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A violação da Lei do Mandado de Segurança ao princípio da separação dos poderes

A violação da Lei do Mandado de Segurança ao princípio da separação dos poderes

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Resumo: O presente artigo busca ensejar uma reflexão a respeito da constitucionalidade dos dispositivos presentes na Lei 12.016/09, que disciplina o rito procedimental do Mandado de Segurança. Intentaremos demonstrar a interferência causada pelas determinações legais na prática processual, mormente no que concerne à suspensão da segurança, tanto na liminar quanto na decisão definitiva; a natureza desta suspensão e sua legitimidade tanto ativa quanto passiva. Ao observarmos as causas nos ateremos, sob o prisma do princípio da separação de poderes, figurando como integrante do núcleo duro constitucional, para os efeitos processuais e seus desdobramentos com relação aos jurisdicionados.

Palavras-chave: Mandado de Segurança. Suspensão da Segurança. Separação de Poderes.


INTRODUÇÃO

Os remédios constitucionais estão para assegurar a eficácia dos direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988; assim sendo, mecanismos que visem impossibilitar ou dificultar o exercício destas garantias com o objetivo de obstar a concretização de tais direitos são, de per si, incompatíveis com o texto constitucional.

Ao adicionarmos a isto a verificação de que a legislação infraconstitucional busca, por uma interferência questionável, alterar o órgão natural de controle das decisões judiciais, acarretando, desta forma, infringência tanto à separação de poderes quanto ao juiz natural; a inconstitucionalidade torna-se mais tangível e evidente.


1.    PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES: REPARTIÇÃO DE COMPETÊNCIAS ESTATAIS

A divisão de funções dentro do Estado está presente em todos os países democraticamente organizados na atualidade. A repartição de competências é um dos grandes alicerces da democracia, pois sem esta, com o poder concentrado, o controle e a fiscalização que a sociedade deve exercer sobre o Estado restam mitigadas, se é que subsistem.

Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes e as divergências dos indivíduos.[2]

É, tecnicamente, um equívoco intitular tal distribuição de funções como separação de poderes de um Estado, pois, sendo este único, único é o seu poder. O que existe, na realidade, é a atribuição de competências inerentes ao Estado para diversos órgãos que lhe compõe.[3]

A “separação de poderes” é, contudo, a terminologia adotada pela Constituição Federal, que aduz, com isto, a independência, autonomia e harmonia entre os órgãos do Estado em suas funções típicas e atípicas.

Aferimos, no entanto, que, apesar de “independentes e harmônicos entre si”, como determina a Constituição Federal em seu art. 2º, os poderes legislativo, executivo e judiciário são, a todo momento, controlados uns pelos outros, seja na indicação de nomeação dos ministros dos tribunais superiores pelo Presidente da República depois de sabatina realizada pelo Senado Federal, seja pela competência originária dos tribunais para julgar ocupantes de cargos públicos de outros poderes, ou pela competência do poder legislativo de realizar o processo de impeachment do chefe de seu respectivo poder executivo.

Estes mecanismos instituem no corpo do texto constitucional o sistema dos ¨"checks and balances" ou freios e contrapesos; desta maneira, em tese, os órgãos de Estado ficam atrelados uns aos outros, controlando seus excessos e mitigando eventuais discrepâncias no exercício do poder. Todos os “poderes” integrando o sistema.[4]

Resta verificarmos o sutil limite entre o controle de um órgão em relação ao outro, o que viabiliza até a própria democracia, e a subversão do sistema com o intuito de burlar o ordenamento e influenciar indevidamente um “poder” a outro.

Ao lermos o disposto na Carta Republicana de 1988, em seu art. 99, caput, entenderemos que, como consequência lógica da “separação de poderes”, ao Poder Judiciário é assegurado sua autonomia administrativa e financeira; em contrapartida, esta autonomia é exercida através de propostas orçamentárias dos tribunais dentro dos limites estabelecidos conjuntamente com os demais poderes na lei de diretrizes orçamentárias.

