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Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva

Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva

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Sumário: Introdução; I- Duas visões do Direito, 1.Roberto Lyra Filho, A distinção entre lei e Direito, Modelos de ideologia jurídica, Direito e sociologia, 2.Hans Kelsen, Questões preliminares, Natureza e sociedade, O homem, A ciência, Direito, 3.Críticas a Kelsen, Os objetivos de Hans Kelsen; II- Teoria pura no Direito, Dinâmica jurídica, 1.A norma fundamental, 2. A estrutura escalonada da ordem jurídica, Estática jurídica, Norma, Direito reflexo ou direito subjetivo, Personalidade jurídica, organicidade, relação jurídica, A teoria pura do Direito e a sociedade, A teoria pura do Direito e a sociologia, A teoria pura do Direito como sociologia, III-Kelsen e Weber, Metodologia da sociologia compreensiva, Ação, Compreensão, Ação racional, Determinação causal do comportamento humano, A apreensão da conexão de sentido, O objeto de estudo da sociologia, Kelsen e Weber, A legitimação da ordem, A " teoria pura da sociedade", Dinâmica "social", Estática " social", Uma teoria da ação, A ação social, Relação social, O costume e as ordens sociais, Conclusão, Bibliografia


Introdução

            A sociologia do Direito poderia ser descrita como um ramo do conhecimento que visa explicar o direito recorrendo a fatores sociais e conceitos criados pela sociologia. Esta afirmação traz alguns pressupostos que podem ser questionados e que convém expor. Em primeiro lugar admite-se uma relação causal entre direito e sociedade. É certo que isto não é um ponto pacífico, uma vez que é de praxe questionar-se a viabilidade de qualquer explicação causal em sociologia, no entanto, admitindo-se que uma relação causal pode ser expressa em termos de probabilidade ou de condicionamentos, poderíamos dizer que a sociologia busca, na sociedade, as causas ou condicionamentos do Direito. Em segundo lugar aceitam-se conceitos de Direito e Sociedade. Como Direito encontramos variantes que se situam entre o Direito como um conjunto de normas e o Direito como justiça. Como sociedade entendem-se fatos coletivos e amplos, envolvendo especialmente as relações econômicas e hierárquicas decorrentes da distribuição de renda, poder e conhecimento.

            Encontra-se na obra de Hans Kelsen um conceito bastante diferente de sociedade e uma visão de ciência sui generis, que sugerem que não só o direito não "emerge", "decorre" ou "é determinado" pela sociedade, como qualquer relação de causa e efeito. O Direito é entendido como originado da suposição ou aceitação da objetividade de sentidos subjetivos e as ciências sociais como descrição de imputações.

            Há ainda uma forma de sociologia que não estabelece leis gerais. A sociologia compreensiva de Max Weber está preocupada com o estabelecimento do que chama de "conexões de sentido" capazes de tornar passíveis de compreensão as ações sociais.

            Primeiramente tomarei a obra de Roberto Lyra Filho, ex-professor da Universidade de Brasília. Sua obra será aqui tomada como representativa de uma corrente de pensamento ou conjunto de idéias (mais do que simplesmente por sua obra em si) com as quais pretendo lidar.

            Em seguida apresentarei algumas idéias básicas da teoria Pura de Direito, explicitando o que o autor entende por Direito, Sociedade e Ciência. E, depois, o sumo de sua teoria naquilo que o autor chama de "Estática Jurídica" ou "Dinâmica Jurídica".

            Por fim tomarei o pensamento weberiano, buscando o que o autor entende por sociologia e como esta busca compreender e explicar a ação humana. Será mostrado que o pensamento weberiano é compatível com a Teoria Pura Direito.

            Entendo que a obra de Hans Kelsen ultrapassa uma teoria do Direito e assume o caráter de uma teoria da sociedade. Quando afirmo isto pretendo que o modo como o autor define o Direito, a Sociedade e a Ciência implicam em uma contradição com parte do pensamento sociológico e uma afinidade com uma outra parte, e que sua teoria do Direito é uma teoria de uma ordem normativa inserida em um conjunto de ordens normativas que seria a sociedade. Kelsen teoria as ordens normativas em geral, ou seja, a sociedade, e não apenas o Direito. Por outro lado, o conceito de ação social weberiano e o valor explicativo atribuído ao sentido da ação são o componente principal de sua teoria e constituem exatamente aquilo que permite uma aproximação com o pensamento de Kelsen.

            Desta forma, pretendo mostrar que a Teoria Pura do Direito é também uma teoria da Sociedade e que ela carece de um sociologia da ação, oferecida pela sociologia compreensiva de Weber.


I – Duas Visões do Direito

            1- Roberto Lyra Filho

            Há uma corrente de pensamento que afirma que o Direito, de uma forma ou de outra, é algo mais que um complexo de normas. Ele seria algo que emana da sociedade, das lutas sociais ou anseios sociais. Para os pensadores que corroboram este tipo de pensamento a sociologia jurídica seria essencial à compreensão do Direito, melhor dizendo, uma descrição ou explicação do Direito que não levasse em conta suas "bases" ou "raízes" sociais seria, necessariamente, incompleta. Dentre estes autores encontra-se Roberto Lyra Filho, de cuja teoria trataremos mais como um representante de uma idéia do que pelo valor próprio de sua obra.

            Roberto Lyra Filho vê-se como um filósofo ou sociólogo do Direito. Em sua obra contam-se diversos livros que versam sobre a sociologia jurídica. Aqui tratar-se-á principalmente do intitulado "O que é direito", isto por três razões fundamentais: a primeira é a simplicidade do livro, o que facilita a assimilação e a crítica, a segunda é o caráter da obra destinada a apresentar o Direito àqueles que se iniciam em seu estudo e, por fim, como o título do livro o mostra, nele o autor pretende fornecer uma definição do que seja o Direito.

            Lyra Filho em "O que é Direito", distingue "lei" e "direito". O conceito de lei aproxima-se do que comumente o marxismo reconhece como Direito, ou seja, um instrumento de dominação que favorece a classe dominante. Já o conceito de Direito assemelha-se ao que se costuma chamar de justiça. No entanto não é assim que o entende o autor, como apresentarei mais à frente. A distinção entre direito e lei, na verdade, é entendida como fundamental para a compreensão do fenômeno jurídico e para a constituição de uma sociologia do direito, em especial para a superação de uma dicotomia que o autor reputa ideológica, a saber, a dicotomia entre o juspositivismo e o jurisnaturalismo.

            O autor apresenta os dois principais "modelos de ideologia jurídica", a saber, o positivismo jurídico e o jusnaturalismo. Ele afirma que estes modelos constituem uma dicotomia superável dialeticamente por meio de uma sociologia dialética do direito que ele se propõe a realizar.

            A distinção entre lei e direito.

            Lyra Filho afirma que o Direito não é um conjunto de leis. Daí que a distinção que pretende estabelecer entre Direito e lei não corresponde àquela que entende aquele como o conjunto de leis.

            Assim sendo, caberia definir estes conceitos. Como o autor não define o que seja a lei entendo que com esse termo se refira à norma ditada pelo Estado. O autor, no entanto, aponta certas características da lei, como, por exemplo, emanar do Estado, estar vinculada à classe dominante e ser imposta com ameaça de sanção organizada.

            A lei, para Lyra Filho, é um instrumento estatal:

            A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção (Lyra Filho, 1999: 8)

            Notemos que há, na passagem citada, também uma caracterização do Estado como (1)um sistema de órgãos (2) que tem função regulatória e que (3) seria um instrumento dos detentores dos meios de produção. Há aí um exemplo de um "marxismo vulgar", apesar de o autor pretender superar o próprio Marx que, no seu entender, não percebeu que o Direito seria, na verdade, parte da infra-estrutura, como veremos adiante.

            Lyra Filho recusa-se a ver na produção deste Estado o Direito, sua produção seria apenas um conjunto de leis, o que não seria sinônimo de Direito. O autor reconhece que nem sempre as leis expressarão de maneira "pura" os interesses da classe dominante, mas isto devido ao caráter contraditório das mesmas (Lyra Filho, 1999: 9), de forma que o Estado seria mero instrumento de dominação das classes dominantes, ainda que as leis que produza pudessem, por vezes, mas de forma alguma sempre, não atender aos interesses desta classe.

            Assim, o autor entende que "a legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, Direito e Antidireito: isto é, Direito propriamente dito, reto e correto, e negação do Direito, entortado pelos interesses classísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido"(Lyra Filho, 1999: 8). Há aí uma primeira especificação do que seja Direito, ou seja, algo reto e correto. Temos aqui uma alusão ao significado etimológico da palavra, opondo direito a "errado" ou "torto". Esta concepção de Direito pouco tem de sociológica e como o autor se pretende sociólogo, ela soa surpreendente. No entanto esta concepção parece guiar o pensamento do autor, valendo à pena cita-la e guarda-la.

            O objetivo do autor é, então, encontrar um critério que permita avaliar a legislação, separando o direito do antidireito e que permita também apontar novos caminhos que a lei deve seguir a fim de aproximar-se do Direito. Nas palavras do autor:

            "Em que critérios poderemos buscar o meio de avaliação deste elemento jurídico, para aplica-lo à consideração das leis, é precisamente a questão para a qual se encaminha o nosso itinerário, neste livrinho, e que aparecerá nas suas conclusões"(Lyra Filho, 1999: 9).

            A identificação entre lei e direito é entendida por Lyra Filho como ideológica:

            A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis. (...) Nisto, porém, o Direito resulta aprisionado em um conjunto de normas estatais, isto é, de padrões de conduta impostos pelo Estado, com a ameaça de sanção organizadas (meios repressivos expressamente indicados com órgão e procedimento especial de aplicação). (Lyra Filho, 1999: 9).

            Destaque-se da passagem citada a personificação do Estado e a atribuição ao mesmo de uma vontade deliberada de ludibriar a população, de fato isto se deve a uma forma metafórica de expressão. A idéia é a de que a classe dominante, que controla o Estado deliberadamente ludibriaria a população, e, para tanto, valer-se-ia do aparelho Estatal. Admitindo-se que tal simplificação decorre do caráter introdutório da obra, resta que haveria uma ideologia estatal, que legitimaria a produção legislativa deste com auxílio da identificação entre lei e direito, e que a legislação seria um conjunto de padrões de conduta impostos pelo estado com ameaça de sanção organizada.

            Lyra Filho afirma o caráter ideológico da identificação direito e lei. Ora, segundo o autor "a ideologia, portanto, é uma crença falsa, uma ‘evidência’ não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade" (1), donde concluir-se que a identificação entre direito e lei seria uma crença falsa e, portanto, o direito não emanaria do Estado, nem seria imposto sob ameaça de sanção organizada.

            O Direito autêntico e global não pode ser enquadrado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadoras, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico, e que pode ou não transportar as melhores conquistas (Lyra Filho, 1999: 10).

            O direito seria, pois, constituído por normas libertadoras e, para encontra-las,

            a visão dialética precisa alargar o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas (e até, como veremos, as normas não-estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade civil (nas instituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras, como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista. (Lyra Filho, 1999: 10).

            O autor afirma constantemente que buscar o que o Direito é, é buscar o que ele vem a ser, dado que "nada é, num sentido perfeito e acabado"( Lyra Filho, 1999: 11). Este vir a ser encontrado nas "normas não-estatais e de classe que emergem na sociedade e adotam posições vanguardeiras" deve ser o foco de atenção do jurista e pilar da avaliação das leis.

            Uma exata concepção do Direito não poderá desprezar todos esses aspectos do processo histórico, em que o círculo da legalidade, não coincide, sem mais, com o da legitimidade, como notava Herman Heller. Diríamos até que, se o Direito é reduzido à pura legalidade, já representa a dominação ilegítima, por força desta mesma identidade; e esse "Direito" passa, então, das normas estatais, castrado, morto e embalsamado, para o necrotério duma pseudociência, que os juristas conservadores, não à toa, chamam de ‘dogmática’. (2)

            Modelos de Ideologia Jurídica.

            Segundo a concepção de Lyra Filho, haveriam dois principais modelos de ideologias jurídicas, em torno dos quais as demais ideologias se aglomerariam. Seriam modelos opostos que serão entendidos pelo autor como a tese e a antítese dum processo dialético que reclama por uma síntese superadora.

            Tomaremos apenas dois modelos básicos, em torno dos quais se polarizam os diferentes subgrupos ideológicos – a que só faremos um breve aceno, sem descer a pormenores da posição de autores e movimentos. Fundamentalmente, aquelas ideologias situam-se entre o direito natural e o direito positivo, correspondendo às concepções jurisnaturalista e positivista do direito. ( Lyra Filho, 1999:25).

            Há, portanto, para Lyra Filho, duas formas ideológicas que se situam em pólos opostos, o positivismo jurídico e o jusnaturalismo. Ambas são criticadas pelo autor, mas a crítica que Lyra Filho faz ao positivismo jurídico merece mais destaque neste trabalho, uma vez que é mais relevante para a presente pesquisa e que sua critica ao jusnaturalismo resume-se basicamente à condenação de seu caráter abstrato, ou não-empírico.

            O positivismo jurídico é entendido como essencialmente conservador. Aliás, Lyra Filho entende que este caráter é definidor desta doutrina. Em suas palavras:

            E, para mais enfatizar este posicionamento, o mesmo destacado pensador de direita [Miguel Reale] repete e endossa uma frase de Haurion, no sentido de que ‘a ordem social representa o minimum de existência e a justiça social é um luxo, até certo ponto dispensável...’ Não se poderia fixar mais claramente a opção positivista". (...) "Depois disto, qualquer acréscimo ou matizamento é secundário: permanece, no âmago, o compromisso com a ordem estabelecida e as barreiras que ela opõe ao Direito justo não seriam jamais transponíveis, porque, na verdade, para o positivista, a ordem é a "Justiça". ( Lyra Filho, 1999: 26).

            O positivismo seria, pois, definido em termos de opção política e não por uma característica teórica ou metodológica qualquer. Esta forma de pensar é característica do pensamento marxista e, em verdade, é apenas sob este aspecto que Lyra Filho consegue colocar em um só conjunto correntes de pensamento bastante distintas a que ele se refere como positivistas, como a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen e a Teoria Tridimensional do Direito de Miguel Reale.

            Na verdade, Lyra Filho dá, em outro lugar, uma definição do positivismo que esclarece seu entendimento: "o positivismo, de qualquer forma, é uma redução do Direito à ordem estabelecida" (Lyra Filho, 1999: 16). Ora, se o Direito são os princípios e normas libertadoras que emergem na sociedade e adotam posições vanguardeiras e se o positivismo reduz o Direito às normas estatais, então o positivismo limita a possibilidade de "libertação", submetendo esta à discricionariedade estatal, ou melhor servindo como uma ideologia que faz crer que a liberdade, ou as normas "libertadoras", ou melhor ainda, a justiça apenas pode ser provida pelo Estado e, ainda, pelo Estado atualmente detentor do poder. O Estado seria, na visão de Lyra Filho, que revela acima a concepção marxista do Estado, um instrumento dos detentores dos meios de produção, logo, o positivismo jurídico, ao afirmar que todo o Direito são as leis postas pelo Estado, e sendo o direito um processo de libertação, estaria afirmando que aos detentores dos meios de produção cabe o monopólio dos meios de libertação (3), do direito.

            O positivismo jurídico é visto como uma ideologia burguesa, ou melhor, como a mais difundida ideologia jurídica da burguesia:

            De qualquer forma, trataremos, em primeiro lugar, do positivismo, tal qual ele se apresenta nas ideologias burguesas, já que é, por assim dizer, o trivial variado da cozinha jurídica, no mundo capitalista que aí temos à nossa frente.( Lyra Filho, 1999: 28).

            O positivismo é assim uma ideologia. Como tal é condicionado pelas relações capitalistas atuais de produção.

            Segundo Roberto Lyra Filho a burguesia, ao chegar ao poder apoiando-se em uma ideologia jurisnaturalista que pregava a igualdade e a liberdade, sente a necessidade prática de tomar decisões (conforme seus interesses) que contrariam tal ideologia. Carece ela de uma ideologia capaz de legitimar a toda e qualquer decisão que lhe convenha, mais ou menos como a idéia de que "todo poder vem de Deus" legitimava qualquer decisão de um rei absolutista. O positivismo jurídico é a ideologia adequada.

            Veremos adiante, por exemplo, que a burguesia chegou ao poder desfraldando a bandeira ideológica do direito natural – com fundamentação acima das leis – e, tendo conquistado o que pretendia, trocou de doutrina, passando a defender o positivismo jurídico (em substância, a ideologia da ordem assente). Pudera! A ‘guitarra’ legislativa já estava em suas mãos. A primeira fase contestou o poder aristocrático-feudal, na força do capitalismo em subida, para dominar o Estado. A segunda fez a digestão da vitória, pois já não precisava mais desafiar um poder de que se apossara. É daí que surge a transformação do grito libertário (invocando direitos supralegais) em arroto social, de pança cheia (não admitindo a existência de Direito senão em suas leis). ( Lyra Filho, 1999: 23).

            Já não convinha à burguesia vitoriosa uma ideologia que pudesse ser invocada contra o status quo, uma vez que este era justamente aquele que ela havia conquistado. Após a vitória, o que mais se desejava era a estabilidade. A ideologia positivista, tal como a apresenta Lyra Filho, não tem outro ideal senão o da ordem. A ordem é boa. O que vem da ordem é bom. O que foi ordenado deve ser obedecido.

            Vimos que as duas palavras-chaves definidoras do positivismo e do iurisnaturalismo, são, para o primeiro, ordem, e, para o segundo, Justiça. (...) "Isto se esclarece bem nas duas proposições latinas que simbolizam o dilema (aparentemente insolúvel) entre ambas as posições: iustum quia iussum (justo porque ordenado), que define o positivismo, enquanto este não vê maneira de inserir, na sua teoria do Direito, a crítica à injustiça das normas, limitando-se ou a proclamar que estas contêm toda a justiça possível ou dizer que o problema da justiça ‘não é jurídico’; e iussum quia iustum (ordenado porque justo), que representa o iurisnaturalismo, para o qual as normas devem obediência a algum padrão superior, sob pena de não serem corretamente jurídicos. ( Lyra Filho, 1999: 28 e 29).

            Lyra Filho afirma que o positivismo jurídico, ao afirmar a inexistência de normas jurídicas fora do direito positivo, ou seja, direito posto pelo Estado, legitima como justa qualquer norma de direito. Em verdade o Direito, na visão de Lyra Filho, é algo intrinsecamente bom, libertador, reto, correto. Se é Direito, é bom, se não é bom, não é Direito. Daí que não cabe a recusa do positivismo jurídico de tratar juridicamente do problema da justiça. Um direito injusto é reputado como não Direito e se para identificar o que é e o que não é Direito deve-se analisar a justeza das normas, o problema da justiça deve ser jurídico.

            O caráter conservador do juspositivismo, na visão de Lyra Filho, decorre de que ele, ao admitir como direito apenas as normas positivadas em lei, limita o Direito em face do processo histórico de produção jurídica, que é constante.

            Por enquanto, verifiquemos as posições e barreiras do positivismo. Ele sempre capta o Direito, quando já vertido em normas; seu limite é o da ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas sociais não legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passa a exprimir-se (neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis que só reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos). (Lyra Filho, 1999: 30).

            Aqui Lyra Filho faz referência aos dois grandes modelos jurídicos contemporâneos, o direito positivo e o direito costumeiro. No primeiro, o positivismo "capta" apenas as leis estatais e, no segundo, apenas os costumes reconhecidos como vinculantes e já estabelecidos, que Lyra Filho identifica aos costumes da classe dominante, excluindo assim os costumes e usos de "vanguarda". Isto faz com que os usos e normas "progressistas" que emergem das constantes lutas de classe e de minorias sejam sistematicamente excluídos do Direito.

            Note-se que o positivismo, aqui e em toda a obra de Lyra Filho, é entendido como uma doutrina normativa. Ele não diz o que o direito é, mas o que deve ser reconhecido como direito. É uma doutrina hermenêutica, uma doutrina acerca da interpretação do Direito. Visto deste modo o positivismo só pode ser conservador ou mesmo regressista ou nostálgico. Afirmar que não deve haver qualquer norma além das que há ou que não se lhes pode dar qualquer interpretação que já não tenha sido dada, como aqui parece indicar Lyra Filho, é realmente uma atitude conservadora.

            De qualquer modo, as normas – isto é, como vimos, os padrões de conduta, impostos pelo poder social, com ameaça de sanções organizadas (medidas repressivas, expressamente indicadas, com órgão e procedimento especiais de aplicação) – constituem, para o positivismo, todo o Direito. (...) E note-se que, no caso, se trata das normas da classe dominante, revestindo a estrutura social estabelecida, porque a presença de outras normas – de classe ou grupos dominados - não é reconhecida, pelo positivismo, como elemento jurídico, exceto na medida em que não se revelam incompatíveis com o sistema – portanto, único a valer acima de tudo e todos – daquela ordem, classe e grupos prevalecentes. (Lyra Filho, 1999: 30).

            Aquilo que o positivista descreve como o Direito, segundo Lyra Filho, não passa das normas da classe dominante, a revestir a estrutura social estabelecida. Seria um conjunto de prescrições que legitimam uma situação de facto ou que visam mantê-la ou impedir sua transformação. A afirmação de que o positivismo jurídico não reconhece outras normas senão as estatais não procede a não ser nos termos seguintes: o positivismo jurídico não reconhece como jurídicas outras normas senão as estatais. Assim, Lyra Filho está dizendo que normas de classe e de grupos dominados são Direito e que a descrição positivista, ao não assumi-las como tal, descreve mal a realidade ou que tais normas deveriam ser direito e o positivismo ao não reconhece-lo, serve mal como um guia para o juiz e o legislador.

            Pode ser ainda, e assim parece ser, que Lyra Filho esteja criticando ambos aspectos da doutrina positivista, ou seja, esta nem descreve a realidade nem serve como guia para a ação. O positivismo, segundo o autor, submete o pensamento e a prática jurídicos ao Estado:

            Quando o positivista fala em Direito, refere-se a este último – e único – sistema de normas, para ele, válidas, como se ao pensamento e prática jurídicas interessasse apenas o que certos órgãos do poder social (a classe e grupos dominantes ou, por elas, o Estado) impõe e rotulam como Direito. (4)

            Lyra Filho distingue três formas diferentes de positivismo: o legalista, o sociologista ou historicista e o psicologicista. No entanto, segundo o autor, as demais formas convergem ao positivismo jurídico legalista, cujo principal nome é o de Hans Kelsen.

            Nem foi à toa que as mais laboriosas pretensões fenomenológicas, na teoria do Direito, acabaram ‘casando’ com a teoria ‘pura’ de Hans Kelsen: isto é, a fenomenologia jurídica de Kaufmann ou de Schereier não passa de um caminho complicado para o positivismo legalista de Kelsen. Todas as formas do positivismo, assim, rodam num círculo, porque a partir do legalismo, giram por diversos graus para chegarem ao mesmo ponto de partida, que é a lei do Estado. (Lyra Filho, 1999: 36).

            As características do positivismo legalista são praticamente as mesmas apresentadas anteriormente como sendo do positivismo em geral. Reduz o Direito à lei sob monopólio estatal com recurso à ameaça do uso da força organizada e a "canonização da ordem estabelecida".

            O positivismo legalista volta-se para a lei e, mesmo quando incorpora outro tipo de norma – como, por exemplo, o costume –, dá à lei total superioridade, tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido – de novo, a título de exemplo – invocar um costume contra a lei. ( Lyra Filho, 1999: 31).

            Noutras palavras, o positivismo legalista, historicista ou sociologista (os dois últimos reforçando o primeiro, a que se acabam rendendo) canoniza a ordem social estabelecida, que só poderia ser alterada dentro das regras do jogo que esta própria estabelece... para que não haja alteração fundamental. (5)

            O positivismo legalista apresenta o direito como um conjunto sistemático de leis. Lyra Filho não o diz expressamente, mas convém que se esclareça que também o Estado, na concepção positivista, é concebido como um conjunto de leis. Leis que regem a confecção e utilização de leis. Assim, qualquer alteração no corpo das leis se fará nos moldes das outras leis, para isto estabelecidas. Por isto o autor afirma que a ordem só poderia ser alterada "dentro das regras do jogo".

            Caso o interesse das classes dominantes apontem na direção de uma ruptura com a ordem estabelecida, segundo Lyra Filho, a mesma classe substitui o governo por outro, ainda que rompendo com a legalidade e, "durante esta substituição, os juristas do positivismo ficam no terrível suspense, esperando para ver quem vai ‘dar as cartas’ do jogo; isto é, as novas leis, que tais rábulas diplomados e endomingados interpretarão e aplicarão, com a maior cara de pau e todos os balangandãs da técnica ‘jurídica’". (Lyra Filho, 1999: 34).

            Note-se que encontramos aqui o Estado como um mero joguete nas mãos de uma classe. O Estado estabelece as leis a mando da classe dominante. O positivismo, ao afirmar que o Direito são as leis, legitima qualquer ordem, facultando à classe dominante altera-la a seu bel-prazer.

            O ponto fraco do positivismo é, para Lyra Filho, uma questão fundamental para a qual esta doutrina não consegue dar resposta: por que se atribui ao Estado o monopólio da produção legislativa? Lyra Filho afirma que, neste ponto, o positivismo jurídico recorre a algum princípio não jurídico.

            E Radbruch, o grande iurisfilósofo alemão, com certeira malícia nos mostra que o positivismo, neste empenho, ‘pressupõe um preceito jurídico de direito natural, na base de todas as suas construções’, isto é, um preceito jurídico anterior e superior ao Direito positivo. O que se pretende afirmar assim é que, ou o positivismo se descobre como não jurídico, fazendo derivar o Direito do simples fato de dominação, ou, para tentar a legitimação da ordem e do poder que nela se entroniza, recorre a um princípio que não é o direito positivo (este direito já feito e imposto, em substância, pelo Estado), pois a função daquele princípio é precisamente dar fundamento jurídico ao direito positivo. (Lyra Filho, 1999: 36).

            Esta é, de fato uma das questões de que mais tratou Kelsen, a quem Lyra Filho passa a criticar:

            Afinal de contas, por que se atribui ao Estado o monopólio de produzir Direito, com a legislação? Que razão jurídica legitimaria este privilégio? Nenhum positivista escapa a esta questão: no máximo, ela o transfere para outra sede, isto é, procura oferecer à sua ideologia jurídica o aval de ideologia política – o que não deixa de ser engraçado em quem se afirma ‘objetivo’, isento e até ‘neutro’ politicamente. Um caso extremo é o de Kelsen, a que aludiremos brevemente, porque ele nos conduz aos limites do paradoxo, na sua teimosia positivista. (Lyra Filho, 1999: 37).

            Assim é que, para conservar aquele mito da ‘neutralidade’, [Kelsen] afirma que o Direito é apenas uma técnica de organizar a força do poder; mas, desta maneira, deixa o poder sem justificação, como que nu e pronto a ferrar todo mundo, mas de calças arriadas, com perigo para sua dignidade; portanto, o mesmo Kelsen acrescenta que a força é empregada ‘enquanto monopólio da comunidade’ e para realizar ‘a paz social’. Desta maneira, opta pela teoria política liberal, que equipara Estado e comunidade, como se aquele representasse todo o povo (ocultando, deste modo, a dominação classística e dos grupos associados a tais classes). Chama-se, então, de ‘paz social’ a ordem estabelecida (em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de classes e grupos). ( Lyra Filho, 1999: 37).

            O professor Roberto Lyra Filho aqui faz referência ao problema da legitimação do Direito e nota que Kelsen deixa o Direito sem uma legitimação convincente ou "de calças arriadas". No entanto Lyra Filho coloca os conceitos de "paz social" ou de comunidade como as fontes de legitimidade do Direito em Kelsen (6).

            Segundo Lyra Filho o positivismo jurídico opta pela segurança jurídica, como um valor político. Por outro lado, tal doutrina exime o Estado de legitimar sua dominação, o que leva Lyra Filho a afirmar a incoerência dela.

            Mas, haverá maior incoerência do que uma determinação sem limites, através da legislação, do que é permitido ou proibido, além do mais realizada por um poder que se dispensa de provar a própria legitimidade? Este poder, ao contrário, se presume legítimo, a partir do fato de que está em exercício e chegou à posição desempenhada, seguindo os processos que ele próprio estabelece, altera e, de todas as formas controla a bel prazer. ( Lyra Filho, 1999: 38)

            A legalidade não é suficiente para a segurança jurídica. A legalidade aceita qualquer conteúdo.

            Radbruch, que teve de enfrentar a perseguição de Hitler, advertia, também, que um legalidade não é suficiente, pois, em situações comuns, ela é, em todo o caso, o revestimento de uma estrutura de dominação, que é preciso avaliar criticamente e, em situações extremas, pode ser constituída pelos ‘editos de um paranóico’, isto é, pelas leis de um doente mental com mania de grandeza. ( Lyra Filho, 1999: 38).

            Ao tratar do jusnaturalismo, Lyra Filho remete-lhe duas críticas: a do caráter abstrato, metafísico, do direito natural e a do dualismo, a divisão em dois Direitos, o natural e o positivo:

            Entretanto, permanece o dualismo – direito positivo e direito natural – com uma antinomia (uma contradição insolúvel), que parte o Direito num ângulo que só se vê a ordem e noutro que invoca uma Justiça, cujo fundamento não é adequadamente assentado nas próprias lutas sociais e, sim, em princípios abstratos. ( Lyra Filho, 1999: 44)

            O inconveniente, aliás, vem de que tratam de dois direitos – o positivo e o natural – sem reperguntar o que é Direito como noção que unifique esses tipos opostos, ou seja, não chegam à visão histórico-social do Direito, mas apenas à oposição histórico-social de dois direitos, que não sabem muito bem por que seriam jurídicos. ( Lyra Filho, 1999: 45).

            A dicotomia entre positivismo e jusnaturalismo, a ser superada pela concepção de Lyra Filho, seria expressa nestes termos: "o positivismo, de qualquer sorte, é uma redução do Direito à ordem estabelecida; o iurisnaturalismo é, ao contrário, um desdobramento em dois planos: o que se apresenta nas normas e o que nelas deve apresentar-se para que sejam consideradas válidas e legítimas".

            Direito e Sociologia

            Roberto Lyra Filho afirma haver uma dicotomia entre o jusnaturalismo e o juspositivismo e que ambas estas doutrinas são ideológicas, ou seja, são condicionadas por certas condições sociais e constituem duas formas de "falsa consciência". Esta dicotomia deve ser superada para que se possa compreender o que é o Direito em "essência". Segundo ele, "Somente uma nova teoria realmente dialética do Direito evita a queda numa das pontas da antítese (teses radicalmente opostas) entre o direito positivo e direito natural" ( Lyra Filho, 1999: 26). É essa teoria que Lyra Filho pretende apresentar.

            Tal teoria dialética não incorreria nem no erro positivista, reducionista, nem no erro jusnaturalista, desvinculado da realidade. Para tanto, partiria de uma análise do processo histórico, de onde emana o direito que serve de parâmetro para a avaliação das leis.

            Mas decerto aí [no processo histórico] podemos discernir não só a práxis dos grupos e classes em ascensão, porém, na medida em que estas formulam os objetivos de sua luta, uma série de reivindicações, jurídicas também (Lyra Filho, 1999: 44).

            Lyra Filho entende que o Direito "emana" da praxis. O Direito se revela no processo histórico. Na passagem acima referida, o autor parece indicar um mecanismo através do qual surgiria o Direito: na luta de classes, as próprias classes formulariam objetivos, estes conduzem a reivindicações que são jurídicas também. Por reivindicações jurídicas poderíamos entender uma demanda acerca de um direito previsto em lei, mas não parece ser este o sentido que Lyra Filho quer dar à expressão, e sim o de uma demanda acerca das leis, uma vez que seria difícil entender que tais reivindicações sejam jurídicas porque conformes com o Direito já que constituem o Direito, emanado das lutas de classes. Assim, no processo histórico há lutas de classes. Nestas lutas as diferentes classes em conflito estabelecem objetivos. Para a concretização destas objetivos são feitas reivindicações acerca do Direito, ou melhor, demanda de novas e diferentes leis. O passo seguinte, o de tais demandas para o Direito mesmo, Lyra Filho não apresenta. Tem-se a impressão de tais demandas são, elas mesmas, para o autor, Direito.

            Roberto Lyra Filho rejeita a visão segundo a qual o Direito corresponde às normas estatais que, por sua vez, são explicadas com recurso à infra-estrutura econômica. A vinculação entre as leis estatais e a classe dominante e, por conseguinte, com a infra-estrutura econômica é aceita, mas o direito não é o conjunto das leis estatais. Carece-se, segundo ele, de uma teoria dialética do Direito.

