ocasiões. Os legisladores de Buenos Aires aprovaram um projeto que representa amparo legal para casais do mesmo sexo, dando-lhes certos direitos conjugais, ainda que sem permitir o casamento ou a adoção. A lei estabelece a possibilidade de união civil, não matrimonial, de duas pessoas, "independentemente de sexo ou orientação sexual". A norma permite aos homossexuais gozar direitos de uma união heterossexual, como pensão em caso de morte de um deles e plano conjunto de assistência médica. O projeto, elaborado por uma juíza e apresentado no ano de 2001, foi aprovado por 29 votos a favor 10 contra. (28)


VI – Família homossexual?

            Etimologicamente a palavra homossexual é formada pela junção dos vocábulos homo e sexu. Homo, do grego hómos, significa semelhante, e sexu, do latim, é algo relativo ou pertencente ao sexo. Portanto, a junção das duas palavras indica pessoas que sentem atração por outra do mesmo sexo.

            A homossexualidade masculina tem outras denominações, tais como uranismo, pederastia e sodomia. Uranismo é a prática sexual entre homens, por falta de mulher. A Pederastia é caracterizada pela relação de um homem com uma criança, geralmente menino. A Sodomia é a prática sexual entre homens, ambos adultos.

            Relativamente à homossexualidade feminina, pode ser denominada de safismo, lesbianismo ou tribadismo. A palavra lesbianismo deriva de Lesbos, ilha onde antigamente vivia uma tribo formada somente por mulheres, a qual era chefiada pela poetisa Safo.

            O homossexualismo também existiu nas civilizações antigas. Era praticado pelos romanos, egípcios, gregos e assírios. Entre outros povos chegou a ser relacionado à religião e à carreira militar, pois se atribuía tal condição aos deuses Horus e Set, que representavam a homossexualidade e as virtudes militares entre os cartagineses, dórios, citas e mais tarde para os normandos. Todavia, foi entre os gregos que o homossexualismo tomou maior feição, pois além de representar aspectos religiosos e militares, eles atribuíam à homossexualidade características como a intelectualidade, estética corporal e ética comportamental.

            Com a liberação dos costumes após a revolução sexual dos anos 60, intensificou-se a constatação de convivência entre pessoas de sexo oposto. Outrossim, as pessoas passaram a assumir, sem medos, sua opção sexual.

            Ressalte-se que, talvez, nem haja opção sexual. Existe, sim, o "rótulo" imposto pelo Estado acerca do status individual da pessoa.

            É sabido que um dos meios (ao lado do domicílio e do nome) de se individualizar a pessoa na sociedade é pelo estado, que significa "a posição jurídica da pessoa no seio da coletividade". (29) O estado da pessoa se divide em três aspectos: individual (modo de ser da pessoa quanto à idade, sexo e saúde), familiar (indica a situação na família – solteiro, casado etc) e político (quanto a posição na sociedade política, ou seja, quanto a capacidade eleitoral ativa e passiva).

            Assim, nosso sistema jurídico estabelece, a partir do nascimento da pessoa, com o registro civil do nascimento, a identidade sexual da pessoa. Ou seja, ele é quem firma o estado individual da pessoa, determinando quem nasce homem e quem nasce mulher.

            Não é a pessoa quem estabelece a sua situação jurídica. É o Estado quem a impõe.

            Não se pretende discutir com esses argumentos o transexualismo, mas sim a impossibilidade de haver casamento entre pessoas do mesmo sexo.

            O casamento só é aceito entre homem e mulher. É o estado individual da pessoa que possibilita o reconhecimento jurídico do casamento.

            O Código Civil não define o casamento, mas deixa evidenciado que á ato a ser consumado entre um homem e uma mulher. Ademais, o Código Civil a todo instante faz referência a cônjuges ou a marido e mulher. A Constituição Federal também não o define, mas no art. 226, § 5º, prescreve que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.

            O pressuposto da diferença de sexo no casamento não é defeito, sanável ou insanável, mas requisito essencial da sua própria existência.

            "Se o defeito consiste na falta de um dos elementos constitutivos do negócio típico, como a vontade e a forma, ou na falta de um dos requisitos legais do objeto ou da capacidade jurídica específica para o negócio, este é nulo. É anulável se a vontade do agente for viciosa, ou se ele é relativamente incapaz e não estiver assistido". (30)

            O casamento só é ineficaz quando a lei o declara expressamente como tal. O legislador se preocupou apenas com elementos exigidos para a sua validade, não se preocupou com situações fáticas que, aparentemente poderiam se apresentar como matrimônio, mas sem a presença de certos pressupostos de fato. A ordem jurídica não o proíbe justamente por lhe faltar pressuposto de formação, mas não lhe empresta validade pela falta de elemento substancial.

