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O direito dos povos na realidade democrática internacional.

Com Charles Taylor, o debate sobre a justiça social

O direito dos povos na realidade democrática internacional. Com Charles Taylor, o debate sobre a justiça social

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No início dos anos noventa foi introduzida no vocabulário da teoria política e das relações internacionais o conceito de democracia cosmopolita.

1      Introdução

Das inúmeras produções filosóficas que trabalham o tema da “justiça”, há muitas que demarcaram seu território e são, das mais antigas às mais recentes, bases teóricas que norteiam o pensamento político, social, jurídico e científico da humanidade. Assim, poderíamos buscar fundamentos para nosso trabalho em vários autores do mapa histórico da filosofia, como nos jusnaturalistas (Hobbes, Locke), nos contratualistas (Rousseau), e nos modernos (Kant, Hegel). Ocorre que, sendo o nosso escopo tratar sobre a “O direito dos povos na realidade democrática internacional: com Charles Taylor o debate crítico sobre a justiça social”, optamos por estudar o pensamento de um filósofo contemporâneo, no caso John Rawls, que fundamentado-se em teorias passadas é capaz de dialogar com a realidade presente.

A busca pela compreensão do homem na sociedade em suas diversas manifestações, seu papel como indivíduo e como cidadão tem suscitado na filosofia política a análise e o debate de temas como felicidade, bem-comum, direito e justiça. John Rawls começa por construir a sua teoria estabelecendo a prioridade absoluta da justiça, defendendo a igualdade entre os homens e a possibilidade de vida em uma estrutura social democrática, capaz de minimizar as diferenças entre seus membros. The Law of Peoples (1999) representa o ápice das reflexões sobre como os povos, enquanto membros da sociedade internacional, poderiam conviver pacificamente num mundo globalizado. Rawls, tendo presente o contexto social da globalização, busca destacar na contemporaneidade, as novas formas plurais e alternativas de legitimação da justiça em âmbito internacional. Tal intento, próprio de uma filosofia política, implica em refletir e forjar um pensamento crítico emancipador, construído a partir da práxis de sociedades democráticas, capaz de viabilizar novos conceitos, categorias, representações e instituições sociais. Rawls pretende construir um projeto político capaz de reordenar as relações tradicionais entre Estado e sociedade civil, entre o universalismo ético e o relativismo cultural, entre a razão prática e a filosofia do sujeito, entre as formas convencionais de legalidade e viabilização da justiça como equidade para a sociedade internacional, promovendo a redução das desigualdades sociais inquestionáveis.

Em sua capacidade geradora, Rawls observa que a nova hipótese de esfera pública, é capaz de proporcionar diversos valores culturais, alternativos procedimentos de prática política e de acesso à justiça, projetando novos atores sociais como fonte de legitimação da constituição democrática de direitos. Assim, diante do surgimento dessa inovadora perspectiva, impõem-se repensar o poder comunitário, o retorno dos sujeitos (povos) e a produção alternativa de juridicidade, a partir do viés da pluralidade de fontes. Rawls entende que a constituição de uma cultura política pluralista, fundada nos valores do poder comunitário, está necessariamente vinculada aos critérios de uma concreta legitimidade (justiça como equidade em âmbito global). Assim, como o liberalismo político contemporâneo recorre a uma concepção política de justiça, subjacente a um consenso sobreposto entre seguidores de visões religiosas, filosóficas e morais distintas, Rawls estende sua teoria da justiça a uma sociedade dos povos que subscrevem os princípios internacionais da razão pública, tais como a autodeterminação, não-intervenção, autodefesa, direitos humanos, conduta na guerra e assistência a outros povos vivendo sob condições desfavoráveis. A esse respeito, é importante reproduzir a seguinte nota de Rawls:

A idéia da filosofia política como reconciliação deve ser invocada com cuidado. Pois a filosofia política está sempre em perigo de ser usada, de forma corrompida, como defesa de um injusto e imerecido status quo, e assim de ser ideológica no sentido de Marx. De tempos em tempos devemos perguntar-nos se justiça como equidade, ou qualquer outra concepção, é ideológica nesse sentido; e se não for, por que não? Serão as próprias idéias básicas de que se utiliza ideologias? Como podemos mostrar que não são? (RAWLS, 2004,  p. 4)

Diante dessa hipotética realidade social, Rawls dedica-se à reflexão sobre os caminhos espinhosos da equidade social e da tolerância em âmbito internacional, na tentativa de construir um projeto racional de justiça para o presente histórico da humanidade. A obra The Law of Peoples 1 apresenta as facetas da teoria política rawlsiana, demonstrando como esta se tornou paradigmática na discussão do direito internacional, da tolerância entre os povos e na formulação de possíveis respostas ao crescente problema da desigualdade social, oferecendo o enfoque crítico de um particular liberalismo político.  Nesse sentido, o trabalho de Rawls vem contribuir com a altercação na tentativa de oferecer uma posição ponderada e conciliadora sobre a possibilidade da universalização dos direitos dos homens.