            Só um fôlego dialético poderia unificar, dentro da totalidade do processo histórico e na sua perpétua transformação , os aspectos polarizadores de positividade e Justiça, de elaboração de normas e padrão avaliador da legitimidade. Muitos autores têm reconhecido, como Dujardim e Michel, que ainda não existe uma teoria dialética de Direito perfeitamente elaborada, e que é insuficiente o "positivismo de esquerda" (a equiparação do Direito às normas estatais, às leis, com o acréscimo de uma "explicação", em geral bastante mecanicista, deste direito pela chamada infra-estrutura sócio-econômica). (Lyra Filho, 1999:45). (7)

            A "solução positivista" revela-se aos olhos de Lyra Filho, insustentável, e mesmo autores "de esquerda" cedem a ela na falta de uma opção mais adequada, com a mera ressalva de que o Direito, sendo determinado pela infra-estrutura, após a revolução proletária, passará a servir o proletariado. Mas o positivismo, acuado ante a exigência de legitimidade, busca auxílio no direito natural:

            Em síntese, o próprio exame da problemática, a nível ideológico [o positivismo e o jusnaturalismo], mostrou-nos que o direito positivo é insustentável, sem um complemento que o jurista vai buscar no direito natural – com todos os defeitos deste – porque não vê onde se busque outro apoio, nada obstante, indispensável ( Lyra Filho, 1999: 46).

            O autor sente uma imperiosa necessidade de legitimar o Direito. É, para ele, "indispensável" esta legitimação, ou melhor, o Direito, para ser válido tem de ser legítimo, e, parece que na concepção de Lyra Filho é forçoso que haja algum Direito válido, mesmo que não o posto pelo Estado. O autor percebe, e o faz bem, que o positivismo jurídico é incapaz de legitimar qualquer ordem. O autor também sente que a resposta jusnaturalista é insuficiente por seu caráter abstrato. De alguma forma Lyra Filho vê aí uma antítese que teria sua síntese na fundamentação do Direito no processo histórico social. O Direito emanaria das lutas de classes. Se fosse assim, uma análise de tais lutas de classes e do próprio processo histórico seria de extrema importância para a compreensão do Direito. A sociologia seria, portanto, necessária para uma teoria do Direito, ou melhor, para escapar aos erros ideológicos e construir uma teoria dialética do Direito calcada na práxis social precisar-se-ia de uma sociologia jurídica.

            O caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz. Poderemos chegar, nisto, à dialética do Direito não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos, porém como fato social, ação concreta e constante donde brota a repercussão mental. (Lyra Filho, 1999: 46).

            E ainda:

            A sociologia jurídica é a única base sólida para iniciarmos a nova reflexão, a nova Filosofia Jurídica, a fim de que esta última não se transforme num jogo de fantasmas ideológicos, perdendo nas nuvens o que vem da terra. As ideologias jurídicas são filosofia corrompida, infestada de crenças falsas e falsificada consciência do que é jurídico, pela intromissão de produtos forjados pelos dominadores ( Lyra Filho, 1999: 47).

            A sociologia jurídica evita que se "perca nas nuvens o que vem da terra", ou melhor, que a filosofia jurídica calque-se meramente em reflexões abstratas e evita também a "intromissão de produtos forjados pelos dominadores". É quase um instrumento purificador, utilizado para apagar as manchas ideológicas e metafísicas que corrompem o pensamento jurídico. Não se pode compreender, sem enganar-se pelas ideologias, o direito se não se está amparado por uma sociologia jurídica. Esta é ciência dos fatos sociais, evita a abstração. Em tais fatos revela-se o direito real, além do direito legislado, supera-se o positivismo.

            O primeiro passo rumo à concepção dialética do Direito será, deste modo, a Sociologia Jurídica (...) Para vencer a "metafísica" do Direito, que é ideologia também, vamos traçar o esboço duma Sociologia Jurídica que nada fique devendo, por outro lado à "metafísica" da Sociedade (uma apresentação desta que utiliza "idéias" abstratas e falsas crenças) mas, ao contrário se funde numa ciência dos fatos sociais. (Lyra Filho, 1999: 47).

            O direito, no entanto, não é um conjunto de fatos sociais, não é o processo histórico mesmo, mas algo que está neste processo. Cabe ao sociólogo do direito identificar na vida social a práxis jurídica e, neste contexto, apreender seu sentido.

            Mas isto não importa em identificar, simplesmente, Direito e processo histórico e, sim, procurar neste o aspecto peculiar da práxis jurídica, como algo que surge na vida social e fora dela não tem qualquer fundamento ou sentido. (8)

            A história, entendida como conjunto de fatos, é, para Lyra Filho, o universo das particularidades. Uma análise meramente histórica não é capaz de desvendar o Direito. "A essência do direito, para não se perder em especulações metafísicas, nem se dissolver num monte de pormenores irrelevantes, exige a mediação duma perspectiva científica, em que os ‘retratos’ históricos se ponham em movimento, seguindo o modelo geral da constituição de cada uma daquelas imagens" (Lyra Filho, 1999: 50). A sociologia é a conexão necessária a ser dada aos fatos, é um modelo geral que permite a compreensão das particularidades.

            Lyra Filho afirma que cabe ao sociólogo elaborar modelos gerais a partir dos fatos concretos e retornar, de posse de tais modelos à análise factual, o que implicará em alterações no modelo, o que torna a sociologia uma disciplina em "constante movimento". É o que, segundo ele, faziam Marx e Engels.

            Naquele procedimento circular, que entra no ofício histórico, trazendo hipóteses e modelos, resultantes de exame anterior, sobre o material acumulado, para submetê-lo, depois, ao crivo de novas verificações, Marx e Engels faziam História Social, isto é, voltavam à História com a bússola duma Sociologia. Não nos referimos, aqui, à Sociologia burguesa, tal como a concebeu Comte, na "Física Social", mas à Sociologia Histórica, de que precisamente são precursores Marx e Engels, embora não usassem esta etiqueta. Porque é Sociologia a disciplina mediadora, que constrói, sobre o monte de fatos históricos, os modelos que os arrumam (com a ressalva de emendas, ao novo contato com o processo). ( Lyra Filho, 1999: 51).

            A sociologia, com seus "modelos", arruma o monte de fatos históricos. Interessante perceber que Lyra Filho distingue dois tipos de sociologia: a histórica e a burguesa. Esta é desqualificada, aquela desvenda a essência do direito. Esta sociologia histórica "arruma" os fatos. Este arrumar se refere ao estabelecimento de relações entre tais fatos, à busca de relações causais e regularidades da vida social. Para o autor: "Aplicando-se ao Direito uma abordagem sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a sua peculiaridade distintiva, a sua ‘essência’ verdadeira." (Lyra Filho, 1999: 52).

            A perspectiva sociológica vincula o Direito ‘a vida social, desvenda regularidades, processos sociais que se relacionam com o Direito, etc. Se tomarmos em conta que Lyra Filho não entende por Direito a legislação mas os princípios emancipatórios que emanam das lutas sociais, notaremos que a sociologia, ao encontrar o Direito no processo histórico, diz o Direito em sua essência. O elemento de práxis jurídica que a Sociologia é capaz de encontrar no processo histórico serve de parâmetro para avaliações acerca das normas positivas sem se perder em abstrações metafísicas. É um elemento empírico, um fato social. A sociologia é capaz de identificar o Direito em sua "essência" verdadeira, ou seja, a essência dos princípios de libertação. (9)

            Com isto a sociologia torna-se uma disciplina prescritiva, uma vez que afasta as ideologias, mantém-se atrelada aos fatos e desvenda a "essência verdadeira" do fenômeno jurídico, nos termos de Lyra Filho. Além, é claro, de emprestar a tal prescrição o status de científica. O autor tomou o cuidado de alertar que não se trata de qualquer sociologia, mas da sociologia dialética, em contraposição à sociologia burguesa. (cf. Lyra Filho, 1999: 51).

            De qualquer maneira, a Sociologia, Geral ou Jurídica, também não é uma disciplina unívoca (de um sentido ou direção apenas), já que, nesta ciência, há diferentes orientações, que correspondem ao posicionamento do cientista no processo histórico-social. ( Lyra Filho, 1999: 54).

            A sociologia é entendida como condicionada ou determinada ou, enfim, como a variável dependente em relação à posição social do cientista, a variável independente. O conhecimento sociológico varia em função do posicionamento do cientista no processo histórico-social. Posto isto à parte, Lyra Filho busca desqualificar uma forma de sociologia rotulando-a de "burguesa". Esta não é contraposta à sociologia proletária ou aristocrática, mas à dialética, que é a única capaz de identificar o fenômeno jurídico. Afirma o autor que "a tarefa a realizar, numa visão dialético-social do Direito, exige, portanto, que se delineie, ainda que toscamente (para aperfeiçoamento constante), um modelo sociológico dialético" ( Lyra Filho, 1999: 65).

            Existem, portanto, duas formas de sociologia: a ideológica e a dialética. A primeira forma é incapaz de superar a antítese entre o juspositivismo e o jusnaturalismo, ao contrário da segunda. A primeira está enganada, a segunda, correta. Uma compreensão do Direito que não leve em conta esta segunda abordagem sociológica é, invariavelmente, defeituosa.

            Lyra Filho assim comenta acerca da sociologia ideológica:

            É possível discernir, a esta altura, duas posições fundamentais, na Sociologia Geral – e, portanto, na Sociologia Jurídicas –, ambas fortemente carregadas de elementos ideológicos. Um dos mais finamente matreiro, dentre os sociólogos burgueses, Ralf Dahrendorf, definiu aquelas posições como (a) Sociologia "da estabilidade, harmonia e consenso" e (b) Sociologia "da mudança, conflito e coação". A primeira, diríamos nós, é a Sociologia do burguês mais franco; a segunda pertence à pequena burguesia que se dedica às tempestades num copo d’água (ou melhor, às revoluções num copo de uísque). ( Lyra Filho, 1999: 54).

            A chamada "sociologia da estabilidade, harmonia e consenso" afirma, segundo Lyra filho (Lyra Filho, 1999:56-58), que "em determinado espaço social (...) uma variedade de grupos estabelece determinados padrões estáveis de relacionamento. Este relacionamento é governado por normas escalonadas em escala crescente de intensidade". Estas pertencem todas a um só bloco que "se fixa" nas instituições sociais, presumindo-se legítimas e consensuais, que se arrogam instrumentos de controle social. "Estes meios materiais de controle revestem a ordem com sistemas de crenças (ideologias) consideradas válidas, úteis e eminentemente saudáveis" (...) "Esta pretensão da classe dominante identifica suas conveniências e princípios com os da sociedade inteira". A mudança social surge como "patologias" a serem combatidas. Esta sociologia omite a "base sócio-econômica, as classes radicalmente contrapostas (espoliada e espoliadora), a existência de grupos oprimidos, a contestação válida, as normas de espoliados e oprimidos: seus Direitos; e o reduzido ‘direito’ fica oscilando entre o Estado e a organização social (incontestável)".

            Lyra Filho afirma que esta é a "raiz social dos positivismos jurídicos" que "divinizam a ordem e fazem do jurista o servidor cego e submisso de toda e qualquer lei" (Lyra Filho, 1999: 57). Parece haver uma certa confusão entre a ciência e seu objeto. A "raiz social", penso, seria a variável independente, um fato social, que condicionaria o pensamento juspositivista. Seria algo empírico, uma dada constelação de fatores sociais concretos. Mas Lyra Filho afirma que é a sociologia da "estabilidade, harmonia e consenso" que constitui tal raiz social. Ou seja, a raiz social dos positivismos jurídicos seria uma sociologia ideológica.

            A fim de evitar uma incoerência suponha-se que o autor tenha pretendido afirmar que tal sociologia foi uma inspiração ideológica do juspositivismo. Porém, no contexto desta sociologia ideológica, "qualquer tipo de mudança social é limitado". Ora, podemos então assumir que o autor, ao tratar de tal ideologia não se refere à sociologia dos livros e universidades mas a uma concepção de sociedade que, enquanto senso comum ideológico e orientador da ação, interfere no comportamento dos autores e que é condenável por isso.

            O positivismo jurídico, prossegue Lyra Filho, "contaminou" as universidades. O perigo desta doutrina é a repercussão na ação daqueles que a assimilam e que se tornam "operadores" do direito, e não meros estudiosos. O positivismo jurídico seria pernicioso enquanto guia de ação.

            Eles [os positivistas] divinizam a ordem e fazem do jurista o servidor cego e submisso de toda e qualquer lei. A OAB, recentemente, no seu projeto de reforma do ensino jurídico, definiu bem o positivismo como uma das "pragas universitárias nacionais" ( Lyra Filho, 1999: 57).

            A sociologia "da mudança, conflito e coação é ainda [um modelo] burguês: apenas pequeno-burguês" e afirma que (Lyra Filho, 1999: 59-61) "o espaço social é ocupado por uma série de grupos em conflito", em uma relação instável decorrente de costumes divergentes e competitivos. "Conseqüentemente, a organização social estabelecida tem de haver-se com ataques constantes de anomia (contestação das normas impostas pela ordem prevalecente) (10)". A ordem estabelecida é vista como uma "coação", mas esta sociologia expressa apenas as reivindicações pequeno-burguesas. Afirma haver direito fora do Estado, mas os padrões de crítica são "muito vagos".

            Estas formas de sociologia ideológica são incapazes de revelar o Direito.

            O Direito, afinal buscado, não "é" as normas em que se pretende vazá-lo (não confundamos o biscoito e a embalagem, pois, em tal caso, como o positivismo, acabaríamos comendo a lata, como se fosse a bolacha, e tirando estranhas conclusões sobre o sabor, consistência e ingredientes de tal produto). Aliás, não existe uma diferença nítida entre as normas jurídicas e morais, porque todas as características distintivas apresentadas se revelam imprecisas (isto é, tanto aparecem nas normas jurídicas quanto nas morais)" ( Lyra Filho, 1999: 65).

            A sociologia dialética do direito na visão de Lyra Filho é, segundo pude apreender, o que segue: há uma "dupla base interpenetrante de infra-estruturas"( Lyra Filho, 1999: 68), a nacional e a internacional. Esta última condiciona lutas entre "nações imperialistas" e "povos colonizados". Em âmbito nacional, as classes se dividem em conseqüência de sua infra-estrutura. "A luta de classes e grupos (...) movimenta a dialética social e, nela, a vertente jurídica". Sobre a dupla base infra-estrutural se armam os aspectos superestruturais, estabelecendo a coesão e a dispersão (força centrípeta e centrífuga). Para Lyra Filho, "se uma sociedade não tivesse o mínimo de força centrípeta para garantir a própria coesão explodiria como bola de borracha, soprada pela anarquia; se, por outro lado, não revelasse um coeficiente de forças centrífugas seria uma estrutura inalterável e eternamente impeditiva de qualquer mudança verdadeira" ( Lyra Filho, 1999: 68).

            As "forças centrípetas" fazem com que o "conjunto das instituições e a ideologia que a pretende legitimar padronizem-se numa organização social, que se garante com instrumentos de controle social"( Lyra Filho, 1999: 69). O controle social é responsável por conter as forças centrífugas e manter a ordem. Já as forças centrífugas agem pela cristalização de "normas das classes e grupos espoliados e oprimidos que produzem instituições próprias" ( Lyra Filho, 1999: 70) que promovem a "atividade anômica (contestação das normas do ramo dominante)". A atividade de contestação pode ser "reformista" ou "revolucionária".

            O Direito é parte da Dialética social. Lyra Filho consegue destacar nove pontos do Direito enquanto tal.

            I. O Direito tem raiz internacional.

            II. "O Direito entre nações luta para não ficar preso ao sistema de forças dominantes". Há uma "expressão jurídica paralela estabelecida pelos povos oprimidos e espoliados" ( Lyra Filho, 1999: 73).

            III. e IV "cada sociedade, em particular, no instante mesmo em que estabelece o seu modo de produção, inaugura, com cisão de classes, ,uma dialética, jurídica também" ( Lyra Filho, 1999: 73).

            IV. "A organização social, que padroniza o conjunto de instituições dominantes, adquire também um perfil jurídico, na medida em que apresente um arranjo legítimo ou ilegítimo, espoliativo, opressor, esmagando direitos de classe e grupos dominados"( Lyra Filho, 1999: 74). Entra o problema da legitimidade.

            V. "O controle social global, isto é, como dissemos, a central de operações das normas dominantes, (...) dinamiza em aspectos, não isentos de contradições, a organização social militante" (força centrípeta).

            VI. A dialética criou um processo de desorganização social, "mostrando a ineficácia relativa e a ilegitimidade das normas dominantes e propondo outras, efetivamente vividas em setores mais ou menos amplos da vida social." ( Lyra Filho, 1999: 76).

            VII. "A coexistência conflitual de series de normas jurídicas, dentro da estrutura social (pluralismo dialético), leva à atividade anômica (de contestação, na medida em que grupos e classes dominados procuram o reconhecimento de suas formações contra-institucionais, em desafio às normas dominantes (anomia)" ( Lyra Filho, 1999: 77).

            VIII. O nono ponto é a síntese dialética. É onde "radica o critério de avaliação dos produtos jurídicos". Tal síntese está "dentro do processo" histórico. "O que é ‘essencial’ no homem é a sua capacidade de libertação"( Lyra Filho, 1999: 81). "O processo social, a história, é um processo de libertação constante (...) Dentro do processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem".

            Em resumo: Há duas bases infra-estruturais e, portanto, dois espaços de luta e dominação. O plano internacional e o nacional. Internamente, o modo de produção cinde a população em classes. Os costumes e interesses da classe dominante cristalizam-se em normas garantidas pela organização social que controla um aparato repressivo. O movimento dialético gera a cristalização de outras normas, as das classes e grupos oprimidos que lutarão pelo seu reconhecimento. Em todo esse processo revela-se, dialeticamente, o direito. O direito é o processo de libertação. "Esta luta faz parte do Direito, porque o Direito não é uma ‘coisa’ fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente" (Lyra Filho, 1999: 82).

            Direito e Justiça são conceitos muito semelhantes em Lyra Filho. Acerca da Justiça:

            Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam muitas vezes (...) Porém, onde fica a Justiça verdadeira? Evidentemente, não é cá, nem lá, não é nas leis (embora às vezes nelas se misture, em maior ou menor grau), nem é nos princípios ideais, abstratos (embora às vezes também algo dela ali se transmita, de forma imprecisa): a Justiça real está no processo histórico [assim como o Direito] de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente (Lyra Filho, 1999: 86).

            Com relação ao Direito:

            Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem , mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas. (Lyra Filho, 1999: 86).

            Há na concepção de Lyra Filho uma Justiça real, verdadeira, que se encontra no processo histórico. Assim também o Direito verdadeiro é um processo de libertação. Há um Direito acima das leis, e, por isso, o corpo de leis pode conter "direito" e "antidireito". Na medida em o processo histórico-social possa ser interpretado como parte da natureza, a distinção entre a doutrina de Lyra Filho e o jusnaturalismo é, assim, muito tênue (se é que há alguma). Este diz que o direito injusto não é direito, e procura identificar a justiça, ou o direito natural, para avaliar o direito positivo. Segundo Lyra Filho, seu erro está no caráter absoluto e abstrato da justiça que propõe. Segundo ele:

            Justiça é justiça social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais nem menos do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. (...)Nunca se pode auferir a Justiça em abstrato e, sim, concretamente, pois as quotas de libertação acham-se no processo histórico; são o que nele se revela à vanguarda (às classes e grupos ascendentes). ( Lyra Filho, 1999: 87).

            É a vanguarda, as classes ascendentes, que conhecem a Justiça. Sejam lá que valores tiverem tais classes, são justos. Venha o que vier, será melhor do que o presente. Eis a valoração positiva do futuro. O que vem pela frente é bom, desde que seja o que aqueles que ascendem hoje propõe, e isto é inevitável, dado que a organização social é a expressão dos interesses da classe dominante, e a classe ascendente se tornará dominante. Se Kelsen legitima a ordem presente, Lyra Filho legitima a ordem futura, ou mesmo a presente ordem, enquanto superior à que passou.

            De toda sorte, a força, a evidência de que o Direito compendia, a cada momento, a soma das conquistas libertárias fica provada por dois fatos. Em primeiro lugar, nenhum legislador, mesmo o pior dos ditadores, diz, em tese, que vai fazer a norma injusta (...) Em segundo lugar, os direitos já conquistados geralmente não são desafiados pelo dominador. Então, o dominador vai absorvendo o discurso de liberdade, para negá-lo, de fato nas normas espoliativas e opressoras (...) Ao menos, não se confessam abertamente essas violências, o que significa que nem o opressor pode negar o Direito: apenas entorta-lo, dizendo uma coisa e fazendo outra(Lyra Filho, 1999: 84).

            Lyra Filho afirma que o Direito "compendia, a cada momento, a soma das conquistas libertárias" e Kelsen, como veremos afirma que o Direito é um conjunto de normas postas por atos humanos contingentes. Em Lyra Filho o Direito é legítimo porque é um processo de libertação, em Kelsen ele é simplesmente suposto como tal. Nem sempre é possível ao legislador omitir de positivar as normas que emanam dos processos sociais e, portanto, a cada momento, o Direito incorpora, em maior ou menor medida, "direito" propriamente dito, mesclado com "antidireito". É claro que as "provas" apresentadas não são conclusivas, apenas indicam que o legislador não deseja contrariar o que a opinião pública entende como direito. Entretanto, nos termos de Lyra filho, percebe-se que o legislador conhece o que, de fato, é o direito e não deseja contrariá-lo, provavelmente por se tratar de um regime democrático e imperar o medo de perder eleições. Neste contexto, apesar dos interesses egoístas e classistas do legislador há razoável probabilidade de que as leis por ele estabelecidas possam ser interpretadas como o que Lyra Filho chama de Direito, ou seja, as reivindicações emanadas das lutas de classe.

            Com isto Lyra Filho esta afirmando, por um lado, que o direito estatal vigente é, por um lado, antidireito, na medida em que serve como instrumento de dominação das classes dominantes, mas também que, por outro, ele contém certos princípios libertadores que podem estar presentes em graus variáveis. Se isto não é legitimar o direito, ao menos o é mais do que dizer que o mesmo é legítimo apenas se o supormos como tal, que é a postura de Kelsen.

            O Direito não restringe a liberdade, pois, uma vez que a liberdade é a essência do homem, estaria restringindo o que nele há de humano. O Direito é, antes, para Lyra Filho, um processo de libertação.

            Também é um erro ver o direito como pura restrição à liberdade, pois, ao contrário, ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-se apenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absoluta liberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade para ninguém, pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral. ( Lyra Filho, 1999: 89).

            Eis o grande defeito do positivismo: o Direito é a positivação da liberdade e ele o vê como restrição da mesma. O Direito formula os princípios de justiça Social e o positivista o vê como mero conjunto de regras.

            O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. Por isso, é importante não confundi-lo com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social. Estas últimas pretendem concretizar o Direito, realizar a Justiça, mas nelas pode estar a oposição entre a Justiça de classes e grupos dominadores, cuja ilegitimidade então desvirtua o "direito" que invocam (Lyra Filho, 1999: 88).

            Lyra Filho não aceita ver o Direito como mera parte da superestrutura, nem como mero produto estatal. O Direito, já o disse, é para ele "reto" e "correto", ou melhor, bom. A superestrutura e as normas estatais são instrumentos de dominação e, portanto, maus. Se o Direito é bom, não pode ser mau. Daí que Lyra Filho recuse o positivismo jurídico (Direito como sistema de normas) e o "positivismo de esquerda" (Direito como normas do Estado que é dominado pela classe detentora dos meios de produção) em favor da "essência" do direito que, por fim ele desvenda em seu livro (é claro que com uma preciosa ajuda de Marx e Engels).

            Porém, o princípio jurídico fundamental (isto é, a matriz de todos os outros, que vão se desvendando no processo libertador e inspiram a avaliação de qualquer norma) já foi conscientizado e expresso, no tempo histórico, para guiar-nos, como bússola da luta pelo Direito e desmentindo a qualquer ordem que, de jurídica, tenha somente o nome, falsamente invocado. Foi Marx igualmente quem o registrou, assinando juntamente com Engels um documento célebre, no qual se lê: "o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos". Isto é que é Direito, na "essência", modelo e finalidade. Tudo o mais, ou é conseqüência, a determinar no itinerário evolutivo, ou é deturpação, a combater como obstáculo ao progresso jurídico da humanidade.( Lyra Filho, 1999: 90/91).

            O primeiro pecado do positivismo jurídico teria sido a invocação em vão do Santo nome do Direito para representar um conjunto de regras. O Direito seria processo de libertação, não um conjunto de regras. Este processo de libertação se revelaria na história, através das lutas de classes e seria percebido pela sociologia. A sociologia jurídica seria capaz de revelar o Direito pela análise dos processos histórico-sociais. Neste sentido a teoria pura do direito de Kelsen não poderia se compatibilizar com a sociologia.

            Se entendermos a teoria pura do direito como uma teoria pura da legislação, mesmo assim ela se revela errônea, uma vez que a legislação, revela-o uma sociologia dialética, é instrumento de dominação de uma classe detentora dos meios de produção, e não um sistema de regras arbitrarias.

            Por certo que aqui não foram apresentados os mais recentes ou elaborados argumentos contrários a uma aproximação da teoria pura do direito com a sociologia, mas os demais apresentam-se ou afirmando o caráter valorativo do Direito, que deve ser buscado na sociedade, com recurso à sociologia, ou o caráter ideológico do positivismo jurídico, e do formalismo em geral, como expressão de uma burguesia, às vezes vitoriosa, às vezes decadente. Neste sentido, Lyra Filho é tomado como uma amostra de um universo de pensamento, que bebe em fontes marxistas ou no amor ao direito e apontam a "redução" do pensamento kelseniano, que se torna limitado ao excluir de sua teoria tanto a moral como a sociologia.

            A sociologia mostra que o Direito não é o que Kelsen afirma que é, portanto, a teoria pura do direito não resiste à críticas sociológicas.

            Lyra Filho ao definir o Direito como princípios libertários que emanam da luta de classes e a legislação como um conjunto de leis a serviço dos interesses de uma classe, e ao fazê-lo conforme a uma sociologia dialética que contrapõe-se a uma sociologia ideológica, põe a seguinte situação: Kelsen afirma que o Direito é um conjunto de normas, que estas são a objetivação de conteúdos subjetivos de sentido e que estes são arbitrários, ao passo que a sociologia revela que o Direito não é isto, mas sim princípios libertários que surgem da sociedade, ou melhor, das lutas de classes e processos sociais, e que a lei é determinada pela infra-estrutura, constituindo-se um mero reflexo dos interesses da classe que controla os meios de produção. Uma sociologia que afirmasse o contrário seria ideológica. A sociologia prova cientificamente que o Direito não é o que Kelsen diz que é, e, ainda que se aceitasse por Direito apenas a legislação estatal, Kelsen ainda seria incompleto e ideológico, por esconder o caráter instrumental da legislação enquanto aparato de um Estado que é um instrumento de dominação classista. Nestes termos, a teoria kelseniana não seria compatível com uma sociologia isenta de erro ideológico.

            2- Hans Kelsen

            Kelsen entende-se como um jurista. Sua grande pretensão é criar uma ciência do direito que não seja equivalente à sociologia do direito ou a uma história do direito. A obra que aqui será tomada por base é a Teoria Pura do Direito. As razões para tal escolha são: a importância que, em geral, se atribui a ela; o fato de ser uma obra que pretende apresentar uma teoria geral do direito; o fato de ser uma obra síntese e de ter sido revista; por ser, enfim, a obra mais citada e criticada do autor.

            Em "Teoria Pura do Direito" o autor pretende formular uma teoria acerca do Direito que não seja uma doutrina política. Pretende fazer uma ciência do direito.

            Desde o começo foi meu intento elevar a jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda ciência: objetividade e exatidão. (Kelsen, 2000: XI)

            Porém, a teoria que pretende erigir não é uma ciência de um Direito em particular, mas uma teoria geral do Direito.

            Quando a si própria se designa como "pura" teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença a seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental (Kelsen, 2000: 1).

            Podemos colocar, como uma apresentação preliminar da Teoria Pura do Direito algumas idéias chaves em que insiste o autor. A teoria do Direito não se confunde nem com a sociologia, nem com a ética e nem com a política. Tal teoria é limitada por seu objeto. Kelsen sustenta rigorosamente a distinção entre o "ser" e o "dever ser", por isso a ciência que descreve algo da ordem do "dever ser" é radicalmente diversa de uma ciência que descreva algo da ordem do "ser". A razão pela qual se deve fazer algo é, necessariamente, expressa em forma de "dever ser", por isso o Direito não se legitima por qualquer fato da ordem do "ser". Ademais, Kelsen tenta retirar do Direito, ou melhor, da ciência jurídica, as explicações baseadas em personificações ou em um animismo.

            Eis, no meu entender, os dois postulados metodológicos fundamentais do pensamento kelseniano: a separação radical entre a ordem do ser e a do dever ser, e a explicação lógica e sistemática em substituição às personificações e metáforas tão usuais em teoria do Direito.

            A apresentação do pensamento do autor se fará em três etapas: a primeira envolverá o pensamento do autor acerca de temas mais filosófico-sociológicos, tais como a distinção entre natureza e sociedade, entre ciência social e natural, o homem e a sociedade. Estas questões serão chamadas de "questões preliminares", uma vez que não constituem o principal objeto de estudo de Kelsen. A segunda etapa tratará do que o autor chama de "dinâmica jurídica", e a terceira da "estática" jurídica. Estas duas últimas etapas serão tratadas em capítulo à parte, uma vez que se prestam a um detalhamento do pensamento do autor e constituem algo como que o núcleo da teoria pura do direito.

            Apesar de o presente trabalho tomar a "teoria pura do Direito" como principal fonte para a apresentação do pensamento Kelseniano, apenas alguns temas que ali são tratados serão abordados aqui. Isto por buscar selecionar apenas temas relevantes para a problemática aqui tratada ou idéias e conceitos passíveis de serem transpostos para uma análise da sociedade.

            Questões Preliminares.

            Natureza e Sociedade.

            Conforme exposto anteriormente, um postulado fundamental para Kelsen é a distinção entre "ser" e "dever ser". Não seria exagero caracterizá-lo como uma obsessão do autor. Em sua visão são duas ordens absolutamente separadas no sentido de que o pensamento lógico não é capaz de deduzir, a partir de premissas de uma ordem, conclusões de outra.

            A distinção entre sociedade e natureza está relacionada à distinção acima mencionada, uma vez que Kelsen define a natureza como um conjunto de elementos relacionados entre si por meio do princípio da causalidade, e a sociedade como um conjunto dos mesmos elementos, porém, relacionados entre si pelo princípio da imputação, ou seja, relacionados por um princípio normativo. Estas definições causam estranheza, uma vez que a sociedade geralmente é definida pela população, território, estado, ou outros elementos similares. No entanto a definição de sociedade em contraposição à natureza é central no pensamento kelseniano.

            A natureza é, segundo uma das muitas definições deste objeto, uma determinada ordem das coisas ou um sistema de elementos que estão ligados uns com os outros como causa e efeito, ou seja, portanto, segundo um princípio que designamos por causalidade. As chamadas leis naturais, com as quais a ciência descreve este objeto – como, v. g., esta proposição: quando um metal é aquecido, dilata-se – são aplicações deste princípio. A relação que intercede entre o calor e a dilatação é a de causa e efeito. (Kelsen, 2000: 85).

            A natureza, portanto, define-se pelo princípio da causalidade. Kelsen não pretende, porém, dar uma definição ontológica da natureza, ou seja, não pretende que o princípio da causalidade lhe seja algo inerente, adentrando em discussões acerca da capacidade humana de conhecer o mundo tal como é. De fato, o autor afirma que o princípio da causalidade tem uma origem social e que é aplicado pelo homem a certos objetos que, exatamente por receberem tal aplicação, constituem o que chamamos "natureza".

            Numa fórmula um tanto paradoxal, poder-se-ia dizer que, no começo da evolução, durante o período animístico da humanidade, apenas houve sociedade (como ordem normativa), e que a natureza, como ordem causal, somente foi criada pela ciência, depois de esta ter se libertado do animismo. O instrumento daquela emancipação é o princípio da causalidade. (Kelsen, 2000: 94).

            Bem pode alguém dizer que neste trecho temos uma valoração positiva do princípio da causalidade, ou negativa do período que o autor chama de animismo. Esta valoração não é negada pelo autor, tanto assim que o mesmo postula a "pureza" da ciência jurídica, ou seja a desvinculação desta dos valores. À parte disto, encontramos nesta passagem a proposição de que o pensamento humano é primeiramente normativo, o que, na linguagem do autor, corresponde a ser primeiramente social. Tudo era pensado em termos de dever-ser e a característica fundamental da "natureza", tal como entendida hodiernamente é ser regida pelo que se denomina "leis naturais".

            Natureza e Sociedade não são complementares, nem a Sociedade é parte da Natureza. São duas ordens distintas. São artefatos (no sentido de que são artificiais) cognitivos, concepções acerca da realidade. Um exemplo claro do que quer dizer o autor é o que segue:

            É verdade que aquilo que já aconteceu não pode ser transformado em não acontecido; porém, o significado normativo daquilo que há um longo tempo aconteceu pode ser posteriormente modificado através de normas que são postas em vigor após o evento que se trata de interpretar. (Kelsen, 2000: 15).

            Nota-se, no trecho, a distinção entre um campo fatual e um campo normativo. Algo, um fato, pode ser socialmente modificado mesmo posteriormente. Um personagem histórico pode passar de heróis a bandido séculos após sua morte, ainda que nenhum dado fatual adicional passe a ser levado em conta. A sociedade é distinta da natureza. (11)

            Em contraste com a natureza, define-se a sociedade pelo princípio da imputação (ou seja, se A, então deve ser B). A sociedade é uma ordem normativa. A natureza, uma ordem causal.