            Assim, ato inexistente é aquele a que falta requisito juridicamente necessário à existência. (31) Tal se verifica no casamento de pessoas do mesmo sexo, pois não devem produzir efeitos jurídicos.

            Falta ao ato inexistente requisito indispensável à sua existência jurídica ou à sua identificação.

            Não obstante o ato ser inexistente, ele ocorreu e precisa ser desfeito. Isso porque o obstáculo à validade do ato é de ordem legal, não natural (porque se realizou). A maneira de se desfazer essa aparência de ato jurídico é por declaração judicial.

            Na prática deve haver a manifestação do Poder Judiciário para invalidar o eventual matrimônio de pessoas de mesmo sexo.

            Pontes de Miranda leciona que "uma união, ainda solenemente feita, entre duas pessoas do mesmo sexo, não constitui matrimônio, porque ele é, por definição, contrato do homem e da mulher, viri et mulieris coniunctio, com o fim de satisfação sexual e de procriação. Advirta-se, porém, em que a conformação viciosa ou a mutilação dos órgãos sexuais não torna impossível a existência do casamento (Pacifici-Mazzoni, Instituzioni di Diritto Civile Italiano, VII, 12), se o sexo pode ser reconhecido e se distingue do sexo do outro cônjuge. A ignorância de defeito físico irremediável ou de moléstia grave e transmissível entra na classe dos impedimentos dirimentes relativos: concerne, portanto, à validade, e não à existência do casamento. Se, no caso de conformação viciosa, predomina o sexo igual ao do outro cônjuge, está expressa a figura da igualdade sexual, e, ipso facto, inexistente o casamento. Dar-se-á o mesmo em caso de indistinção sexual, quia coniuge non habet sexum (Zachariae, Le Droit Civil Français, I, 171; aliás era bem de esperar-se que ao formulador da teoria dos atos inexistentes não escapasse o caso do ´cônjuge sem sexo´)". (32)

            Portanto, juridicamente inexistente o casamento entre homossexuais.

            Nada contra a união entre homossexuais, mas o casamento deve ser o meio de se constituir uma família no seu sentido mais natural, que é a união de um homem e uma mulher, que se tornarão pai e mãe, respectivamente, e que criarão e educarão os filhos havidos dessa união. O casamento seria a celebração do aspecto natural da família: pai, mãe e filhos.

            A família pode se originar de outras situações, não só do casamento, como já visto. Por que, então, haver casamento homossexual?

            Se o casamento entre homem e mulher tem seus problemas (a dificuldade em se cuidar dos filhos, o fato de marido e mulher ficarem acomodados e acostumados demais um com o outro etc.) imagine o entre homossexuais? Além dos problemas comuns a todos os casais, teriam outros decorrentes do preconceito, da não aceitação social, etc.

            O casamento deve ser a realização máxima da família. Pelo tempo que ele durar, reputa-se havida a família melhor constituída, porque presentes todos os seus elementos naturalmente essenciais: pai, mãe e filhos.

            Se não é possível o casamento, seria possível haver união estável entre pessoas do mesmo sexo?

            A união estável, como se viu, caracteriza-se pela convivência pública, contínua e duradoura entre o homem e a mulher, estabelecida com o objetivo de constituir família. (Constituição Federal, art. 226, §3º; art. 1º da Lei 9278/96).

            Também impossível, juridicamente, a união estável entre homossexuais. (33)

            Consigne-se que a união entre homossexuais existe, só que o Direito de Família dispensa o seu regramento e a sua tutela.

            O Direito de Família tutela os direitos, obrigações, relações pessoais, econômicas e patrimoniais, a relação entre pais e filhos, o vínculo do parentesco e a dissolução da família, mas das famílias matrimonial, monoparental e concubinária. A união entre homossexuais, juridicamente, não constitui nem tem o objetivo de constituir família, porque não pode existir pelo casamento, nem pela união estável.

            Mas se houver vida em comum, laços afetivos e divisão de despesas, não há como se negar efeitos jurídicos à união homossexual.

            Presentes esses elementos pode-se configurar uma sociedade de fato, independentemente de casamento ou união estável. É reconhecida a sociedade de fato quando pessoas mutuamente se obrigam a combinar seus esforços ou recursos, para lograr fim comum (art. 1363 do Código Civil de 1916; art. 981 do Código Civil de 2002).

            Assim, embora as relações homossexuais escapem da tutela do Direito de Família, não escapam do Direito das Obrigações.

