Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/39333
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Fraternidade e sua relação com a igualdade e a liberdade

Fraternidade e sua relação com a igualdade e a liberdade

Publicado em . Elaborado em .

A autêntica fraternidade somente ocorre na medida em que há liberdade e igualdade, efetiva e simultaneamente.

“... he aquí a la especie humana dividida en manadas de ganado, cada una con su jefe, que la guarda, para devorarla”. Rousseau

Sobre a origem e o sentido da fraternidade se pode dizer o seguinte: um valor que foi central na ilustração européia, que encontrou uma expressão política muito acentuada na ala esquerda dos revolucionários franceses, que teve seu grande momento de glória e apogeu no continente ibero-americano e que nunca foi de todo admitido nos Estados Unidos de América.

Todos os grandes ideais revolucionários, em certo sentido, pretendiam recobrar a liberdade política republicana do mundo antigo. Assim que as revoluções de finais do sec. XVIII  e  princípios do XIX  olhavam tanto para o futuro como para o passado. Seus modelos eram a democracia ateniense para a esquerda e a república romana para a direita. Particularmente na França, do que se tratava era acabar com a monarquia absoluta e recuperar para os cidadãos proprietários, que a Assembléia Francesa chamou de “cidadãos ativos”, um regime de iguais liberdades políticas. A reação de Robespierre ante essa tentativa constitui o marco em que se situa a origem política da ideia de fraternidade.

De fato, a fraternidade significou um ideal de emancipação que foi parte do programa político de Robespierre, autor da divisa “Libertéégalitéfraternité” que, em seu célebre discurso de 5 de dezembro de 1790, defendendo os direitos do homem e do cidadão contra o sistema censitário que pretendia aplicar-se à Guarda Nacional, apareceu por vez primeira na história universal  da humanidade. No projeto de lei alternativo com que Robespierre concluía seu discurso, se determinava que “todos” os cidadãos maiores de 18 anos – e não somente os ricos – seriam, de direito, inscritos na Guarda Nacional de sua comuna; que esses guardas nacionais seriam as únicas forças armadas empregadas no interior, e não o exército herdado do velho regime; que, em caso de agressão exterior, competiria aos cidadãos em armas, e somente a eles, o defender-se. E que, finalmente, levariam sobre o peito e em seus estandartes estas três palavras.

O deputado Robespierre, que vinha lutando sozinho desde há alguns meses contra a distinção, aprovada em câmara, entre “cidadãos ativos” (capazes de pagar um censo) e “cidadãos passivos” (pobres), voltava agora à carga, e nada menos que em um ponto politicamente tão sensível como o caráter de classe da futura Guarda Nacional. Reclamava que todos os que eram reduzidos a “cidadãos passivos” (para os quais a revolução não tinha muito que oferecer - salvo alguns incompletos e passivos direitos civis - e que não podiam aspirar a um regime de igualdade e liberdade) pudessem emergir à sociedade, a uma sociedade civil de tipo republicano.

Que dúvida cabe de que a fraternidade é a irmã pobre da tríade democrático-republicana moderna, não só politicamente, senão também filosoficamente? Nenhuma. Enquanto que os conceitos de igualdade e liberdade foram (e são) continuadamente explorados, a fraternidade segue parecendo uma noção  amorfa. Algo desde logo intrigante, porque a fraternidade, designando aquilo que partilha ou compartilha uma mesma origem e um todo (M. A. Ribeiro), implica ela mesma generalização da liberdade (que restabelece constantemente o princípio da virtude e da dignidade) e da reciprocidade (que é a igualdade para todos).

Cada um dos três membros da tríade liberdade-igualdade-fraternidade depende dos outros dois, “al modo en que los lados de un triángulo se dan a la vez” (M. Bunge). Quer dizer, que todos, também os pobres, os humildes, todos os que necessitam depender de outro para viver, todos quem, para existir socialmente e previver, tem que pedir diariamente permissão a outros, criados, trabalhadores assalariados, mulheres, todas as categorias sociais dependentes, enfim, sairam “del domus subcivil en que la sociedad señorial viejoeuropea (y colonial iberoamericana) les había inveteradamente confinado, para emerger como ciudadanos de pleno derecho a una sociedad civil de libres e iguales.”[1] (A. Domènech)