            A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. Estes pertencem à sociedade na medida em que a sua conduta é regulada por uma tal ordem, é prescrita, é autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa, de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre esses indivíduos (Kelsen, 2000: 96).

            Kelsen encontra uma distinção entre indivíduo e sociedade. Aquele é um ser e, enquanto tal, é parte da natureza. A sociedade é uma ordem normativa, que é constituída por conteúdos de sentido de ações humanas, não por indivíduos. Segundo o autor, "’Norma’ é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de que adjudicada à competência de alguém" (Kelsen, 2000: 6).

            Em verdade, a sociedade seria um conjunto de ordens normativas. Estas são formadas por sentidos orientados à conduta de indivíduos. Mas tais sentidos, especialmente se pertencentes a ordens normativas diversas, não são necessariamente complementares. Eles podem chocar-se, contradizer-se, nunca, porém, em uma mesma ordem normativa. Eis um exemplo: "Se apenas se toma em conta o Direito Estadual, e não o Direito internacional, o estatuto de uma corporação representa uma ordem jurídica parcial em confronto com a ordem jurídica estadual como ordem jurídica global" (Kelsen, 2000: 197). Ou ainda:

            Um homem que mata a esposa adúltera ou o seu amante é, segundo a maioria das ordens jurídicas vigentes, um criminoso, mas o seu feito pode por muitos não ser de forma alguma reprovado, sim, pode mesmo ser aprovado como exercício de um direito natural a proteger a sua honra. O duelo, contra o qual é cominado uma pena, é considerado por uma determinada camada social, não apenas como não imoral, mas como dever moral, e a pena de prisão que lhe corresponde não é tida como desonrosa. (Kelsen, 2000: 125).

            A sociedade é contraditória, mas não no sentido lógico do termo. Um indivíduo pode ser, como no caso citado, obrigado a fazer algo e proibido de fazer a mesma coisa. Pode dever e não dever tomar uma e mesma atitude. No entanto, se distinguirmos as diversas ordens normativas que compõe a sociedade, como direito e a honra, por exemplo, teremos que um indivíduo pode dever fazer algo segundo uma ordem e não dever segundo outra, ou seja, pode se ver frente a um confronto de ordens normativas, mas não frente a uma contradição lógica.

            Natureza e Sociedade constituem duas ordens distintas. A sociedade não é parte da natureza. A natureza é um conjunto de elementos relacionados causalmente, e a sociedade é um conjunto de ordens normativas, que são elementos relacionados normativamente.

            Em sua obra "Nature and Society", Kelsen expõe a teoria de que o princípio da causalidade decorre da sociedade, melhor dizendo, o autor afirma ali que o pensamento humano conheceu primeiramente o princípio da imputação, que, na terminologia do autor é definidor da sociedade. O pensamento humano seria, portanto, originalmente normativo, todas as coisas eram pensadas em termos de dever ser. Segundo Kelsen, "el primitivo interpreta la ‘naturaleza’ conforme a normas sociales, especialmente según la lex talionis, la norma de la retribuición" (Kelsen, 1945: 2). Assim, eventos naturais como a chuva e a seca, o dia e a noite eram interpretado em termos de recompensa e castigo, como se obedecessem a alguma vontade que, por sua vez era a mesma vontade positivada nas normas sociais vigentes. A explicação objetiva do mundo não é, para o autor, um anseio humano natural:

            "No hay razón que haga suponer entre los hombres primitivos una tendencia acentuada a la cognición o un deseo directo de una explicación objetiva del mundo, es decir, una explicación independiente de sus deseos o temores y libre de toda valoración/ incluso el hombre civilizado medio se afana en menor grado por el conocimiento objetivo que tras juicios de valor, y, con ellos, una justificación de sus intereses individuales a la luz de intereses colectivos (que se presentan, ideológicamente, como normas)" (Kelsen, 1945: 9).

            O homem primitivo busca, segundo Kelsen, antes atender a anseios normativos, busca apaziguar seus medos. A teoria kelseniana a este respeito afirma que o homem, a princípio, não se considera alheio à natureza, mas considera esta como sendo parte da sociedade. Ao contrário do que hoje a ciência afirma, que o homem é parte da natureza e, portanto, sujeito também de uma forma ou de outra às relações de causa e efeito (ainda que não necessariamente seja possível encontrar regularidades significativas), outrora a noção de causalidade era simplesmente desconhecida. O que hoje se considera como natural, ou causado por forças impessoais, considerava-se como uma ação social, dotada de sentido, e, em geral, como sanção ou recompensa.

            La ley de la causalidad se caracteriza esencialmente por el hecho de que enlaza el efecto con la causa. La causa es un hecho objetivo homogéneo con el efecto, y, como él, ocurrente en la naturaleza; al ser de la misma especie que el efecto, es por ello ella misma el efecto de una causa. De allí se sigue la interminable cadena de causa y efecto, inconcebible para el hombre primitivo, que es un elemento esencial en la concepción científica de la causalidad. (...) Si algo debe ser explicado, el hombre primitivo no pregunta, como el hombre civilizado de educación científica: "¿Cómo sucedió?", sino "¿Quién lo hizo?". (Kelsen, 1945: 69).

            Segundo Kelsen o princípio da imputação liga um elemento a outro da forma se A, então deve ser B. O homem primitivo pensa segundo este princípio. Se algo ocorre de mal é interpretado como uma sanção por uma falta cometida, e não como uma conseqüência de uma causa anterior. A sanção é um ato intencional da natureza contra algum responsável, homem ou não. "La atribuición de los fenómenos a una persona ficticia pone punto final a toda búsqueda de las causas" (Kelsen, 1945: 70). Kelsen descreve o princípio da causalidade como uma "degradação" do princípio da imputação no sentido de que perde-se o elemento da personificação, e com ele o caráter de sanção daquilo que passa a ser entendido como conseqüência.

            Tomando-se a sociedade como uma ordem normativa, o princípio da causalidade decorre, portanto, de uma ordem normativa. Mais precisamente, para o autor, este princípio decorre de uma deterioração do princípio retributivo, ou "lei de Talião". É por isso que Kelsen chega a dizer que primeiro houve a sociedade, enquanto uma ordem normativa, e apenas depois a natureza, enquanto uma ordem causal.

            O homem

            A distinção entre a sociedade e a natureza aventada por Kelsen levanta o problema de qual seja a condição humana. O homem seria parte da natureza ou da sociedade? A conduta humana é causalmente determinada, ou é regida pelo princípio da imputação, que ordena, mas não determina?

            É a questão da liberdade, que tanto atormenta os filósofos sociais. O homem é ou não é livre? O problema é que se sua conduta não é livre, ou seja, é determinada por leis causais, não se pode imputar-lhe qualquer prescrição normativa. Se, no entanto, sua conduta não é causalmente determinada, não é possível qualquer ciência do comportamento humano.

            A postura kelseniana frente ao problema aqui aventado é simples e ousada. A conduta humana é, para ele, determinada pela vontade. A vontade, por sua vez, é causalmente determinada, mas isto não implica na impossibilidade de uma ordem normativa da conduta humana, é, antes, seu pressuposto. Por fim, a liberdade não é a indeterminação causal da vontade, mas o ponto final de uma série de imputação normativa. Se entendida a liberdade como indeterminação causal da vontade, o homem não é livre.

            Neste ponto importa notar que, quando os indivíduos submetidos à ordem social se comportam de fato em conformidade com as normas desta ordem, isso também sucede apenas porque tal conduta corresponde à sua inclinação ou interesse egoístico, uma inclinação e um interesse egoístico, que são provocados pela ordem social e que possivelmente – mas não necessariamente – são contrários à inclinação ou interesse egoístico que existiria se não fora a intervenção da ordem social. O homem pode ter inclinações ou interesses que mutuamente se contradizem. A sua conduta efetiva depende de qual seja a inclinação mais intensa, de qual seja o interesse mais forte. Nenhuma ordem social pode precluir as inclinações dos homens, os seus interesses egoísticos, como motivos das suas ações e omissões. Ela apenas pode, se quer ser eficaz, criar para o indivíduo a inclinação ou interesse de se conduzir em harmonia com a ordem social e se opor às inclinações ou interesses egoísticos que, na ausência daquela atuariam. ((Kelsen, 2000: 69).

            O homem age de acordo com sua vontade, entendendo por esse termo tanto as inclinações como os interesses egoísticos. Os fatores formadores da vontade podem ser contraditórios. Um homem pode desejar comer pelo prazer que isto lhe dá, e não desejar comer, ao mesmo tempo, pelo medo de engordar. Segundo Kelsen, prevalece a inclinação mais forte. A vontade humana é causalmente determinada. A ordem social produz alterações no, digamos, panorama de resultados possíveis, influenciando as inclinações dos indivíduos.

            A natureza é constituída por cadeias infinitas de "elos" causais. Cada elemento é, a um só tempo, causa e conseqüência. A sociedade não. Ela é constituída por séries limitadas de imputações. Há início e há fim na série imputativa. Definir a liberdade como indeterminação causal da vontade significa dizer que o homem, ou sua vontade, é o ponto inicial de uma série de relações causais, ou seja, é causa, mas não é conseqüência. O homem, portanto, interferiria na natureza, ou melhor, criaria natureza, sem ser parte dela. Kelsen rejeita esta definição da liberdade, afirmando que ela não é a indeterminação causal (o ponto inicial de uma série causal) mas sim o ponto terminal de uma série normativa, ou cadeia de imputações.

            É este o verdadeiro significado da idéia de que o homem, como sujeito de uma ordem moral ou jurídica, isto é, como membro de uma sociedade, como personalidade moral ou jurídica, é "livre". E dizer que um homem sujeito a uma ordem moral ou jurídica é "livre" significa que ele é o ponto terminal de uma imputação apenas possível com base nessa ordem normativa. ((Kelsen, 2000: 104).

            Fica claro que o que Kelsen tem em mente é descrever uma situação: o homem é considerado livre porque é sujeito de ordens normativas. O que há de peculiar na conduta humana com relação às ordens normativas é que apenas ela é (mas poderia ser diferente, conforme opinião do autor) o ponto final de uma imputação.

            Kelsen reconhece, no entanto, que tal noção de liberdade não corresponde ao que se costuma chamar assim.

            No entanto, segundo a concepção corrente, a liberdade é entendida como o oposto da determinação causal. Diz-se livre o que não está sujeito à lei da causalidade. (...) A verdade, porém, é que o pressuposto de que apenas a liberdade do homem, ou seja, o fato de ele não estar submetido à lei da causalidade, é que torna possível a responsabilidade ou a imputação está em aberta contradição com os fatos da vida social. A instituição de uma ordem normativa reguladora da conduta dos indivíduos – com base na qual somente pode ter lugar a imputação – pressupõe exatamente que a vontade dos indivíduos cuja conduta se regula seja causalmente determinável e, portanto, não seja livre. Com efeito, a inegável função de uma tal ordem é induzir os homens à conduta por ela prescrita, tornar possíveis as normas que prescrevem determinada conduta, criar, para as vontades dos indivíduos, motivos determinantes de uma conduta conforme às normas. Isto, porém, significa que a representação de uma norma que prescreva determinada conduta se torna em causa de uma conduta conforme essa norma. Só através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo das representações dos indivíduos cuja conduta ela regula, no processo causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche sua função social. E também só com base numa tal ordem normativa que pressupõe a causalidade relativamente à vontade do indivíduo que lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar. (Kelsen, 2000: 104).

            Não saberia precisar o que o autor entende por "função social", mas ele afirma que a norma é um sentido subjetivo, que se aceita como objetivo dirigido à conduta de outrem. O objetivo do ato cujo sentido subjetivo é uma norma é muitas vezes explicito, com em "não matar". Assim, se por "função social" entendermos simplesmente "função pretendida pelo sujeito que põe a norma, o argumento fica mais claro. A idéia é a de que a imputação é uma técnica de produção de comportamento. A determinação causal da vontade humana é pressuposto para tal técnica. Se aquilo que é posto como pena for interpretado como recompensa, a norma não tem razão de ser. Mas o sentido subjetivo do ato que põe a norma é o de que aquilo que é estipulado como pena para o caso de conduta contrária à prescrita é um mal, e todos os indivíduos o receberão desta forma (ao menos uma grande maioria), e ainda, que o homem não quer para si um mal e irá, portanto, ser impelido a não cometer o ato vedado pela norma.

            A determinação causal da vontade é, assim, um pressuposto da imputação. O ato instituidor de uma norma supõe a determinação causal da conduta humana. Daí que Kelsen afirme:

            Do que acima dissemos resulta que não e a liberdade, isto é, a indeterminação causal da vontade, mas, inversamente, que é a determinação causal da vontade que torna possível a imputação. Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. (Kelsen, 2000:109).

            E ainda:

            A conduta que constitui o ponto terminal da imputação (...) de acordo com a causalidade da ordem da natureza não é, nem como causa nem como efeito, um ponto terminal, mas apenas um elo numa série sem fim. (Kelsen, 2000: 104).

            A visão de Kelsen a respeito da relação homem e natureza e a de que o homem é parte da natureza e, portanto, constitui um elo numa série causal infinita.

            A respeito da relação homem e sociedade já foi aqui afirmado que as ordens normativas interferem nos interesses egoísticos e inclinações humanos ao imputar conseqüências a certos comportamentos. Ou seja, é um dos fatores que interferirão na determinação do comportamento. Mas resta ainda uma questão a respeito da relação entre homem e sociedade, a de saber como se formam as normas e ordens normativas que compõe a sociedade e qual o papel do indivíduo nesta formação.

            Segundo Kelsen as normas, como já foi dito, são sentidos orientados à conduta de outros. Os homens criam as normas por meio de ações sociais, no sentido weberiano, ou seja, ações dotadas de sentido dirigidas à conduta de outrem. Portanto, a criação das normas e ordens normativas, e neste sentido, a sociedade, é arbitrária, contingente. A sociedade é formada por normas, que são o sentido de ações.

            Na medida em que as normas que constituem o fundamento dos juízos de valor são estabelecidos por atos de uma vontade humana, e não de uma vontade supra-humana, os valores através delas constituídos são arbitrários. (Kelsen, 2000:19).

            Pode-se identificar aqui a adoção de um individualismo metodológico no que concerne à criação de normas e, mesmo, à explicação da ação humana concreta.

            As normas são estabelecidas por atos de vontade humana e não são nada mais que sentidos subjetivos dirigidos à conduta humana que são tomados como objetivos.

            Há, porém, várias ordens normativas na sociedade e nelas várias normas. Cada indivíduo terá, determinando sua conduta, um conjunto possivelmente múltiplo de fatores, dentre os quais figurarão diversas ordens normativas. Não é possível compreender o comportamento humano sem tomar em conta tais ordens normativas, se bem que tomá-las em conta não seja garantia de compreendê-lo.

            A ciência

            Kelsen, nas obras pesquisadas, não procura dar uma definição precisa do que é ciência, mas apenas do que é a ciência jurídica. Entretanto, os temas que aborda com este objetivo permitem entrever um significado para o termo ciência. A ciência é contraposta ao pensamento normativo, tal como a natureza o é à sociedade. Uma das definições de ciência poderia ser a descrição dos elementos de acordo com o princípio da causalidade.

            Entretanto Kelsen distingue duas espécies de ciência: a ciência natural e a social, sendo distinção entre elas baseada na adoção do princípio da causalidade ou no da imputação. Portanto, o que se chama ciência não é o conhecimento orientado por um ou outro princípio.

            A característica definidora da ciência, que é comum a ambas as espécies de ciências, é sua objetividade. Por objetividade entenda-se ausência de valorações. Assim, a ciência, na visão kelseniana, opõe-se à política, e não ao senso comum propriamente.

            A distinção entre natureza e sociedade é aqui fundamental. Qualifica-se uma determinada ciência por seu objeto de estudo. As chamadas ciências naturais orientam seu pensamento pelo princípio da causalidade, entendendo a natureza como um conjunto de elementos relacionados por leis causais. Um saber sobre as relações humanas que perceba da mesma forma seu objeto, e se guie pelo mesmo princípio será também uma ciência natural. Se há distinção entre duas formas de ciência, tem de haver uma diferença nos princípios ordenadores do pensamento que as orientam. "Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever o seu objeto segundo um princípio diferente do da causalidade" (Kelsen, 2000: 85).

            Kelsen assume uma postura que cumpre esclarecer. Para ele há dois tipos de ciências, a saber, as naturais e as sociais. Aquelas são as que se valem do princípio da causalidade e estas do da imputação. Neste sentido, a sociologia seria uma ciência natural e não social. No entanto esta terminologia é ambígua, tanto porque não é mantida rigorosamente pelo autor, como porque os termos utilizados têm normalmente significado diverso. Assim o próprio autor utiliza a nomenclatura de "ciências sociais causais" e "ciências sociais normativas" para ficar mais concorde com os termos corriqueiros. Kelsen, adianto, é um monista metodológico. As ciências sociais causais não diferem das ciências naturais, mas têm as mesmas ambições: precisão e exatidão. Não são ciências "intuitivas" ou que incorporam elementos "subjetivos" (do sujeito cientista), mas são objetivas, empíricas, tal qual as ciências naturais. Assim também são as ciências sociais normativas, com a única diferença de que o princípio de que se valem na descrição de seu objeto é o da imputação e não o da causalidade.

            Para Kelsen, se definirmos a sociedade como um conjunto de fatos relacionados causalmente, isto implica em admitir apenas uma forma de ciência, uma vez que tal conhecimento não se diferenciaria das ciências naturais. Ou seja as ciências sociais causais e as ciências naturais não são essencialmente distintas. A diferença aqui, para o autor pode ser de grau, mas não de princípio

            O debate entre o monismo metodológico e o separatismo metodológico ganha com esta postura um novo colorido. Para o autor a vontade humana é determinada causalmente, o que implica na possibilidade de descrição das leis naturais que regem o comportamento humano. Entretanto, a sociedade tal como ele a define (elementos interligados pelo princípio da imputação) é algo distinto da natureza. Não distinto por ter um lógica ou "racionalidade" diferente, mas simplesmente porque as relações entre os elementos (relações estas que são conteúdos de sentido) são normativas, ou seja, seguem o princípio da imputação, e não o da causalidade. Neste sentido, na medida em que o comportamento humano se orienta por ordens normativas, que não podem ser deduzidas da natureza, o estudo de elementos naturais não pode conduzir a uma explicação completa do comportamento humano.

            Afirma o autor que:

            Uma vez conhecido o princípio da causalidade, ele torna-se também aplicável à conduta humana. A Psicologia, a Etnologia, a História, a Sociologia são ciências que têm por objeto a conduta humana na medida em que se processa no domínio da natureza ou da realidade natural. Quando uma ciência é designada como ciência social, na medida em que procura explicar causalmente a conduta humana, não se distingue essencialmente, como já foi salientado, das ciências naturais como a Física, a Biologia ou a Psicologia. Até que ponto é possível uma tal explicação causal da conduta humana, essa é uma outra questão. A distinção que, sob este aspecto, existe entre as mencionadas ciências sociais e as ciências naturais, é, em todo o caso, uma distinção apenas de grau e não de princípio. ((Kelsen, 2000: 96).

            Kelsen adere aqui ao monismo metodológico afirmando categoricamente que as diferenças entre as chamadas ciências sociais e as ciências naturais são diferenças de grau apenas. Não há nada na natureza humana, digamos assim, que implique em uma distinção quanto ao resto da natureza e exija um modo diferente de conhecimento.

            No entanto, o que se chama "Direito", uma ordem normativa, não pode ser descrito como um conjunto de fatos relacionados causalmente. Primeiro, o Direito não é um conjunto de fatos, mas um conjunto de conteúdos de sentido. Segundo, este sentido não é algo da ordem do ser, mas do "dever ser". O Direito, então, é "dever ser" e não "ser". Há outro princípio ordenador do pensamento humano, distinto da causalidade, que lhe corresponde no tange ao dever-ser: o princípio da imputação.

            O princípio da imputação é análogo ao da causalidade, no sentido de que ambos "ligam" dois elementos e são usados pela ciência para descrever seu objeto. A ciência do direito descreve-o por meio de proposições jurídicas que se valem do princípio da imputação.

            Procurando uma fórmula geral [para as proposições jurídicas] temos: sob determinados pressupostos, fixados pela ordem jurídica, deve efetivar-se um ato de coerção, pela mesma ordem jurídica estabelecido. (...) Tal-qualmente uma lei natural, também uma proposição jurídica liga entre si dois elementos. Porém, a ligação que se exprime na proposição jurídica tem um significado completamente diferente daquela que a lei natural descreve, ou seja, o da causalidade. Sem dúvida alguma que o crime não é ligado à pena, o delito civil à execução forçada, a doença contagiosa ao internamento do doente como uma causa é ligada ao seu efeito. Na proposição jurídica não se diz, como na lei natural, que, quando A é, B é, mas que, quando A é, B deve ser, mesmo quando B, porventura, não seja. O ser o significado da cópula ou ligação dos elementos na proposição jurídica diferente do da ligação dos elementos na lei natural resulta da circunstância de a ligação na proposição jurídica ser produzida através de uma norma estabelecida pela autoridade jurídica – através de um ato de vontade, portanto –, enquanto que a ligação de causa e efeito, que na lei natural se afirma, é independente de qualquer intervenção dessa espécie (Kelsen, 2000: 86/87).

            O princípio da imputação é análogo ao da causalidade no que se refere à possibilidade de utilização dos princípios lógicos, em especial o da não contradição, nas sentenças com eles construídas. Por outro lado, guarda uma diferença fundamental: não é o mesmo dizer que se A é, então B é, ou dizer que se A é, segundo um ordenamento jurídico, B deve ser. A analogia entre ambos reside na possibilidade de aplicação dos princípios lógicos às proposições deles decorrentes. Um princípio não é redutível ao outro.

            De fato, não é por determinado indivíduo ter posto por um determinado ato em um determinado período uma norma (este ato é um fato da ordem do ser, um fato da natureza que pode ser explicado causalmente), que B deve ser, mas pelo sentido de um ato que assim determina (o sentido do ato é um dever ser e, portanto, parte do que Kelsen chama de sociedade), e tal sentido é vinculante por ter sido posto em conformidade com um outro sentido, outra norma. De uma norma só se pode derivar outra norma, bem como de um fato, apenas outro fato. Com efeito, um fato é sempre causa de um outro fato e conseqüência de um fato anterior. Na natureza, todo fato é apenas um elo em uma série infinita de ligações causais. Na imputação não é assim. Há normas das quais não se derivam outras normas, e há normas que não são derivadas de quaisquer normas, sem isto querer dizer que há normas que impliquem em fatos ou deles decorram logicamente.

            Uma outra distinção entre causalidade e imputação consiste em que toda a causa concreta pressupõe, como efeito, uma outra causa, e todo efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, por tal forma que a cadeia de causa e efeito – de harmonia coma essência da causalidade – é interminável nos dois sentidos (...) A situação é completamente diferente no caso da imputação. O pressuposto a que é imputada a conseqüência numa lei moral ou jurídica, como, por exemplo, a morte pela pátria, o ato generoso, o pecado, o crime, a que são imputados, respectivamente, a veneração da memória do morto, o reconhecimento, a penitência, a pena, todos esses pressupostos não são necessariamente conseqüências que tenham de ser atribuídas a outros pressupostos. (...) O número dos elos de uma série imputativa não é, como o número dos elos de uma série causal, ilimitado, mas limitado. Existe um ponto terminal de imputação. (Kelsen, 2000: 101).

            O objeto da ciência jurídica é radicalmente distinto da natureza. Não fazem parte da mesma ordem nem podem ser descritos segundo o mesmo princípio ordenador do pensamento. Esta distinção implica em uma distinção das ciências.

            A ciência jurídica é distinta das naturais mas permanece sendo ciência. Forma um corpo de conhecimento objetivo. O cientista do direito, tal como o da natureza, descreve seu objeto de estudo de forma objetiva, valendo-se dos princípios lógicos e de um método rigoroso. Tais são as características das ciências: a busca pela objetividade e exatidão.

            Do fato de a proposição jurídica descrever algo, não se segue que esse algo descrito seja um fato da ordem do ser, pois não só os fatos da ordem do ser mas também as normas de dever ser (Soll-normen) podem ser descritas. Particularmente, a proposição jurídica não é um imperativo: é um juízo, a afirmação sobre um objeto dado ao conhecimento. (Kelsen, 2000: 89).

            Convém aqui explicitar o que quer o autor dizer por "juízo":

            Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juízos que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos, e não ao juízo como função do conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante. Isto é em possível. Podemos, com efeito, determinar a relação de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa, aprovando-a ou desaprovando-a. (Kelsen, 2000: 22).

            Tem-se a impressão de que Kelsen afirme aqui um separatismo metodológico, no sentido de que há duas espécies distintas de ciência: uma que relaciona causalmente os elementos e outra que o faz imputativamente. O separatismo aqui afirmado não é uma diferença na metodologia de forma a que as ciências sociais possam captar toda a gama de expressões humanas, tais como a intuição, os sentimentos, desejos, paixões e mesmo loucuras, que são entendidas como indeterminados causalmente. Pelo contrário, na concepção de Kelsen, o homem é determinado causalmente até mesmo em sua vontade. No entanto, há um ramo da ciência que, por descrever o conteúdo normativo de sentido, ou seja, o dever ser, não se vale de leis causais. Esta ciência utiliza, por outro lado, a mesma lógica, a mesma "racionalidade", e busca os mesmo ideais normativos (que caracterizam também a própria ciência, como parte da sociedade, como uma ordem normativa) de objetividade e exatidão. Diria eu que Kelsen é um monista metodológico, mas separatista principiológico.

            Ao tratar da Sociologia, Kelsen a entende como uma ciência natural, ou melhor, uma ciência social causal, uma vez que estuda o homem enquanto parte da natureza, e não como uma ciência social termo que aqui é aplicado apenas para as ciências sociais normativas. É a ciência jurídica, que ao estudar uma ordem normativa (a sociedade é uma, ou uma dentre várias, ordem normativa) caracteriza-se como ciência social (subentenda-se: normativa).

            Determinando o Direito como norma (ou, mais exatamente, como um sistema de normas, como uma ordem normativa) e limitando a ciência jurídica ao conhecimento e descrição de normas jurídicas e às relações por estas constituídas, entre os fatos que as mesmas normas determinam, delimita-se o Direito em face da natureza, e a ciência jurídica, como ciência normativa, em face de todas outras ciências que visam o conhecimento pela lei da causalidade, de processos reais. Somente por esta via se alcança um critério seguro que nos permitirá distinguir univocamente a sociedade da natureza e a ciência social da ciência natural. (Kelsen, 2000: 84).

            Vislumbra-se, porém, uma série de outros objetos para o que Kelsen chama de "ciência social normativa", em especial a própria sociedade.

            Somente quando a sociedade é entendida como um ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural (Kelsen, 2000: 86).

            Quando Kelsen aqui fala da sociedade como ordem normativa, ele esta apenas afirma expressamente que são ciências deste tipo a ética e a jurisprudência. Anteriormente mostrou-se que Kelsen define a sociedade justamente em oposição à natureza, pelo princípio da imputação. Daí que o que ele refere como sociologia estude, segundo suas palavras, a "conduta humana", e não a sociedade. Esta é, em sua terminologia, uma ordem normativa e, portanto, seu estudo caberia a uma ciência social normativa.:

            Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito (...) Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais. (Kelsen, 2000: 85)

            Não há razão para não tomar a conduta humana como causalmente condicionada. Kelsen afirma que na medida em que se considere uma ciência como ciência "social" por estudar a conduta dos homens uns em relação aos outros, esta ciência em nada diferiria das ciências naturais. Isto porque mesmo que o objeto de estudo tenha uma peculiaridade, a ciência, o conhecimento que se cria sobre ele é semelhante ao conhecimento que se cria acerca da natureza. Uma ciência social strictu sensu seria, para Kelsen, a ciência social normativa, ou seja, a ciência jurídica ou uma ciência que se valha do princípio da imputação.

            As chamadas ciências sociais normativas (ou o que seria strictu sensu no linguajar do autor simplesmente ciências sociais), dentre as quais a ciência jurídica, não se voltam para o estudo da conduta humana, mas para as normas (conteúdos de sentido) sociais ou especificamente jurídicas.

            Num conhecimento dirigido às normas jurídicas não são tomados em consideração – nunca é demais acentuar isso – os indivíduos como tais, mas apenas as ações e omissões dos mesmos, pela ordem jurídica determinados, que formam o conteúdo das normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 189).

            Temos aqui, portanto, duas formas de ciência estudando o relacionamento humano. Uma estudando-o enquanto causalmente determinado e outro estudando as normas que incidem sobre o mesmo comportamento.

            Importante notar que por ciência normativa Kelsen não entende uma ciência que prescreva comportamentos, mas apenas os descreva.

            Se estas ciências são designadas como ciências normativas, isto não significa que elas estabeleçam normas para a conduta humana e, conseqüentemente, prescrevem uma conduta humana, confiram competência para ela ou positivamente a permitam, mas que elas descrevem certas normas, postas por atos humanos, e as relações entre os homens através delas criadas. (Kelsen, 2000:96).

            Direito

            Convém esclarecer agora o que Kelsen entende por Direito e lançar os conceitos e categorias essenciais de sua teoria, que será melhor explicitada em capítulo próprio, quando se versará sobre a estática e dinâmica jurídicas.

            O Direito constitui o objeto de estudo de Hans Kelsen. E seu intento é descrevê-lo e explicá-lo segundo o "ideal de toda ciência: objetividade e exatidão" (Kelsen, 2000: XI). Para tanto, pretende "libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos" (idem: 1). Eis o postulado metodológico fundamental de sua teoria. Para o autor, tal postulado "não pode ser seriamente posto em dúvida, se é que deve haver algo como uma ciência do Direito. Duvidoso apenas pode ser até que ponto tal postulado é realizável" (idem: XIV). Este é o espírito com que escreve: uma firme convicção na possibilidade de um conhecimento objetivo, ainda que acerca do Direito. O autor assume, penso que por esta razão, uma postura de rigidez conceitual, definindo cada termo ou idéia de modo claro e preciso.

            Tentarei expor com semelhante clareza as idéias e conceitos acerca do direito que me parecem ser fundamentais (12).

            A definição do Direito, na obra de Kelsen, encontra várias expressões que denotam sempre todas ou algumas das seguintes características:

            I_É constituído por normas.

            II-É um sistema de normas (uma ordem normativa).

            III-É coercitivo (vale-se da força, impõe sanções contra a vontade do indivíduo

            Estas seriam as principais características do Direito que, sem prejuízo algum, seria definido por uma ordem normativa coercitiva da conduta humana. O caráter coercitivo é enfatizado enquanto fator que distingue o Direito das demais ordens normativas que, por sua vez, são distintas da natureza. Mais adiante trataremos do caráter coercitivo do Direito, mas, por ora, tomemos a seguinte definição:

            Na verdade, o Direito (...) é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano (Kelsen, 2000: 5).

            O Direito é, portanto, um sistema de normas e não um mero conjunto delas. É dotado de lógica interna. A explicitação da sistemática do Direito é papel da Teoria Pura do Direito. É do que trata a "Estática" e a "dinâmica" jurídicas.

            Kelsen continua a definição dada, esclarecendo que:

            Com o termo "norma" se quer significar algo que deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem (Kelsen, 2000:5).

            A norma é "dever ser", o que torna o Direito um sistema de "dever ser". A norma é o sentido de determinados atos. Note-se que a norma não é o ato, mas seu sentido. O ato é da ordem do ser, mas seu sentido não. Importante é notar que a norma possui dentre outras, estas duas características essenciais: 1) é um conteúdo de sentido e 2) é um dever-ser. É, em sua uma intenção de uma ação dirigida a ação de outrem. O ato que põe a norma é um fato da ordem do ser. O sentido do ato não. O sentido do ato é um dever ser, no caso de um ato que estabeleça uma norma.

            As normas porém, que são estabelecidas através destes atos de valoração, não são fatos da ordem do ser, mas conteúdos de sentido, ou seja, o sentido dos atos que estabelecem as normas. Este sentido é um dever ser (Kelsen, 2000: 405)

            E ainda:

            Ela (a norma jurídica) não é, com efeito um enunciado pelo qual se descreva uma conexão de fatos, uma conexão funcional. Não é sequer um enunciado, mas o sentido de um ato com o qual se prescreve algo e, assim, se cria a ligação entre fatos, a conexão funcional que é descrita pela proposição jurídica, como lei jurídica. (Kelsen, 2000:90)

            O Direito é uma ordem ou sistema de conteúdos de sentido normativos dirigidos à conduta humana. O conteúdo de sentido de um ato carece, como é evidente, do ato para passar a existir, no entanto, sua permanência independe da permanência do ato, ou da vontade que o pôs, donde são duas coisas distintas: "O indivíduo que, com o seu ato intencional dirigido à conduta de outrem, criou uma norma jurídica, não precisa continuar a querer essa conduta para que a norma que constitui o sentido de seu ato valha" (Kelsen, 2000: 11).