            É viável e plausível que duas pessoas do mesmo sexo mantenham vida comum sob o mesmo teto com o fim de partilharem dessa convivência entre si. Não estão preocupadas e interessadas na reação das outras pessoas (ou "O que os vizinhos irão pensar?"), estão preocupadas com a sua própria felicidade. Se há o sentimento de afeição comum devem viver juntas.

            Assim, das uniões homólogas originam-se certos direitos de natureza patrimonial, que estão sendo cada vez mais reconhecidos pela jurisprudência. Não obstante, o reconhecimento como entidade familiar ainda está distante de ocorrer.

            A súmula 380 do Supremo Tribunal Federal tem sido aplicada analogicamente aos casais homossexuais.

            Se a sociedade é fruto de contrato consensual, realiza-se o seu objetivo, que é o interesse de ambos os contraentes, com a fusão dos seus esforços e recursos. Quando a lei menciona esforços, significa contribuição de natureza pessoal; quando se refere a recursos, refere-se a contribuições de natureza econômica.

            Assim, reconhecida a sociedade de fato, deve haver a partilha dos bens amealhados pelo esforço comum, quando dissolvida essa sociedade, seja por separação ou por morte.

            Deste modo, reconhecida a contribuição para a formação do patrimônio comum e verificado o término da sociedade homossexual, deve haver a distribuição igualitária desse patrimônio.

            Se comprovada a convivência, a comunhão de vida e de interesses, pautada pela honestidade, estabilidade, coabitação e respeito recíproco, essa sociedade deve ser admitida e reconhecida, conseqüentemente, uma vez extinta, impõe-se a partilha equânime dos bens adquiridos pelo esforço comum.

            Novamente trazemos à colação trecho do voto do Ministro do Superior Tribunal de Justiça Ruy Rosado de Aguiar, pois para ele "do fato de duas pessoas do mesmo sexo dividirem o mesmo teto, não importa por quanto tempo, não resulta direito algum e não cria laço senão o de amizade. Porém, se em razão dessa amizade os parceiros praticam atos da vida civil e adotam reiterado comportamento a demonstrar o propósito de constituírem uma sociedade com os pressupostos de fato enumerados no artigo 1363 do Código Civil, um de natureza objetiva (combinação de esforços) e outro subjetivo (fim comum), impende avaliar essa realidade jurídica e lhe atribuir os efeitos que a lei consagra. É certo que o legislador do início do século não mirou para um caso como o dos autos, mas não pode o juiz de hoje desconhecer a realidade e negar que duas pessoas do mesmo sexo podem reunir esforços, nas circunstâncias descritas nos autos, na tentativa de realizarem um projeto de vida em comum. Com tal propósito, é possível amealharem um patrimônio resultante dessa conjugação, e por isso mesmo comum. O comportamento sexual deles pode não estar de acordo com a moral vigente, mas a sociedade civil entre eles resultou de um ato lícito, a reunião de recursos não está vedada na lei e a formação do patrimônio comum é conseqüência daquela sociedade. Na sua dissolução, cumpre partilhar os bens". (34)

            A união homossexual, por não ter respaldo no Direito de Família, não gera efeitos dele decorrentes, como direito a alimentos, ao patronímico e à sucessão (ressalvada a hipótese de existência de testamento), conquanto surtam efeitos de outra sorte.

            A união homossexual pode ser tida como sociedade de fato, apesar de no plano fático ser verdadeira entidade familiar.

            Vimos em janeiro de 2002 uma situação inusitada. A Justiça do Rio de Janeiro concedeu a guarda provisória do filho da cantora Cássia Eller, Francisco (Chicão), de oito anos, a sua companheira, Maria Eugênia Vieira Martins, com quem viveu por catorze anos. O caso gerou grandes discussões nos meios jurídico e social. Todos estavam de acordo com a permanência da criança com a companheira sobreviva: Igreja, opinião pública e conservadores em geral.

            O episódio confirma a mudança nos aspectos familiares que vem sofrendo o Brasil. A estrutura familiar brasileira está em constante mutação e ao modelo tradicional de família vão sendo aos poucos agregados outros modelos, como o homossexual.

            Esse caso demonstra, também, a real existência da família homossexual. Imagine-se a situação: duas mulheres vivendo juntas há mais de catorze anos; uma decide ter um filho e tenta a adoção, a inseminação artificial ou encontrar um homem disposto a ter relações sexuais com ela com esse fim específico. Se ela engravida, a criança, ao nascer, já estará num lar onde existem duas pessoas do mesmo sexo. Esse agrupamento humano nada mais é do que uma espécie de entidade familiar, ou deve-se entender que essa criança não tem família?