A proposta rawlsiana do direito dos povos esclarece que é preciso resguardar a sociedade mundial em suas peculiaridades, mas que, ao mesmo tempo, é necessário garantir tais direitos pelo seu próprio significado moral e prático, à medida que seus destinatários (povos) sintam-se técnica, jurídica e, claro, moralmente capazes de subscrever um conjunto de regras respeitadas e garantidas entre eles, após o exercício de uma reflexão profunda sobre as mesmas. A proposta rawlsiana dá-nos um alento e uma possibilidade de pensar e concretizar direitos universais de modo viável e seguro na consideração de que compomos nós, povos, um conjunto de coletividades humanas que se relacionam, construindo, vivenciando e partilhando as próprias relações democráticas internacionais.

2.  A sociedade internacional como sistema equitativo de cooperação

Uma das idéias fundamentais da justiça como equidade é a de que a sociedade é um “sistema equitativo de cooperação” entre seus membros. Para Rawls, chegamos a um ponto da história humana em que, felizmente, já não é mais possível legitimar a escravidão. Uma sociedade democrática justa então, só pode ser uma sociedade de pessoas que estão, certamente, situadas de forma equitativa umas em relação às outras (cidadania igual), respeitando um sistema concebido para promover o bem comum aos seu membros. A idéia de Rawls sobre sociedade como sistema de cooperação equânime, sugere: “[...] uma associação mais ou menos auto-suficiente de pessoas que, em suas relações mútuas, reconhecem certas regras de conduta como obrigatórias e que, na maioria das vezes, agem de acordo com elas” (RAWLS, 2002, p. 4) 2. Sendo assim, Rawls compreende que embora uma sociedade seja um empreendimento cooperativo visando vantagens mútuas, ela é tipicamente marcada por um conflito, bem como por uma identidade de interesses. Nesse sentido, a estrutura básica é considerada, genericamente, como uma união de pessoas vinculadas por alguma forma de consenso, que tem sua estabilidade nas regras públicas obrigatórias (ordem pública). Pode-se dizer também, que essas regras (que atribuem deveres e direitos) oferecem alguma forma de vantagem mútua para os seus integrantes, e que apesar disso, nem sempre evitam o conflito entre diferentes concepções do justo. E para organizar essa primeira idéia intuitiva, Rawls utiliza a concepção de sociedade como sistema equitativo de cooperação (society as a fair system of cooperation), em que as pessoas estão dispostas a cooperar, quando reconhecem publicamente os mesmos princípios de justiça 3.

Vê-se em suma, que os termos da cooperação social, ao serem elaborados a partir da idéia proposta por Rawls, não exigem a renúncia do próprio bem, para satisfazer um outro que seria superior. Tampouco pretendem mediar “egoísmos”, ou mesmo dividirem bens simetricamente para a satisfação de necessidades básicas. Ao contrário, a idéia de cooperação pode ser entendida como mediadora entre as exigências altruístas (imparciais) e as individualistas (benefício mútuo). Com ela, preserva-se o juízo de bem racional da pessoa, que está vinculada à auto-estima e à possibilidade de se afirmar e realizar um projeto de vida tanto no plano individual, quanto no plano coletivo (das associações, comunidades e relações familiares). Portanto, conceber a idéia central de sociedade como um sistema equitativo de cooperação, significa dizer que se pretende oferecer uma visão coerente, capaz de ordenar as principais instituições sociais, cujos termos são estabelecidos por cidadãos em que a participação coletiva é tida como mutuamente vantajosa (cooperação) ao garantir o bem racional (concepção de bem) e o bem-comum razoável (sociedade bem-ordenada), não estando, portanto, sujeita à negociação política ou ao cálculo de interesse social. Diz Rawls: “Os termos equitativos da cooperação social são termos a partir dos quais desejamos, enquanto pessoas iguais, cooperar de boa-fé com todos os membros da sociedade durante toda a nossa vida, eis só com base no respeito mútuo” (RAWLS, 2002, p. 5).

