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Liberdade religiosa e o espaço público

Liberdade religiosa e o espaço público

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Indagamos acerca das formas como se dão a influência da religião nas repartições públicas, sejam elas pela existência de símbolos religiosos em seus prédios ou a educação religiosa em escolas públicas

3. A LIBERDADE RELIGIOSA E O ESPAÇO PÚBLICO

A existência de símbolos religiosos em repartições governamentais, a educação religiosa nas escolas públicas, além da instituição de feriados de cunho religioso sempre foram motivos de discussão acerca do caráter laico do Estado.

Neste capítulo final, aborda-se a questão referente as problemáticas acima estabelecidas, realizando posteriormente uma análise de direito comparado com casos semelhantes ocorridos na Alemanha.

3.1 Da inconstitucionalidade da existência de símbolos religiosos nos espaços públicos nacionais

O Estado brasileiro, assim como todas as demais sociedades que se têm registros históricos, é notável a observância de que, de uma forma ou outra, a religião sempre esteve presente na construção e formação dessas sociedades.

A formação desses estados, por ventura das convicções pessoais de seus cidadãos, acabou por influenciar e até determinar diversas normas e leis com base em fundamentos religiosos.

Com a quebra da hegemonia católica, no caso do Brasil, como foi demonstrado no presente projeto, as religiões de menor respaldo, ou seja, minoritárias, começaram a reclamar por igualdade e tolerância para com os não católicos. Foi por meio dessa luta por condições iguais e um posicionamento neutro do Estado que se estabeleceu o princípio da liberdade religiosa, que se baseia na compreensão e respeito da fé alheia.

Apesar de o Brasil, historicamente ter uma relação bastante pessoal com o catolicismo, com o estabelecimento da constituição de 1891 até a constituição atual, o Estado se desmembrou da religião, a fim de se tornar mais igualitário. Apesar desse distanciamento da religião, o Estado brasileiro ainda não se desprendeu totalmente da crença, sobrando ainda muitos resquícios do catolicismo que acabam por ferir o caráter neutro do Estado.

São esses vestígios de um passado religioso da nação que tem levantado inúmeras discussões acerca de questões relacionadas violação do Estado Laico, tendo, talvez, como a polêmica mais famosa esteja na discussão a cerca da existência de crucifixos como emblemas em prédios públicos.

Com a finalidade de dar uma melhor continuação à questão proposta, é necessária uma breve análise da representatividade do crucifixo no Cristianismo.

O crucifixo é um símbolo religioso referente à religião Cristã, que tem como finalidade representar a veneração a Jesus Cristo após a sua crucificação, dessa forma, é impossível ver uma cruz e não associa-la aos princípios e valores cristãos, que reproduzem a história de vida de Jesus Cristo até o momento de sua morte, que é á base de toda a religião Católica Apostólica Romana.

Em sentido figurado e teológico, a cruz é o resumo da verdadeira vida cristã, enquanto essa, em desapego, humilhação e sofrimentos deve ser uma imitação dos sofrimentos e da cruz de Jesus. (...) Assim, a cruz é meio e símbolo da união moral e mística do homem com Cristo.[i]

Portanto, fica evidente essa ligação histórica da morte de Jesus com a cruz e todas as simbologias que ela representa.

Na Constituição Federal, em seu artigo 13, §1º,ficam determinados os símbolos oficiais da Republica Federativa do Brasil:

Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil.

§ 1º - São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais. (BRASIL, 1988).

Considerando o seu notável valor, esses símbolos apenas podem ser modificados por meio de uma Emenda Constitucional.

Dessa forma, por tamanha a importância dos símbolos que representam no nosso país, somado ao seu caráter laico, mesmo considerando o seus aspectos culturais, seria realmente constitucional, ou até mesmo necessário á existência de crucifixos em prédios públicos?

Foi levando em consideração esses questionamentos, que no ano de 2007, Daniel Sottomaioro, um engenheiro e presidente da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, ajuizou quatro reclamações de medida de ordem, para que houvesse a remoção de crucifixos que estavam fincados nos Plenários e salas dos Tribunais de Justiça, de Minas Gerais, Santa Catarina, Ceará e TRF 4° região.