Verificamos, logo, que se trata de uma norma de eficácia limitada, não produzindo efeitos plenamente sem que haja norma infraconstitucional que viabilize sua aplicação. Não bastasse isto, há, neste caso, uma margem de liberdade acentuada do legislador ordinário que tem, por conseguinte, uma influência marcante sobre os tribunais e, essencialmente, seus presidentes a quem incumbe encaminhar tal proposta, conforme o art. 99, §2º, I e II.[5]

A instituição de um controle reflexo e não instituído entre os “poderes” pode ensejar uma influência indevida de um poder em relação ao outro, principalmente quando falamos do Judiciário, que deve, em tese, ver-se livre de pressões políticas, pautando suas decisões na aplicação técnica do direito.

Se analisamos o ordenamento como um todo e, particularmente, a atual Carta da República, verificaremos que a atividade mais intimamente ligada com o controle de atos estatais é a jurisdicional. O Poder Judiciário foi incumbido pelo constituinte de 1988 a salvaguardar os direitos fundamentais. O constituinte originário também disponibilizou meios processuais (ações) para aplicar e fazer aplicar tais direitos; da mesma forma instituiu o princípio da inafastabilidade do Judiciário, sistematizou o controle de constitucionalidade dos atos do poder público, leis e atos normativos. Podemos afirmar que “o fato é que o Judiciário pode, efetivamente, dar a última palavra em quase tudo.”[6]

Os remédios constitucionais, assim definidas pela doutrina as ações constitucionais que garantem os direitos fundamentais, permitem ao Poder Judiciário, juntamente com o controle de constitucionalidade, controlar eficazmente os atos dos demais poderes. Dentre estas ações constitucionais uma se destaca tanto por sua abrangência quanto por sua aplicabilidade prática, o Mandado de Segurança.


2.    MANDADO DE SEGURANÇA

2.1.        Conceito e Finalidade.

Mandado de Segurança é

o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça.[7]

Caracteriza-se como ação impugnativa e tem, portanto, como objeto, um ato coator do Poder Público ou de particular exercendo atribuições do Poder Público, podendo ser impetrado individual ou coletivamente, segundo a determinação constitucional.[8]

Conceitua-se como direito líquido e certo aquele “[...] que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração.".[9] Verificamos, logo, que o direito a ser assegurado pelo Mandado de Segurança deve ter alcance definido, previsão no ordenamento e, necessariamente, o impetrante deve ter cumprido todos os requisitos que a lei defina como suficientes para a sua aquisição.

O constituinte originário ao instituir esta ação impugnativa no texto maior e, ainda, integra-la ao núcleo duro da Constituição, buscava proteger os indivíduos do Poder Estatal, em especial do “Poder” Legislativo que poderia, não fosse este o caso, ceder ao clamor de maiorias eventuais.

O Mandado de Segurança é o remédio constitucional mais abrangente e de maior aplicabilidade prática, tendo em vista seu caráter subsidiário em relação ao habeas corpus e ao habeas data. Este fato faz com que a ação mandamental e sua lei disciplinadora sofram uma série de problematizações, tais como a fungibilidade entre as demais, o justo receio e sua comprovação em sede de Mandado de Segurança preventivo e a distinção de controle incidental de constitucionalidade e controle de constitucionalidade em tese, a competência do órgão julgador em relação à autoridade tida como coatora e o rito procedimental previsto nas leis processuais, especialmente quanto à concessão de liminar e cabimento de recursos.

2.2.        Rito Mandamental: segurança, liminar e suspensão

O rito mandamental, que tem como norma base a supracitada, pode buscar em outros sistemas processuais remediar eventuais omissões desta, essencialmente no Código de Processo Civil; e isto é previsto expressamente na Lei do Mandado de Segurança, em seus artigos 6º, §5º; 7º, §§ 1º e 5º; e 24. Além da previsão expressa, podemos utilizar o Código de Processo Civil e os demais diplomas processuais, em sede de analogia, como forma de solucionar problemas hermenêuticos, em especial omissões.