            Ao mesmo tempo em que é criado por uma ação humana, o direito é independente desta. Para que se tome uma norma como válida, o que, para Kelsen, é sinônimo de existente, não é necessário que se reconheça nas ações dos indivíduos, ou mesmo em suas vontades, qualquer moção no sentido de querer a norma.

            O Direito é algo alheio aos indivíduos concretos, ainda que orientem por ele suas condutas, sejam por ele afetados ou mesmo o tenham criado. Resulta disto que para conhecer e analisar o Direito não é absolutamente necessário que se conheça a conduta empírica de juizes, advogados ou legisladores, mas sim um determinado sistema de conteúdos de sentidos, ou melhor, um sistema normativo. Daí dizer-se que o Direito seja uma disciplina dogmática.

            Somente quando se entenda "ideologia" como oposição à realidade dos fatos da ordem do se, isto é, quando por ideologia se entenda tudo que não seja realidade determinada por lei causal ou uma descrição desta realidade, é que o Direito, como norma – isto é, como sentido de atos da ordem do ser causalmente determinados mas diferente destes atos –, é uma ideologia. Neste caso, uma teoria do Direito, que não descreve estes atos na sua conexão causal com outros fatos da ordem do ser mas apenas descreve as normas que constituem o sentido destes atos – e o faz, na verdade, através de proposições jurídicas, isto é, em leis que não afirmam, como as leis naturais, uma conexão causal, mas uma conexão de imputação – vai dirigida à legalidade própria de uma ideologia. Nesse caso, a Teoria Pura do Direito desimpediu o caminho para aquele ponto de vista a partir do qual o Direito pode ser entendido como ideologia neste sentido – isto é, como um complexo sistemático diferente da natureza.

            - A possibilidade e a necessidade de uma tal disciplina endereçada ao Direito como teor de sentido normativo, são demonstradas pelo fato secular de a ciência do Direito que, como jurisprudência dogmática, e enquanto houver Direito, servirá às necessidades intelectuais dos que deste se ocupam. Não há qualquer razão para deixar insatisfeitas estas necessidades inteiramente legítimas e para renunciar a tal ciência do Direito. Substituí-la pela sociologia do Direito é impossível, pois esta ocupa-se de um problema inteiramente diferente daquele. Assim como, enquanto houver uma religião, terá de haver uma teologia dogmática que não pode ser substituída por qualquer psicologia ou sociologia da religião, também haverá sempre – enquanto houver um Direito – uma teoria jurídica normativa. A sua posição no sistema global das ciências é uma outra questão, uma questão subalterna. O que importa não é fazer desaparecer esta ciência juntamente com a categoria do dever ser ou da norma, mas limitá-la ao seu objeto e clarificar criticamente o método. (Kelsen, 2000: 116).

            Importa, pois, realizar um estudo do Direito que não confunda este com os fatos sociais que originam ou são por ele originados. Não há razão para reduzir a Teoria do Direito à Sociologia do Direito, uma vez que o Direito não é um conjunto de fatos empíricos, mas um sistema de normas, um sistema normativo. É significativa a comparação com a teologia dogmática. Para o fiel compreender sua religião não importa tanto uma sociologia ou história da religião, mas sim um estudo sobre o conteúdo de significado que este corpo cognitivo-normativo contém. O Direito, tal como a religião, são conteúdos de sentido, ou melhor, sistemas normativos que para serem explicados não basta a vinculação de uma crença a uma dada condição social ou psicológica, mas exige-se também a descrição mesma do sistema normativo, sua estrutura lógica interna e as relações que ele mantém com a realidade fática, ou pretende manter.

            Retomando o que foi colocado até aqui, temos que: o direito é uma ordem normativa; uma ordem normativa é um sistema de normas; norma é o conteúdo de sentido dirigido à conduta de outrem. Tratemos agora do que o ator entende por "sistema".

            Uma "ordem" ou um "sistema" é um conjunto de elementos relacionados entre si. Tal é o conceito que pode ser aplicado ao que Kelsen chama de "ordem". Ao definir o Direito, a moral ou mesmo a sociedade como ordens normativas o que tem em mente é que são conjuntos de normas relacionadas, no caso, relacionadas por um vínculo que confere a unidade a que Kelsen chama "norma fundamental".

            Uma norma de trânsito que imponha aos que conduzam veículos automotores o dever de parar diante do semáforo quando este mantém acesa uma luz vermelha não está, aparentemente, relacionada a uma outra que permite a alguém alterar seu próprio nome por uma determinada razão, no entanto, ambas fazem parte do Direito. A relação específica que Kelsen entende haver entre elas, e que as torna parte de uma mesma ordem normativa, é o compartilhar de um mesmo fundamento de validade, ou seja, ambas são consideradas válidas pela mesma razão, qual seja, haverem sido postas em conformidade com um conjunto de regras que se supõe serem objetivas.

            Uma ordem é um sistema de normas cuja validade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é, como veremos, uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem. (Kelsen, 2000: 33).

            Uma ordem normativa é, portanto, um sistema de normas com um fundamento de validade comum. A validade é a existência da norma, é seu "efeito vinculante". Uma norma válida é uma norma que, segundo a ordem normativa em questão, constitui um dever-ser. Uma norma válida é aquela cujo sentido subjetivo (posto por um ou mais indivíduos) é interpretado como seu sentido objetivo.

            Se o ato legislativo, que subjetivamente tem o sentido de dever ser, tem também objetivamente este sentido, quer dizer, tem o sentido de uma norma válida, é porque a Constituição empresta ao ato legislativo este sentido objetivo. O ato criador da Constituição, por seu turno, tem sentido normativo, não só subjetiva como objetivamente, desde que se pressuponha que nos devemos conduzir como o autor da Constituição preceitua. (Kelsen, 2000: 9).

            A validade de uma norma é, dada pelo fato de ela consistir em não apenas um sentido subjetivo, mas também um sentido objetivo. Este sentido objetivo é conferido a uma norma por seu fundamento de validade. Como de fatos da ordem do ser não se podem deduzir algo da ordem do "dever ser", o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser outra norma.

            Todas as normas de uma mesma ordem normativa têm o seu fundamento de validade em uma mesma norma fundamental. A norma fundamental é uma norma pressuposta, uma vez que sua validade em nada se fundamenta.

            A diferença entre um ato de comando e uma norma é, por conseguinte, esta: o ato de comando constitui o sentido subjetivo de um ato dirigido à conduta de outrem, a norma é o sentido objetivo, dentro de uma ordem normativa, dirigido à conduta de outrem.

            A diferença (entre o comando de um salteador e o de um órgão jurídico) apenas ganha expressão quando se descreve, não o sentido subjetivo, mas o sentido objetivo do comando que um indivíduo endereça a outro. Então, atribuímos ao comando do órgão judiciário, e já não ao do salteador de estradas, o sentido objetivo de uma norma vinculadora do destinatário. (Kelsen, 2000: 49).

            Na hipótese de não aceitarmos qualquer norma fundamental, ou melhor, de não tomar como pressuposto qualquer norma, também o Direito seria um conjunto de conteúdos de sentido subjetivo do dever-ser.

            Encarados sem qualquer pressuposição também os atos criadores do Direito têm apenas o sentido subjetivo do dever-ser (...) Constatar esta pressuposição é uma função essencial da ciência jurídica. Em tal pressuposição reside o último fundamento de validade da ordem jurídica, fundamento esse que, no entanto, pela sua mesma essência, é um fundamento tão-somente condicional e, neste sentido, hipotético (Kelsen, 2000: 51).

            Todo o Direito se fundamenta, portanto, sobre um pressuposto, uma norma que em nada mais se funda. Um exemplo do próprio autor caracteriza bem o que se entende por norma fundamental, além de possibilitar a percepção de que as normas são escalonadas, sobre o que se tratará mais adiante. Eis o exemplo:

            Partamos da hipótese, já acima referida, de um juízo pelo qual interpretamos a morte de um indivíduo por outro como execução de uma sentença de morte, e não como homicídio. Este juízo baseia-se no fato de reconhecermos no ato de matar a execução de uma sanção judiciária que ordenou a morte como pena. Quer dizer: atribuímos ao ato do tribunal o sentido objetivo de uma norma individual e, assim, consideramos ou interpretamos como tribunal o grupo de indivíduos que pôs o ato. Isto fazemo-lo nós porque reconhecemos no ato do tribunal a efetivação de uma lei, isto é, de normas gerais que estatuem atos de coerção e que consideramos como sendo não só o sentido subjetivo, mas também o sentido objetivo de um ato que foi posto por certos indivíduos que, por isso mesmo, consideramos ou interpretamos como órgão legislativo. E fazemos isto porque consideramos o ato de produção legislativa como a realização da Constituição, isto é, de normas gerais que, conforme seu sentido subjetivo, conferem àqueles mesmo indivíduos competência para estabelecer outras normas gerais que estatuam atos de coerção. Assim, caracterizamos ou interpretamos estes indivíduos como órgão legislativo. Para efeito de podermos considerar as normas que conferem competência ao órgão legislativo como constituindo o sentido, não só subjetivo, mas também objetivo, de um ato posto por determinados indivíduos, caracterizamos ou interpretamos estas normas como Constituição, quer dizer, desde que pressuponhamos uma norma por força da qual o ato a interpretar como ato constituinte seja de considerar como um ato criador de normas objetivamente válidas e os indivíduos que põe este ato como autoridade constitucional (Kelsen, 2000: 50).

            Temos, portanto a seguinte caracterização do direito: o direito é uma ordem normativa. Uma ordem normativa é um sistema de normas vinculadas por um fundamento comum de validade, ou um sistema escalonado de conteúdos de sentido subjetivo, orientado para a conduta de outrem, que são tidos por objetivos por haver sido postos em conformidade com uma norma, que, por sua vez, pressupõe-se que deva ser entendida como um sentido objetivo.

            O caráter coercitivo desta ordem normativa é o que lhe dá a peculiaridade que nos leva a denominá-la Direito. Completa-se assim a definição do Direito na ótica kelseniana: o Direito é ordem coativa.

            Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens. O momento coação, isto é, a circunstância de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego da força física, é o critério decisivo. (Kelsen, 2000: 37).

            Dizer que o direito é uma ordem coativa diferencia-o das demais ordens normativas. Entretanto, deve-se tomar o termo "coerção" em um sentido estrito e bem definido. Com efeito, toda e qualquer ordem normativa exerce alguma espécie de coerção. Na literatura sociológica é já de praxe valeu-se do termo em sentido amplo, quase como sinônimo de "pressão". Uma ordem religiosa, por exemplo, exerce coerção em um sentido amplo sobre seus membros. Por isso, o "critério decisivo" é, para Kelsen, o emprego da força física. "Ato de coerção são atos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência, com o emprego da força física" (Kelsen, 2000: 121).

            O ato de coerção não é um ato contra a vontade de um indivíduo, mas um que é levado a cabo mesmo contra esta vontade. O indivíduo afetado pode concordar com a coerção por remorsos ou masoquismo, mas isto seria irrelevante, uma vez que ainda assim trata-se de coerção. Da mesma forma não é necessário que seja um ato violento, mas um ato que, em caso de resistência, é violento.

            Eis a "essência do Direito" na visão de Kelsen: uma ordem coativa. É seu caráter distintivo, que destaca o Direito das demais ordens e fornece um critério, àquele que se dedica a seu estudo, para identificar o que pode ser descrito como jurídico.

            É, por isso, de rejeitar uma definição do Direito que não o determine como uma ordem de coação, especialmente porque só através da assunção do elemento coação no conceito de Direito este pode ser distintamente separado de toda e qualquer outra ordem social, e porque, com o elemento coação, se toma por critério um fator sumamente significativo para o conhecimento das relações sociais e altamente característico das ordens sociais a que chamamos "Direito"; e mais especialmente ainda porque só então será possível levar em conta a conexão que existe – na hipótese mais representativa para o conhecimento do direito, que é a do moderno direito estadual – entre o Direito e o Estado, já que este é essencialmente uma ordem de coação, e uma ordem de coação centralizadora e limitada no seu domínio territorial de validade. (Kelsen, 2000: 60).

            O que chamamos Direito, no entanto não é composto apenas por conteúdos de sentido estatuidores de sanção. Nos códigos jurídicos encontram-se várias asserções e normas que não estabelecem qualquer sanção. A função do Direito é estabelecer sanções (13), no entanto, ou justamente por isso, é indispensável à ciência jurídica os conceitos de norma não-autônoma e conteúdo juridicamente irrelevante.

            Uma norma não autônoma é uma norma que não estatui qualquer sanção para a hipótese de se verificar a ocorrência de uma conduta contrária à prevista, tal norma depende de outra que estabeleça a referida sanção.

            Já num outro contexto fizemos notar que, quanto uma norma prescreve uma determinada conduta e uma segunda norma estatui uma sanção para a hipótese da não-observância da primeira, estas duas normas estão essencialmente interligadas. Isto vale particularmente para a hipótese em que um ordenamento normativo – como o ordenamento jurídico – prescreve uma determinada conduta pelo fato de ligar à conduta oposta um ato coercitivo a título de sanção, ,de tal forma que a conduta somente se pode considerar como prescrita, nos termos desse ordenamento (...); se a conduta é pressuposto de uma sanção (...). E, quando a segunda norma determina positivamente o pressuposto a que liga a sanção, a primeira torna-se supérflua do ponto de vista da técnica legislativa. (Kelsen, 2000: 60).

            O conteúdo juridicamente irrelevante é aquela espécie de congratulação, homenagem ou afirmação de crença (em Deus, por exemplo) que surge nos textos legais que, afinal, constituídos por palavras, admitem qualquer conteúdo. Kelsen está preocupado em descrever o dever ser em que consiste o Direito, mas este também é composto por um conjunto de crenças, de tal forma que o conteúdo juridicamente irrelevante pode conter afirmações, por exemplo acerca da exatidão de uma determinada teoria jurídica, ou a crença de que os homens são iguais, por exemplo. Tais crenças, mesmo estando em estreita ligação com o Direito, não são necessárias para a compreensão deste. Na medida em que o ordenamento jurídico deriva normas de tais crenças, estas normas são conteúdos relevantes para o direito, mas na medida em que constituem meras crenças ou afirmações, são perfeitamente dispensáveis para o estudo do Direito.

            Uma lei produzida de pleno acordo com a Constituição pode ter um conteúdo que não exprima qualquer espécie de norma mas exprima uma teoria religiosa ou política, como talvez o princípio de que o Direito provém de Deus, ou de que a lei é justa ou que realiza o interesse de toda a coletividade (...). Na medida em que os atos constitucionalmente produzidos são expressos em palavras, eles podem ter qualquer sentido, isto é, podem assumir uma forma que de modo algum apenas possa ter normas por conteúdo. Na medida em que o direito em geral é definido como norma, a ciência jurídica não pode dispensar o conceito de conteúdo juridicamente irrelevante. (Kelsen, 2000: 58).

            Ou ainda:

            Do que fica dito resulta que uma ordem jurídica, se bem que nem todas as suas normas estatuam atos de coação, pode, no entanto, ser caracterizada como ordem de coação, na medida em que todas as suas normas que não estatuam ela próprias um ato coercitivo e, por isso, não contenham uma prescrição mas antes confiram competência para a produção de normas ou confiram uma permissão positiva, são normas não-autônomas, pois apenas têm validade em ligação com uma norma estatuidora de um ato de coerção. E também nem todas as normas estatuidoras de um ato de coerção prescrevem uma conduta determinada (a conduta oposta à visada por esse ato), mas somente aquelas que estatuam o ato de coação como reação contra uma determinada conduta humana, isto é, como sanção. Por isso o Direito, ainda por esta razão, não tem caráter exclusivamente prescritivo ou imperativista. Visto que uma norma jurídica é uma ordem de coação no sentido que acaba de ser definido, pode ela ser descrita em proposições enunciando que, sob pressupostos determinados (determinados pela ordem jurídica), ,devem ser aplicados certos atos de coerção (determinados igualmente pela ordem jurídica). Todo o material dado nas normas de uma ordem jurídica se enquadra neste esquema de proposição jurídica formulada pela ciência do Direito, proposição esta que se deverá distinguir da norma jurídica posta pela autoridade estadual. (Kelsen, 2000: 65).

            3- Críticas a Kelsen

            O pensamento kelseniano é criticado por sua estreiteza e apego à lógica. é entendido como dogmático, conservador. É visto como expressão ideológica da burguesia vitoriosa (ou decadente) e, por fim, como antítese da sociologia jurídica.

            Nesta etapa do trabalho serão apresentadas e apreciadas algumas críticas que são dirigidas a Hans Kelsen. Antes, porém, cumpre notar que o próprio Kelsen se identifica como um positivista. Sua teoria pretende ser uma teoria positivista do direito. No entanto, sua teoria diverge em larga medida de outras teorias positivistas do direito (por exemplo a teoria de Duguit) bem como da sociedade (Comte ou Durkheim, por exemplo). A teoria pura do direito de Kelsen, por isso, costuma ser identificada como uma teoria positivista normativista do direito ou por outros adjetivos que a diferenciem das demais, ou melhor, classifica-lo como positivista parece ser insuficiente, de modo que expressões como normativista poderiam ser mais adequadas. Costuma-se preservar, porém, a nomenclatura do próprio autor.

            Entre estudantes de direito tem-se a impressão de que Kelsen é o maior, senão o único, nome entre os positivistas. Seu nome figura como o nome de Comte entre os estudantes de sociologia. Parece-me que tal não se dá somente entre estudantes, mas mesmo entre os autores que escrevem nessa área. Desta forma, não raramente o positivismo jurídico é criticado por aspectos totalmente alheios à obra de Kelsen, mas o único nome a ser mencionado é o deste autor. Assim, algumas das críticas aqui apresentadas não foram dirigidas diretamente à teoria kelseniana, mas ao positivismo jurídico sem qualquer menção direta a um autor. Outras (entre elas algumas descabidas (14)) foram diretamente endereçadas a Kelsen. Optei por apresentá-las, tanto as diretas como as que não faziam qualquer referência a autor, por considerar mais honesto que simplesmente descarta-las.

            A maioria das críticas não se refere propriamente a algum aspecto da teoria de Kelsen em si, tanto assim que as apresento antes de introduzir a teoria pura do direito, mas aos objetivos do autor, aos conceitos e pressupostos assumidos e, por fim, às conseqüências que sua teoria pode provocar. Outra espécie de crítica bastante comum é a que pretende desvendar o caráter ideológico da teoria, tanto no que concerne à sua gênese histórica como no que concerne à sua função legitimadora enquanto falsa consciência.

            O objetivo apresentado por Kelsen para sua teoria pura do direito é construir uma ciência objetiva do direito, livre de discussões políticas e diferente da sociologia e história do direito. Critica-se esta postura afirmando que há um entrelaçamento entre política e direito, chegando-se mesmo a dizer que o estudioso, ao dizer a lei, faz a lei, ou melhor, ao descrever o que é o Direito, está a prescrever um Direito. Por outro lado, afirma-se que o direito não pode ser entendido fora de seu contexto social, donde separar a teoria geral do direito de uma sociologia redunda em equívoco.

            Identifica-se no positivismo um caráter ideológico, dos interesses da classe dominante na sociedade capitalista, neste sentido esta doutrina legitimaria o status quo, inibindo as transformações sociais instigadas pela luta de classes. A partir disto, os conceitos apresentados por Kelsen são interpretados como instrumentos para ocultar determinadas características do direito. Por fim, as conseqüências nefastas desta doutrina seriam encontradas nos sistemas totalitários e na legitimação da opressão em geral.

            Os objetivos de Hans Kelsen.

            Kelsen expressa claramente seus objetivos. Exibe, por assim dizer, uma carta de intenções. Sua preocupação é o direito positivo. Quer descrevê-lo e explica-lo. Não quer, no entanto, justifica-lo ou combatê-lo.

            A teoria pura do Direito insiste numa distinção clara entre o Direito empírico e a justiça transcendental, excluindo esta de seus interesses específicos (Kelsen, 2000b: XXIX).

            Tratar do direito sem tratar da justiça, eis o seu primeiro objetivo. Para o autor "não há nenhuma possibilidade de decidir racionalmente entre valores opostos" e, na medida em que pretende fazer ciência, abdica desta decisão.

            O segundo objetivo é constituir uma ciência específica do direito, distinta não apenas da filosofia política e da especulação metafísica, mas também das demais ciências, como a psicologia, a economia e a sociologia.

            A teoria, tal como é apresentada neste livro, está voltada antes para uma análise estrutural do Direito positivo que para uma explicação psicológica ou econômica de suas condições ou uma avaliação moral de seus fins (Kelsen, 2000b: XXVIII).

            E ainda:

            Se é necessário separar a ciência do Direito da política, não é menos necessário separa-la da ciência natural (...) A realidade específica do Direito não se manifesta na conduta efetiva dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica. Esta conduta pode ou não estar em conformidade com a ordem cuja existência é a realidade em questão (...) E na medida em que a sociologia lida com a sua realidade tal como determinada por leis causais, a sociologia é um ramo da ciência natural (Kelsen, 2000b: XXIX).

            Kelsen entende, portanto, que afastando por um lado a política e por outro a sociologia, poderá constituir uma ciência específica do direito. Miguel Reale não pensa da mesma maneira, afirmando que justamente neste ponto cometeu Kelsen grave equívoco. Para Miguel Reale o direito é constituído tanto pelo aspecto fatual, como pelo normativo e pelo axiológico, e a tentativa kelseniana de reduzir o direito ao aspecto normativo se torna, por isso mesmo, incapaz de compreender o que o direito é.

            Pensamos, todavia, que esse modo de ver, que só considera o aspecto lógico-normativo da questão, põe de fora do Direito dois outros aspectos não menos essenciais: o fato de certos homens se congregarem para a realização de um valor ou fim que os inspira e determina. Sem essa base fático-axiológica como seria possível recortar, no sistema universal das normas jurídicas, aquele conjunto considerado referido (imputável) a estes ou àqueles indivíduos? (Reale, 1980: 234)

            Para Miguel Reale, ao retirar da consideração da teoria geral do direito os aspectos fático e axiológico, Kelsen limitou o direito de tal forma que sua aplicação não é mais possível. A crítica, em verdade não se dá em oposição à impossibilidade de determinar-se, no pensamento kelseniano, quais normas seriam aplicáveis a qual situação, pois Reale não trata da maneira como Kelsen resolve esta questão. Para Kelsen o ordenamento é aplicado como um todo, tanto o direito material como o formal (como veremos) e todas as suas normas. Se uma norma diz respeito a uma dada situação, cabe ao estudioso do direito analisar também a situação referida, mas não enquanto algo empírico. É a própria norma quem determina a que situação é aplicável, e não a situação empírica. Além do mais o ordenamento determina (direito formal) um órgão para decidir quando e como aplicar uma norma, o juiz, e criar uma norma individual em correspondência com a geral. Não cabe ao jurista, na visão kelseniana, determinar quando aplicar uma determinada norma, mas sim mostrar o que o ordenamento jurídico diz acerca de quando aplicar aquela norma.

            O problema apresentado por Miguel Reale, se entendido como uma questão de saber quando um determinado ordenamento jurídico diz que uma determinada norma é aplicável a que situação, é respondido com facilidade pela teoria pura do direito. O problema porém não é esse, mas sim o de que Kelsen reduz o direito às normas e Reale entende que o direito é inseparável do fato e do valor. Quanto a ser o direito inseparável, não é, já que Kelsen o separou e ele não poderia fazer o impossível. Quanto a saber se Kelsen deveria ou não tê-lo feito, é uma questão volitiva e, portanto, a teoria pura do direito se abstém de respondê-la, a não ser afirmando que tal era sua intenção.

            Miguel Reale também não simpatiza com a exclusão das questões axiológicas da teoria geral do direito. Segundo ele:

            Também Kelsen viu na justiça uma questão de ordem prática, insusceptível de qualquer indagação teórico-científica (...)Pois bem, se há os que contestam a possibilidade de um teoria da Justiça, nunca esta logrou atingir contornos tão vivos e originais como em nosso tempo (...) Originando-se de múltiplas fontes inspiradoras a partir de estudos de natureza, psicológica e sociológica (...) é inegável que a Axiologia, em nossos dias (...) se desenvolve em dois planos: um filosófico, sobre os valores em si (...) e um outro positivo, relativo às experiências valorativas (Reale, 1980: 370).

            E também:

            Eis, por conseguinte, como e porque a justiça deve ser, complementarmente, subjetiva e objetiva, envolvendo em sua dialeticidade o homem e a ordem justa que ele instaura, porque esta ordem não é senão uma projeção constante da pessoa humana, valor-fonte de todos os valores no processo dialógico da história (Reale, 1980: 372).

            Segundo Reale, a justiça envolve o homem e a ordem justa que ele instaura, sendo esta ordem uma projeção da pessoa humana, fonte de todos os valores. Assim sendo, a ordem normativa contém já a justiça e, portanto, é erro excluir a justiça do estudo do direito.

            Kelsen não ignorava que estava deixando de lado algo de importância para quem lida com o direito, tanto assim que se pergunta se a teoria pura do direito não seria desprovida de utilidade, e afirma que justamente por isso seria de difícil aceitação tanto por parte dos que estão no poder, como por parte dos que o aspiram. (15) No entanto, justamente esse caráter de não avaliação do Direito da Teoria Pura do Direito, lhe confere uma postura antiideológica, argumenta Kelsen. (16)

            O autor entende por ideologia uma crença baseada na volição, um pensamento que se funda no desejo, na emoção.

            Toda ideologia política tem a sua raiz na volição, não na cognição, no elemento emocional de nossa consciência, não no racional; ela se origina de certos interesses ou, antes, de outros interesses que não o da verdade. Este comentário, é claro, não implica qualquer asserção no tocante ao valor dos outros interesses. Não há nenhuma possibilidade de decidir racionalmente entre valores opostos (Kelsen, 2000b: XXII)

            O positivismo jurídico, no entanto, não é, segundo seus opositores, antiideológico em qualquer sentido, constituindo antes, para autores como Lyra Filho, uma ideologia específica cuja função é legitimar a ordem assente, e para autores como Miguel Reale, um erro justamente por não ser capaz de apresentar reflexões acerca das dimensões empíricas e axiológicas..

            Em geral os pensadores de inspiração marxista tem a doutrina positivista do Direito por uma ideologia, e, enquanto ideologia, o positivismo é entendido como visando "ocultar as relações de poder". Sua intenção, objetivo ou função, é legitimar o Direito. Neste sentido afirma Wanda Capeller:

            Se a reflexão hoje é entre positivismo e teoria crítica significa que esta última está a colocar a olhos nus exatamente o que o positivismo procura ocultar, ou seja, as relações de poder que perpassam o discurso jurídico, o ocultamento deste Poder e o ocultamento dos conflitos que essas relações de poder – estruturadas sobre classes sociais – provocam (in: Doreodó, 1986: 163).

            Roberto Lyra Filho expressa esta postura afirmando o caráter ideológico do positivismo jurídico. Ideologia é aqui entendida como uma crença errônea e socialmente condicionada. Lyra Filho propõe-se a explicitar o condicionamento social desta corrente de pensamento:

            Veremos adiante, por exemplo, que a burguesia chegou ao poder desfraldando a bandeia ideológica do direito natural – com fundamento acima das leis – e, tendo conquistado o que pretendia, trocou de doutrina, passando a defender o positivismo jurídico (em substância, a ideologia da ordem assente). Pudera! A "guitarra" legislativa já estava em suas mãos. A primeira fase contestou o poder aristocrático-feudal, na força do capitalismo em subida, para dominar o Estado. A segundo fez a digestão da vitória, pois já não precisava mais desafiar um poder de que se apossara. É daí que surge a transformação do grito libertário (invocando direitos supralegais) em arroto social, de pança cheia (não admitindo a existência de Direito senão em suas leis). (Lyra Filho, 1999: 23)

            O positivismo jurídico seria, portanto, uma ideologia nascida no âmbito de vitória de uma classe social à qual já não mais convém legitimar sua dominação em valores absolutos, em vista do perigo de que estes valores podem constituir caso os interesses da classe dominante se inclinam em sentido diverso.

            Por isso, diz-se que o positivismo idolatra o poder, legitimando tudo o que dele advenha; o "poder que eles idolatram" (in: Doreodó: 1986: 237) tudo pode, e "eles" tudo legitimam.

            Se Lyra Filho encontra na burguesia vitoriosa a classe e a condição social que condiciona a ideologia positivista, Tarso Genro, pelo contrário, afirma que é a burguesia decadente e desesperada ante sua queda eminente que formula a doutrina ideológica do positivismo. Segundo Tarso Genro o cientificismo e o racionalismo já existiam, mas a aplicação destes princípios de forma consistente só se deu em Kelsen, como um reflexo da decadência da burguesia:

            O cientificismo e o racionalismo burguês já estavam em Hobbes, posto que o "seu propósito – aponta Norberto Bobbio – é construir uma teoria racional do direito, isto é, uma ciência – segundo ele expressa – derivada com nexos evidentes de princípios verdadeiros.

            - A genialidade de Kelsen, supremo ideólogo do mais elaborado positivismo, está em reconhecer, implicitamente e contra a sua própria "vontade", a impossibilidade de identificar a ordem burguesa com um direito "justo". O resultado de tal reconhecimento é a concentração do Direito na pura legalidade.

            - Kelsen, reflexo da decadência e seu ponto mais luminoso, não fantasia o direito burguês, de um humanismo abstrato, antes coloca-o nos trilhos das necessidades objetivas da reprodução capitalista: "a justiça, nesse sentido restrito, significa a manutenção de uma ordem positiva pela sua conscienciosa aplicação" (17) (Genro, 1988: 20).

            O positivismo jurídico kelseniano reflete um determinado estágio da burguesia: sua decadência, quando se torna evidente que seu direito não pode ser legitimado por um "direito natural" e se tem de reconhecer sua arbitrariedade. Ao afirmar isto, Tarso Genro quase reconhece que Kelsen não legitima o direito vigente, mas, voltando atrás, afirma que foi contra a própria "vontade" que Kelsen não afirma ser o direito vigente "justo". Ou seja, Kelsen queria, mesmo sem saber, legitimar o direito posto.

            Genro não só apenas é capaz de decifrar a vontade do autor da teoria pura do direito para além do que ele próprio é capaz, como também é capaz de tratar de tal teoria sem citar ou fazer referência sequer uma vez à obra que "sintetiza (...)o ponto de vista mais acabado da burguesia, já em crise profunda, sobre o Direito" (Genro, 1988: 20) (18)

            De qualquer forma, a teoria kelseniana é entendida como expressão de uma burguesia vitoriosa ou decadente e como uma legitimação da ordem assente, apesar de esta legitimação se dar justamente por revelar que não há qualquer meio de determinar-se a justiça, revelação aliás que Kelsen faz contra a própria vontade apesar de afirmá-la como seu objetivo no prólogo da obra "síntese" de sua filosofia jurídica.

            É esse tipo de crítica inconsistente e apaixonada que nos leva a dar razão a Kelsen quando afirma que as críticas que recebe não se dão apenas por "motivos científicos, mas sobretudo [por] motivos políticos e, portanto, providos de elevada cargo afetiva" (Kelsen, 2000: XII).

            Lyra Filho e Tarso Genro buscaram indicar a gênese social da teoria pura do direito, qual seja, a burguesia decadente ou vitoriosa (talvez em movimento dialético). Outro autor, Jairo Bissol, pretende mostrar o mecanismo específico por meio do qual o positivismo jurídico legitima o status quo.

            Jairo Bissol, em artigo publicado em homenagem ao professor Roberto Lyra Filho, mostra o que considera a "necessidade" do caráter intra-sistemático da Teoria Pura do Direito.

            Bissol afirma que a norma fundamental, a que Kelsen atribui a função de conferir validade a todas as normas de um ordenamento jurídico, é um artifício que garante ao direito uma caráter intra-sistemático, regulando ele próprio a produção de normas jurídicas. Por outras palavras, a norma fundamental confere ao poder burguês um meio seguro de exercício, dentro da legitimidade e alheio a qualquer intervenção externa.

            Nas palavras do autor:

            O fundamento de validade das normas jurídicas reside em um axioma fundamental: a norma hipotética [Kelsen por vezes também utiliza esta terminologia para designar a norma fundamental]. Trata-se de um artifício lógico-metodológico intra-sistemático que dá unidade ao pensamento normativista, o qual parte do pressuposto de que a validade técnico-jurídica de uma norma deve ser buscada nesta mesma dimensão – configura-se a incondicionalidade do dever ser jurídico. Por outro lado, é pelo norma fundamental que a ciência jurídica se diferencia da outras ciências normativas, que, segundo Kelsen, também se fundam na categoria da imputação: a ética e a teologia. Essas últimas, entretanto, não possuem uma categoria epistemológica, correspondente à norma fundamental, que lhes confira aquela unidade intra-sistemática, característica da ciência jurídica. (in: Doreodó, 1986: 235).