Sua fundamentação para a reclamação teve como base o artigo 19 da Constituição Federal:

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes, relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;

II - recusar fé aos documentos públicos;

III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.

A existência de uma cruz em uma repartição pública não significaria apenas a presença de religiões, mas na verdade única e exclusivamente a religião cristã, ou seja, a simbologia referente à Igreja Católica Apostólica Romana.

Acerca do ajuizamento da liminar, à juíza da 3ª Vara Cível Federal do Estado de São Paulo, Maria Lúcia Lencastre Ursaia, acatou a decisão de que a existência de crucifixos deveria ser mantida, recusando assim a petição oferecida pelo Ministério Público Federal.

A decisão da juíza foi argumentada com a afirmação de que o Estado laico é um Estado neutro, e não um Estado anti religioso, sendo assim, por ter garantido a liberdade de crença e de culto, como também defender a tolerância, o seu caráter laico não poderá manifestar a favor da retirada dos mesmos.

Essa decisão seguida por essa justificativa da juíza se dá de forma totalmente arbitrária do significado de laico.

A presença de um crucifixo em um prédio público não gera ódio para os não cristãos, mas sim uma reação ao favoritismo da mesma.

A questão a ser abordada é que não existe nenhum respaldo constitucional para a existência deles ali, além do mais, não está representando todas as religiões, mas sim apenas uma única.

Portanto, a indagação se baseia na reclamação de que se mesmo que exista respaldo constitucional para o estabelecimento de um símbolo religioso em um prédio público, considerando o princípio da igualdade, além da liberdade de crença e de culto, seria necessária a existência de não apenas do crucifixo, mas sim de todos os símbolos religiosos referentes a todas as religiões, assim como os símbolos representativos do ateísmo e agnosticismo.

Outra falha na decisão da juíza foi em relação a dizer que o Brasil teve como formação cultural baseada no cristianismo.

A falha dessa afirmação está no fato de que o Brasil foi formado não apenas por uma, mas por dezenas de outras religiões, a começar pelos indígenas, que foram catequizados a força no processo de colonização, além dos escravos de maioria africana que possuíam suas próprias religiões.

Ainda que sejam considerados objetos representativos de parte da cultura brasileira, o Conselho Nacional de Justiça já manifestou a cerca do assunto.

O Ministro relator Paulo Lôbo teve grande importância, apresentando:

Apresentou o voto a favor da retirada dos símbolos das dependências do Judiciário. Segundo o relator, o Estado laico deve separar privado de público. O relator defendeu que no âmbito privado cabem as demonstrações pessoais como o uso de símbolos religiosos. O que não deve ocorrer no âmbito público. A maioria do plenário manteve a decisão contrária a retirada dos símbolos religiosos, concluindo o julgamento dos procedimentos. (PAULO LOBO, 2007)

O seu voto teve como fundamento os julgamentos ocorridos na Corte Constitucional Alemã e da Suprema Corte dos Estados Unidos, ambas futuramente a serem analisadas nesse projeto, com a propositura de que ocorresse uma audiência pública para uma melhor apreciação para tomada de deliberação do Plenário.

3.2 Da instituição de educação religiosa nas escolas públicas brasileiras

O segundo questionamento acerca da influência do cristianismo na constituição se refere á questão do ensino religioso em escolas públicas.

Em seu artigo 210, § 1, fica determinado:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

§ 1.º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

A contestação não se baseia se é constitucional ou não a existência desse ensino, pois ele já é estabelecido, mas sim a forma como ele é apresentado.

Faria sentido a um Estado Secular, permitir que as suas escolas públicas, ofertem disciplinas religiosa apenas a determinada religião específica?

Como é sabido pela maioria ou especulado pelos que não possuem informações acerca da problemática, a oferta como disciplina facultativa que será ordenada nos horários normais das escolas públicas, apesar de não possuir referência estipulada, é exclusiva a religião Católica Apostólica Romana, salvo algumas exceções, que são outras religiões, ramificadas ao cristianismo.

Mas o povo brasileiro não é formado por uma religião homogênea, e sim pela miscigenação de outras dezenas, como já foi dito anteriormente.