O problema da justiça se torna então, o problema da definição dos termos de cooperação entre cidadãos assim concebidos. Quem vai definir o modo que será estruturado o sistema político e econômico, bem como o modo pelo qual se darão as relações humanas na sociedade democrática internacional, serão os próprios participantes numa situação equitativa (cidadania igual). Esses cidadãos, escolherão os princípios básicos de justiça que regerão a estrutura básica da sociedade e que, portanto, estruturarão a vida social. Tais princípios regularão o sistema político e econômico, especificarão direitos e deveres básicos  que  devem  er garantidos pelas instituições políticas e sociais, e  serão responsáveis por regrar a distribuição dos benefícios econômicos. Em outras palavras, os princípios de justiça (construídos por todos os membros) especificam os termos de cooperação social, fornecendo uma resposta para a questão da integração entre liberdade e igualdade, questão fundamental para a filosofia política no tocante a sociedade democrática, segundo o entendimento de Rawls. Em Justiça como Equidade: Uma Reformulação, Rawls diz: 

[...] a função dos princípios de justiça (como parte de uma concepção política de justiça) é definir os termos equitativos de cooperação social. Esses princípios especificam os direitos e os deveres básicos, que devem ser garantidos pelas principais instituições políticas e sociais, regulam a divisão dos benefícios provenientes da cooperação social e distribuir encargos necessários para mantê-la. ( RAWLS, 2003, p.10)

Portanto, se percebe que o objetivo de Rawls é apresentar uma concepção de justiça que pode ser compartilhada pelos cidadãos como base em um acordo político racional, bem estruturado e sobretudo voluntário. Sua teoria da justiça expressa a razão política compartilhada e pública de uma sociedade democrática internacional. Nesse cenário idealizato por Rawls, o sistema equatitativo de cooperaçao ganha corpo, unificando as suas condiçoes necessárias de existência na concretizaçao da paz democrática em âmbito internacional e edificando um novo conceito de justiça equa no direito dos povos, motivo pelo qual traz à tona vários questionamentos e críticas sobre sua imprecisão, tanto no que diz respeito ao seu teor exclusivamente moral ou efetivamente político, quanto a sua questionável aplicação na realidade da sociedade internacional democrática. The Law of Peoples 4 reconduz a filosofia política e  a sociedade  moderna ao resgate de um tema tão controverso quanto importante: a justiça equitativa na sociedade democrática internacional.

3. Charles Taylor e o debate crítico sobre o direito dos povos

Contribuições significativas para a retomada do discurso da justiça já existem naturalmente há quase um decênio. Sobretudo, à teoria da justiça de John Rawls se associou um debate de tal modo intenso, que a discussão científico-filosófica da justiça aparece novamente como óbvia. O novo discurso da justiça na realidade democrática internacional, revela condições importantes que devem ser levantadas para uma discussão que prometa sucesso, pois o conteúdo é interdisciplinar, se servindo dos meios de argumentação mais modernos, como a teoria da decisão e do jogo, e graças a estes instrumentos teóricos, fica isenta, em grande parte, de tons sub-repticiamente moralizadores. The Law of Peoples é considerada uma obra contemporânea altamente crítica, por ser o ponto de partida de diversos e contraditórios posicionamentos filosóficos, políticos e jurídicos. Para seus críticos, representa o resultado não eficaz da idéa de justiça como equidade na perspectiva internacional.

Uma visão crítica de relevância que se insere neste problema (indivíduo/comunidade), próxima do comunitarismo, pertence ao filósofo Charles Taylor. Taylor em sua obra The Ethics of Authenticity de 1989, nota que a controvérsia estática e física onde as gerações humanas ocupam um lugar determinado na sociedade, marco divisório entre liberais/comunitaristas não tem apenas um lado normativo, mas também ontológico. Segundo Taylor, não se pode elaborar uma concepção política de justiça sem passar pela sutileza prévia de uma reflexão ontológica sobre a condição do homem e o seu estar em sociedade, não porque Taylor considere que as questões morais e políticas se reduzem a questões ontológicas, mas porque a condição ontológica do homem delimita o campo de posição que é possível adotar no plano normativo das teorias políticas. Para Taylor, a sociedade democrática atual foi contaminada por três males éticos: “[...] o “individualismo”, o “desencanto do mundo”, consequência de uma racionalidade tecnológica e instrumental e, por último, a “perda da liberdade” (TAYLOR, 1989, p. 126). Portanto, para o mestre, tal individualismo moral vigente nas sociedades modernas teve como efeitos civilizatórios, por um lado, a recusa e a inviabilização de qualquer ordem cósmica e, por outro, um egoísmo social crescente a nível mundial mostrando que ninguém está disposto a sacrificar-se em nome de valores presumivelmente sagrados ou transcendentes. Diretamente associado a este aspecto, um modo de ver economicista, científico, calculista proliferou no domínio das relações humanas, favorecendo a idéia do outro como meio na incansável busca de um fim particular. Esta utilização excessiva ou mesmo exclusiva da razão instrumental, contribui para que tudo seja definido por critérios de eficiência e de lucro, contando com uma lógica de meios e de fins, numa tentativa de rentabilização do esforço e de maximização do proveito, onde os indivíduos constituem a própria matéria da ação.