            Mesmo que não haja a criança, deve-se ter a união homossexual como entidade familiar. Se estiverem presentes todos os elementos anteriormente vislumbrados, há constituição de uma sociedade, não somente a de fato, mas também a sociedade familiar.

            A família existe para a satisfação de seus membros e como materialização de uma situação compartilhada por pessoas que vivem juntas, trocando experiências e partilhando de vida em comum. Há a opção pessoal de cada um de unir e partilhar de sentimentos comuns.

            Cumpre salientar a existência do Projeto de Lei nº 1151/95, apresentado à Câmara pela então Deputada Federal Marta Suplicy, que objetiva disciplinar a "união civil entre pessoas do mesmo sexo". Há um Substitutivo a este projeto elaborado pela Comissão Especial incumbida de apreciar e discutir seus aspectos jurídico-legais, datado de 10 de dezembro de 1996, que modificou a expressão "união civil" por "parceria civil registrada".

            Referido projeto e seu substitutivo sofreram fortes resistências por parte da bancada católica e evangélica da Câmara dos Deputados, por isso, está até hoje parado nessa Casa Legislativa.

            Em 4 de dezembro de 1997 deveria ocorrer a votação desse projeto, mas esta não se realizou por falta de quorum. A autora do projeto, temendo maiores oposições, pediu para que ele fosse retirado de pauta. Houve nova tentativa de se votar o projeto em 1998, mas também restou infrutífera. Está, desde então, sem andamento.

            Na justificação do projeto, a sua autora assevera que "a ninguém é dado ignorar que a heterossexualidade não é a única forma de expressão da sexualidade da pessoa humana. (...) Este Projeto pretende fazer valer o direito à orientação sexual, hetero, bi, ou homossexual, enquanto expressão de direitos inerentes à pessoa humana. Se os indivíduos têm direito à busca da felicidade, por uma norma imposta pelo direito natural a todas as civilizações, não há por que continuar negando ou querendo desconhecer que muitas pessoas só são felizes se ligadas a outra do mesmo sexo. Essas pessoas só buscam o respeito às suas uniões enquanto parceiros, respeito e consideração que lhes são devidos pela sociedade e pelo Estado. (...) O Projeto de Lei que disciplina a união civil entre pessoas do meso sexo vem regulamentar, através do Direito, uma situação que, há muito, já existe de fato. E, o que de fato existe, de direito não pode ser negado".

            Observe-se que o Projeto não tem o escopo de incentivar ou fazer qualquer tipo de apologia à homossexualidade. Somente tem o condão de regulamentar, de reconhecer, e de conferir direitos e obrigações decorrentes da união homóloga.


VII – CONCLUSÃO.

            O Direito não pode fechar os olhos para a realidade. O Direito deve acompanhar a realidade e os fatos sociais que se impõem perante de si.

            Muitas condutas foram proibidas pelo Direito. Foram porque padeciam da não aceitação social, sofriam ingerências de ordem econômica, religiosa e política. Ninguém nega ter havido tempo, principalmente em Roma e na Grécia antigas, bem como no Brasil, até o séc. XIX, em que a escravidão era conduta absolutamente tolerada e permitida.

            Houve pessoas, em determinados momentos da história mundial, que sofreram a perda total de seus direitos, relegadas ao nível de coisa, pela cor da pele, pela fraqueza diante da derrota de uma batalha ou uma guerra. É imoral tal conduta? É contra os bons costumes? Depende. Depende da época, do contexto histórico em que se analisa a situação.

            Quando em Roma os escravos eram tratados como coisas, alguém começou a perceber que isso era desrespeitoso, que feria os ensinamentos divinos, que todos deveriam ter os mesmos direitos. Mas teriam os mesmos direitos desde que fossem cidadãos. Além de a pessoa ter de ser livre, ela deveria ser cidadã romana para poder exercer direitos.

            Nem se perquira acerca do pensamento machista que sempre existiu. Tudo deve ser tratado e entendido para facilitar a vida do homem. Este deve ser o chefe dos meios de produção, ele deve ser o chefe da sociedade, ele deve ser o chefe da família. Se a força física é o diferencial, então todo o resto está sob o comando do homem.

            Mas não é assim que a sociedade evolui. A força física mostrou-se frágil, insuficiente para manter a ordem da sociedade e da família. Junto da força devem estar a inteligência e os sentimentos mais altruístas possíveis, porque senão o resultado será a desordem e o caos social.

            Deste modo, se o homem deve ser o líder da sociedade, a mulher logicamente estaria em segundo plano. Se o homem é o mais forte, ele controla a mulher, conseqüentemente os filhos.