Dessa forma, caso o Estado conceda á escola pública um espaço nos seus horários para a educação religiosa, nada mais justo que essa disposição de tempo se dê não apenas ao cristianismo, mas sim as demais religiões.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil defende essa cessão de tempo e espaço para a educação religiosa, mas essa defesa iria permanecer caso determinado município brasileiro, ao invés de disponibilizar o catolicismo como disciplina, resolvesse por ofertar o espiritismo, ou o Candomblé?

Além do mais, considerando o imenso preconceito existente com os nãos cristãos, essa disciplina de cunho "facultativo" acaba por se tornar obrigatória por questões sociais dentro da escola.

Muitas pessoas são discriminadas por possuírem uma religião diferente, e nas escolas não seria diferente, talvez até pior, tendo em vista que as crianças ainda são seres humanos em formação, sendo que uma criança que venha a frequentar uma disciplina religiosa diversa, poderia facilmente virar chacota, motivo de piada, porém esse assunto não será aprofundado por englobar também outras problemáticas referentes.

Portanto, para que ocorra de fato a laicidade do Estado referente ao ensino religioso em escolas públicas, como está disposto em texto constitucional, é necessário que todas as demais religiões não vinculadas ao cristianismo sejam ofertadas.

3.3 Da inconstitucionalidade dos feriados religiosos

Outro assunto polêmico referente ao tema se dá com a instituição de feriados nacionais religiosos.

Na data de 12 de outubro, os brasileiros comemorarão o "Dia da Padroeira do Brasil", mas considerando o que já foi exposto nesse trabalho, tendo em vista a diversidade de culturas e religiões, poderia se afirmar que toda a população brasileira, segundo seus princípios, irá comemorar essa data?

A discussão se dá seguindo dois caminhos, o primeiro é o de cunho religioso, e o segundo de questão econômica.

Levantando a primeira propositura, será que é realmente justo um espírita ou qualquer outro membro de outra religião, ser obrigado a comemorar o natal?

A importância do feriado é retratar a identidade cultural do seu povo, porém, todos os feriados religiosos no Brasil são baseados nos valores cristãos.

Considerando que todos os cidadãos são iguais, além de possuírem o direito de manifestar sua fé e estabelecer cultos, a utilização do contexto histórico cultural não se justifica a existência dos mesmos.

O Brasil possui um total de 11 feriados nacionais, sendo eles:

Confraternização universal, carnaval, paixão de Cristo, Tiradentes, dia do trabalho, Corpus Christi, independência do Brasil, nossa senhora aparecida, finados, proclamação da república, natal.

Se o Estado é neutro, não devendo representar nenhuma religião, porque um comerciante judeu seria obrigado a fechar as portas do seu estabelecimento comercial?

Cada dia não trabalhado não é apenas prejuízo para o indivíduo, mas sim para todo país, com influência direta na redução do PIB[1].

Dessa forma, a reclamação não se baseia apenas na existência de múltiplos feriados nacionais, mas também no aumento dessa lista de feriados com a adição dos de representatividade religiosa.

3.4 Análise de precedentes judiciais de direito comparado

O Ministro Gilmar Ferreira Mendes, em sua obra hermenêutica constitucional e Direitos Fundamentais (2002, p. 191) analisou alguns casos ocorridos na Alemanha no que se refere às liberdades de crença e culto e a possível violação destes direitos humanos e fundamentais pelo próprio Estado.

A ação desse caso se passou na cidade de Baviera, no ano de 1995, quando os pais de alunos de uma determinada escola pública contra a existência de um crucifixo em cima do quadro negro.

A presença desse crucifixo se dava por meio de um ato normativo escolar, no caso o § 13 I 3, apelidado de Código da Cruz, determinando que todas as salas de aula deveriam possuir um crucifixo.

Através de toda a análise que já foi feita no presente projeto, compreende-se que o crucifixo representa a Igreja Católica Apostólica Romana, sendo o crucifixo formado por uma cruz e o corpo de Jesus Cristo.

A princípio da discussão, foi realizado um acordo, acordo este que determinava que o crucifixo não ficaria mais acima do quadro negro, mas sim para próximo á porta, e tendo o seu tamanho reduzido, além de não mais apresentar o corpo de Jesus.