 Esta universalização da condição humana, da autonomia ou independência civil (Kant), a ideia de que ninguém necessita ter que pedir permissão a outro para poder existir socialmente, que todo mundo tenha sua própria base material, seus próprios meios de existência social, faz da fraternidade, da mesma forma que da liberdade e da igualdade, a base de toda ordem política democrático-republicana e um conceito-chave para todo e qualquer pensamento consistente sobre questões políticas, jurídicas e éticas. Por consequência, não somente qualquer discussão séria acerca da justiça (que não é algo que existe por si só, senão somente nas relações recíprocas) deveria estar fundada em uma robusta compreensão sobre a esta “terceira” virtude ilustrada (que, por sua vez, repousa sobre as concepções de liberdade e igualdade), senão que todo e qualquer programa político honrado e que pretenda propugnar de verdade sua causa (quer dizer, honrado também na ação), deveria tomar-se em sério o mais contundente e emancipatório valor da tradição republicano-revolucionária moderna: a fraternidade.

Agora: É a fraternidade, conceitualmente falando, redundante ou está limitada somente a canalizar determinadas atitudes mentais e formas de conduta, sem as quais perderíamos de vista os valores expressados pelos direitos democráticos? Não! Não o é e nem tão pouco padece deste tipo de restrição proposta por Rawls[2]. E a razão para esta contundente negativa está na evidência de que, desde seu “eclipse” ou pouquidade, não são poucas as expressões permanentes do sentido de injustiça e da sensação airada de repúdio ante o inaceitável, da defesa de procedimentos democráticos para clamar contra a generalização de assimetrias arbitrárias, da necessidade de levar à prática direitos que modifiquem a existência humana, enfim, da busca de uma sociedade que demanda a gritos ser transformada e constituída pela inclusão de todos os indivíduos em condições de igualdade, isto é, como seres individuais, emancipados e libertos de toda barreira social, econômica, política ou de classe infundada.

Isto indica que por meio da fraternidade, tanto no âmbito da atuação política como no processo de elaboração e realização do direito, é de fundamental importância produzir a incorporação na sociedade civil – quebrada em decorrência de uma intensa polarização da vida social – dos indivíduos mais desfavorecidos, com a consequente desaparição, eliminação ou afrouxamento das barreiras que os impedem de ocupar e participar dos espaços públicos, dissolvendo ou acabando com os eventuais e injustificados vínculos de desigualdade e de não liberdade. Dito de outro modo, que uma sociedade fraterna terá de ser também e necessariamente “inclusiva”, dar espaço para que indivíduos livres e iguais, procedentes de todos os seus rincões, possam gastar suas vidas de forma digna.

Aliás, dito seja de passagem, no seu discurso de posse pronunciado ante o Congresso Nacional em 02/01/2003, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (ainda que somente coberto de “boas intenções”) mencionou por duas vezes a fraternidade no sentido aqui tratado. Uma, rendendo tributo à memória da luta da população trabalhadora brasileira: “E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e cidadã do meu País o significado de cada palavra dita na campanha, para imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que chegou a hora de transformar o Brasil naquela nação com a qual a gente sempre sonhou: uma nação soberana, digna, consciente da própria importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar, acolher e tratar com justiça todos os seus filhos”. E outra, para ressaltar a unidade intergeracional e intergenérica do  demos: “Os homens, as mulheres, os mais velhos, os mais jovens, estão irmanados em um mesmo propósito de contribuir para que o País cumpra o seu destino histórico de prosperidade e justiça”.

Claro que por dissipar toda relação de dominação e de dependência política ou civil de seres humanos livres sobre seres humanos livres, a fraternidade também implica (histórico-concretamente) que se pode atribuir a alguém uma carga em atenção ao bem de outro, isto é, que a tarefa de constituir uma verdadeira independência e autonomia em uma nova ordem resultante (o tornar “irmão de” todos os indivíduos que poderiam chegar a ser objeto da mesma situação) pode resultar em um perigo para o bem de outros.

Mas esta comparação do bem geral que se quer alcançar com a entidade do bem individual posto contextualmente em perigo (virtude que preside o ajuste entre liberdade e igualdade), sempre dependente de valorações concretas, não entranha necessariamente um risco para toda a sociedade, posto que o rompimento ou abrandamento de antigas e degradantes barreiras de classe, republicanamente falando, está condicionado à circunstância de que todos tenham acesso a uma igualdade material (ainda que aproximada) de oportunidades, elevando o nível de garantia do direito mais essencial de existência material dos indivíduos e do imperativo ético de viver segundo os próprios planos de vida.