            Não obstante, percebemos a força existente numa mulher. Ela batalhou pelos seus ideais, lutou pelos seus direitos e conquistou o reconhecimento social da sua total capacidade para, sozinha, comandar a família e exercer sua profissão, sem descuidar de seus atributos domésticos e maternos.

            Aboliu-se a escravidão. Sociedades modernas tipificam como ilícito penal a prática da escravidão ou a submissão de uma pessoa à condição análoga a de um escravo. Mas já não foi permitida a escravidão?

            A mulher ganhou espaço no meio social, ampliou seus horizontes em relação ao seu projeto de vida. A mulher é absolutamente capaz para exercer por si os atos da vida civil, sem necessidade de autorização marital ou paterna. Mas desde quando isso é possível?

            A família deveria surgir do casamento e este era indissolúvel. Mas quantos famílias não existiram à margem do casamento e quantos casamentos já não foram dissolvidos pelo fato dos cônjuges não partilharem de vida em comum (por serem infiéis ou não viverem no mesmo domicílio)?

            Não é justo que o Direito feche os olhos para a realidade. Este nunca fechou seus olhos. Ele ganha mais força e vitalidade com os fatos sociais. Da realidade advém a sua subsistência. Não há como dissociar o Direito da realidade.

            "Não pode o Direito isolar-se do ambiente em que vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há de corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores. Se as normas positivas se não alteram à proporção que evolve a coletividade, consciente ou inconscientemente a magistratura adapta o texto preciso às condições emergentes, imprevistas". (35)

            Assim, o Direito é o desdobramento da vida da sociedade; evolui a medida que a coletividade evolui, caminha a medida que a coletividade caminha.

            Hodiernamente não é difícil aceitar o fato de uma pessoa ser homossexual. Esse preconceito está cada vez mais sendo superado. É difícil aceitar que o homossexual faça não a opção sexual, porque muitas vezes ele não escolhe nada, somente vive à sua especial maneira, mas sim uma parceria homossexual.

            Se esta é uma nova realidade, o Direito deve observá-la. Se não for pelo legislador, será pelos magistrados.

            É o que ocorre hoje. Não se nega a existência de tais uniões, o que se nega é a formação de entidade familiar. A relação entre homossexuais existe e surte efeitos no mundo jurídico, não efeitos de Direito de Família, mas de Direito Obrigacional.

            Nada obsta que no futuro venha o legislador admitir essa união como entidade apta a realizar a família. Em certos aspectos essa união já caracteriza entidade familiar, mormente se houver o respeito mútuo, a fidelidade, a convivência pública, contínua e duradoura, e a conjunção de esforços ou recursos para lograr fins comuns. Quais seriam esses fins comuns? Seria a formação de uma sociedade, não mais de fato, mas sim familiar.

            Destarte, passariam a ser uma outra espécie de família de fato. Ao lado da família concubinária, haveria a família homossexual. Se se permite a união estável entre o homem e a mulher e se ela é reconhecida como entidade familiar, deve-se considerar como entidade familiar a união (ou parceria) homossexual.

            O concubinato e a união estável ficaram, como mencionado, legalmente marginalizados, mas isso não impediu o reconhecimento jurisprudencial de direitos advindos desse relacionamento.

            O legislador pode não se conformar com essas idéias, mas ele não aplica o Direito, não trata com o Direito, ele se relaciona com o fato social. Se não lhe é conveniente legislar sobre determinada matéria, isto é, sobre determinado fato, ele não tem reconhecimento legal, o que não lhe retira a existência jurídica.

            Não obstante, por não ter esse reconhecimento legal é que lhe falta legitimidade no âmbito do Direito de Família.

            Para J.M. de Carvalho Santos Direito de Família é o conjunto de regras que disciplinam as relações de família e sua influência sobre pessoas e bens daqueles vinculados pelo parentesco ou casamento. (36) Vislumbra-se daí somente a tutela das famílias monoparental e matrimonial, havendo hoje a tutela da união estável por lei específica, já que constitucionalmente reconhecida (Lei 9278/96; Constituição Federal, art. 226, §3º; com a ressalva de que o Código Civil de 2002 disciplina a matéria na Parte Especial, Livro IV, Título III, arts. 1723 a 1727).

            Reconhece-se hoje a união homossexual como sociedade de fato, talvez amanhã seja reconhecida como entidade familiar. Tudo depende da adequação do pensamento à realidade, o que não ocorre da noite para o dia.

            Ademais, parece remota no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de haver casamento entre homossexuais. O casamento seria ainda o contrato especialíssimo entre homem e a mulher, sendo a instituição ético-social da vida em comum, com direitos e obrigações mútuas, assistência recíproca e educação da prole daí decorrentes.