Essa decisão determinada não teve um prazo muito durável, e prontamente, os país dos alunos ajuizaram uma ação no Tribunal Administrativo da Baviera, requerendo a remoção permanente bolo de todas as salas, tendo como resultado o indeferimento do pedido.

Por ventura desse resultado, os pais ajuizaram uma Reclamação Constitucional acerca do Tribunal Administrativo de Baviera, contrapondo-se ao Código da Cruz.

A reclamação foi fundamentada de acordo com base nos artigos 2°, 4°, 6° e 19°:

Art. 2 parágrafo I – Todos têm o direito ao livre desenvolvimento de sua  personalidade, desde que não violem os direitos de outros e não atentem contra a ordem constitucional ou a lei moral.

Art. 4 parágrafo I – A liberdade de crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis.

Art. 6 parágrafo II – A assistência aos filhos e sua educação são direito natural dos pais e sua obrigação primordial. Sobre a sua ação vela a comunidade pública.

Art. 19 parágrafo IV – Toda pessoa cujos direitos forem violados pelo poder  público poderá recorrer à via judicial. Se não se justificar outra jurisdição, a via judicial será a dos tribunais ordinários. Mantém-se inalterado o art. 10 § II, segunda frase.

A deliberação do caso se deu por voto da maioria, da Corte Constituição, com votação de 5 à favor e 3 contra, determinando que o Código da Cruz era de fato inconstitucional, sendo contrária a Lei Fundamental Alemã.

De acordo com os juízes que votaram a favor da ação:

A decisão por ter ou não ter uma crença é, assim, assunto do indivíduo, e não do Estado. O Estado não pode nem lhe prescrever nem lhe proibir uma crença ou uma religião [...] [tornando problemática] uma situação criada pelo Estado, na qual o indivíduo é submetido, sem liberdade de escolha, à influência de uma determinada crença, aos atos nos quais esta se manifesta, e aos símbolos por meio dos quais ela se apresenta. [...] O Estado, no qual convivem seguidores de convicções religiosas e ideológicas diferentes ou mesmo opostas, apenas pode assegurar suas coexistências pacíficas quando ele mesmo se mantém neutro nas questões religiosas (Art. 4 I GG).

Percebe-se a fundamentação do voto com o reforçamento do caráter laico do Estado, além das garantias fundamentais do direito de crença e culto individual, sendo assim, o Estado não devendo oferecer vantagens a nenhuma, apenas propagar a coexistência pacífica entre elas.

Aliada à obrigação escolar geral, as cruzes nas salas de aula fazem com que os estudantes, durante as aulas, em razão da vontade do Estado, [sempre] se deparem com este símbolo, sem que tenham a possibilidade de evitar a confrontação com um símbolo [de religião da qual não são adeptos], sendo obrigados destar te a estudar [por assim dizer] ‘sob a cruz’. Por isso, a colocação de cruzes nas salas de aula é diferente da confrontação frequente no dia a dia com símbolos religiosos das mais variadas orientações religiosas.[2]

Concluindo, a Suprema Corte estabelece:

A cruz é símbolo de uma determinada convicção religiosa e não apenas uma expressão da cultura ocidental co-marcada pelo Cristianismo. [...] [ela] representa, como desde sempre, um símbolo religioso específico do Cristianismo. Ela é exatamente seu símbolo por excelência.[3]

Com esse posicionamento, fica evidente que a existência de um símbolo religioso que represente uma única religião se configura como favoritismo por parte do Estado, considerando que o crucifixo apenas representa o cristianismo.

A Corte Constitucional Alemã estabeleceu no caso, a relação do crucifixo, mais com um símbolo realmente ligado a religião Católica, do que a um aspecto cultural.


[1] Produto Interno bruto

[2] Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional alemão, p. 371. Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/libro.htm?l=2241. Acessado em 14 de junho de 2014

[3] Cinquenta anos de jurisprudência do tribunal constitucional alemão, p. 372. Disponível em: http://www.bibliojuridica.org/libros/libro.htm?l=2241. Acessado em 14 de junho de 2012




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