            A partir daí, parte o autor para a explicitação do caráter ideológico desta doutrina;

            A idéia de divindade, em torno da qual orbitava a lei aristocrático-feudal na idade média, dava unidade sistemática (aqui em sentido mais amplo) ao social, emprestando conteúdos ideológicos às relações de poder. O leigo estado burguês, por outro lado, funda tal unidade em uma lei que se bastava a si mesma (...) A necessidade de unidade intra-sistemática na ordem jurídica decorre justamente desta instrumentalização do direito pelo poder burguês. O direito, cristalizado em normas positivas, exigia o controle intra-sistemático do processo nomogênico para constitui-se em um veículo seguro do exercício deste poder. Purificar a construção dogmática, que se promoveu a partir daí, de todas as interferências políticas e ideológicas – isto é, retirar-lhe todo conteúdo para descobrir-lhe a pura forma – foi um ato involuntário por parte de Kelsen, de explicitação lógica desta instrumentalização do direito e do estado pelo poder burguês. Pretender fazer ciência "pura" do direito é reduzi-lo a uma concepção legalista mutiladora que só percebe o fenômeno jurídico naquilo que ele tem de mais reacionário, isto é, naquilo em que, em um determinado momento histórico, o instituído se opõe a outra dimensão, não menos jurídica, instituinte e transformadora (in: Doreodó, 986: 235-237).

            Jairo Bissol afirma que a unidade intra-sistemática, ausência de referência a algo extra-jurídico, mantém o processo de produção do Direito nas mãos da classe dominante e lhe permite controla-lo. Afirma ainda que a unidade intra-sistemática, ou melhor, a norma fundamental é, na teoria kelseniana, característica exclusiva do direito frente a outras ordens normativas.

            Bissol engana-se quanto a esta segunda colocação. De fato, Kelsen define a norma fundamental com relação à ordem social e, como já mostrado, o direito é apenas uma dentre várias ordens sociais, ou ordens normativas, mas a definição de ordem normativa inclui a norma fundamental, o que significa que toda e qualquer ordem normativa, ou social (são, em Kelsen, sinônimos) possui o que Bissol denomina de unidade intra-sistemática.

            Uma "ordem" é um sistema de normas cuja unidade é constituída pelo fato de todas elas terem o mesmo fundamento de validade. E o fundamento de validade de uma ordem normativa é, como veremos, uma norma fundamental da qual se retira a validade de todas as normas pertencentes a essa ordem. Uma norma singular é uma norma jurídica enquanto pertence a uma determinada ordem jurídica, e pertence a uma ordem jurídica quando a sua validade se funda na norma fundamental dessa ordem. (Kelsen, 2000: 33)

            Ademais, o exemplo que Kelsen utiliza para a norma fundamental não é o exemplo do Direito, mas a norma que postula que deve-se obedecer às ordens de Deus.

            À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que eu devo obedecer às ordens do pais, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade desta norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve ir à escola, não pode ser deduzido desta norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar [neste caso] numa autoridade legisladora, quer dizer, fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000: 219)

            A afirmação de Bissol é, aliás, descabida, uma vez que em momento algum Kelsen apresenta a norma fundamental como a característica definidora do Direito, mas como aquilo que lhe dá unidade, bem como toda ordem normativa, pelo próprio conceito dado, tem seu vínculo de unidade em uma norma fundamental.

            Bissol engana-se novamente quando afirma que Kelsen parte do pressuposto de que a validade técnico-jurídica de uma norma deve ser buscada na "mesma dimensão", se se entende esta "dimensão" como uma dimensão técnico-jurídica, e não como uma dimensão normativa. O pressuposto do pensamento kelseniano é o de que uma norma só pode ter por fundamento de validade outra norma, ou ainda, a ordem do "ser" e do "dever ser" são distintas e de uma não se pode deduzir conclusões na outra. Assim, Kelsen afirma:

            Dado que o fundamento de validade de uma norma somente pode ser uma outra norma, este pressuposto [que confere validade a uma ordem normativa] tem de ser uma norma: não uma norma posta por uma autoridade jurídica, mas uma norma pressuposta, quer dizer uma norma que é pressuposta sempre que o sentido subjetivo dos fatos geradores de normas postas de conformidade com a Constituição é interpretado como seu sentido objetivo. (Kelsen, 2000: 224)

            A norma fundamental pressuposta por Kelsen não é, portanto, jurídica, mas extra-jurídica. A unidade intra-sistemática da ordem normativa só existe na medida em que Kelsen recusa-se a explicar a validade dessa mesma ordem com referência a algo exterior a ela, por isso pressupõe a validade da ordem. Este pressuposto não é parte da ordem. Ademais, poderíamos dizer que a idéia de que uma norma apenas pode decorrer de outra norma não é, sequer, um pressuposto, mas sim mera constatação de que se não há dever ser nas premissas, não pode haver nas conclusões, donde o pressuposto da teoria kelseniana seria o de que o que está nas conclusões deve estar nas premissas, e o pressuposto da ordem normativa é a norma fundamental hipotética que não faz parte dessa ordem.

            Outra afirmação de Jairo Bissol acima citada é a de que a norma fundamental serve à necessidade do poder estabelecido por viabilizar a "instrumentalização" do Direito.

            Poderíamos interpretar esta afirmação de Bissol como o que segue: Kelsen mostra que o poder burguês instrumentalizou o Direito. No entanto, isto não é o que Bissol afirma, e, na passagem citada, está discordando de Kelsen. O sentido de sua afirmação é o de que Kelsen legitima tal instrumentalização ou o de que Kelsen é o responsável por ela. A teoria kelseniana, portanto, não descreve uma realidade injusta, mas a mantém, ou mesmo, a cria. Kelsen reconhece o direito apenas naquilo que ele tem de "mais reacionário".

            A teoria do positivismo jurídico tem, portanto, conseqüências más. É uma teoria não somente falsa, mas também perversa.

            No mesmo sentido as afirmações de que Kelsen idolatra o poder (in: Doreodó, 1986: 237), de que ele apenas reconhece a lei, ou mesmo "canoniza a ordem social" (Lyra Filho, 1999: 33).

            Kelsen não pretendia fazer uma teoria que fosse "boa" mas uma teoria que fosse cientificamente precisa ou "correta", se sua teoria é criticada por ser "má", como o próprio autor afirma, ela disso não faz caso.

            Outra crítica dirigida contra a teoria pura do direito reside em que ela volta-se apenas para a lei, ignorando tudo o mais como alheio ao direito.

            O positivismo legalista volta-se para a lei e, mesmo quando incorpora outro tipo de norma – como, por exemplo, o costume e –, dá à lei total superioridade, tudo ficando subordinado ao que ela determina e jamais sendo permitido – de novo, a título de exemplo – invocar um costume contra a lei. (Lyra Filho, 1999: 31).

            Segundo o professor Lyra Filho, a teoria kelseniana coloca a lei como algo inabalável e inquestionável de tal forma que nada se possa "invocar contra ela". Duas considerações podem ser feitas aqui. A primeira é a de que não se trata de proibir o questionamento de uma determinada lei, senão que descrevê-la conforme o ordenamento normativo de que faz parte. A segunda é a de que o "positivismo legalista" não se volta para a lei ignorando o costume. Na teoria pura do direito o costume, ao menos o costume negativo, sempre derruba uma lei contrária, podendo mesmo revogar a Constituição.

            Segundo Kelsen:

            De fato, uma norma jurídica pode perder a sua validade pelo fato de permanecer por longo tempo inaplicada ou inobservada, quer dizer, através da chamada desuetudo. A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente. Se o costume é em geral um fato gerador de Direito, então também o Direito estatuído (legislado) pode ser derrogado através do costume. Se a eficácia, no sentido acima exposto, é condição de validade não só da ordem jurídica como um todo mas também das normas jurídicas em singular, então a função criadora do Direito do costume não pode ser excluída pela legislação, pelo menos na medida em que se considere a função negativa da desuetudo. (Kelsen, 2000: 238)

            E ainda:

            O Direito legislado e o Direito consuetudinário revogam-se um ao outro segundo o princípio da lex posterior (19). Enquanto, porém, uma lei constitucional em sentido formal (20) não pode ser revogada ou alterada por uma lei simples mas somente através de uma outra lei constitucional, o Direito consuetudinário tem também eficácia derrogatória relativamente a uma lei constitucional formal. tem-na mesmo em face de uma lei constitucional que expressamente exclua a aplicação de Direito consuetudinário. (Kelsen, 2000: 252)

            Portanto Kelsen admite sim a "invocação" de um costume contra uma lei. Em verdade o direito consuetudinário surge com uma força maior que o direito legislado, o que decorre da relação que Kelsen vê entre a validade e a eficácia. Segundo o autor:

            Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos em certa medida (...) Um mínimo de eficácia, (como sói dizer-se) é a condição de sua vigência. (Kelsen, 2000: 12)

            Isto porque Kelsen entende que a eficácia de uma norma é uma condição de validade da mesma. A eficácia aqui exigida, o é em um sentido global e não refere-se à efetivação da conduta prescrita na norma, mas sim a que a norma seja ou observada ou aplicada, ou melhor, que os indivíduos sujeitos à ordem normativa em questão ajam em conformidade com ela ou lhes seja aplicada a sanção prescrita, no caso de não o fazerem.

            Por isso, afirma o autor:

            A validade de uma norma, isto é, o devermo-nos conduzir tal como a norma determina, não deve confundir-se com a eficácia da norma, isto é, com o fato de que as pessoas efetivamente assim se conduzem. Mas também fizemos notar que pode existir uma relação essencial entre essas duas coisas – que uma ordem coercitiva que se apresenta como Direito só será considerada válida quando for globalmente eficaz (...).
- Somente quando a conduta real (efetiva) dos indivíduos corresponda, globalmente considerada, ao sentido subjetivo dos atos dirigidos a essa conduta é que este sentido subjetivo é reconhecido como sendo também o seu sentido objetivo, e esses atos são considerados ou interpretados como jurídicos. (Kelsen, 2000: 51)

            Eficácia e validade de uma norma são duas características diferentes, mas interrelacionadas, no sentido de que a eficácia é condição de validade.

            Se, por eficácia da ordem jurídica, se entende o fato de os indivíduos – cuja confuta ela regula enquanto liga a uma conduta por ela determinada um ato coercitivo, igualmente por ela determinado, a título de sanção – se conduzirem em conformidade com suas normas, então essa eficácia manifesta-se tanto na efetiva observância das normas jurídicas, isto é, no cumprimento dos deveres jurídicos por ela estatuídos, como na aplicação das normas jurídicas, isto é, na efetivação das sanções por elas estatuídas. (Kelsen, 2000: 130)

            De maneira ainda mais precisa, assim se expressa o autor:

            No silogismo normativo que fundamenta a validade de uma ordem jurídica, a proposição de dever-ser que enuncia a norma fundamental: devemos conduzir-nos de acordo com a Constituição efetivamente posta e eficaz, constitui a premissa maior; a proposição de ser que afirma o fato: a Constituição foi efetivamente posta e é eficaz, quer dizer, as normas postas de conformidade com ela são globalmente aplicadas e observadas, constitui a premissa menor; e a proposição de dever ser: devemos conduzir-nos de harmonia com a ordem jurídica, quer dizer: a ordem jurídica vale (é válida ou vigente), constitui a conclusão. As normas de uma ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente vales se esta ordem jurídica é eficaz, quer dizer, enquanto esta ordem jurídica for eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma das suas normas, perdem a validade (vigência). (Kelsen, 2000: 237).

            Por isso o desuetudo revoga mesmo uma lei formalmente constitucional, que não pode ser revogada por lei simples, e ainda que esta lei prescreva exatamente que o desuetudo não revogue as leis. O desuetudo retira, na concepção de Kelsen, a premissa menor, ou uma condição de validade, uma condição sine qua non, apesar de não ser uma condição per quam.

            Esta relação entre validade e eficácia ensejou novas críticas, como a da professora Maria Helena Diniz, que afirma que Kelsen não pode manter a pureza de sua teoria porque condiciona a validade à eficácia e, portanto, o dever ser ao ser. Segundo a autora:

            A fundamentação da validade do ordenamento jurídico positivo deve ser formal, por isso Kelsen concebeu a norma básica, para não ter que fundamentar a ordem jurídica em fatos valorativos, sociais, políticos, econômicos, psicológicos, etc., conservando a neutralidade científica com esse a priori lógico.

            - Contudo, Kelsen não conseguiu manter a disparidade entre ser e dever ser. O sistema jurídico construído com inteira pureza normativa apoia-se, na realidade, num fato, porque o conteúdo da norma básica e do sistema depende do fato que cria a nova ordem, à qual corresponde o comportamento efetivo dos homens aos quais a ordem se destina. (Diniz, 1995: 117).

            Entretanto, a teoria pura do direito não "apoia" a ordem normativa no fato que põe a constituição, mas no conteúdo de sentido desse fato, que é um dever ser e, diga-se de passagem, nem mesmo neste conteúdo de sentido, mas no conteúdo de sentido pressuposto de que a Constituição deve ser obedecida. A Constituição é uma norma, e norma "é o sentido de um ato através do qual uma conduta é prescrita, permitida ou, especialmente, facultada, no sentido de adjudicada à competência de alguém". (Kelsen, 2000: 6). Neste sentido, Kelsen sustenta a radical separação entre ser e dever ser.

            É certo, porém, que Kelsen estabelece um fato da ordem do ser como condição da vigência de uma norma jurídica. Como condição, não como fundamento. Isto se deve a que, como jurista, está preocupado com o direito efetivamente vigente. Ele não pretende descrever um sistema de normas ideal ou que pertença ao passado, e sim o sistema de normas coercitivas atualmente vigente. Com efeito, Kelsen afirma que a ordem normativa constituída por "um bando de salteadores" não é considerada como ordem jurídica porque não se interpreta seu sentido subjetivo como sendo seu sentido objetivo, e assim não se faz porque não se pressupõe a norma fundamental que afirme que se deva obedecer ao ordenamento normativo do bando de salteadores. Tal norma fundamental "não é pressuposta porque, ou melhor, se esse ordenamento não tem aquela eficácia duradoura sem a qual não é pressuposta qualquer norma fundamental que se lhe refira ou fundamente a sua validade objetiva" (Kelsen, 2000: 53)

            Se, no entanto, o jurista estivesse interessado não em descrever o direito, mas o bando de salteadores, assumiria como pressuposto a uma norma fundamental que estabelecesse a validade das normas desse bando. Da mesma forma, por exemplo, se lhe interessasse descrever a ordem normativa de "Canudos" ou mesmo o Direito da República Romana. O vínculo entre validade e eficácia é apenas um instrumento do qual se vale o jurista para definir o que é Direito atualmente vigente em determinado território.

            Kelsen afirma:

            Após a vitória da Revolução Francesa dos fins do século XVIII, assim como depois da vitória da Revolução Russa dos começos do século XX, manifestou-se nos outros Estados uma nítida tendência para não interpretar como ordem jurídica a ordem coercitiva instituída pela Revolução, e para não interpretar como atos jurídicos os atos do governo que havia revolucionariamente alcançado o poder; no primeiro caso, porque a Revolução ofendia o princípio da legitimidade monárquica, no segundo, porque ela acabava com a propriedade privada dos meios de produção. Com este último fundamento houve mesmo tribunais dos Estados Unidos que se negaram a reconhecer como atos jurídicos os atos do governo russo revolucionariamente estabelecido, com a justificação de que não se estava perante um Estado mas em face de atos de um bando de gângsteres. Logo que, no entanto, as ordens coercitivas revolucionariamente instituídas provaram ser duradouramente eficazes, passaram a ser reconhecidas como ordens jurídicas, os governos das comunidades por elas estatuídas passaram a ser havidos como governos de um Estado e os seus atos como atos estaduais e, conseqüentemente, atos jurídicos. (Kelsen, 2000: 55)

            Ou seja, quando uma ordem coercitiva é eficaz, chama-se-lhe Direito. Se se pretende estudar o Direito atual, deve-se identificar a ordem coercitiva globalmente eficaz.

            Ainda outra crítica à teoria pura do direito diz respeito ao chamado "problema da liberdade". Jairo Bissol afirma que Kelsen encontra a liberdade do homem em um dever ser formal e abstrato que liberta este da causalidade. São palavras do autor:

            Entretanto, é interessante observar que sua [de Kelsen] idéia de liberdade, por exemplo, funda-se também em um dever ser – não em naquele forma e abstrato contido na forma de um imperativo categórico dado como fato da razão, mas um dever ser não menos formal e abstrato, conquanto instrumento lógico-metodológico decorrente da categoria da imputação. Através deste dever ser, o homem, em Kelsen, liberta-se da causalidade do mundo natural. São palavras do autor: "não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo". (in: Doreodó, 1986: 235).

            Bissol afirma ainda que esta concepção de liberdade é alienadora e reduz a liberdade àquilo que o Esta ponha como tal.

            Assim, a teoria dialética do direito repõe o homem como sujeito do direito na história, em contraposição à concepção legalista e alienadora da liberdade humana na qual o homem se constitui como "sujeito", nos aspectos fundamentais de sua vida individual e coletiva, apenas no reconhecimento desta sua condição pelo direito estatal. (in: Doreodó, 1986: 238).

            Com todo respeito devido a Jairo Bissol, este autor cometeu nestas passagens grave equívoco. Em verdade aparentemente desconhece o texto que cita. A passagem que o autor cita com precisão de página, da obra de Hans Kelsen, foi retirada de seu contexto de forma tão patética que nos oferece apenas duas opções: ou o autor agiu de má-fé retirando parte do texto para desvirtuar o pensamento do autor citado ou desconhece o texto. Fico com a segunda opção.

            O parágrafo do qual foi retirada a frase citada por Bissol, a saber, "não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas ele é livre porque se lhe imputa algo", segue antes de mais comentários:

            Do que acima dissemos resulta que não é a liberdade, isto é, a indeterminação causal da vontade, mas, inversamente, que é a determinabilidade causal da vontade que torna possível a imputação. Não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas, ao contrário, o homem é livre porque se lhe imputa algo. Imputação e liberdade estão, de fato, essencialmente ligadas entre si. Mas esta liberdade não pode excluir a causalidade. E, de fato, não a exclui de forma alguma. Se a afirmação de que o homem, como personalidade moral ou jurídica, é livre, deve ter qualquer sentido, tem esta liberdade moral ou jurídica de ser compossível com a determinação, segundo a lei da causalidade, da conduta humana. O homem é livre porque e enquanto são imputados a uma determinada conduta humana, como ao seu pressuposto a recompensa, a penitência ou a pena – não porque esta conduta não seja causalmente determinada, mas não obstante ela ser causalmente determinada. O homem é livre porque esta sua conduta é um ponto terminal da imputação, embora seja causalmente determinada. Por isso, não existe qualquer contradição entre a causalidade da ordem natural e a liberdade sob a ordem moral ou jurídica; tal como também não existe, nem pode existir, qualquer contradição entre a ordem da natureza, por um lado, e a ordem moral e jurídica, pelo outro, pois a primeira é uma ordem moral e jurídica, pelo outro, pois a primeira é uma ordem de ser e as outras são ordens de dever-ser, e apenas pode existir uma contradição lógica entre um ser e um ser, ou entre um dever ser e um dever ser, mas não entre um ser e um dever ser – enquanto objeto de asserções ou enunciados. (Kelsen, 2000: 110).

            Este parágrafo está inserido em um subtópico intitulado "o problema da liberdade", de menos de dez páginas, que afirma que, entendida a liberdade como indeterminação causal da conduta humana, o homem não é livre e que a imputação não carece da liberdade ou da crença em tal liberdade.

            Bissol afirma que, segundo Kelsen, através do dever ser, imposto pelo Estado, o homem se livra da causalidade. Mas Kelsen afirma que "é a determinação causal da vontade que torna possível a imputação" (Kelsen, 2000: 109). E ainda:

            Afirmar que o homem é livre não traduz senão a sua consciência de poder agir como (ou deseja). Este fato seria inteiramente compatível com o determinismo, pois o ato de vontade em questão, ou a sua omissão, são tomados como causalmente determinados (Kelsen, 2000: 107).

            O fato de o homem agir conforme deseja e de poder escolher entre fazer ou não determinada coisa nada diz a respeito da determinabilidade causal de seu comportamento. A vontade humana é entendida como causalmente determinada, e, aliás, seria uma mera tautologia definir a liberdade como a faculdade de o indivíduo agir como deseja, e dizer que o homem é livre porque age como deseja. Isto não prova a indeterminação causal.

            É este o verdadeiro significado da idéia de que o homem, como sujeito de uma ordem moral ou jurídica, isto é, como membro de uma sociedade, como personalidade moral ou jurídica, é "livre". E dizer que um homem sujeito a uma ordem moral ou jurídica é "livre" significa que ele é o ponto terminal de uma imputação apenas possível com base nessa ordem normativa. (Kelsen, 2000: 104).

            A definição kelseniana de liberdade é meramente descritiva. Diz-se que o homem é livre. Ao dizer isto tem-se em mente que ele pode, justamente por ser livre, ser responsabilizado por seus atos. Mas, segundo Kelsen, o homem é parte da natureza, e esta é um conjunto de elementos ligados por leis causais, logo a conduta do homem é determinada causalmente. Como diz-se do homem que ele é livre quando se lhe imputa algo, Kelsen afirma que a liberdade consiste na possibilidade de ter uma imputação ligada a sua conduta. A definição kelseniana de liberdade é distinta da definição de Jairo Bissol.

            No entanto, segundo a concepção corrente, a liberdade é entendida como o oposto da determinação causal. Diz-se livre o que não está sujeito à lei da causalidade. (...) A verdade, porém, é que o pressuposto de que apenas a liberdade do homem, ou seja, o fato de ele não estar submetido à lei da causalidade, é que torna possível a responsabilidade ou a imputação está em aberta contradição com os fatos da vida social. A instituição de uma ordem normativa reguladora da conduta dos indivíduos – com base na qual somente pode ter lugar a imputação – pressupõe exatamente que a vontade dos indivíduos cuja conduta se regula seja causalmente determinável e, portanto, não seja livre. Com efeito, a inegável função de uma tal ordem é induzir os homens à conduta por ela prescrita, tornar possíveis as normas que prescrevem uma determinada conduta, criar, para as vontades dos indivíduos, motivos determinantes de uma conduta conforme às normas. Isto, porém, significa que a representação de uma norma que prescreva determinada conduta se torna em causa de uma conduta conforme essa norma. Só através do fato de a ordem normativa se inserir, como conteúdo das representações dos indivíduos cuja conduta ela regula, no processo causal, no fluxo de causas e efeitos, é que esta ordem preenche sua função social. E também só com base numa tal ordem normativa, que pressupõe a causalidade relativamente à vontade do indivíduo que lhe está submetido, é que a imputação pode ter lugar. (Kelsen, 2000: 104)

            Bissol afirma que a concepção legalista [Kelsen] submete ao reconhecimento do estado "a liberdade humana na qual o homem se constitui sujeito" (in: Doreodó, 1986: 238). O homem, em Kelsen, é visto como "sujeito", mas isto não é entendido como indeterminação causal do comportamento.

            Bissol afirma que:

            O homem não "é livre pelo que se lhe imputam", mas é livre na medida em que realiza seu processo de libertação (do ponto de vista jurídico) através do reconhecimento de que uma imputação, quando determinação ilegítima de sua não-liberdade, deve ser superada pela práxis política, social e reivindicatória de direitos, por vezes exercido contra e acima da legalidade. (in: Doreodó, 1986: 238).

            Assim, o homem seria livre se realiza seu processo de tornar-se livre ao reconhecer que um dever ser, quando determinado de forma que não deva ser, deve ser superado por uma "práxis" reivindicatória de dever ser exercida mesmo contra o dever ser coercitivo. Ou seja, se é que pude compreender, o homem é livre na medida em que reclama quando discorda de uma imputação, ainda quando a ordem não lhe permita reclamar.

            Por fim, tratemos da crítica que afirma ser a teoria pura do Direito uma ideologia. Tomarei aqui o termo ideologia como uma crença socialmente condicionada por outros fatores que não sejam o interesse pela verdade e que é, em geral, desconforme com a realidade.

            Segundo Roberto Lyra Filho, o positivismo jurídico é a ideologia da burguesia vitoriosa, que procura legitimar a ordem estabelecida e manter seu poder, e a identificação do Direito e da lei é um elemento dessa ideologia:

            A identificação entre Direito e lei pertence, aliás, ao repertório ideológico do Estado, pois na sua posição privilegiada ele desejaria convencer-nos de que cessaram as contradições, que o poder atende ao povo em geral e tudo o que vem dali é imaculadamente jurídico, não havendo Direito a procurar além ou acima das leis. (21) (...) Nisto, porém, o Direito resulta aprisionado em um conjunto de normas estatais, isto é, de padrões de conduta impostos pelo Estado, com a ameaça de sanção organizadas (meios repressivos expressamente indicados com órgão e procedimento especial de aplicação). (Lyra Filho, 1999: 8).

            O positivismo apenas captaria o direito estatuído:

            Por enquanto, verifiquemos as posições e barreiras do positivismo. Ele sempre capta o Direito, quando já vertido em normas; seu limite é o da ordem estabelecida, que se garante diretamente com normas sociais não legisladas (o costume da classe dominante, por exemplo) ou se articula no Estado, como órgão centralizador do poder, através do qual aquela ordem e classe dominante passam a exprimir-se (neste caso, ao Estado é deferido o monopólio de produzir ou controlar a produção de normas jurídicas, mediante leis que só reconhecem os limites por elas mesmas estabelecidos). (Lyra Filho, 1999: 30)

            Lyra Filho entende que o positivismo, ao restringir-se às normas, restringe-se ao passado, uma vez que é subentendido um processo de produção normativa onde as normas primeiro surgem na sociedade, enquanto demanda ou reivindicação de regulamentação e, portanto, quando elas são legisladas já encontram-se em defasagem com relação ao processo social que não pára.

            De todo modo, as normas – isto é, como vimos, os padrões de conduta, impostos pelo poder social, com ameaça de sanções organizadas (medidas repressivas, expressamente indicadas, com órgão e procedimento especiais de explicação) – constituem, para o positivismo todo o Direito. E note-se que, no caso, se trata das normas da classe dominante, revestindo a estrutura social estabelecida, porque a presença de outras normas – de classe ou grupos dominados – não é reconhecida, pelo positivismo, como elemento jurídico, exceto na medida em que não se revelam incompatíveis com o sistema – portanto, único a valer acima de tudo e todos – daquela ordem, classe e grupos prevalecentes. (Lyra Filho, 1999: 30).

            Ao tomar como Direito apenas as normas do estado, que é um instrumento da classe dominante, o positivismo apenas toma em consideração as normas postas por esta classe.

            Segundo Lyra Filho o positivismo jurídico de Kelsen legitima o Direito com recurso a um conceito de "paz social".

            O caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz. Poderemos chegar, nisto, à dialética do Direito não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos, porém como fato social, ação concreta e constante donde brota a repercussão mental. (...) A Sociologia Jurídica é a única base sólida para iniciarmos a nova reflexão, a nova Filosofia Jurídica, a fim de que esta última não se transforme num jogo de fantasmas ideológicos, perdendo nas nuvens o que vem da terra. As ideologias jurídicas são filosofia corrompida, infestada de crenças falsas e falsificada consciência do que é jurídico, pela intromissão de produtos forjados pelos dominadores. (Lyra Filho, 1999: 47).

            Por falta de tempo, de espaço e por insuficiência de conhecimento histórico, deixarei de lado a questão de ser o positivismo jurídico a expressão de uma classe ou momento histórico. (22)

            Admitindo, portanto, que o positivismo jurídico possa ser a expressão da burguesia vitoriosa, ou, de um modo geral, de uma classe dominante em certo período e lugar, resta identificar os mecanismos através dos quais esta doutrina favorece estas mesmas classes.

            Lyra Filho aponta como um dos mecanismos ideológicos a identificação do Direito e da lei. Segundo o autor, a lei emana do Estado, e este está sob controle dos que comandam o processo econômico.

            A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômica, na qualidade de proprietários dos meios de produção. (Lyra Filho, 1999: 8).

            Já o Direito é algo "reto e correto" (idem: 8), é a "positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípio da Justiça Social" (idem: 88). A redução do Direito às leis significa, pois, reduziu o "reto e correto" ao controle estatal.

            Aquilo que Roberto Lyra Filho descreve como Direito é, em Kelsen, próximo ao que se chamaria Justiça, e aquilo que Lyra Filho chama legislação é próximo ao que Kelsen chama Direito. A lei, tanto em Lyra Filho como em Kelsen, pode ser justa ou injusta. Mas em Kelsen mesmo a lei injusta é parte do Direito. A crítica de Lyra Filho à teoria pura do direito, aqui, radica em que, ao aceitar qualquer lei como conteúdo de Direito, Kelsen legitima mesmo a lei a ordem injusta. Bissol, quando afirma que Kelsen encontra uma unidade intra-sistemática, expressa bem esta opinião. Ao encontrar no próprio Direito ou no pressuposto de que ele é válido, a sua legitimidade, Kelsen impede transformações essenciais, imobilizando o Direito e consolidando a injustiça.

            Segundo o próprio autor da teoria pura do direito:

            A norma fundamental, determinada pela Teoria Pura do Direito como condição da validade jurídica objetiva, fundamenta, porém, a validade de qualquer ordem jurídica positiva, quer dizer, de toda ordem coerciva globalmente eficaz estabelecida por atos humanos. (Kelsen, 2000: 242)

            Neste sentido, toda ordem jurídica eficaz é válida. Porém, o que Kelsen entende por "norma fundamental" há de ser, mais uma vez, esclarecido. A norma fundamental não é uma prescrição, é uma pressuposição. A teoria pura do direito não prescreve a obediência à Constituição, mas sim afirma que se interpretamos o sentido subjetivo dos atos postos pelo constituinte como sendo também seu sentido objetivo, devemos supor uma norma que prescreva a obediência à constituição.

            Como esta norma fundamental não é uma norma querida e, por isso, também não pode ser uma norma querida pela ciência jurídica (...) e tal norma (...) é logicamente indispensável para a fundamentação da validade objetiva das normas jurídicas positivas, ela apenas pode ser uma norma pensada, e uma norma que é pensada como pressuposto quando uma ordem coercitiva globalmente eficaz é interpretada como um sistema de normas jurídicas válidas. (Kelsen, 2000: 227).

            E ainda:

            Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constituição inteiramente, quer dizer, somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta Constituição concretamente determinada, é que podemos interpretar o sentido subjetivo do ato constituinte e dos atos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objetivo, quer dizer, como normas jurídicas objetivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas (Kelsen, 2000: 225).

            Para Kelsen, a questão se coloca da seguinte maneira: há uma resposta para a pergunta de por que devemos nos conduzir de acordo com a lei, a saber, o fato de essa lei ter sido posta em acordo com a Constituição. Mas não há qualquer resposta à pergunta de porque nos devemos conduzir conforme a Constituição. O jurista que descreve a ordem normativa, portanto, supõe que ela seja válida:

            Com a sua teoria da norma fundamental a Teoria Pura do Direito de forma alguma inaugura um novo método do conhecimento jurídico. Ela apenas consciencializa aquilo que todos os juristas fazem (...) quando concebem o Direito exclusivamente como Direito positivo. A teoria da norma fundamental é somente o resultado de uma análise do processo que o conhecimento jurídico positivista desde sempre tem utilizado. (Kelsen, 2000: 228).

            Enfim, antes de legitimar alguma ordem, a teoria kelseniana a apresenta em toda sua fraqueza. Fundam-se apenas em um pressuposto. Ao legitimar qualquer ordem, Kelsen não legitima nenhuma. Como afirma Maria Helena Diniz, a teoria pura do direito foi concebida de forma a admitir "a existência, ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista" (Diniz, 1995: 105). Com efeito, o próprio Lyra Filho destaca que Kelsen põe o poder a "nu", sem justificação, segundo Lyra, "pronto a ferrar todo mundo", mas vulnerável.

            Assim é que, para conservar aquele mito da "neutralidade", (Kelsen) afirma que o Direito é apenas uma técnica de organizar a força do poder; mas, desta maneira, deixa o poder sem justificação, como que nu e pronto a ferrar todo o mundo, mas de calças arriadas, com perigo para sua dignidade; portanto, o mesmo Kelsen acrescenta que a força é empregada "enquanto monopólio da comunidade" e para realizar a "paz social". Desta maneira, opta pela teoria política liberal, que equipara Estado e comunidade, como se aquele representasse todo o povo (ocultando, deste modo, a dominação classística e dos grupos associados a tais classes). Chama-se, então, de "paz social" a ordem estabelecida (em proveito dos dominadores e tentando disfarçar a luta de classes e grupos) (Lyra Filho, 1999: 37).

            A Teoria Pura do Direito, portanto, reconhece-o Lyra Filho, não legitimou o Direito intra-sistematicamente. A norma fundamental não é justificação. É, no mínimo, insensatez afirmar que o Direito deve ser tal como é porque pressupomos que ele deve ser tal como é. Lyra Filho então encontra no que Kelsen chama de função social do Direito, a fundamentação positivista do Direito. No entanto, Kelsen pretende ter constatado que o Direito, ao tornar o uso da força um monopólio da "comunidade" (entenda-se comunidade jurídica, que é sinônimo de Estado (23), e não qualquer conceito semelhante à vontade geral Rousseauniana) e, portanto, limitando o uso da força, promove, gradativamente, uma situação de paz, definida em termos de ausência de violência, ou melhor, em termos de centralização de violência.