            Deve-se deixar o casamento para a constituição da mais perfeita família, porque advinda do amor do homem e da mulher para a convivência comum e guarda e educação dos filhos, conforme a natureza humana ordinariamente determina.


ANEXO I

            PROJETO DE LEI Nº 1.151, DE 1995

            Disciplina a união civil entre pessoas do mesmo sexo e dá outras providências.
O Congresso Nacional decreta:

            Art. 1º - É assegurado a duas pessoas do mesmo sexo o reconhecimento de sua união civil, visando a proteção dos direitos à propriedade, à sucessão e dos demais assegurados nesta Lei.

            Art. 2º - A união civil entre pessoas do mesmo sexo constitui-se mediante registro em livro próprio, nos Cartórios de Registro de Pessoas Naturais.

            § 1º - Os interessados e interessadas comparecerão perante os oficiais de Registro Civil exibindo:

            I - prova de serem solteiros ou solteiras, viúvos ou viúvas, divorciados ou divorciadas;

            II - prova de capacidade civil plena;

            III - instrumento público de contrato de união civil.

            § 2º - O estado civil dos contratantes não poderá ser alterado na vigência do contrato de união civil.

            Art. 3º O contrato de união civil será lavrado em Ofício de Notas, sendo livremente pactuado. Deverá versar sobre disposições patrimoniais, deveres, impedimentos e obrigações mútuas.

            Parágrafo único - Somente por disposição expressa no contrato, as regras nele estabelecidas também serão aplicadas retroativamente, caso tenha havido concorrência para formação do patrimônio comum.

            Art. 4º - A extinção da união civil ocorrerá:

            I - pela morte de um dos contratantes;

            II - mediante decretação judicial.

            Art. 5º - Qualquer das partes poderá requerer a extinção da união civil:

            I - demonstrando a infração contratual em que se fundamenta o pedido;

            II - alegando desinteresse na sua continuidade.

            § 1º - As partes poderão requerer consensualmente a homologação judicial da extinção da união civil.

            § 2º - O pedido judicial de extinção da união civil, de que tratam o inciso II e o § 1º deste artigo, só será admitido depois de decorridos 2 (dois) anos de sua constituição.

            Art. 6º - A sentença que extinguir a união civil conterá a partilha dos bens dos interessados,

            de acordo com o disposto no instrumento público.

            Art. 7º - O registro de constituição ou extinção da união civil será averbado nos assentos de nascimento e casamento das partes.

            Art. 8º - É crime, de ação penal pública condicionada à representação, manter o contrato de

            união civil a que se refere esta lei com mais de uma pessoa, ou infringir o § 2º do art. 2º

            Pena - detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos.

            Art. 9º - Alteram-se os artigos da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que passam a vigorar com as seguintes redações:

            "Art. 33 - Haverá em cada cartório os seguintes livros, todos com trezentas folhas cada um:

            (...)

            III - B - Auxiliar - de registro de casamento religioso para efeitos civis e contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo.

            Art. 167 - No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:

            I - o registro:

            (...)

            35 - dos contratos de união civil entre pessoas do mesmo sexo que versarem sobre comunicação patrimonial, nos registros referentes a imóveis ou a direitos reais pertencentes a qualquer das partes, inclusive os adquiridos posteriormente à celebração do contrato.

            II - a averbação:

            (...)

            14 - das sentenças de separação judicial, de divórcio, de nulidade ou anulação do casamento e de extinção de união civil entre pessoas do mesmo sexo, quando nas respectivas partilhas existirem imóveis ou direitos reais sujeitos a registro."

            Art. 10 - O bem imóvel próprio e comum dos contratantes de união civil com pessoa do mesmo sexo é impenhorável, nos termos e condições regulados pela Lei 8.009, de 29 de março de 1990.

            Art. 11 - Os artigos 16 e 17 da Lei 8.213, de 24 de julho de 1991, passam a vigorar com a seguinte redação:

            "Art. 16 (...)

            § 3º. Considera-se companheiro ou companheira a pessoa que, sem ser casada, mantém com o segurado ou com a segurada, união estável de acordo com o parágrafo 3º do art. 226 da Constituição Federal, ou união civil com pessoa do mesmo sexo nos termos da lei.

            Art. 17 (...)

            § 2º. O cancelamento da inscrição do cônjuge e do companheiro ou companheira do mesmo sexo se processa em face de separação judicial ou divórcio sem direito a alimentos, certidão de anulação de casamento, certidão de óbito ou sentença judicial, transitada em julgado".