E como consequência dos dois primeiros males, tem-se que a perda da liberdade verifica-se não só ao nível individual, mas também no plano coletivo ou político, pelo constrangimento da técnica, cuja dinâmica própria possui um elemento impositivo, ou seja, o agir comum, que encontra-se inevitávelmente limitado e determinado. Nesse caso, todas as possíveis ações são obrigadas a passar pelo filtro da racionalidade tecnológica, que imprime a sua marca na própria potencialidade do agir. Assim sendo, o individualismo tira a força da vida em comunidade, fato que produz um desinteresse pelas questões do político e da liberdade. Segundo Taylor, “[...] preocupamo-nos cada vez menos com a participação pública e ficamos “em nossa casa” a desfrutar dos prazeres da vida privada, principalmente num tempo em que o Estado nos fornece os meios para tanto” (TAYLOR, 1989, p. 136). A definição de ética trabalhada por Taylor não se enquadra no sistema bipolar neo-aristotélicos versus neo-kantianos, mas opera uma síntese de diferentes elementos das duas tradições antagônicas. Tal como Aristóteles, Taylor não define uma norma, mas um ideal de vida. Partindo de Kant prolonga uma tentativa de inversão da fundamentação biológica-metafísica da ética. O ideal de autenticidade assim, define-se por valores como a sinceridade e a ingenuinidade pessoal do indivíduo para consigo mesmo e para com os demais membros da sociedade. O caráter dialógico da existência, essencial à cultura democrática, exige que do outro advenha o reconhecimento e a confirmação da identidade individual, o que confirma a necessidade da participação de todos os membros da sociedade na concretização de um mundo globalizado justo e democrático.

Para Taylor, é importante a relação e o reconhecimento intersubjetivo para a construção da identidade de cada cidadão, visto que o julgamento de valores, assim como o valor da  própria existência (individualmente observada) só tem sentido enquanto objeto de reconhecimento e de confirmação social. The Ethics of Authenticity 5 não aspira à negação do individualismo, pelo contrário, nasce da pressuposição da  livre escolha de  cada  ser  ou indivíduo como resposta e resolução das inevitáveis doenças modernas. O mestre defende que John Rawls teria ignorado a ligação natural do indivíduo com a comunidade em que vive e com os “outros membros”, fato extremamente prejudicial a sua teoria de justiça na realidade da sociedade internacional democrática. Taylor considera que o liberalismo de hoje, produzido e edificado a partir da suposta igualdade e liberdade entre os homens nao é capaz de garantir o bem social subordinado as normas jurídicas do Direito Positivo, ou seja, tais regra não são suficientes para assegurar que os direitos liberais sejam conservados. Taylor afirma que a proposta de Rawls em The Law of Peoples não oferece meios de superar seus próprios limites, em virtude da completa ausência do historicismo em sua estrutura delimitadora (TAYLOR, 1989, p. 136). Pois, John Rawls não teria providenciado uma análise do homem como indivíduo social, ao contrário, procurou fundamentar sua teoria de justiça internacional a partir da posição original, na qual se presume a igualdade entre os seres humanos como organimo coletivo. Segundo Taylor, a argumentação rawlsiana demostra sua incapacidade na tentativa de unificar a fisolofia antiga e moderna, justamente por não proporcionar uma prévia reflexão ontológica sobre a condição do homem e do seu estar em sociedade, para só então pretender construir uma verdadeira teoria de justiça destinada à sociedade democrática internacinal.

Respondendo às criticas, Rawls procura evidenciar que na sociedade globalizada de hoje, é importante pensar a política como uma escolha, pensar a política como forma de desenvolvimento pessoal e coletivo. Em The Law of Peoples Rawls substitui o pensamento único pelo pensamento pluralista, procurando adptar a teoria da justiça à realidade mundial com o objetivo de manter as mesmas categorias de base. Rawls evidência sua teoria de justiça como nova proposta para a sociedade dos povos, porém, não finaliza o dircurso sobre o tema, ao contrário, partindo do debate crítico e do eterno anseio de desenvolvimento de uma justiça equa para sociedade mundial comtemporânea, cria o direito dos povos como alternativa de estruturação da sociedade democrática internacional.