            A segurança coletiva ou a paz é função que – como já notamos – tem de fato, se bem que em grau diferente, as ordens coercitivas designadas como Direito que tenham atingido uma determinada fase de evolução. Esta função é um fato objetivamente determinável. A verificação, por parte da ciência jurídica, de que uma ordem jurídica estabelece a paz na comunidade jurídica por ela constituída não implica qualquer espécie de juízo de valor e, especialmente, não significa o reconhecimento de um valor de justiça, que, destarte, não é por forma alguma elevado à categoria de um elemento do conceito de Direito e, por isso, também não pode servir como critério para a distinção entre comunidade jurídica e bando de salteadores, contra o que sucede na teologia de Agostinho. (Kelsen, 2000: 54).

            É certo que Kelsen valora positivamente a busca pela paz por meio do Direito, especialmente o Direito internacional, tanto mais por ter vivido o período do entre guerras e ter tido de fugir de perseguição nazista, mas não deixa o autor de reconhecer que não é a promoção da paz que legitima o Direito ou lhe confere validade.

            Foi Lyra Filho, ao definir o direito como "positivação da liberdade conscientizada" (Lyra Filho, 1999: 88) e afirmar que "Direito e Justiça caminham enlaçados; lei e Direito é que se divorciam com freqüência"`, quem terminou por oferecer uma legitimação ao Direito posto, e, assim, contribuiu para a manutenção da ordem que despreza (ou não).

            Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípio condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais nem menos do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. (Lyra Filho, 1999: 86).

            Eis o que Lyra Filho quer: uma sociedade sem exploração. Para ele, no entanto, como para Wladimir Barreto Lisboa, " o teórico do Direito dizendo a lei, também faz a lei" e, por isso encontra o Direito-Justiça no processo histórico, advindo em "quotas de libertação" e sempre se "atualizando" e se revelando à "vanguarda". "Nunca se pode auferir a Justiça em abstrato e, sim, concretamente, pois as quotas de libertação acham-se no processo-histórico; são o que nele se revela à vanguarda (às classes e grupos ascendentes)" (Lyra Filho, 1999: 87)

            Enfim, o Direito é Justiça, Justiça é dever ser (no caso, ausência de exploração) e a Justiça é conquistada nas lutas sociais. O Direito a positiva, garantindo a liberdade (24). Desta forma, a Justiça está no futuro, é algo que vem e que está vindo. (25)Deve-se promover a "luta social", mas o Direito atual é, provavelmente, o melhor até o momento histórico presente, e o direito de amanhã será melhor do que o de hoje.

            Os juristas em geral assumem uma postura semelhante à de Lyra Filho. Diz-se que o Direito nasce de um processo que se dá, grosso modo, desta forma: A sociedade estabelece certos costumes ou demandas, estes costumes ou demandas tornam-se valores, estes valores passam a orientar a conduta, o legislador, de alguma forma, capta estes valores e os positiva em leis. Assim, a visão de Miguel Reale, a quem Lyra Filho classifica positivista e de "pensador de direita" é bastante semelhante à deste:

            Na realidade, não basta a visão sincrônica, ou lógico-formal, do ordenamento, com olvido de sua não menos essencial compreensão diacrônica, ou histórica, por tratar-se de uma experiência social de natureza dialética a ordenação lógico-formal corresponde a momento abstratamente destacado de um processo em si mesmo uno e concreto. A unidade que Kelsen nos aponta, no plano lógico-formal das normas, não é senão reflexo no sentido unitário ou englobante da experiência jurídica, enquanto objetivação e positivação histórica de valores sociais, reflexo do querer da comunidade (...) A vigência e eficácia do ordenamento jurídico não são, pois, decorrência de uma norma fundamental, como expõe Kelsen (26), nem é mero fato, como expõe os positivistas, mas são antes qualidades imanentes ao sentido da experiência jurídica, como experiência axiológica. O Direito é, em verdade, uma das expressões basilares do espírito humano em seu incessante processo de objetivação ordenadora e racional do mundo em que vivemos, representando "sistema de respostas sucessivas" aos problemas que se põe através da história

            - Não há como contestar a validade de uma experiência que já é, de per si, uma experiência incessante e renovada de valores, impondo-se o ordenamento jurídico vigente a todos os membros da comunidade por ser o quadro axiológico necessário à convivência social, inclusive em razão de seu sempre possível aperfeiçoamento. (Reale, 1980: 196)

            É evidente o paralelo entre Lyra Filho e Miguel Reale. Ambos afirmam que o direito de alguma forma "brota" da sociedade. Que esta sociedade atualiza constantemente seus valores. Que o direito, em maior ou menor medida acompanha tal atualização e, por fim, que o direito (aqui entendido como ordem normativa, legislação) é algo necessário, seja à "convivência social", como quer Reale, seja à "afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social", como entende Lyra Filho.

            Esta identificação do Direito com a Justiça tem por meta legitimar seja a ação contestatória da ordem estabelecida, seja a manutenção desta mesma ordem. Ademais, vinculando o Direito, já atrelado à Justiça, ao "processo histórico", pode-se conferir à este Direito-Justiça ainda outro fundamento de validade, a saber, o status de uma verdade científica. Aqui entra a Sociologia do Direito. O Direito revela-se na sociedade ao longo de um "processo histórico", a sociologia tem esta sociedade e este processo por seus objetos de estudo. A sociologia é capaz de revelar o Direito autêntico, nascido da sociedade, historicamente formado e, como o que assim é feito é tido por justo, o Direito Justo.

            Referências a este pensamento não faltam em autores de teoria do Direito. Segue-se uma seleção de passagens da obra de Lyra Filho, não exaustiva pois implicaria em transcrever páginas a fio, que afirmam que o direito "brota" da sociedade e, portanto, a sociologia do Direito é capaz de revela-lo:

            O caminho para corrigir as distorções das ideologias começa no exame não do que o homem pensa sobre o direito, mas do que juridicamente ele faz. Poderemos chegar, nisto à dialética do Direito não já como simples repercussão mental na cabeça dos ideólogos, porém como fato social, ação concreta e constante donde brota a repercussão mental (...) A Sociologia Jurídica é a única base sólida para iniciarmos a nova reflexão, a nova Filosofia Jurídica (...) O princípio do Direito será, deste modo, a Sociologia Jurídica (...) para vencer a "metafísica" que é ideologia também, vamos traçar o esboço duma Sociologia Jurídica que nada fique devendo, por outro lado à "metafísica da sociedade" (...) mas, ao contrário, se funde numa ciência dos fatos sociais (...) para a visão dialética do Direito é necessária uma Sociologia dialética (...) A essência do Direito, para não se perder em especulações metafísicas, nem se dissolver num monte de pormenores irrelevantes, exige a mediação duma perspectiva científica, em que os "retratos" históricos se ponham em movimento, seguindo o modelo geral da constituição de cada uma daquelas imagens (...) Aplicando-se ao Direito uma abordagem sociológica será então possível esquematizar os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social, bem como perceber a sua peculiaridade distintiva, a sua "essência" verdadeira. (...) Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão novas conquistas (...) Porém, o princípio jurídico fundamental (isto é, a matriz de todos os outros, que vão se desvendando no processo libertador e inspiram a avaliação de qualquer norma) já foi conscientizado (...) Foi Marx quem o registrou (...) [:] "o livre desenvolvimento de cada um depende do livre desenvolvimento de todos". (Lyra Filho, 1999: 46, 47, 50, 52, 53, 86, 90, 91)

            A sociologia revela o Direito e, portanto, a Justiça. A volição de Lyra Filho (a contestação da ordem estabelecida em favor de uma ordem por estabelecer, para depois contestar) está, portanto, legitimada. Porém a ação contestatória não carece de legitimidade para existir. Kelsen assume a possibilidade de contestação da ordem sem precisar legitimar cientificamente esta contestação.

            Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até mesmo matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considerá-las como situando-se fora da ordem jurídica destes Estados. (Kelsen, 2000: 44).

            Se uma lei foi posta por um ordenamento eficaz, não há motivo para não admiti-la como direito. Mas o fato de ser um ou outro o ordenamento vigente não é motivo para acata-la. Se as normas são postas, como afirma Kelsen, por atos volitivos, é ao desejar e buscar, ou melhor, é ao agir (politicamente) que se tem a possibilidade de transformar as leis, e não descrevendo o direito ideal ou afirmando que o Direito em vigor não é Direito. "O fato, porém, de o conteúdo de uma ordem coercitiva eficaz poder ser julgada injusta, não constitui de qualquer forma um fundamento para não considerar como válida essa ordem coercitiva" (Kelsen, 2000: 55).

            Se a ordem é injusta, é injusta, e não inválida. Derrubar esta ordem é torna-la inválida. É isto que pretende Lyra Filho, torna-la inválida. No entanto, segundo ele, a ordem já é inválida.

            Lyra Filho não admite a possibilidade de uma ação legítima (no sentido de "boa") desconforme ao "Direito", por isso, carece de um Direito em constante atualização para orientar a conduta. É Lyra Filho, e não Kelsen, quem sepulta a volição, tornando a ação refém de um conhecimento pré-moldado. Penso que seja desnecessário um guia para a ação e que melhor seria um mapa que mostrasse lugares reais, ainda que desagradáveis, do que um que conduza a um imaginado tesouro escondido.

            Ideologia, em Kelsen, antes de ser o conhecimento socialmente condicionado, é entendida como o conhecimento volitivamente (desde que não a volição orientada para a verdade) condicionado. Entre este e a própria volição, fico com a volição.

            A partir do momento em que a sociologia é interpretada como uma ciência da sociedade em seu processo histórico, e o Direito justo e correto é entendido como uma emanação desta sociedade neste processo, a teoria pura do direito se torna um corpo de conhecimento, no mínimo, irrelevante, uma vez que descreve apenas o direito posto e não é capaz de explicar sua origem ou aplicação. Tanto na visão de Lyra Filho, como na de Miguel Reale, a teoria pura do direito é quase que a antítese de uma sociologia do direito.


II – Teoria Pura do Direito.

            Neste capítulo será apresentada a Teoria Pura do Direito e, em seguida será mostrado como essa teoria não é apenas relativa ao direito, e sim às ordens normativas em geral, ao menos em grande parte.

            A Teoria Pura do Direito divide-se em duas partes: a Estática Jurídica e a Dinâmica Jurídica. Há ainda, é claro, outras idéias que são pressupostos ou conseqüências destas dimensões do Direito, mas que, ou já foram tratadas quando se apresentou a visão de Kelsen no capítulo anterior, ou não foram consideradas de interesse imediato.

            Esta divisão que Kelsen faz entre Estática e Dinâmica Jurídica remete à análise do Direito envolvendo ou não seu processo de criação e/ou validação. A Dinâmica Jurídica seria a análise do Direito enquanto algo em transformação, ou melhor, seria a análise da validação de uma norma. Enfim, a Dinâmica Jurídica busca responder à questão de porque se deve obedecer a uma determinada norma e porque se deve passar a obedecer a uma outra norma em determinadas circunstâncias, como a revogação da norma em questão. A Estática Jurídica é a análise do Direito enquanto um sistema de normas postas, cristalizadas, por assim dizer, deixando de lado a questão da validade destas normas, ou melhor, tendo por aceite a validade delas.

            A teoria da construção escalonada da ordem jurídica apreende o Direito no seu movimento, no processo, constantemente a renovar-se, da sua auto-criação. É uma teoria dinâmica do Direito, em contraposição a uma teoria estática do Direito que procura conceber este apenas como ordem já criada, a sua validade, o seu domínio de validade, etc., sem ter em conta sua criação. (Kelsen, 2000: 309)

            Diferentemente de Kelsen, apresentarei a princípio a Dinâmica Jurídica, por entender que é de mais fácil apreensão e porque é a ela que se dirigem a totalidade das críticas apresentadas até então.

            Quanto à Dinâmica Jurídica, serão tratadas as questões do fundamento de validade e da estrutura escalonada da ordem jurídica. Já quanto à Estática Jurídica as questões da norma, do direito subjetivo, da pessoa, da organicidade e da relação jurídica.

            Dinâmica Jurídica.

            1- A norma fundamental.

            Kelsen entende o Direito como uma ordem normativa, ou um sistema coercitivo de normas reguladoras da conduta humana. Uma ordem normativa, por sua vez, é entendida como um conjunto de normas que derivam sua validade de uma mesma norma fundamental.

            Colocada a questão de por que razão uma norma é válida, chega-se a uma Dinâmica Jurídica.

            A validade de uma norma é sua existência. Tal existência é a vinculação da conduta humana à norma, ou melhor é o caráter de objetividade do dever ser que constitui a norma. Dizer que uma dada norma é válida significa dizer que se deve obedece-la. Leve-se em conta aqui que ao afirmar que uma norma válida deve ser obedecida não se prescreve tal obediência, mas, antes, assume-se o caráter de objetividade de uma ordem normativa, da qual a norma referida faz parte. Ou seja, dizer que uma norma é válida significa que, segundo a ordem normativa levada em consideração, deve-se obedece-la.

            Assim, "dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo ’vale’ (é ‘vigente’), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do modo prescrito pela norma" (Kelsen, 2000: 215).

            Kelsen assume o pressuposto de que uma norma só pode ser validade, ou seja, ser considerada objetiva, em relação a outra norma. Em verdade o autor admite que do ser não decorre o dever ser. "Do fato de algo ser não pode seguir-se que algo deve ser, assim como do fato de algo dever ser se não pode seguir que algo é" (Kelsen, 2000: 215).

            Portanto, se uma norma (um dever ser) é tida como válida, o é porque decorre sua validade de uma outra norma, por exemplo: O indivíduo "A" deve fazer "" segundo a norma "a". Por que o indivíduo deve comportar-se conforme "a"? Porque a norma "b" prescreve que ele deva se portar como prescreva "a".

            Mesmo quando fundamentamos determinada norma na autoridade de alguém ou algo, como Deus, por exemplo, pressupomos uma norma segundo a qual devamos obedecer a Deus, e não simplesmente o fato de Deus ter ordenado determinada conduta.

            Dois pontos importantes no pensamento kelseniano acerca da norma fundamental: 1) uma norma só pode fundamentar-se em uma outra norma. 2) Uma série de imputação há de ter um início e um fim.

            O primeiro ponto já foi tratado. Quanto ao segundo, Kelsen não admite uma série imputativa infinita, como uma série causal. No entanto, toda norma só é válida, considerada objetiva, se fundamentada em outra norma, ou melhor, se há uma norma considerada objetiva que prescreva sua observância. Daí que, se quisermos aceitar qualquer norma como objetiva, temos de pressupor uma norma cuja objetividade não se põe em questão.

            Assim, o fundamento de validade de uma ordem normativa é uma norma, mas uma norma pressuposta.

            Afirma o autor:

            Na verdade, parece que se poderia fundamentar a validade de uma norma como fato de ela ser posta por qualquer autoridade, por um ser humano ou supra-humano: assim acontece quando se fundamenta a validade dos Dez Mandamentos com o fato de Deus, Jeová, os ter dado no Monte Sinai, ou quando se diz que devemos amar os nossos inimigos porque Jesus, o Filho de Deus, o ordenou no Sermão da Montanha. Em ambos os casos, porém, o fundamento de validade, não expresso mas pressuposto, não é o fato de Deus ou o Filho de Deus ter posto uma determinada norma num certo tempo e lugar, mas uma norma: a norma segundo a qual devemos obedecer às ordens ou mandamentos de Deus, ou aquela outra segundo a qual devemos obedecer aos mandamentos de Seu Filho.

            - Em todo caso, no silogismo cuja premissa maior é a proposição de dever-ser que enuncia a norma inferior: devemos obedecer aos Dez Mandamentos (ou ao mandamento que nos ordena que amemos os inimigos), a proposição que verifica (afirma) um fato da ordem do ser: Deus estabeleceu os Dez Mandamentos (ou o Filho de Deus ordenou que amássemos os inimigos), constitui, como premissa menor, um elo essencial. Premissa maior e premissa menor, ambas são pressupostos da conclusão. Porém apenas a premissa maior é que é uma proposição de dever ser, é uma conditio per quam relativamente à conclusão, que também é uma proposição de dever-ser. Quer dizer, a norma afirmada na premissa maior é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. A proposição de ser que funciona como premissa menor é apenas conditio sine qua non relativamente à conclusão. Quer dizer: o fato da ordem do ser verificado (afirmado) na premissa menor não é o fundamento de validade da norma afirmada na conclusão. (Kelsen, 2000: 215 e 216).

            Uma norma é considerada superior ou inferior a outra conforme seja a que empresta ou a que receba da outra, respectivamente, a validade.

            Do que ficou dito resulta que a norma fundamental é entendida como a conditio per quam, ou condição pela qual se considera válida uma ordem normativa, ou melhor, é o elemento que confere validade à ordem. A norma fundamental é pressuposta, e não posta por ato humano e, é claro, é norma. Enquanto norma de dever-ser, se presta a validar outras normas de dever ser. Esta norma, portanto, é o fundamento de validade de uma ordem jurídica. A constatação fática de uma autoridade haver posto uma norma em conformidade com uma norma é condição sine qua non de sua validade, e se constitui, juntamente com a norma fundamental, em condição de validade da ordem jurídica.

            Esta distinção entre condição de validade e fundamento de validade é importante para a compreensão da relação que Kelsen entende haver entre eficácia e validade (27).

            Tanto a conformidade à norma fundamental como a eficácia são condições de validade de uma ordem normativa. No entanto a validade não decorre da eficácia. Não é o fato de uma determinada ordem jurídica ser eficaz que a torna válida. "Tal eficácia é condição no sentido de que uma ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são considerados como válidas quando cessão de ser eficazes" (Kelsen, 2000: 236).

            A questão é que o fundamento de validade de uma ordem jurídica estabelece que se deva conduzir da forma como estabelece a Constituição, com um fator condicionante: tal Constituição deve ser eficaz (28). Desta forma, assim como na questão entre o ato de uma autoridade que põe uma norma e o seu fundamento de validade, cabe colocar a questão das diferentes condições de validade.

            A eficácia é condição sine qua non da validade, mas não é seu fundamento. Tal como antes, pode-se conceber o silogismo normativo como contendo, na premissa maior, o fundamento de validade, e na menor, a eficácia.

            No silogismo normativo que fundamenta a validade de uma ordem jurídica, a proposição de dever-ser que enuncia a norma fundamental: devemos conduzir-nos de acordo com a Constituição efetivamente posta e eficaz, constitui a premissa maior; a proposição de ser que afirma o fato: a Constituição foi efetivamente posta e é eficaz, quer dizer, as normas postas de conformidade com ela são globalmente aplicadas e observadas, constitui a premissa menor; e a proposição de dever-ser: devemos conduzir-nos de conformidade com a ordem jurídica positiva valem (são válidas) porque a norma fundamental que forma a regra basilar da sua produção é pressuposta como válida, e não porque são eficazes; mas elas somente valem se esta ordem jurídica é eficaz. Logo que a Constituição e, portanto, a ordem jurídica que sobre ela se apoia, como um todo, perde a sua eficácia, a ordem jurídica, e com ela cada uma de suas normas perdem a validade (vigência). (Kelsen, 2000: 237).

            O condicionante que Kelsen põe na norma fundamental, que exige a eficácia do ordenamento jurídico é, em verdade, a condição de que o mesmo seja o direito atualmente posto, em vigor, eficaz. De fato, se supormos um ordenamento normativo não eficaz ainda o podemos analisar como um sistema coerente de normas. Estas não serão, porém, válidas no sentido de vinculantes ou existentes. Pode-se estudar uma ordem normativa não eficaz como um conjunto sistêmico de normas, mas tais normas seriam mera ficção. Se tomarmos, por exemplo, o ordenamento da antiga república romana poderemos fundamentar sua validade do mesmo modo, ou seja, recorrendo à norma fundamental que prescreva a observância da Constituição (em termos kelsenianos) daquela república. Neste caso a eficácia continua, mesmo aí, como condição de validade, apenas o limite temporal de validade foi alterado. Mas o raciocínio que levou à norma fundamental pode ser aplicado mesmo a um ordenamento normativo fictício que regule, por exemplo, a vida de determinados personagens em uma história de ficção, apenas não se pode afirmar que tal ordenamento seria válido, uma vez que dizer que uma norma é válida é dizer que é vinculante, e uma norma ineficaz não pode sê-lo.

            A razão, a meu ver, que leva Kelsen a colocar a eficácia da Ordem como uma condição de validade é a seguinte: o autor está preocupado em explicar o Direito Positivo, ou seja o Direito atualmente vigente, e não simplesmente um ordenamento normativo qualquer. Sua condição de validade é, também, uma condição de interesse, no sentido de que para analisar qualquer ordenamento normativo é necessária a assunção de uma norma pressuposta que confira objetividade ao conteúdo subjetivo de sentido de sua Constituição, mas para que Kelsen tenha interesse nesta análise, uma vez que lhe interessa o Direito, uma ordem válida, cumpre que tal ordenamento seja eficaz.

            A validade, como já se pôde notar, tem limitações. Estas podem ser temporais, espaciais ou pessoais, conforme refiram-se ao tempo, espaço ou pessoas que são submetidas ao ordenamento. Assim é que se pode conceber como válido o Direito da antiga república romana ou mesmo o Direito canônico nos dias de hoje. O primeiro tem um limite temporal de validade que não abrange os dias atuais, e o segundo tem um limite pessoal de validade que não abrange toda a população de qualquer território, senão, talvez, do Vaticano. (29)

            Kelsen denomina por "princípio da legitimidade" aquele segundo o qual "uma ordem jurídica é validada até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída por uma outra norma desta ordem jurídica" (Kelsen, 2000: 233). Denomina, por outro lado, "princípio da eficácia" aquele segundo o qual "a norma fundamental refere-se apenas a uma Constituição que é efetivamente estabelecida por um ato legislativo ou pelo costume e que é eficaz" (Kelsen, 2000: 234). Para Kelsen "o princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade".

            É enquanto condição de validade que a eficácia não pode ser excluída da concepção de um ordenamento normativo. Por isto, o desuetudo é sempre, ainda que o ordenamento afirma o contrário, fator que revoga a norma, e até mesmo a Constituição, como já foi exposto.

            Do que precede podemos entender que um ordenamento normativo pode ser alterado, revogado ou substituído tanto de acordo com as normas por ele mesmo estabelecidas como pela perda de sua eficácia. Esta segunda forma é, por Kelsen, denominada "revolução" se, de uma forma não prevista na constituição, estabelecem-se normas gerais com eficácia duradoura, ou seja, as normas passam a ser postas de modo alheio ao estabelecido na constituição e, portanto, a norma fundamental segundo a qual devemos nos conduzir conforme a constituição deixa de ter eficácia.

            Antes, porém, de tratar deste tema, cumpre definir o conceito de Constituição e apresenta as noções de "princípio dinâmico" e "princípio dinâmico" além de mostrar como a norma fundamental pode ser uma norma "pensada".

            O "princípio estático" e o "princípio dinâmico" não correspondem à Estática e Dinâmica Jurídica, uma vez que ambos inscrevem-se nesta última. São princípio utilizados para derivar uma norma de outra Estes princípios permitem classificar o ordenamento jurídico de acordo com "a natureza do fundamento de validade".

            Sucintamente podemos definir estes princípios da seguinte forma: segundo o princípio estático as normas do ordenamento são consideradas válidas pela conformidade do seu conteúdo com o conteúdo da norma fundamental. Já conforme o princípio dinâmico as normas do ordenamento são consideradas válidas por terem sido postas de acordo com a maneira determinada pela norma fundamental. Neste princípio, a norma fundamental apenas confere autoridade, ou seja põe como devida a obediência a outra norma, naquele, a norma fundamental além de conferir autoridade, estabelece certo conteúdo para as demais normas.

            Os ordenamentos cujo fundamento de validade das normas segue um princípio estático têm, contido na norma fundamental, o conteúdo de todas as normas do ordenamento e estas são deduzidas por uma operação lógica. (30) O autor oferece um exemplo:

            Assim, por exemplo, as normas: não devemos mentir, não devemos fraudar, devemos respeitar os compromissos tomados, não devemos prestar falsos testemunhos, podem ser deduzidas de uma norma que prescreva a veracidade. (Kelsen, 2000: 218).

            No entanto, Kelsen não parece crer que um ordenamento normativo possa se apoiar em uma norma fundamental segundo o princípio estático. Diz o autor:

            Só que a norma de cujo conteúdo outras normas são deduzidas, como o particular do geral, tanto quanto ao seu fundamento de validade como quanto ao seu teor de validade, apenas pode ser considerada como norma fundamental quando o seu conteúdo seja havido como imediatamente evidente (...) Dizer que uma norma é imediatamente evidente significa que ela é dada na razão, com a razão, (...) pressupõe o conceito de razão prática, que dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e o estabelecimento de normas é um ato de vontade. (Kelsen, 2000: 218)

            Kelsen pretende que a norma fundamental pressuposta, dessa forma, prescreveria a obediência a uma vontade que prescreveria a norma que permite a dedução segundo o princípio estático. No entanto, não há razão para dizer que para considerar uma norma fundamental com conteúdo diverso da delegação de autoridade como sendo o fundamento de validade de uma ordem normativa devamos tomar tal conteúdo como imediatamente evidente. De fato, um ecologista pode tomar como regra fundamental de conduta a norma segundo a qual não se deve destruir a natureza. A norma fundamental seria a de que deve-se obedecer à referida norma. E dela decorreriam, por exemplo, as normas: deve-se evitar acender fogueiras ao acampar, deve-se evitar o uso de automóveis, etc. Por certo que a maioria dos preceitos que valem-se do princípio estático fundamentam sua validade em vontades supra-humanas, mas disto não decorre que não se possa pressupor a validade de uma norma sem teor de delegação de autoridade.

            Os ordenamentos normativos cujo fundamento de validade das normas segue um princípio dinâmico têm, como norma fundamental, uma norma que meramente delega a autoridade.

            O tipo dinâmico é caracterizado pelo fato de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um fato produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (Kelsen, 2000: 219)

            Assim, ao delegar autoridade a uma entidade legisladora, a norma fundamental delega autoridade a um conjunto de regras que estabelecem regras, como se verá adiante. As normas postas por tal autoridade ou em conformidade com tais regras não têm, com relação ao seu conteúdo, qualquer vínculo com a norma fundamental. Eis um exemplo:

            Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do filho: por que devo eu ir à escola, a resposta pode ser: porque o pai assim o ordenou e o filho deve obedecer às ordens do pai. Se o filho continua a perguntar: por que devo eu obedecer às ordens do pai, a resposta pode ser: porque Deus ordenou a obediência aos pais e nós devemos obedecer às ordens de Deus. Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele põe em questão a validade desta norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento de sua validade, que apenas a podemos pressupor. O conteúdo da norma que constitui o ponto de partida: o filho deve obedecer às ordens do pai, não pode ser deduzido desta norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental limita-se a delegar numa autoridade legisladora, quer dizer, a fixar uma regra em conformidade com a qual devem ser criadas as normas deste sistema. (Kelsen, 2000: 219)

            Apesar de não estar, de forma alguma, vinculada à norma fundamental quanto ao conteúdo, as normas que são postas de conformidade com ela segundo um princípio dinâmico compõe uma unidade. "Uma norma pertence a um ordenamento que se apoia numa norma fundamental porque é criada pela forma determinada através dessa norma fundamental" (Kelsen, 2000: 220).

            Ambos os princípios, estático e dinâmico, podem ser encontrados em um e mesmo ordenamento. O exemplo dado por Kelsen é o de que os Dez Mandamentos, ao mesmo tempo em que proscrevem a confecção de imagens (ou ídolos), estabelecem os pais como autoridade legisladora.

            O princípio estático e o princípio dinâmico estão reunidos numa e na mesma norma quando a norma fundamental pressuposta se limita, segundo o princípio dinâmico, a conferir poder a uma autoridade legisladora e esta mesma autoridade ou outra por ela instituída não só estabelecem normas pelas quais delegam noutras autoridades legisladoras mas também normas pelas quais se prescreve uma determinada conduta dos sujeitos subordinados às normas e das quais – como o particular do geral – podem ser deduzidas novas normas através de uma operação lógica. (Kelsen, 2000: 220)

            Para Hans Kelsen, o ordenamento jurídico tem "essencialmente um caráter dinâmico" (Kelsen, 2000: 221). Portanto o conteúdo de uma norma não é qualquer empecilho para que figure em um tal ordenamento. "Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser Direito" (Kelsen, 2000: 221), desde que a norma que o prescreve tenha sido "produzida através de um ato especial de criação" (Kelsen, 2000: 221).

            O termo Constituição tem dois sentidos em Kelsen. O primeiro é o de uma regra que estabelece como serão produzidas as normas de um ordenamento. O segundo é o de uma norma pressuposta que confere validade a outras, ou seja, a norma fundamental. Diferenciam-se estes conceitos chamando aquela de Constituição jurídico-positiva e esta de Constituição lógico-jurídica. "Neste sentido, a norma fundamental é a instauração do fato fundamental da criação jurídica e pode, nestes termos, ser designada como constituição no sentido lógico-jurídico, para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-positivo." (Kelsen, 2000: 222).

            Ao tomar a constituição como a norma que determina o processo de formação de normas de um ordenamento, temos que a norma fundamental, segundo o princípio dinâmico, prescreve a obediência à constituição.

            Se por Constituição de uma comunidade se entende a norma ou as normas que determinam como, isto é, por que órgãos e através de que processos – ou através de uma criação consciente do Direito, especialmente o processo legislativo, ou através do costume – devem ser produzidas as normas gerais da ordem jurídica que constitui a comunidade, a norma fundamental é aquela norma que é pressuposta quando o costume, através do qual a Constituição surgiu, ou quando o ato Constituinte (produtos da Constituição) posto conscientemente por determinados indivíduos são objetivamente interpretados como fatos produtores de normas. (Kelsen, 2000: 221)

            O termo Constituição apresenta ainda um nuança importante, que há de ser levado em conta quando, a seguir, passarmos a tratar da estrutura escalonada da ordem jurídica. O conceito de Constituição em sentido jurídico-positivo foi o de uma ou várias normas que regulam o processo de criação de normas (instituindo órgãos, procedimentos, etc.). Ou seja, quando tratarmos de Constituição, salvo afirmação expressa em contrário, não estamos tratando do documento a que se dá esse nome. Kelsen distingue, então, a Constituição em sentido material da Constituição em sentido formal. Aquela são as normas, figurantes ou não do documento a que se atribui o termo, que regulam o processo de produção normativa (e também, como se verá, de "aplicação" do Direito) e esta são as normas contidas no documento Constitucional, sejam ou não materialmente constitucionais. (cf. Kelsen, 2000:247).

            Por fim, registre-se que a norma fundamental não é uma prescrição propriamente dita, mas antes um construto da ciência jurídica. É uma norma pensada, e não posta. É uma condição de validade da ordem sobre a qual se debruça a ciência.

            Afirma o autor:

            Como uma ciência jurídica positivista considera o autor da Constituição que foi historicamente a primeira como a autoridade jurídica mais alta e, por isso, não pode afirmar que a norma: devemos obedecer às ordens do autor da Constituição é o sentido subjetivo do ato de vontade de uma instância supra-ordenada ao autor da Constituição – v.g. Deus ou a natureza –, ela não pode fundamentar a validade desta norma num processo silogístico. (Kelsen, 2000: 227).

            O processo silogístico é, em suma, o seguinte:

            A fundamentação da validade de uma norma positiva (isto é, estabelecida através de um ato de vontade) que prescreve uma determinada conduta realiza-se por um processo silogístico. Neste silogismo a premissa maior é uma norma considerada objetivamente válida (melhor, a afirmação de uma tal norma), por força da qual devemos obedecer aos comandos de determinada pessoa, quer dizer, nos devemos conduzir de harmonia com o sentido subjetivo destes atos de comando; a premissa menor é a afirmação do fato de que essa pessoa ordenou que nos devemos conduzir de determinada maneira. A norma cuja validade é afirmada na premissa maior legitima, assim, o sentido subjetivo do ato de comando, cuja existência é afirmada na premissa menor, como seu sentido objetivo. Por exemplo: devemos obedecer às ordens de Deus. Deus ordenou que obedeçamos às ordens dos nossos pais. Logo, devemos obedecer às ordens de nossos pais. (...) A norma afirmada como objetivamente válida na premissa maior, que opera a fundamentação, é uma norma fundamental se a sua validade objetiva já não pode ser posta em questão. Ela já não é mais posta em questão se a sua validade não pode ser fundamentada em um processo silogístico. (Kelsen, 2000: 226).

            A norma fundamental é, assim, um artifício lógico, utilizado por ser uma conseqüência da necessidade que um comando subjetivo tem de fundamentar-se em uma norma considerada objetiva para ser considerado válido, aliado à recusa em fundamentar este comando em uma instância supra-ordenada.

            Portanto, a norma fundamental é uma norma pressuposta que estabelece como devida (devendo ser), ou melhor, que delega autoridade numa constituição. (31)

            2- A estrutura escalonada da Ordem Jurídica

            A Teoria Pura do Direito não se resume à teoria da norma fundamental. É necessário que se destaque que um ordenamento normativo não é, pura e simplesmente um conjunto de normas justapostas umas às outras, mas sim um sistema de normas unidas por um mesmo fundamento de validade. As normas estão vinculadas à norma fundamental de uma maneira sistemática, de forma que também entre si guardam uma relação. Este vínculo está precisamente em que uma norma confere validade a outra e decorre sua validade ainda de uma outra norma, até que, no extremo (os juristas gostam de representar tal situação como uma pirâmide onde no topo está a norma fundamental, mas as normas mais abaixo a ela são ligadas mediatamente) encontremos a norma fundamental.