O processamento do Mandado de Segurança se desenrola com muito mais facilidade nos tribunais superiores que têm, via de regra, jurisprudência defensiva, o que impede o conhecimento de recursos sem que estes tenham preenchido requisitos especiais de admissibilidade, tais como exaurimento das instâncias inferiores, prequestionamento, assim como repercussão geral no caso de Recurso Extraordinário dirigido ao Supremo Tribunal Federal. Essa facilidade resulta dos recursos previstos constitucionalmente como ordinários, o que, por definição, não pode exigir requisitos excepcionais de admissibilidade, regulamentados pela lei 9.868/90, que estabelece o processamento do recurso ordinário em Mandado de Segurança com as regras do processamento do Recurso de Apelação, no Código de Processo Civil, em caso de denegação da segurança.

Verificamos, portanto, que a o Mandado de Segurança denegado pode passar com extrema facilidade por muitas instâncias do Judiciário, o que pode submetê-lo a uma série de revisões em consequência desta alta devolutividade. Desta forma, por mais que haja competência originária dos tribunais de segundo grau há a possibilidade de interposição de recurso de cognição ampla ao Superior Tribunal de Justiça.

Na situação do Judiciário, sendo o processamento das demandas demasiadamente moroso e devendo observar o princípio da duração razoável do processo, resta necessário que a legislação processual disponibilize um meio para que o direito possa ser antecipado pela tutela jurisdicional até para que não ocorra seu perecimento.[10]

O meio encontrado pelo legislador foi a incorporação de um instituto processual que tem por finalidade a antecipação dos efeitos da tutela pretendida pelo jurisdicionado intitulado, no que concerne ao Mandado de Segurança, de liminar.

A liminar em Mandado de Segurança tem como requisitos os mesmos que são exigidos para concessão de tutela antecipada no Código de Processo Civil, quais sejam: a verossimilhança, o periculum in mora e o fumus boni iuris.

Em termos práticos a decisão interlocutória que concede ou não a liminar em Mandado de Segurança tem, via de regra, maiores efeitos do que a própria decisão definitiva da demanda consubstanciada na sentença, tendo em vista a urgência das demandas.

Ao analisarmos a liminar em Mandado de Segurança, devemos verificar, invariavelmente, a suspensão desta liminar prevista no art. 15 da Lei 12.016/09, seu cabimento, requisitos, legitimidade, competência para julgamento e natureza jurídica.

Pela definição conceitual a suspensão da liminar no mandado de segurança tem natureza recursal por ser um “remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna.”.[11]

Tendo em vista tal natureza, verificamos uma peculiaridade neste instituto processual com relação à legitimidade e à competência para julgamento. Com relação à legitimidade, somente pode recorrer, requerendo a suspensão da liminar ou da segurança, a autoridade tida como coatora. Não seria possível, segundo a lei, o impetrante interpor recurso análogo com a finalidade de obter efeito ativo ou, como denomina o Código de Processo Civil vigente, em seu art. 527, III, a “antecipação de tutela”. Seria, salvo melhor juízo, prejudicar o impetrante por viabilizar recurso apenas a uma das partes desconsiderando a necessidade de paridade de armas para o exercício pleno do contraditório.

Posteriormente, podemos verificar uma peculiaridade específica da suspensão da liminar em Mandado de Segurança, qual seja a competência para julgamento, sendo do “presidente do tribunal ao qual couber o conhecimento do recurso”. Verificamos, portanto, que este recurso não se confunde com os recursos de agravo de instrumento ou apelação, cabíveis de decisão interlocutória e sentença respectivamente, pois são endereçados, não ao colegiado, mas a um órgão monocrático do tribunal.


CONCLUSÃO

A suspensão assecuratória no rito mandamental da Lei 12.016/09 faz ensejar, dentre “poderes” que, em tese, deveriam ser independentes, dependência; além disto gera, como consequência lógica, a ineficácia do remédio constitucional uma vez que, devido a esta vicissitude, os advogados utilizam-se de outros meios mais morosos, todavia, neste caso, mais eficazes.

Se julgado procedente o Mandado de Segurança ou deferida sua liminar no caso em que a autoridade tida como coatora for o próprio “Poder” que tem competência para “enviar à Assembleia Legislativa projetos de lei relativos ao plano plurianual, diretrizes orçamentárias, orçamento anual, dívida pública e operações de crédito”, ou seja, o Executivo, por meio do governador do Estado, art. 47, XVII da Constituição Estadual de São Paulo; logo, o questionamento da isenção necessária para o exame técnico da matéria, livre de pressões políticas, resta prejudicado, uma vez sendo o competente para julgar a suspensão o presidente do respectivo tribunal.