            Art. 12 - Os artigos 217 e 241 da Lei 8.112, de 11 de dezembro de 1990, passam a vigorar com a seguinte redação:

            "Art. 217. (...)

            c) a companheira ou companheiro designado que comprove a união estável como entidade familiar, ou união civil com pessoa do mesmo sexo, nos termos da lei.

            (...)

            Art. 241. (...)

            Parágrafo único. Equipara-se ao cônjuge a companheira ou companheiro, que comprove a união estável como entidade familiar, ou união civil com pessoa do mesmo sexo, nos termos da lei."

            Art. 13 - No âmbito da Administração Pública, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal disciplinarão, através de legislação própria, os benefícios previdenciários de seus servidores que mantenham a união civil com pessoa do mesmo sexo.

            Art. 14 - São garantidos aos contratantes de união civil entre pessoas do mesmo sexo, desde a data de sua constituição, os direitos à sucessão regulados pela Lei nº 8.971, de 28 de novembro de 1994.

            Art. 15 - Em havendo perda da capacidade civil de qualquer um dos contratantes de união civil ente pessoas do mesmo sexo, terá a outra parte a preferência para exercer a curatela.

            Art. 16 - O inciso I do art. 113 da Lei 6.815, de 19 de agosto de 1980 passa a vigorar com a seguinte redação:

            "Art. 113. (...)

            I - ter filho, cônjuge, companheira ou companheiro de união civil ente pessoas do mesmo sexo, brasileiro ou brasileira".

            Art. 17 - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

            Art. 18 - Revogam-se as disposições em contrário.


NOTAS

            01. KANT, Immanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, Tradução de Paulo Quintela, Edições 70, Lisboa.

            02. Lei nº 7.716/89, modificada pela Lei nº 9459/97, e que acrescentou, ainda, o § 3º ao art. 141 do Código Penal.

            03. Min. Ruy Rosado de Aguiar, STJ – 4ª T; Rec. Esp. Nº 148.897-MG; Boletim AASP nº 2057, 01 a 07.06.98, pág. 585.

            04. FACHIN, Luiz Edson, Aspectos jurídicos da união de pessoas do mesmo sexo, RT 732/48-49.

            05. Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 3º: A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

            06. GOMES, Orlando, Introdução ao Direito Civil, 18ª ed., Ed. Forense, Rio de Janeiro, 2002, p. 02.

            07. PEREIRA, Sérgio Gischkow, Tendências modernas do direito de família, RT 628/19.

            08. "Dizia IHERING que as palavras arrastam as idéias. Tomemos da palavra família e vejamos se isto é verdade. A radical fam é a mesma radical dhã da língua ariana, que significa pôr, estabelecer, exprimindo portanto a idéia de fixação, estabilidade.... Em sânscrito a voz com que se nomeia casa é dhãman, a qual, pela mudança da dh em f, deu em dialetos do Lácio, como o osco, a palavra faama, donde, no dizer de Festus, famulus e famel, o servo, e destes, família, cuja desinência exprime coletividade.... No latim a casa se diz domus, em grego domos, e ambas estas palavras têm a mesma radical ariana dam, que significa unir, construir. Esta identidade de significação das duas raízes está indicando que dham, do dhaman sânscrito, fam, do faama osco, e dam do domus latino e do domos grego, devem ser uma só e mesma raiz, porque a inteligência dos povos primitivos não era tão rica que se desse ao luxo verbal de várias palavras para exprimir a mesma idéia. Famuli deviam ter sido indistintamente chamados, a princípio, todos os que habitavam a casa,e família o conjunto deles." PEREIRA, Virgílio de Sá, Direito de Família, 2ª ed., Livraria Freitas Bastos S/A, 1959, p. 32.

            09. "Sabe-se, enfim, que a família é, por assim dizer, a história e que a história da família se confunde com a história da própria humanidade". HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes, Família e Casamento em Evolução, Revista do Advogado, AASP, n. 62, março/2001, p.16.

            10. Na Bíblia, Deus, ao criar o homem e a mulher, à Sua imagem e conforme a Sua semelhança, recomendou-lhes que fossem fecundos, que crescessem e se multiplicassem, enchendo a terra, determinando a sua união em um a só carne (Gênesis, 1/27 e 28; 2/24). No Novo Testamento Jesus, para defender o caráter indissolúvel do casamento monogâmico afirma: "Assim, não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem" (Evangelho segundo São Mateus, 19/6).