            As normas de uma ordem jurídica cujo fundamento de validade comum é esta norma fundamental não são – como o mostra a recondução á norma fundamental anteriormente descrita – um complexo de normas válidas colocadas umas ao lado das outras, mas uma construção escalonada de normas supra e infra ordenadas umas às outras. (Kelsen, 2000: 224)

            Desta forma, uma norma pode estar em relação de superioridade, inferioridade ou de igualdade hierárquica com relação às demais.

            Outra característica do ordenamento normativo é a de que os princípios lógicos podem ser aplicados para analisa-lo. O princípio da imputação liga um fato a outro como sanção, ou melhor liga um fato a outro da forma se A, então B deve ser. Se, como Kelsen, pressupomos como válida uma norma fundamental, a entendamos como objetiva, podemos aplicar os princípios lógicos à proposições acerca desse ordenamento. Assim, se uma norma em correspondência com o fundamento de validade diz que se A, então deve ser B, e uma outra norma, afirma, em desconformidade com o mesmo fundamento de validade que se A, então deve ser não-B, pode-se, logicamente, dizer que segundo o ordenamento em questão a segunda norma é inválida. É impossível que algo deva e não deva ser ao mesmo tempo e sob as mesmas condições dentro de um mesmo ordenamento normativo.

            Consideremos, em primeiro lugar, que para Kelsen um juízo de valor não é, de qualquer forma, subjetivo, uma vez que qualquer juízo é objetivo. O valor pode ser subjetivo, mas o juízo da realidade que assuma este valor como sendo objetivo, é feito de forma objetiva.

            Se designarmos como juízo de valor o juízo através do qual determinamos a relação de um objeto domo desejo ou vontade de um ou vários indivíduos dirigida a esse mesmo objeto e, desse modo, considerarmos bom o objeto quando corresponde àquele desejo ou vontade, e mau, quando contradiz aquele desejo ou vontade, este juízo de valor não se distingue de um juízo de realidade, pois que apenas estabelece a relação entre dois fatos da ordem do ser. (...) Quando designamos os juízos de valor que exprimem um valor objetivo como objetivos, e os juízos de valor que exprimem um valor subjetivo como subjetivos, devemos notar que os predicados "objetivo" e "subjetivo" se referem aos valores expressos e não ao juízo como função do conhecimento. Como função do conhecimento tem um juízo de ser sempre objetivo, isto é, tem de formular-se independentemente do desejo e da vontade do sujeito judicante. Isto é bem possível. Podemos, com efeito, determinar a relação de uma determinada conduta humana com um ordenamento normativo, ou seja, afirmar que esta conduta está de acordo ou não está de acordo com o ordenamento, sem ao mesmo tempo tomarmos emocionalmente posição em face dessa ordem normativa (...) A resposta à questão de saber se, de acordo com a Moral cristã, é bom amar o inimigo, e o juízo de valor que daí resulta, pode e dar-se sem ter em conta se aquele que tem de responder e formular o juízo de valor aprova ou desaprova o amor dos inimigos (...)Então, e somente então, é objetivo este juízo de valor. (Kelsen, 2000: 22 e 23).

            Assim, o juízo segundo o qual uma determinada norma não corresponde quanto ao conteúdo com uma outra norma, é um juízo objetivo, no sentido de que não implica na aprovação ou reprovação do sujeito judicante, temos, tão somente, um esclarecimento lógico.

            É sabido que não pode haver contradição lógica entre norma e fato. Uma norma que mande não matar não se contradiz com um assassinato, mas com uma outra norma que prescreva o assassinato.

            Na medida em que aceitamos que em um ordenamento jurídico de tipo dinâmico as normas são consideradas válidas por haver sido postas de acordo com determinado processo, temos de acatar a possibilidade de normas que entrem em "conflito". Tal conflito é, basicamente, uma contradição lógica. Por exemplo, é possível que em um determinado ordenamento jurídico, o órgão competente elabore uma norma que proscreva o adultério, vinculando a tal ato a pena de prisão. É possível ainda que o mesmo, ou outro órgão, estabeleça, ao mesmo ou em outro tempo, que o adultério não deve ser punido.

            Os ordenamentos normativos, em geral, e o Direito em particular, são produtos da ação humana e nada impede que esta tenha um sentido contraditório. A ciência do Direito, porém procura descrever o direito em proposições jurídicas isentas de contradição. Distinguem-se as normas jurídicas das proposições jurídicas no sentido de que aquelas são postas por autoridades legislativas e têm caráter prescritivo e estas são apresentadas pela ciência jurídica e têm caráter descritivo.

            É possível que o legislador prescreva normas contraditórias. Uma norma não é verdadeira ou falsa, mas válida ou inválida. Se o legislador põe duas normas contraditórias em conformidade com a Constituição, ambas seriam válidas. No entanto, uma proposição acerca destas normas pode ser verdadeira ou falsa e, portanto, pode valer-se dos princípios lógicos, em especial o da não contradição. Deixo que as palavras do próprio autor esclareçam:

            Com efeito, os princípios lógicos, e particularmente o princípio da não-contradição, são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas; e uma contradição lógica entre duas afirmações consiste em que apenas uma ou outra pode ser verdadeira; em que se uma é verdadeira, a outra tem de ser falsa. Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ou inválida. Contudo, a asserção (enunciado) que descreve uma ordem normativa afirmando que, de acordo com esta ordem, uma determinada norma é válida, e, especialmente, a proposição jurídica, que descreve a ordem jurídica afirmando que, de harmonia com esta mesma ordem jurídica, sob determinados pressupostos deve ser ou não deve ser posto um determinado ato coercivo, podem, - como se mostrou – ser verdadeiras ou falsas. Por isso, os princípios lógicos em geral e o princípio da não contradição em especial podem ser aplicados às proposições jurídicas que descrevem normas de Direito e, assim, indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurídicas. Não é, portanto, inteiramente descabido dizer-se que duas normas jurídicas se "contradizem" uma à outra. E, por isso mesmo, somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e que A não é ao mesmo tempo. Um conflito de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo de sem sentido (...) Como, porém, o conhecimento do Direito – como todo conhecimento – procura apreender o seu objeto como um todo de sentido e descreve-lo em proposições isentas de contradição, ele parte do pressuposto de que os conflitos de normas no material normativo que lhe é dado podem e devem necessariamente ser resolvidos pela via da interpretação. (Kelsen, 2000: 229)

            Importante notar que a interpretação de que aqui se fala não é a interpretação de um juiz, mas de um estudioso do direito. O juiz, ao interpretar uma norma, cria norma nova. O estudioso descreve-a como parte de um ordenamento. Esta interpretação é mera aplicação dos princípios lógicos, enquanto aquela é a busca de um ideal de justiça.

            Tratemos da interpretação do cientista. O Direito é um sistema de normas supra e infra-ordenadas no sentido de que uma norma deriva sua validade da outra. Assim, a decisão judicial é válida porque posta conforme as normas que regem o procedimento judiciário e porque conforme uma determinada norma geral. Ou seja, se uma norma é supra-ordenada a uma outra, o é porque esta deriva daquela sua validade. Em caso, portanto, de conflito de normas de escalões diferentes, prevalece a de escalão superior, uma vez que é condição de validade da outra e que, se considerada inválida por chocar-se com a norma inferior, também deveria ser (por deficiência de condição de validade) a própria norma inferior, donde já não haveria razão para tomar como inválida a norma superior.

            Assim, digamos que a constituição estabeleça que o órgão legislativo por ela instituído deva, de acordo com determinados procedimentos, prescrever normas que vinculem penas ao ato de contrabando, vedada apenas a pena de morte. Suponhamos então que o órgão legislativo, sem respeitar aqueles procedimentos estabeleça como pena para o contrabando, única e exclusivamente, a morte. Ora, segundo este ordenamento tal norma é inválida porque entre suas condições de validade figura a conformidade à constituição. Assumir a validade da norma inferior equivaleria a declarar inválida a constituição. Se a norma inferior é válida porque foi posta de acordo com uma constituição tida como válida, e esta constituição não é tida como válida, então tampouco o é a norma inferir. De fato, a não ser que se aceite uma nova constituição (aquela segundo a qual o órgão legislativo está autorizado a estabelecer sob qualquer procedimento, qualquer pena ao ato de contrabando) e se pressuponha uma nova norma fundamental que prescreva a observância a esta nova constituição, é simplesmente impossível admitir logicamente a prevalência da norma inferior sobre a superior.

            Pode haver, porém, conflitos entre normas de mesmo escalão, ou seja, entre normas que não estejam supra e infra ordenadas umas às outras. Em casos assim o raciocínio precedente não se aplica. No entanto, se há um órgão legislador que recebeu autoridade, segundo o princípio dinâmico, para estabelecer normas gerais, ou um órgão que haja recebido autoridade para, conforme o princípio estático, deduzir de uma norma, como do geral para o particular, outras normas, deve-se admitir que uma norma posteriormente posta ou deduzida por tal órgão revogue uma norma anteriormente posta em sentido contrário pelo mesmo órgão. É o princípio que os juristas chamam "lex posterior derrogat priori".

            Se se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um e mesmo órgão mas em diferentes ocasiões, a validade da norma estabelecia em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princípio lex posterior derrogat priori. Como o órgão legislativo – v.g. o monarca ou o parlamento – é normalmente competente para produção de normas modificáveis e, portanto, derrogáveis, o princípio lex posterior derrogat priori pode ser considerado como incluído, co-envolvido, na atribuição da competência. Este princípio também encontra aplicação quando as normas que estão em conflito são estabelecidas por dois órgãos diferentes, quando, por exemplo, a Constituição atribua ao monarca e ao parlamento poder (competência) para regular o mesmo objeto através de normas gerais, ou a legislação e o costume são instituídos como fatos produtores de normas. (Kelsen, 2000: 230).

            Há, aqui, duas situações possíveis: quando a Constituição confira competência para produção de normas revogáveis e quando o faça para a de normas irrevogáveis. No primeiro caso, considerando duas normas postas conforme à constituição em momentos diferentes, desaparece o conflito de normas de mesmo escalão. A norma constitucional revogou a norma geral inferior. A questão se resolve como no caso do conflito de normas de diferente escalões. Lembre-se aqui que por "norma constitucional" entendem-se as normas que regulam a produção e aplicação de normas, sejam escritas ou não.

            Por outro lado, pode ser o caso de que a Constituição estabeleça autoridade para a produção de normas irrevogáveis. Exemplo disto seria a autoridade que detém o Papa da Igreja Católica para a produção de dogmas, ou melhor, de normas que prescrevem crenças. Como Deus é perfeito e imutável, e o Papa recebe de Deus inspiração para estabelecer dogmas perfeitos e imutáveis, seria inválido qualquer dogma contrário a um já posto. Digamos, por exemplo, que um Papa pronuncie ex-cathedra um dogma segundo o qual não se deve crer que Maria foi assunta ao céu. Ora, anteriormente foi posto um dogma em sentido contrário, e a constituição deste ordenamento não confere competência para revogar dogmas postos, portanto, o novo dogma não está de acordo com a constituição, por isso é inválido.

            Pode ainda ocorrer que o legislador, a um só tempo, ponha duas normas em conflito, ou que o conflito se dê no interior de uma e mesma norma.

            As normas que estão em conflito umas com as outras podem ser postas ser postas ao mesmo tempo, isto é, com um ato do mesmo órgão, por tal forma que o princípio da lex posterior não possa ser aplicado. Assim sucede quando nume e mesma lei se encontram duas disposições que contrariem uma à outra (...) Então haveria as seguintes possibilidade de resolver o conflito: ou se entendem as duas disposições no sentido de que é deixada ao órgão competente a aplicação da lei, um tribunal, por exemplo, a escolha entre as duas normas; ou quando – como no segundo exemplo – as duas normas só parcialmente se contradizem, que uma norma limita a validade da outra (Kelsen, 2000: 230).

            Temos aqui os seguintes casos: em um primeiro, há duas normas que são postas simultaneamente, havendo conflito entre elas, e em um segundo há duas normas conflituosas entre si que são postas no mesmo momento, mas uma delas é mais específica do que a outra.

            Tomemos o primeiro caso. Ambas as normas são válidas por haver sido postas de conformidade com a Constituição válida. Não há, portanto, como o estudioso do Direito afirmar que, segundo este ordenamento, qualquer delas prevaleça. Ambas são, portanto, válidas. Se ambas são válidas ambas atitudes previstas nas normas são aceitas. Se as normas prescrevem que o adultério deve e não deve ser punido, ao aplicar a norma, o órgão aplicador, seguindo qualquer delas estabeleceria uma lei individual válida. Uma proposição jurídica portanto afirmaria que cabe ao órgão aplicador a decisão acerca de aplicar ou não uma pena a um indivíduo que este mesmo órgão entenda que cometeu adultério.

            No segundo caso, pelas mesmas razões, não é possível ao estudioso afirmar que uma das normas é válida, segundo o ordenamento, em detrimento da outra. Ambas são válidas. Ocorre, porém, que neste caso é possível entendê-las ambas como válidas sem ter de fazer opção entre elas, ou melhor, ambas podem ser aplicadas simultaneamente e, como têm a mesma validade, ambas devem ser aplicadas simultaneamente. O exemplo que nos oferece Kelsen é o de uma norma que prescreva uma pena ao que comete um delito previsto e uma que vede a punição de pessoas com menos de catorze anos mesmo que tenham cometido delitos. Neste caso, tomando-se ambas as normas como válidas, temos que aquele que comete um delito deve ser punido e aquele que o faça mas não tenha ainda completado catorze anos não o deve. Ou seja, pune-se o que comete o delito, a exceção dos que tenham menos de catorze anos. Em um caso específico a lei específica prevalece, mas não revoga, a lei mais geral.

            Por fim, é possível que nenhuma das interpretações apresentadas dirima o conflito. Em tal caso, o legislador prescreveu algo sem sentido. Uma norma é um conteúdo de sentido subjetivo, entendido como objetivo, orientado à conduta de outrem. Não há sentido, logo não há norma.

            Quando nem uma nem outra interpretação sejam possíveis, o legislador prescreve algo sem sentido, temos um ato legislativo sem sentido e, portanto, algo que não é, sequer um ato cujo sentido possa ser interpretado como seu sentido objetivo. Logo, não existe qualquer norma jurídica objetivamente válida. Isto, embora o ato tenha sido posto em harmonia com a norma fundamental. Com efeito, a norma fundamental não empresta a todo e qualquer ato o sentido objetivo de uma norma válida, mas apenas ao ato que tem um sentido, a saber, o sentido subjetivo de que os indivíduos se devem conduzir de determinada maneira. O ato tem de – neste sentido normativo – ser um ato com sentido. Quando ele tem um outro sentido, por exemplo, o sentido de um enunciado (v.g. de uma teoria consagrada na lei) ou não tem qualquer sentido – quando a lei contém palavras sem sentido ou disposições inconciliáveis umas com as outras –, não há qualquer sentido subjetivo a ter em conta que possa ser pensado como sentido objetivo, não existe qualquer ato cujo sentido seja capaz de uma legitimação pela norma fundamental. (Kelsen, 2000: 231)

            Na concepção kelseniana, portanto há situações em que não é possível qualquer interpretação de uma norma. Pode bem ser que o legislador prescreva algo rigorosamente sem sentido e, neste caso, a ciência jurídica não é capaz de descrever de maneira lógico o conteúdo de sentido de sua prescrição. Segundo Kelsen não haveria aí qualquer sentido.

            Autores como Dworkin, quando falam de interpretação da lei referem-se a algo bastante distinto daquilo que Kelsen tratou e que tentei apresentar acima. Dworkin pensa na interpretação de uma lei geral pelo juiz que deve aplicá-la ao caso concreto e Kelsen na interpretação que o cientista faz do sentido de uma norma, sem pretender aplica-la a qualquer ato. Kelsen não oferece uma hermenêutica jurídica no sentido em que o faz Dworkin. O juiz, para Kelsen, com sua decisão a respeito de um caso qualquer, prescreve uma norma nova, uma norma individual e não simplesmente interpreta o direito. O que ele faz não é uma interpretação cientifica, mas uma ação política.

            Importante salientar que "interpretação", para Kelsen, não passa de conseqüências lógicas da definição de lei fundamental e do ordenamento normativo. "A norma fundamental torna possível interpretar (pensar) o material que se apresenta ao conhecimento jurídico como um todo com sentido, o que quer dizer, decrevê-lo em proposições que não são logicamente contraditórias" (Kelsen, 2000: 232). Toda a "interpretação" kelseniana do Direito está assentada na norma fundamental, e no fato de que se consideramos tal norma como objetiva, qualquer conteúdo de sentido normativo em conflito não pode ser senão subjetivo, e, ainda, uma transgressão à norma considerada objetiva.

            Desta forma a norma mais específica prevalece sobre a geral porque ambas são válidas e ambas aplicam-se, considerando-se a específica mera limitação à geral. A norma mais recente prevalece sobre a mais antiga quando a constituição confere competência para a produção de normas revogáveis. E a norma superior prevalece sobre a inferior porque a validade desta é mediada por aquela e, se aquela fosse inválida, também o seria esta. Enfim, a interpretação aqui é mera aplicação de princípios lógicos para uma descrição coerente. Enquanto que em Dworkin a interpretação é a aplicação de princípios e valores para a obtenção de um Direito justo.

            Este é o primeiro aspecto que considero crucial para a compreensão da teoria da estrutura escalonada das normas: a ordem normativa, graças à norma fundamental e à dinâmica jurídica, é uma unidade lógica e, portanto, pode ser pensada e descrita com a utilização dos princípios lógicos.

            O segundo aspecto, que é bastante irônico se lembrarmos de Lyra Filho, é o de que "lei" e "direito" não são sinônimos. Se entendermos por "lei" as leis gerais consuetudinárias ou criadas por via legislativa, o Direito, já o disse, é um ordenamento normativo. Este é um sistema de normas. Normas são conteúdos subjetivos de sentido que são tidos por objetivos. Tais definições, aliadas à estrutura escalonada das normas (uma norma é válida porque conforme a uma norma imediatamente superior), nos permite tomar como direito todos os conteúdos de sentido orientados à conduta humana de uma série de imputação, ou seja, desde a norma fundamental, que prescreve sem ser prescrita, passando pela constituição (em sentido material), a lei geral federal, estadual , municipal, o decreto administrativo que regulamenta a lei, a decisão do juiz sobre determinado caso, sua sentença, as determinações administrativas com vistas a implementar a sentença e, por fim, o ato que cumpre a sentença, ou melhor, que cumpre a prescrição sem nada prescrever.

            O termo "lei" geralmente se refere a um a lei geral, posta por um órgão legislativo. Por isto é mais preciso que se afirme acerca do Direito que é um sistema de normas. As normas podem ser gerais ou individuais, referindo-se à conduta de um ou vários homens. Podem também ser normas de "Direito material" ou de "Direito formal", dependendo se o seu conteúdo determina um processo de criação e aplicação de normas ou uma determinada conduta humana alheia a tais fins.

            A distinção entre Direito material e formal é importante precisamente porque durante toda a série imputativa eles se imiscuem.

            Como o Direito formal designam-se as normas gerais através das quais são regulados a organização e o processo das autoridades judiciais e administrativas, os chamados processo civil e penal e o processo administrativo. Por Direito material entendem-se as normas gerais que determinam o conteúdo dos atos judiciais e administrativos e que são em geral designados como Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo, muito embora as normas que regulam o processo dos tribunais e das autoridades administrativas não sejam menos Direito Civil, Direito Penal e Direito Administrativo.(...) As normas gerais a aplicar pelos órgãos jurisdicionais e administrativos têm, portanto, uma dupla função: 1a – a determinação destes órgãos e do processo a observar por eles; 2o – a determinação do conteúdo das normas individuais a produzir neste processo judicial ou administrativo. (Kelsen, 2000: 256).

            Quando um determinado órgão aplica ou cria uma lei, geral ou individual, está a aplicar uma norma de Direito material e uma norma de Direito formal. Assim, quando o juiz determina a execução forçada nos bens de um devedor, está aplicando a um só tempo a norma que estipula determinada pena para aquele ato como a que põe o juiz como autoridade para, segundo o procedimento dado, criar a norma individual em questão. Assim também quando o legislador põe uma norma geral, aplica a norma formal acerca do processo legislativo e a norma material que impõe sanções à estipulação de determinado conteúdo na norma geral a ser criada. É possível que não haja, na constituição, qualquer norma material acerca da produção legislativa. Neste caso a constituição aceita qualquer conteúdo para as normas gerais e o legislador, ao criar uma norma geral, ainda assim aplica a norma material constitucional que lhe permite pôr qualquer conteúdo quando legislar.

            O Direito material e o Direito formal estão inseparavelmente ligados. Somente na sua ligação orgânica é que eles constituem o Direito, o qual regula a sua própria criação e aplicação. Toda proposição jurídica que pretenda descrever perfeitamente este Direito deve contar tanto o elemento formal como o elemento material. (Kelsen, 2000: 257).

            Assim, a proposição jurídica que descreve o direito seria incompleta se apresentasse apenas o direito material ou o formal.

            Uma disposição de direito penal – por mais simplificada que seja – tem de ser formulada da seguinte maneira: (...) se um órgão, cuja constituição e função se encontram reguladas por uma norma geral [Direito formal], verificou, por um processo determinado também por uma norma geral [Direito formal], que existe um fato a que uma outra norma geral liga uma determinada sanção [Direito material], esse órgão deve aplicar, pelo processo prescrito por uma norma geral [Direito formal], a sanção determinada pela norma jurídica geral já mencionada [Direito material]. (Kelsen, 2000: 257).

            Com a distinção entre as noções de Direito material e formal e, a um só tempo, percepção de que só podem ser aplicados simultaneamente, torna-se mais clara a idéia da construção escalonada da Ordem jurídica.

            Nem todas as normas em um mesmo ordenamento são fundamentadas diretamente pela constituição, que é fundamentada pela norma fundamental. Em um ordenamento jurídico, as normas estão escalonadas, supra e infra ordenadas, de modo a que uma norma fundamente a norma imediatamente inferior, segundo o princípio estático ou dinâmico e, mediatamente todas elas se fundem na norma fundamental segundo o princípio dinâmico.

            Como já anteriormente verificamos, uma ordem jurídica é um sistema de normas gerais e individuais que estão ligadas entre si pelo fato de a criação de toda e qualquer norma que pertença a este sistema ser determinada por uma outra norma do sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental. (Kelsen, 2000: 260).

            Isto posto, é necessário que se destaque que, exceto nos dois extremos de uma série imputativa, a norma fundamental e a execução de um ato coercitivos, todos os demais elos aplicam e criam direito simultaneamente. Com efeito, ao criar a norma geral, aplica-se a constituição; ao regulamentar a norma geral, especificando-a, também se aplica a constituição e cria-se novas normas; ao aplicar a norma geral "ao caso concreto", o juiz cria uma norma individual; ao aplicar a sanção, extremo da série imputativa, tem-se o termo final da imputação.

            Aplicar uma norma não é, portanto, apenas julgar e afirmar se houve ou não incidência. Aplicar uma norma é realizar um ato de coação ou criar uma norma mais específica. "A aplicação do Direito é, por conseguinte, criação de uma norma inferior com base numa norma superior ou execução do ato coercitivo estatuído por uma norma." (Kelsen, 2000: 261).

            Kelsen demora-se em explicar que a decisão judicial é um ato de produção de normas, mas creio poder passar apenas brevemente por tal questão, uma vez que aquela discussão se devia mais à idéia da separação dos poderes do que propriamente à questão do que é a aplicação de uma norma.

            Uma norma geral não é uma norma individual. Dizer que quem cometer um crime deve ser punido não é sinônimo de dizer que João cometeu um crime e, por isso, deve ser punido. É mesmo possível separar por uma lado a constatação do fato e por outro a criação da norma individual. Este é o caso quando o Júri decide pela culpa ou inocência do réu, ou seja, sobre se João cometeu de fato ou não a ação à qual a lei comina uma sanção, e o juiz aplica a sentença. A norma individual só passa a existir depois que o juiz ou outro órgão autorizado, a ponha. A norma individual que estatui que deve ser dirigida contra um determinado indivíduo uma sanção perfeitamente determinada só é criada através da decisão judicial. Antes dela, não tinha vigência." (Kelsen, 2000: 265).

            A ordem jurídica confere ao juiz autoridade para criar normas jurídicas individuais. Geralmente esta autoridade é conferida de maneira limitada, no sentido de que a norma individual a ser criada deve corresponder a uma norma jurídica geral criada por um parlamentar ou um outro órgão legislativo. Ou seja, a norma jurídica individual, enquanto conteúdo de direito material, deve fundamentar-se segundo o princípio estático em uma norma geral.

            Por vezes o órgão legislativo estabelecido é o costume, o que pouco altera a situação dada. Pode ser, porém, que nesta ordem jurídica não haja limitação material ao conteúdo da norma individual a ser formulada. Neste caso o juiz cria uma norma jurídica individual que se fundamenta imediatamente na constituição.

            Resulta, por isso, que no ordenamento jurídico não há "lacunas". As chamadas "lacunas do direito" dizem respeito à ausência de uma norma aplicável ao caso específico. Ora, se o juiz é, segundo o ordenamento em questão, competente para estabelecer uma norma individual sem que esta fundamente-se segundo o princípio estático em uma norma geral superior, então pode ele estipular ou não uma sanção ao ato sub judice. Se, ao contrário, o ordenamento não lhe confere tal competência, não pode o juiz, segundo o ordenamento, estipular qualquer sanção.

            Uma ordem jurídica pode sempre ser aplicada por um tribunal ao caso concreto, mesmo na hipótese de esta ordem jurídica, no entender do tribunal, não conter qualquer norma geral através da qual a conduta do demandado ou acusado seja regulada de modo positivo, isto é, por forma a impor-lhe o dever de uma conduta que ele, segundo a alegação do demandante privado ou do acusador público, não realizou. Com efeito, neste caso, a sua conduta é regulada pela ordem jurídica negativamente, isto é, regulada pelo fato de tal conduta não lhe ser juridicamente proibida e, neste sentido, lhe ser permitida. (Kelsen, 2000: 273).

            Kelsen considera a afirmação de que o Direito possui certas ‘"lacunas" como uma afirmação "político-jurídica" (idem: 274), uma vez que não pretende dizer que o Direito não normatizou o fato em questão, mas sim que não normatizou como deveria ter normatizado.

            Resta destacar por fim que, tal como o termo constituição, em Kelsen, não se refere ao documento que leva esse nome, mas sim ao conjunto de regras que normatizam a produção normativa, assim também o autor não percebe a criação de normas apenas nos "órgãos legislativos, executivos e judiciários". De fato o próprio conceito de "órgãos" é, como se mostrará na parte em que se tratar da Estática Jurídica", bastante mais amplo.

            A produção de normas jurídicas também se dá pelo que se denomina "negócio jurídico".

            Num contrato, as partes contratantes acordam em que devem conduzir-se de determinada maneira, uma em face da outra... Este dever-ser é o sentido subjetivo do ato jurídico-negocial. Mas também é o seu sentido objetivo. Quer dizer: este é um fato produtor de Direito se e na medida em que a ordem jurídica confere a tal ato esta qualidade; ela confere esta qualidade tornando a prática do fato jurídico-negocial, juntamente com a conduta contrária ao negócio jurídico, pressuposto de uma sanção civil. (Kelsen, 2000: 284).

            Desta forma, o negócio jurídico, cuja forma mais comum é o contrato, fundamenta sua validade na ordem jurídica estatal. As partes contratantes são, ao realizar tal ato, órgãos da "comunidade jurídica" (ou ordem normativa" a que se chama Estado.

            Esta postura de Kelsen acerca do negócio jurídico é coerente com sua teoria e seria quase sem interesse para o presente trabalho não fosse a denúncia que Kelsen faz a partir destas conclusões. Segundo o autor o negócio jurídico valida-se pela mesma norma fundamental, sendo mediado pelo direito civil, pelo direito processual civil e pela constituição. As normas individuais ou coletivas postas por um negócio jurídico são, portanto, parte do ordenamento jurídico estatal, portanto, apenas tem validade enquanto e na medida em que corresponda a este ordenamento. Neste sentido, não há qualquer distinção entre Direito Público e Privado. Esta distinção, que vincula aquele ao político e este ao "propriamente jurídico", visa tanto fazer crer que os órgãos governamentais estão de alguma forma acima do Direito quanto que o Direito privado é alheio à política.

            Representando-nos, na verdade, a oposição entre Direito Publico e Direito Privado como a oposição absoluta entre poder do Estado e Direito, cria-se a idéia de que no domínio do Direito constitucional e administrativo – que têm especial importância política –, o princípio da legalidade não vale com o mesmo sentido e com a mesma intensidade que no domínio da Direito Privado, que se considera, por assim dizer, o domínio propriamente jurídico (...) cria também a impressão de que só o domínio do Direito Público, ou seja, sobretudo, o Direito constitucional e administrativo, seria o setor da dominação política e que esta estaria excluída no domínio do Direito Privado. (Kelsen, 2000: 313).

            Como o Direito Privado, que se radica em torno do estabelecimento da propriedade privada (característica essencial do sistema econômico capitalista) é visto como um domínio alheio à dominação política e, portanto, auto-determinado, pretende-se que aí seja o "reino" da liberdade, em contraposição a outros sistemas econômicos, onde vige a dominação. Além disso, enquanto alheio à política e campo propriamente jurídico, a criação do Direito natural independe do Estado e, portanto, não pode ser alterado arbitrariamente por ele, abolindo, por exemplo, a propriedade privada dos chamados "meios de produção".

            Segundo Kelsen este pensamento é ideológico, não no sentido de socialmente condicionado, mas no de politicamente orientado, ou melhor, Kelsen não afirma expressamente que as ideologias sejam condicionadas por fatores sociais, mas apenas que sejam volitivamente orientadas, por isto, prefiro não afirmar que o autor, ao qualificar um pensamento de ideológico, esteja pensando em que este seja condicionado por fatores sociais ou materiais de qualquer tipo.

            Na visão de Kelsen o pensamento segundo o qual o capitalismo é mais propício à democracia e o socialismo ao autoritarismo é uma crença ideológico. Para ele pode o capitalismo ser democrático ou autocrático (32), bem como o socialismo.

            Porém, ao nível da produção de Direito geral, este sistema econômico [capitalismo] tanto pode ter caráter democrático como autocrático. Os mais importantes Estados capitalistas do nosso tempo têm, na verdade, constituições democráticas, mas o instituto da propriedade privada e uma produção de normas jurídicas individuais baseada no princípio da autodeterminação também são possíveis nas monarquias absolutas e têm de fato existido nelas. Dentro da ordem jurídica de um sistema econômico socialista, na medida em que este só permite a propriedade coletiva, pode a produção de normas jurídicas individuais ter caráter autocrático enquanto, no lugar do contrato de Direito privado, surge o ato administrativo de Direito público. Mas também este sistema é compatível, tanto com uma produção democrática, como com uma produção autocrática de normas jurídicas gerais, quer dizer, tanto com uma Constituição democrática como com uma Constituição autocrática do Estado. (Kelsen, 2000: 314). (33)

            Estática Jurídica.

            A Dinâmica Jurídica é o estudo do Direito enquanto uma estrutura escalonada de normas, em seu processo de criação, de transformação, ou melhor, o estudo do modo como o ordenamento jurídico é válido e confere validade às normas que o compõe, tornando-as, de sentidos subjetivos de certos atos, em sentidos objetivos. Em contraposição, a Estática Jurídica é o estudo do Direito enquanto um sistema de normas dado, deixando à parte a questão da dinâmica jurídica. Tomaremos aqui apenas alguns temas da Estática Jurídica, suficientes, a meu ver, para uma visão geral do pensamento sistemático do positivismo jurídico e para buscar um paralelo com a sociedade entendida como ordem normativa. Deste modo, questões como a distinção entre o Direito Civil e o Direito penal, por exemplo, não serão levadas em consideração, por irrelevantes ao problema aqui tratado.

            Nesta parte, serão tratados os conceitos de "norma", "direito reflexo (subjetivo)", personalidade jurídica, organicidade e relação jurídica.

            Norma.

            Já aqui se tratou de definir o conceito de "norma", quando afirmou-se que uma norma é um conteúdo subjetivo de sentido (um comando) dirigido à conduta de outrem e que é entendido como objetivo por ser conforme a uma norma, por sua vez também entendida como válida por se fundamentar em outra norma até que, enfim se chegue a uma norma cujo conteúdo de sentido é entendido como válido por força de uma norma pressuposta, ou norma fundamental.

            Há, porém, uma outra característica essencial no conceito de "norma" da qual não nos ocupamos em razão da preocupação em descrever a dinâmica jurídica. Tomemos o exemplo fornecido por Kelsen acerca de uma criança que indaga por que deve ir à escola. A esta pergunta, Kelsen fornece a resposta de que deveria fazê-lo porque devia obedecer às ordens de seu pai, e este o havia ordenado ir à escola. Esta resposta visava legitimar o comando de ir à escola. No entanto, há outra resposta possível e, talvez, mais evidente. Deve ir o menino à escola porque se não for receberá um castigo de seu pai. O dever é dado pela sanção.