Por isso que a melhor maneira de se viabilizar uma valoração concreta verdadeiramente transformadora do status quo da ausência de fraternidade deveria começar por um juízo formulado a partir das vítimas das desgraças sociais, quero dizer, de adotar a perspectiva dos que se encontram na parte mais escura da vida, “en el peor de los mundos posibles”, para usar a expressão de Schopenhauer. Considerar “a plena luz las perspectivas de las víctimas y otorgar a sus voces su debido peso” implica uma verdadeira disposição e capacidade para atuar (ou não atuar) em nome dos mais desfavorecidos, “para imaginar sus expectativas incumplidas, para absolver, para ayudar, mitigar o compensar, e incluso para no mirar hacia otro lado”. (J. Shklar)

Afinal, viver bem e de modo digno também significa estar e se preocupar com os outros, ser um entre os outros dentro de um quadro institucional que nos afirme na condição de cidadão: o ser humano completo, ética e responsavelmente comprometido com a igualdade social, é o cidadão virtuoso que combina a procura da felicidade pessoal com a exigência de uma solidariedade que transcende sua própria individualidade, sob a égide de instituições justas.

O que modela uma sociedade boa e decente não são somente as leis que ajudamos a que se aprovem, os representantes políticos que ajudamos a eleger, as grandes invenções, teorias e obras que elaboramos ou reconhecemos, ou uma ordem institucional jurídica e política adequada, senão também nossos pequenos e concretos atos mentais e de comportamento; a generosidade que dispensamos em nossas relações, a maneira como educamos nossos filhos, como nos relacionamos com os demais, como respeitamos cotidianamente os limites de nossos direitos e cumprimos nossos deveres, etc., são todas pequenas atitudes, decisões triviais, gestos da vida privada que, a largo prazo, têm muito mais peso que todas as guerras napoleônicas.

Enquanto para uma consciência cúmplice do sistema as vítimas são um momento necessário, inevitável, um aspecto funcional ou natural do contexto socioeconômico, para uma consciência crítica e responsável, que só pode existir a partir de uma postura ética comprometida, as vítimas são reconhecidas como sujeitos morais, como seres humanos que não podem (de forma livre, inviolável, autônoma e digna) produzir, reproduzir ou desenvolver suas vidas em comunidade, que foram excluídos da participação na discussão democrática e que se encontram afetados por alguma situação de verdadeira morte existencial “que la mundanidad renueva continuamente”.

Para dizer em termos mais modestos e mais realistas, do que se trata é de saber ouvir a voz do outro e de abraçar uma igualdade que abranja fraternalmente a todos os indivíduos em condições de liberdade e autonomia plena, isto é, como verdadeiros cidadãos. É necessário, na ética e práxis do cotidiano, que nos situemos no lugar do outro para reconhecer que cada um de nós não é mais que um ser entre outros, todos os quais têm desejos e necessidades que lhes importam, o mesmo que a nós nos importam nossas necessidades e desejos. Somente por esse caminho as vítimas sociais terão a oportunidade para emancipar a si mesma em uma sociedade “livre, igualitária e fraterna”. Enquanto viverem na miséria e baixo a dependência de outros, sob o manto perverso da mais atroz e patriótica indiferença, dignidade humana, liberdade, igualdade, fraternidade e cidadania, não serão para eles sequer meras possibilidades humanas[3].

Em resumo, a autêntica fraternidade somente pode dar-se na medida em que a liberdade e a igualdade se deem efetiva e simultaneamente. Postula que se considere a todos iguais (como membros do mesmo corpo) e como irmãos plenamente livres (como “dueño de sí mismo, con la capacidad de cuidarse completamente a sí mismo”). É a extensão dos “laços de sangue” aos demais; e com eles das correspondentes relações afetivas. Trata-se não somente de respeitá-los senão de reconhecê-los, porque a condição básica para ser um bom cidadão é receber o  reconhecimento e o respeito que se lhe deve e outorgá-lo aos demais. E este reconhecimento/respeito, para ser pleno e não cair na versão vulgar e perversa da caridade postula e requer a harmônica integração de seres livres e iguais[4]. E, sobretudo, exorcizar a resignada indiferença, fomentar o exercício de nossas melhores capacidades e demonstrar nossa valia como seres humanos.