Evidentemente, ao ser o processo legislativo iniciado pelo chefe do executivo e o tribunal tendo seu orçamento estipulado em “conjunto com os demais Poderes”, art. 99 da Constituição Federal, o presidente deste tribunal, a quem compete o encaminhamento da proposta, inexoravelmente sofrerá pressão do governo quando haja interesse seu na demanda, sob pena de boicote orçamentário.

A imparcialidade do juiz é condição sine qua non para a legitimação dos atos do Poder Judiciário. O presidente do tribunal pode ter a Competência para o julgamento da suspensão, mas, dependendo do caso concreto, se a autoridade tida como coatora for o governo que estrutura o orçamento do qual aquele órgão judiciário depende, pelas pressões inerentes a esta situação fática, o presidente do tribunal pode vir a não gozar de legitimidade.

Esta chamada “armadilha” do rito mandamental pode fazer com que os jurisdicionados busquem meios mais demorados e caros para a satisfação do seu direito, tais como a propositura de uma ação ordinária sucedânea do Mandado de Segurança. Isto é um contrassenso, uma vez que a Constituição, como norma fundante do ordenamento brasileiro, estabelece o Mandado de Segurança como uma garantia processual que tem por finalidade salvaguardar os indivíduos do Poder Estatal. A Lei 12.016 fere a norma constitucional quando permite que o Estado tenha mecanismos que o permitam intervir nos julgamentos do Poder Judiciário.

Há uma subversão do ordenamento quando um remédio constitucional é trocado por um meio menos benéfico ao jurisdicionado por gerar a ineficácia da medida. As garantias constitucionais, tal como é o Mandado de Segurança, não podem ter sua utilização prática restringida por uma interdependência institucional trazida pela lei. A Constituição Federal prevê o planejamento orçamentário em conjunto, e quanto a isto não há problema. Este está no dispositivo de lei que impõe a competência para julgamento à mesma autoridade responsável por encaminhar a proposta orçamentária do Judiciário, isto é inconstitucional por propiciar dependência entre “Poderes”.


REFERÊNCIAS

ABREU, João Paulo Pirôpo De. A Autonomia Financeira Do Poder Judiciário: Limites Traçados Pelo Princípio Da Independência E Harmonia Dos Poderes. Repositório UFB. P. 132.

ARAÚJO, Luiz Alberto David. NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. P. 227.

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 17ª Ed.  São Paulo: Forense. 2013 

HAMILTON, Alexander. O federalista. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003. P. 469.

MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. O espírito das leis. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural. 2000.

MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2014.

MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ‘habeas data’. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996. P. 17-18.

–––––Mandado de Segurança. 28ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005.

SANTOS, Cezar. Comentários às novas alterações ao CPC: leis n. 8950 a 8953, de 13/12/1994. Salvador: Nova Alvorada Edições, 1995.


Notas

[2] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat. O espírito das leis. Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2000.

[3] ARAÚJO, Luiz Alberto David. NUNES JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. P. 227.

[4] HAMILTON, Alexander. O federalista. Belo Horizonte: Editora Líder, 2003. P. 469.

[5] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30. ed. atual. São Paulo: Atlas, 2014. P. 11.

[6] ABREU, João Paulo Pirôpo De. A Autonomia Financeira Do Poder Judiciário: Limites Traçados Pelo Princípio Da Independência E Harmonia Dos Poderes. Repositório UFB. P. 132.

[7]   MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, ‘habeas data’. 17ª ed., São Paulo: Malheiros, 1996. P. 17-18.

[8] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 28ª ed. São Paulo: Malheiros. 2005. P. 36-37.

[9] Ibidem.

[10] SANTOS, Cezar. Comentários às novas alterações ao CPC: leis n. 8950 a 8953, de 13/12/1994. Salvador: Nova Alvorada Edições, 1995, p. 70.

[11] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 17ª Ed.  São Paulo: Forense. 2013. P. 273.


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