            11. CORREIA, Alexandre, SCIASCIA, Gaetano, Manual de Direito Romano I, 1ª ed., Saraiva, São Paulo, 1949, p. 100.

            12. CORREIA, Alexandre, SCIASCIA, Gaetano, ob. cit., pág. 34.

            13. PEREIRA, Virgílio de Sá, na obra citada, págs. 89/95.

            14. Direito de Filiação, 1ª ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, pág. 78.

            15. A Família e a Filiação, tese apresentada à obtenção do grau de Professor Titular de Direito Civil, na Faculdade de Direito da USP, em 1996.

            16. Ob. Cit. Pág. 19.

            17. MENOS CASAMENTOS - A proporção de pessoas que vivem juntas sem se casar no civil ou no religioso aumentou 55% entre 1991 e 2000. TIPOS DE UNIÃO - UNIÃO CONSENSUAL: 1991 - 18,3%; 2000 - 28,3%; - APENAS CASAMENTO RELIGIOSO: - 1991 - 5,2%; 2000 - 4,3%; SÓ CASAMENTO CIVIL: - 1991 - 18,3%; 2000 17,3% - CASAMENTO CIVIL E RELIGIOSO: - 1991 - 57,8%; 2000 - 50,1%. Dados do Censo 2000, no site do IBGE.

            18. Estatuto da Família de Fato, 1ª ed., Jurídica Brasileira, São Paulo, pág. 49.

            19. Curso de Direito Civil, Vol. 2, 17ª ed., Saraiva, São Paulo, 1978, pág. 8.

            20. Baseado em conceitos de MONTEIRO, Washington de Barros, ob. cit., págs. 08/09 e de RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, Vol. 6, 27ª ed., Saraiva, São Paulo, 2002, pág. 19 e no Código Civil de 2002, art. 1597.

            21. MIRANDA, Pontes de, Tratado de Direito de Família – Direito Matrimonial, Vol. I, Max Limonad, 3ª ed., São Paulo, 1947, pág. 93; RODRIGUES, Silvio, na obra citada; GOMES, Orlando, Direito de Família, 3ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1978, pág. 63; PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Vol. 5, Forense, Rio de Janeiro, 1979, pág. 40/41; SANTOS, J.M. de Carvalho, Código Civil Brasileiro Interpretado, IV, arts. 180 a 255, 11ª ed., Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1986, págs.10/12.

            22. MONTEIRO, Washington de Barros, na obra citada, p.10; DINIZ, Maria Helena, Curso de Direito Civil Brasileiro, Vol. 5, Saraiva, São Paulo, 1985, pág. 31/32.

            23. PLANIOL-RIPERT, Traité Pratique de Droit Civil 2/56 apud Washington de Barros Monteiro, ob. cit. pág. 8; VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil, Vol. 5, 1ª ed., Atlas, São Paulo, 2001, pág.37.

            24. ob. cit. pág. 37.

            25. Cf. artigos 180 a 255 do Código Civil de 1916 e artigos 1511 a 1570 do Código Civil de 2002.

            26. http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/021206_casamentoml.shtml

            27. http://www.terra.com.br/mulher/noticias/2002/09/02/000.htm

            28. http://globonews.globo.com/GloboNews/article/0,6993,A453726-2401,00.html

            29. MONTEIRO, Washington de Barros, Curso de Direito Civil, Vol. I, Saraiva, São Paulo, 1996, pág. 78.

            30. GOMES, Orlando, ob. cit., pág. 467.

            31. GOMES, Orlando, ob. cit., pág. 468.

            32. Tratado de Direito de Família – Direito Matrimonial, Vol. I, Max Limonad, 3ª ed., São Paulo, 1947, págs. 296 e 297.

            33. Concordamos com o entendimento de Maria Berenice Dias (União Homossexual, o Preconceito e a Justiça, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2000, pág. 147): "Um Estado Democrático de Direito, que valoriza a dignidade da pessoa humana, não pode chancelar distinções baseadas em características individuais. Injustificável a discriminação constante do § 3º do art. 226 da Constituição Federal, bem como inconstitucional a restrição das Leis nºs 8971/94 e 9278/96, que regulamentam a união estável, ao se referirem somente ao relacionamento entre um homem e uma mulher".

            34. STJ – 4ª T; Rec. Esp. Nº 148.897-MG; Boletim AASP nº 2057, 01 a 07.06.98, pág. 585.

            35. MAXIMILIANO, Carlos, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 16ª ed., Forense, Rio de Janeiro, 1996, pág. 157.

            36. Código Civil Brasileiro Interpretado, IV, arts. 180 a 255, 11ª ed., Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1986, pág. 8.


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THOMAZ, Thiago Hauptmann Borelli. União homossexual: reflexões jurídicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 64, 1 abr. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3930. Acesso em: 28 mar. 2024.