Esta é a condição de possibilidade da fraternidade: a ausência ou supressão da dependência, da indiferença e da exclusão social. Um compromisso que cabe a cada um de nós, no mais íntimo de nossa consciência moral de responsabilidade pessoal e solidariedade social. Ignorar esta responsabilidade republicana nos deixa a mercê do azar insensível ou, o que é inclusive pior, dos parasitas exploradores travestidos das mais diversas pelagens: política, religiosa, moralista, relativista, etc... etc. Depois de tudo, o ser humano é o único animal vivente que está cognitivamente dotado da capacidade para poder superar a indiferença, remover o sofrimento inecessário e eliminar as desvantagens evitáveis.


[1] A. Domènech mostra que o conceito de fraternidade “procede del ámbito familiar, pues hunde sus raíces en la familia, célula de la sociedad del  Ancien Régime, en la que no sólo la mujer y los hijos estaban sometidos a relaciones patriarcales de dominación y dependencia, sino también la canalla: artesanos pobres, aprendices, jornaleros, obreros asalariados, yunteros, aparceros, oficiales, aprendices, preceptores y otros familiares  de los grandes señores, domésticos de todo tipo, criados, lacayos, campesinos sujetos a servidumbre, etc. La fraternidad revolucionaria pretendía igualar en calidad de hermanos y liberar del patriarcalismo  a quienes estaban sometidos a servidumbre política, social o material, y conseguir la plena incorporación a una sociedad civil republicana de libres e iguales de quienes vivían por sus manos, del pueblo llano del viejo régimen europeo”.

[2] Esta é a visão “candorosamente psicologizante” que ofereceu Rawls da “fraternidade” em sua Teoria da justiça: “En comparación con la libertad y la igualdad, la idea de fraternidad ha tenido un lugar menor en la teoría democrática. Está concebida para ser un concepto políticamente menos específico, que no define por sí mismo ninguno de los derechos democráticos, sino que canaliza más bien determinadas actitudes mentales y formas de conducta, sin la cuales perderíamos de vista los valores expresados por esos derechos”.

[3] A essência da indiferença, do apático menosprezo com relação ao outro, reside precisamente no fato de que carrega consigo a completa perda de interesse no que sucede. Nada nos preocupa nem nos importa. E uma consequência natural disso é que nossa disposição a estar atentos se debilita e nossa vitalidade ou sensibilidade moral se atenua. Em suas manifestações mais habituais e características, o conformismo apático implica uma redução radical da agudeza e constância de atenção ao que realmente importa. Nossa consciência moral perde a capacidade de perceber injustiças, convertendo-se em algo cada vez mais homogêneo. E à medida que se expande e se apodera de nós, a indiferença faz com que nossa consciência ou compromisso ético experimente uma diminuição progressiva de sua capacidade de perceber os fatos importantes. A justiça só é um valor para os que se interessam e desejam a justiça. A humanidade só é um valor para os que desejam viver humanamente; a vida só vale para quem a busca ativamente; e nenhuma coisa comanda a não ser proporcionalmente ao interesse que temos por ela (Spinoza). Dito da forma mais simples possível: ter interesse por alguém ou algo significa ou consiste essencialmente, entre outras coisas, em considerar seus interesses como razões para atuar ao serviço dos mesmos. 

[4] Não olvidemos que a presença e a aceitação do “outro” na convivência é o fundamento biológico do fenômeno social e qualquer coisa que destrua ou limite a presença e a aceitação do “outro”, desde a competição até a cooperação, passando pela manipulação ideológica, destrói ou limita o fato de se dar o fenômeno social – e, portanto, humano -, porque aniquila ou empobrece o processo biológico que o gera e o sentimento de que estamos desenhados pela seleção natural para entender-nos uns aos outros (H. Maturana).


Autor

  • Atahualpa Fernandez

    Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

    Textos publicados pelo autor

    Site(s):

Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa. Fraternidade e sua relação com a igualdade e a liberdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4350, 30 maio 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/39333. Acesso em: 28 mar. 2024.