4. Urgência do direito dos povos hoje

Propomos aqui um exercício de pensar o que são as relações internacionais e propomos fazê-lo do ponto de vista do Direito Internacional, de modo especial, do direito dos povos como objeto da filosofia política rawlsiana. Compreendemos haver um problema ainda não resolvido sobre o referido tema, mas não pretendemos resolvê-lo aqui, senão problematizar acerca dele. A questão maior de que trata esse artigo, diz respeito aos direitos dos povos como uma derivação dos direitos inerentes à própria humanidade e dos direitos humanos elaborados em contextos sociais espaço-temporalmente definidos. O debate sobre o universal e o particular concernente aos direitos dos povos é, assim, centro de nossa atenção e nele a discussão dessas categorias como constructos do real e do ideal. O debate sobre os direitos dos povos nas relações internacionais e, de modo especial, a sua universalização como sistema democrático, encontra no cosmopolitismo x comunitarismo sua expressão maior de problematização e de tentativa de respostas. Esse debate, porém, eventualmente, conduz a discussão sobre tais direitos a uma situação inconclusiva em função do nível de auto-exclusão que as duas correntes de pensamento impõem-se mutuamente. Sendo assim, a teoria normativa de relações internacionais propõe-se, exatamente, a fornecer possibilidades teóricas sobre o respectivo debate, mesmo que sem alcançar uma resposta definitiva para essa problemática.

Nessa perspectiva, o liberalismo de John Rawls é capaz de criar uma nova alternativa para a realidade global. E o mérito do direito dos povos, como tema em discussão, depende do fato de estar estreimamente ligado aos problemas fundamentais da atualidade: justiça, democracia, e paz. O reconhecimento e a proteção desses direitos são à base das constituições democráticas na filosofia política de Rawls, onde a paz é o pressuposto necessário para a proteção efetiva dos direitos dos homens em cada Estado e no sistema internacional. Para Rawls, a sociedade de hoje, prejudicada com os problemas da globalização, está cada vez mais convencida de que o ideal da paz perpétua só pode ser perseguido através de uma democratização progressiva do sistema internacional e que essa democratização não pode estar separada da gradual e cada vez mais efetiva proteção dos direitos dos homens (povos) acima de cada um dos Estados. Direitos dos homens (direito dos povos), democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico, pois sem tais direitos reconhecidos e efetivamente protegidos não existe democracia. E sem democracia não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos que surgem entre os indivíduos (povos), entre grupos e entre as grandes coletividades tradicionalmente indóceis e tendencialmente autocráticas, que são os Estados. Rawls pretende oferecer a todas as os membros da sociedade internacional, através de sua proposta de reforma, os princípios de um regime constitucional democrático. Em decorrência de seus trabalhos seminais em teoria política nos anos setenta, oitenta e noventa, contribui de maneira decisiva para corroborar uma teoria da democracia capaz de responder aos desafios da sociedade internacional atual, tornando a globalização aceitável e até mesmo defensável na medida, apenas, em que coincide com os princípios  democráticos.

Conclusão

Existem dificuldades especiais de se trabalhar com um filósofo contemporâneo como John Rawls. Corre-se o risco de rever o trabalho interpretativo à luz dos textos mais recentes. Pode-se também decidir em efetuar um corte e deliberadamente deixar de fora algumas obras do autor. Por outro lado, incorporá-las significaria alongar o artigo, talvez, desnecessariamente. Assim consideramos, que a análise aqui apresentada sobre O direito do povos na realidade democrática internacional: com Charles Taylor o debate crítico sobre a justiça social, serve como guia à leitura do texto de 1999 e à compreensão da obra como um todo. De maneira geral, procuramos relacionar o plano da justiça global presente em The Law of Peoples, esperando ter demonstrado que a teoria de Rawls, ainda que imprecisa (et pour cause) quando se estende ao plano da sociedade democrática internacional, fornece importantes subsídios para a busca de entendimento e tolerância entre os homens. Sendo necessariamente imprecisa, pois uma precisão maior poderia prejudicar o objetivo de se alcançar um overlapping consensus (consenso por justaposição), que é o objetivo último, prático e político a que Rawls se propõe.

Não podemos dizer que The Law of Peoples é um manual de estruturação social e política a ser implementado na sociedade internacional, porém, aceitamos que ter ideal é melhor que recusá-lo e viver numa apatia contagiante. É claro que a apresentação aqui realizada dos conceitos de justiça como equidade, paz, democracia e direito dos povos foram apenas parciais, assim mesmo, almejamos ter esclarecido a relevância e a pertinência do tema para se pensar o atual contexto mundial, no qual a justiça está tão seriamente ameaçada.

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