            Percebe-se assim claramente a distinção entre a estática e a dinâmica jurídica, que não se confunde com aquela outra distinção entre princípio estático e dinâmico, uma vez que estes, ambos, fazem parte da dinâmica jurídica.

            Isto posto, passemos à apresentação da Estática Jurídica.

            Uma ordem normativa cria, segundo o princípio da imputação, ligações entre elementos, de acordo com a fórmula: se A é então B deve ser. Neste sentido, a conseqüência por esta ordem estipulada pode ser entendida seja como uma recompensa seja como uma punição. O Direito é uma ordem coercitiva e prevalece a pena como conseqüência do ato definido por ele (prevalece a pena como sanção). De fato, segundo Kelsen, a maioria das ordens normativas vale-se mais da pena que da recompensa, por exemplo, a idéia de inferno costuma ser mais presente que a de paraíso.

            Conforme o modo pelo qual as ações humanas são prescritas ou proibidas, podem distinguir-se diferentes tipos – tipos ideais, não tipos médios. A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquer conseqüências. Também pode, porém, estatuir uma determinada conduta humana e, simultaneamente, ligar à esta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. No entanto, usualmente designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal – a privação de certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos – a aplicar como conseqüência de uma determinada conduta, mas não já o prêmio e a recompensa. (Kelsen, 2000: 26).

            Desta forma, as ordens normativas podem ser classificadas de acordo com a espécie de sanções que põe ou se, simplesmente, não o faz. Apesar de concordar com Kelsen que cognitivamente pode-se falar em uma ordem normativa sem sanções, penso ser difícil que tal possa, de fato, existir.

            Com relação à ordem jurídica, Kelsen afirma que esta prescreve uma conduta ao estipular, para a conduta oposta, a sanção.

            Finalmente, uma ordem social pode – e é este o caso da ordem jurídica – prescrever uma determinada conduta precisamente pelo fato de ligar à conduta oposta uma desvantagem (...) Desta forma, uma determinada conduta apenas pode ser considerada, no sentido dessa ordem social, como prescrita –, na medida em que a conduta oposta é pressuposto de uma sanção (no sentido estrito). (Kelsen, 2000: 26).

            Assim, a norma existe apenas se há sanção. No caso da ordem jurídica, as sanções são atos de coerção. Atos de coerção "são atos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles é atingido e, em caso de resistência, com o emprego da força física". (Kelsen, 2000: 121).

            Note-se que o conceito de norma se torna bem mais elaborado e já não se confunde com o conceito de "dever". Se o dever ser pode ser definido como um "comando" (conteúdo de sentido dirigido à conduta), a norma jurídica é entendida em duas partes: um comando e uma sanção, ou seja, o indivíduo A deve-se comportar da forma , esse não o fizer, o indivíduo B deve agir da forma , que é um ato de coerção. A norma jurídica não se dirige àquele que pode ser atingido pelo ato de coerção, mas àquele que, caso outro indivíduo se comporte de determinada maneira, aplicará a sanção.

            Podemos conceber a norma jurídica em duas partes, que por vezes são expressamente postas em separado. A primeira: A deve fazer . A segunda: se A não fizer , C fará .

            A norma "A deve fazer " apenas vale em decorrência da outra.

            Já num outro contexto fizemos notar que, quando uma norma prescreve uma determinada conduta e uma segunda norma estatui uma sanção para a hipótese da não-observância da primeira, estas duas normas estão essencialmente interligadas. Isto vale particularmente para a hipótese em que um ordenamento normativo – como o ordenamento jurídico – prescreve uma determinada conduta pelo fato de ligar à conduta oposta um ato coercitivo a título de sanção, de tal forma que a conduta somente se pode considerar como prescrita, nos termos desse ordenamento (...); se a conduta é pressuposto de uma sanção. (...) E, quando a segunda norma determina positivamente o pressuposto a que liga a sanção, a primeira torna-se supérflua do ponto de vista da técnica jurídica legislativa. (Kelsen, 2000: 60).

            A norma não autônoma, ou secundária, é útil para a descrição do Direito, mas irrelevante, ou melhor, dispensável. Uma ordem normativa, e o Direito em especial, pode ser descrita apenas por proposições jurídicas primárias, ou seja, que enunciem que no caso de um determinado comportamento previsto na ordem, determinado órgão aplicará determinada sanção. Ou seja, a norma jurídica estabelece como "dever ser", a sanção e, como reflexo disto, dizemos haver o "dever jurídico" de se conduzir de modo a evitar a sanção. (cf. Kelsen, 2000b: 86).

            Assim sendo, o delito não é uma conduta contrária à ordem jurídica, mas uma conduta feita pressuposto de uma sanção.

            E, então, mostra-se que o ilícito não é um fato que esteja fora do Direito e contra o Direito, mas é um fato que está dentro do Direito e é por este determinado, que o Direito, pela sua própria natureza, se refere precisa e particularmente a ele. (Kelsen, 2000: 127).

            O indivíduo cuja conduta pode ser o pressuposto da sanção, diz-se que tem o dever jurídico de agir da forma contrária àquela que constitui pressuposto da sanção. Disto percebemos duas coisas: a primeira é que "dever ser" e "dever jurídico" não são sinônimos. A ordem estabelece o dever ser da sanção, e o dever jurídico é mero reflexo disto, ou o sentido de uma norma não autônoma, referente a uma determinada conduta. A segunda é que o indivíduo do qual se diz que tem o dever jurídico não é aquele que pode sofrer o ato coercitivo previsto no ordenamento, mas aquele cuja conduta pode "evitar" ou "provocar" a sanção. Isto porque o conceito de "dever jurídico" é distinto, também, do conceito de "responsabilidade".

            Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurídico, mas que dele deve ser distinguido, é o conceito de responsabilidade. Um indivíduo é juridicamente obrigado a determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposto de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito, não tem de ser necessariamente dirigida – como já se fez notar – contra o indivíduo obrigado, quer dizer, contra o indivíduo cuja conduta é o pressuposto do ato coercitivo. (...) O indivíduo contra quem é dirigida a conseqüência do ilícito responde pelo ilícito, é juridicamente responsável por ele. (Kelsen, 2000: 133).

            Cabe ressaltar que a responsabilidade pode ser individual (por exemplo a pena de prisão) ou coletiva (como a guerra) e, em geral, supõe que o indivíduo cuja conduta pode "evitar" a sanção receba como um mal a imposição da sanção ao responsável.

            Do que ficou dito acerca da norma, e da norma jurídica em especial, ressalta a importância dos conceitos de "bem" e "mal". A sanção é "sentida como um mal pelo indivíduo que atinge" (Kelsen, 2000: 123) ou ao menos assim se espera. Kelsen, ao propor uma teoria pura do Direito isenta de moral, não entende que tal teoria seja alheia aos conceitos de bem e mal, mas sim que esta teoria não prescreverá qualquer norma. Em verdade, o autor define "bem" como conformidade à normas e "mal" como desconformidade às mesmas, entendendo-se a norma como um sentido volitivo. Desta feita, a bondade e a maldade dependem da vontade.

            Para Kelsen um juízo de valor é perfeitamente objetivo na medida em que toma como referência uma ordem normativa, que em caso extremo pode ser a vontade de um único indivíduo, e se determine como bem e mal, segundo a ordem normativa, aquilo que é respectivamente conforme e desconforme à mesma ordem. Alertemo-nos para o fato de que uma norma não tem, necessariamente, a conduta humana por objeto. Há, de fato, uma tendência nas ordens jurídicas a apenas tomar como objeto de normas a conduta humana, mas não tem de ser assim. A sociedade, como o autor a define, é um conjunto dos mesmos elementos da natureza, porém vinculados por elos normativos, e não causais. (cf. Kelsen, 1945).

            Assim, segundo Kelsen, animais e objetos inanimados poder ser objeto de imputação. Quando isto ocorre, em geral, os animais têm um papel de órgãos aplicadores de sanções. Ou seja, se um homem faz determinado ato, um animal ou um objeto lhe deverá impingir determinada pena. Assim, Kelsen afirma que os esquimós crêem que todos os animais de que se servem têm almas imortais, e que podem, caso não se observem determinados tabus, "vingar-se" dos humanos. Neste caso, os animais estão sujeitos à lei de Talião, o princípio retributivo. Assim também entre os Hebreus, se um boi reincidisse em matar um homem, deveria sofrer pena de morte. No primeiro caso os animais têm o direito de que os homens respeitem certos tabus, no segundo, têm o dever de não matar um homem. (34)

            Para Kelsen o conceito de bem é sinônimo de conformidade a normas. Algo é bom, segundo um determinado ordenamento se em conformidade com suas normas, e mau se em desconformidade com as mesmas. Kelsen não escreve uma Teoria do Direito sem fazer recurso ao bem e ao mal, mas uma que não diga o que o Direito deveria entender ou estabelecer como bem e mal. Assim, ao afirmar que a sanção é "sentida como um mal", ou que em geral o é, ou ainda que o legislador assim supôs, apenas insere o Direito em uma ordem normativa mais ampla que coloca a propriedade, a vida, a liberdade, etc, como valores e, na medida em que o legislador e o sujeito do dever jurídico compartilhem tais valores, é razoável aceitar que o legislador tenha uma noção mais ou menos clara daquilo que será "sentido como um mal", como a pena de prisão, de morte ou mesmo de flagelação.

            A norma é definida pela sanção na medida em que a parte da norma que afirma o dever ser é dispensável se se afirma simplesmente que a conduta oposta é objeto de sanção. Assim, sem sanção não há norma.

            Direito Reflexo ou Direito subjetivo.

            O conceito de "dever jurídico" tal como apresentado na "Teoria Geral do Direito e do Estado" guarda semelhança com o que se costuma denominar "direito subjetivo". Kelsen demora-se em debates acerca deste conceito, opondo suas formulações às teorias de seu tempo, que aliás, continuam bastante em voga. Entretanto, tal debate será deixado de lado e trataremos apenas da definição que o próprio autor dá de direito subjetivo, ou, em sua terminologia, direito reflexo. Segundo o autor os conceitos de Direito reflexo, bem como o de Dever jurídico, são meros conceitos auxiliares à ciência jurídica, que bem pode descrever seu objeto sem fazer recurso à eles. Sua utilidade, porém, radica em facilitarem a apreensão do conceito de "pessoa jurídica" e este, por sua vez, o de "relação jurídica" que, em Kelsen, é bastante curioso.

            Vimos que a norma jurídica estabelece um "dever ser", que se constitui em um ato coercitivo a ser posto como conseqüência de uma conduta humana. Como "uma hipostatização" deste "dever ser" tem-se o "dever jurídico", que pode ou não ser expresso numa norma.

            Um exemplo: não se deve roubar; se alguém roubar será punido. Caso se admita que a primeira norma, que proíbe o roubo, é válida apenas se a segunda norma vincular uma sanção ao roubo, então, numa exposição jurídica rigorosa, a primeira norma é, com certeza, supérflua. A primeira norma, se é que ela existe, está contida na segunda, a única norma jurídica genuína. Contudo, a representação do Direito é grandemente facilitada se nos permitirmos admitir também a existência da primeira norma. (Kelsen, 2000b: 86)

            Fala-se de direito subjetivo, de forma análoga, quando a Ordem jurídica confere a um indivíduo autoridade para determinada ação. No entanto este conceito é usado de várias formas distintas e, segundo Kelsen, é apresentado como o principal fenômeno jurídico, o que seria um equívoco.

            No cotidiano utiliza-se a expressão "tenho um direito" da forma como os juristas usaria o termo "direito subjetivo". Subjetivo porque próprio de um sujeito. Este direito subjetivo, na visão kelseniana, no entanto, não é senão reflexo de um dever jurídico. (35)

            Em Kelsen "dever" pode significar permissão, atribuição de competência ou obrigação, (36) por isso também a situação em que a ordem jurídica confere competência pode ser descrita como dever.

            Quando se fala em um direito subjetivo à propriedade, por exemplo, tem-se em mente um sentido diferente daquele da autorização. Diz-se geralmente que o direito subjetivo é a pretensão ou interesse, de um indivíduo, juridicamente protegido. No entanto o direito subjetivo à propriedade não é senão um reflexo do dever jurídico de abster-se de determinados bens que foram de certa forma definidos no ordenamento. O direito subjetivo de um é mero reflexo do dever jurídico dos demais. E este dever jurídico não é senão o reflexo de um dever ser, que é a norma, ou melhor, a aplicação de uma sanção sob determinados pressupostos.

            Esta situação designada como "direito" ou "pretensão" de um indivíduo, não é porém, outra coisa senão o dever do outro ou dos outros. Se, neste caso, se fala de um direito subjetivo ou de uma pretensão de um indivíduo, como se este direito ou esta pretensão fosse algo diverso do dever do outro (ou dos outros), cria-se a aparência de duas situações juridicamente relevantes onde só existe uma. (...) Se se designa a relação do indivíduo , em face do qual uma determinada conduta é devida, como o indivíduo obrigado a esta conduta como "direito", este direito é apenas o reflexo daquele dever. (Kelsen, 2000: 142 e 143).

            Distingue a Teoria do Direito entre direitos subjetivos de personalidade e direito subjetivos reais (sobre coisas). Segundo Kelsen não há direitos sobre coisas, vez que o direito subjetivo é reflexo de uma obrigação e não se obrigam coisas, mas apenas pessoas. Segundo ele essa distinção tem como objetivo legitimar a propriedade privada, apresentando esta instituição como o domínio de um homem sobre uma coisa e não, como é de fato, a exclusão de todos os demais, o que ainda segundo ele, é particularmente grave com relação à propriedade dos meios de produção.

            A função ideológica desta conceituação do sujeito jurídico como portador (suporte) do direito subjetivo, completamente contraditória em si mesma, é fácil de penetrar: serve para manter a idéia de que a existência do sujeito jurídico como portador do direito subjetivo, quer dizer, da propriedade privada, é uma categoria transcendente em confronto do Direito objetivo positivo, de criação humana e mutável, é uma categoria transcendente em confronto do Direito objetivo positivo, de criação humana e mutável, é uma instituição na qual a elaboração de conteúdo da ordem jurídica encontra um limite insuperável. O conceito de um sujeito jurídico independente do Direito objetivo, como portador do Direito subjetivo, redobra de importância quando a ordem jurídica que garante a instituição da propriedade privada é reconhecida como uma ordem mutável e sempre em transformação , criada pelo arbítrio humano e não fundada sobre a vontade eterna de Deus, sobre a razão ou sobre a natureza e, particularmente, quando a criação desta ordem é operada através de um processo democrático. A idéia de sujeito jurídico independente, na sua existência, de um direito objetivo, como portador de um direito subjetivo que não é menos "Direito", mas até mais, do que o Direito objetivo, tem por fim defender a instituição da propriedade privada da sua destruição pela ordem jurídica. Não é difícil compreender por que a ideologia da subjetividade jurídica se liga com o valor ético da liberdade individual, da personalidade autônoma, quando nesta liberdade está também incluída sempre a propriedade. Um ordenamento que não reconheça o homem como personalidade livre neste sentido, ou seja, portanto, um ordenamento que não garanta o direito subjetivo da propriedade – um tal ordenamento nem tampouco deve ser considerado como ordem jurídica. (Kelsen, 2000: 190/191).

            O conceito de direito subjetivo, no entanto não é de todo inútil pois pode servir como um conceito auxiliar, dispensável, mas que pode facilitar a descrição de certas situações juridicamente relevantes.

            Este conceito de direito subjetivo que apenas é o simples reflexo de um dever jurídico, isto é, o conceito de um direito reflexo, pode, como conceito auxiliar facilitar a representação da situação jurídica. É, no entanto, supérfluo do ponto de vista de uma descrição cientificamente exata da situação jurídica. (Kelsen, 2000: 143).

            Este conceito é especialmente útil na construção de um outro conceito auxiliar da ciência jurídica, o de personalidade.

            Personalidade Jurídica

            A teoria pura do Direito costuma distinguir os conceitos de "pessoa física" e "pessoa jurídica", conforme o detentor dos direitos e deveres seja um indivíduo humano ou uma corporação. O debate travado por Kelsen com tal teoria, novamente, não nos interessa aqui, mas sim a definição do próprio autor.

            Ora, a premissa fundamental da teoria Pura do Direito é afastar tudo aquilo que não compõe seu objeto de estudo, e este é uma ordem normativa, ou melhor, a ordem jurídica. Não pode, portanto, esta teoria definir como pessoa física "o homem, enquanto sujeito de direitos e deveres" (cf. Kelsen, 2000: 191), nem mesmo a relação jurídica como uma relação entre homens juridicamente regulamentada.

            Num conhecimento dirigido às normas jurídicas não são tomadas em consideração – nunca é demais acentuar isso – os indivíduos como tais, mas apenas as ações e omissões dos mesmos, pela ordem jurídica determinadas, que formam o conteúdo das normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 189).

            Portanto, coerente com seu pensamento, Kelsen define a pessoa em função da Ordem jurídica:

            A pessoa física ou jurídica que "tem" – como sua portadora – deveres e direitos subjetivos é estes deveres e direitos subjetivos, é um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos cuja unidade é figurativamente expressa no conceito de pessoa. A pessoa é tão-somente a personificação desta unidade. (Kelsen, 2000: 192).

            Uma pessoa é um conjunto de normas, ou melhor, um subconjunto de normas. Como a distinção entre pessoa física e jurídica refere-se a ter ou não um homem como o "suporte" de determinados direitos e deveres, a distinção torna-se irrelevante.

            É na definição de pessoa jurídica que, a meu ver, ganha em importância os conceitos, que Kelsen denomina de "auxiliares", de direito subjetivo e dever jurídico. De fato, para descrever o ordenamento eles não são necessários, mas, como a pessoa jurídica é determinada como um subconjunto de normas que têm em comum o fato de que incidem sobre a conduta de um mesmo indivíduo ou sobre uma mesma corporação, torna-se mais simples determinar quais normas constituem esta pessoa valendo-se de tais conceitos "auxiliares".

            Poderíamos dizer que, se uma ordem normativa é um conjunto de normas vinculadas por um fundamento de validade comum, ou melhor o mesmo ponto inicial da série imputativa, uma pessoa jurídica é um conjunto de normas vinculadas por incidirem sobre uma mesma conduta, ou melhor, por compartilharem o mesmo ponto terminal na série imputativa. (37)

            Não seria possível, entretanto, determinar a pessoa jurídica como um conjunto de normas que incidem sobre um mesmo elemento, já que direitos subjetivos são normas que incidem sobre o comportamento dos outros, constituindo um dever para estes e sendo um reflexo de dever referente à pessoa em questão. O dever jurídico é reflexo de uma norma ou dever ser, e, por sua vez, o direito subjetivo é reflexo de tal reflexo. Não seria possível, sequer, desprezar o direito subjetivo sob o argumento de que faz parecer haver duas normas onde, de fato só há uma porque, no estudo da relação jurídica importa conhecer a pessoa jurídica e, se deixar de lado o direito subjetivo na esperança de que se apresentará como dever jurídico de uma outra pessoa, corremos o risco de essa outra pessoa não fazer parte da relação, de modo que o referido direito (a norma) seja desprezada.

            Assim como o direito subjetivo não é um interesse – protegido pelo Direito –, mas a proteção jurídica de um interesse, assim também a pessoa física não é o indivíduo que tem direitos e deveres mas uma unidade de deveres e direitos que tem por conteúdo a conduta de um indivíduo. (...) O que em ambos os casos – tanto o da pessoa física como o da pessoa jurídica – realmente existe são deveres jurídicos e direitos subjetivos tendo por conteúdo a conduta humana e que formam uma unidade. Pessoa jurídica (pessoa em sentido jurídico) é a unidade de um complexo de deveres e direitos subjetivos. Como estes deveres jurídicos e direitos subjetivos são estatuídos por normas jurídicas – melhor: são normas jurídicas –, o problema da pessoa é, em última análise, o problema de um complexo de normas. A questão é a de saber qual é, num caso e no outro, o fator que produz essa unidade. (Kelsen, 2000: 193/194).

            Não há, na descrição do Direito realizada pela teoria pura, indivíduos concretos, fatos sociais ou quaisquer outros fatores que não seja conteúdos de sentido normativos. A pessoa jurídica é um complexo de normas, não um indivíduo ou uma instituição social. As normas que compõe uma pessoa jurídica tem por vínculo não um mesmo fundamento de validade, mas a referência à conduta de um mesmo indivíduo ou corporação.

            A unidade de deveres e direitos subjetivos, quer dizer, a unidade das normas jurídicas em questão, que forma uma pessoa física resulta do fato de ser a conduta de um e o mesmo indivíduo que constitui o conteúdo desses deveres e direitos, do fato de ser a conduta de um e o mesmo indivíduo a que é determinada através destas normas jurídicas. A chamada pessoa física não é, portanto, um indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo, mas a unidade personificada das normas jurídicas que obrigam e conferem poderes a um e mesmo indivíduo. Não é uma realidade natural, mas uma construção jurídica criada pela ciência do Direito, um conceito auxiliar na descrição de fatos juridicamente relevantes. Neste sentido, a chamada pessoa física é uma pessoa jurídica (juristiche person). (Kelsen, 2000: 194).

            Cumpre esclarecer o que seria, portanto, uma corporação. Kelsen afirma que tradicionalmente se entende a corporação como uma comunidade de indivíduos a que a ordem jurídica estabelece direitos e deveres. A personificação desta comunidade costuma ser definida como pessoa jurídica, em contraposição à pessoa física. Este entendimento não é cabível para a teoria Pura do Direito, uma vez que direitos e deveres só o são da conduta humana, e não de entidades personificadas. "Como os deveres e direitos apenas podem ter por conteúdo a conduta humana, a ordem jurídica pode conferir direitos somente a indivíduos". (Kelsen, 2000: 196).

            Quando se diz que determinada corporação tem um "direito" ou um "dever", diz-se de fato que um indivíduo determinado pela mesma corporação tem tal dever. Para compreender esta situação convém ter em mente o que, precisamente é esta corporação. Ela não é um conjunto de indivíduos, unidos por um fim em comum, ela é algo criado por alguns indivíduos. Mais precisamente, uma corporação é um conjunto de regras de conduta postas por determinados indivíduos. Estas regras, no caso de esta corporação ser parte de um estado são consideradas válidas por estarem de conformidade (segundo os princípios estático e dinâmico) com determinadas normas estatais, em geral, o código civil. A corporação é, portanto, um ordenamento normativo particular, dentro de uma ordem normativa mais ampla.

            Quando dois ou mais indivíduos querem perseguir em comum, por qualquer motivo, certos fins econômicos, políticos, religiosos, humanitários ou outros, dentro do domínio de validade de uma ordem jurídica estadual, formam uma comunidade na medida em que subordinam a sua conduta cooperante endereçada à realização destes fins, em conformidade com a ordem estadual, a uma ordem normativa particular que regula esta conduta, e, assim, constitui a comunidade. (Kelsen, 2000: 196).

            A corporação, enquanto ordem normativa, é sujeito de direitos e deveres, ou seja, é pessoa jurídica. Ora, se definirmos ordem normativa como conjunto de normas e pessoa jurídica da mesma forma, isto nada mais seria que uma tautologia. Convém, portanto, esclarecer a diferença entre uma corporação (ordem normativa) e uma pessoa jurídica, além de explicitar em que medida aquela pode ser sujeito de direitos e deveres.

            Definiu-se, anteriormente, o que seria uma Constituição em sentido material: o conjunto de normas que regulamenta a produção de normas. Uma corporação é um conjunto de normas, ou ordenamento normativo, dotado de Constituição em sentido material, normas gerais, normas individuais e sanções, tal como o ordenamento jurídico (38). Diferencia-se deste, porém, porque decorre dele sua validade. Poderíamos, portanto, fazendo uma analogia com os conceitos de norma superior e inferior, designar a corporação como um ordenamento normativo inferior. De um modo mais preciso, a corporação é uma ordem normativa e não uma pessoa jurídica porque o vínculo das normas que a compõe estão no início da série imputativa (se pressupusermos sua constituição), enquanto que a pessoa jurídica é um conjunto de normas vinculadas por um mesmo termo final na série imputativa, ou seja, por incidirem sobre a mesma conduta humana.

            Isto posto, como aceitar que uma ordem normativa seja sujeito de direitos e deveres? Na medida em que a ordem normativa em questão deriva sua validade de uma ordem normativa superior (a ordem jurídica), pode esta determinar certa forma ou conteúdo para as normas e para a constituição da ordem inferior. Também pode a ordem jurídica determinar sanções para o caso de normas postas em desacordo, lembrando que o indivíduo cuja conduta pode evitar a sanção não é necessariamente o mesmo que "responderá" por tal conduta. Em geral, a ordem jurídica estabelece sanções à corporação quando atribui a ela os atos cometidos por determinados indivíduos. Esta atribuição é feita por considerar-se tal indivíduo como um órgão da corporação, ou melhor, aquela conduta específica como conduta deste órgão, o que ficará melhor explicitado quando, adiante, tratar-se da teoria da organicidade.

            A pessoa jurídica ficou definida como um conjunto de normas que incidem sobre a conduta de um mesmo indivíduo ou corporação, ou melhor, um conjunto de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Neste sentido não há qualquer diferença essencial entre a pessoa jurídica e a chamada pessoa física, sendo ambas tratadas aqui como pessoas jurídicas.

            Organicidade

            No linguajar cotidiano, bem como em textos científicos, encontramos com facilidade a atribuição de certas ações a corporações ou, em geral, "comunidades de indivíduos" (especialmente ao Estado). No entanto, "há aí uma ficção, pois não é a comunidade, mas um indivíduo humano, quem exerce a função." (Kelsen, 2000: 142). Afirmar que uma certa empresa realizou determinada obra, ou cometeu determinado delito é uma figura de linguagem. Determinados indivíduos que trabalhavam em uma dada situação cometeram tais atos.

            Quando deixamos de lado a personificação, por assim dizer, animística da corporação, assumimos uma postura que permite descrever de forma mais precisa as situações nas quais uma certa conduta humana é atribuída a uma entidade, ou melhor, a uma ordem social.

            Retomemos, portanto, a definição de comunidade, aqui ,sinônimo de corporação:

            A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade que a Ordem constitui a comunidade. Mas ordem e comunidade não são dois objetos distintos. Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes indivíduos é comum, consiste apenas nesta ordem que regula a sua conduta. (Kelsen, 2000: 168).

            Se atribuímos determinados atos humanos a determinadas ordens normativas é, basicamente, porque o tomamos como determinado por esta mesma ordem. Se dizemos que a empresa A construiu uma ponte, ou que despediu determinados funcionários, ou mesmo que superfaturou uma obra e desviou recursos governamentais, afirmamos de fato que certos indivíduos humanos, agindo de conformidade com a ordem em questão, ou agindo como órgãos dessa ordem, realizaram tais atos.

            Atribuir à comunidade um ato de conduta humana não significa absolutamente nada mais que referir esse ato à ordem que constitui a comunidade, concebê-lo como um ato que a ordem normativa autoriza (no sentido mais amplo da palavra). (Kelsen, 2000: 168).

            Uma ordem normativa (uma comunidade) pode estabelecer que determinados atos, inclusive de produção de normas, poderão ser realizados por determinados indivíduos de uma forma dada e vedar esses mesmos atos a todos os demais, ou seja, uma comunidade pode funcionar segundo o princípio da divisão do trabalho. (39)

            A ação humana, ou função, determinada pela ordem normativa pode ser entendida como ação ou função e um órgão da mesma ordem e, portanto, a ação feita em conformidade com ela será atribuível à comunidade. O indivíduo pode ser caracterizado como órgão apenas na medida em que sua ação seja determinada pela ordem. De qualquer forma, importa distinguir o indivíduo em si de sus ações realizadas segundo o sentido posto pela ordem normativa, ou realizadas em desconformidade com tal sentido.

            Como já se acentuou acima, estes indivíduos não pertencem como tais, mas apenas com as suas ações e omissões reguladas pelo estatuto, à comunidade constituída pelo estatuto e designada como corporação. Somente uma ação ou omissão regulada no estatuto pode ser atribuída à corporação. Com efeito, na atribuição de um ato de conduta humana à corporação nada mais se exprime senão a referência deste ato à ordem normativa que o determina e constitui a comunidade que, através desta atribuição, é personificada. (Kelsen, 2000: 197)

            Diz-se de uma comunidade ou corporação que é organizada. "As comunidades que têm ‘órgãos’ chamam-se comunidades ‘organizadas’; e por comunidades organizadas entendem-se aquelas que têm órgãos funcionando segundo o princípio da divisão do trabalho". (Kelsen, 2000: 171).

            O conceito de órgão e o de comunidade organizada servem para facilitar a descrição do Direito (40). Não são, também, conceitos rigorosamente necessários, mas úteis para identificar com celeridade quando uma ação é atribuível a uma ordem normativa.

            Os conceitos personalísticos "sujeito jurídico" e "órgão jurídico" não são conceitos necessários para a descrição do Direito. São simplesmente conceitos auxiliares que, como o conceito de direito reflexo, facilitam a exposição. (Kelsen, 2000: 189).

            A utilidade de saber quando é possível tal atribuição reside na análise da relação jurídica, à qual agora passamos.

            Relação Jurídica.

            Também neste ponto Kelsen está preocupado em refutar as concepções correntes, apresentando-as e contrapondo-as à teoria Pura do Direito. Este debate não é muito útil à problemática aqui tratada, por isso não será aqui tratada.

            A esta altura já é nítida a postura da Teoria Pura do Direito que teima em não definir seus conceitos por referência ao mundo empírico (a não ser que se tomem por empíricas as normas por haverem sido postas por atos humanos) como o conceito de pessoa, de órgão e de corporação ou comunidade. Já não parecerá, por este motivo, tão estranha a definição que Kelsen oferece para a relação jurídica.

            Com o intuito de que se perceba a originalidade do pensamento do autor convém que se faça notar que em geral a relação jurídica é definida como a relação fática ou relação social "juridicizada", ou seja, uma relação empírica entre dois homens ou um homem e uma corporação, ou mesmo entre duas corporações, acerca da qual há normas jurídicas.

            Esta definição não se presta à teoria pura do Direito, uma vez que esta exclui de seu objeto as relações fáticas entre indivíduos ou grupos. No dizer do autor:

            Do ponto de vista de um conhecimento dirigido ao Direito, isto é, dirigido às normas jurídicas, não são tomadas em linha de conta as relações entre indivíduos, mas apenas relações entre normas – pelos indivíduos criadas e aplicadas – ou entre os fatos determinados pelas normas, dos quais a conduta humana apenas representa um caso especial, se bem que particularmente significativo. (Kelsen, 2000: 185).

            Para o Direito, isto implica em que se há uma norma que estabeleça a obrigação de João perante Pedro de fazer algo, e dizemos que Pedro tem o direito de que João lhe faça aquilo e que João tem o dever jurídico de fazê-lo, não há qualquer relação jurídica, uma vez que há apenas uma norma que, portanto, não se relaciona com qualquer outra. Apenas quando uma outra norma estipule que Pedro, no caso da não efetivação da conduta prescrita a João, é autorizado a tomar uma determinada atitude, como recorrer a um tribunal ou, como outrora, infligir determinado dano a João. "Não há qualquer relação entre um dever jurídico e o direito reflexo que lhe corresponde" (Kelsen, 2000: 185). Dever jurídico e Direito reflexo (ou subjetivo) são o constitutivo da pessoa jurídica, ou melhor, o são as normas de que são "reflexos". Neste sentido, os "conceitos auxiliares" podem servir para identificar, em uma dada situação, se há e qual seriam as normas envolvidas.

            Assim diz-se que o conjunto de normas que incidem sobre uma mesma conduta compõe uma "pessoa jurídica". Uma relação jurídica pode ser entendida como uma relação entre pessoas jurídicas, que são, como o disse, um conjunto de normas. A relação jurídica é uma relação entre normas. Um exemplo talvez torne isto mais claro: digamos que João possua um imóvel e que Pedro o tenha arrendado. Dizer que João tem um imóvel é dizer que tem um direito. O conjunto de direitos e deveres que incidem sobre a conduta de João compõe uma "pessoa" (física, que também é, latu sensu, jurídica) assim também acerca da conduta de Pedro. Neste caso, digamos que a pessoa de João seja composta dos direitos de a) propriedade sobre o imóvel e utilização dele como bem entender; b) receber pelo arrendamento do imóvel uma soma pecuniária pelo seu arrendamento. Ora, o Direito à propriedade e o dever de todos os demais de se abster de impedir o usufruto de um bem pelo seu proprietário sob uma pena determinada constituem uma só norma, bem como o direito de receber e o dever de pagar o arrendamento. A pessoa de Pedro tem o direito a usufruir do bem arrendado e o dever de pagar o arrendamento. Este dever insere-se na mesma norma do Direito de João. Há, porém, uma outra norma que confere o direito de usufruto a Pedro, esta norma implica em um dever de João de, apesar de ser proprietário do bem, abster-se de usufruir dele enquanto estiver arrendado e Pedro pagar uma contraprestação pecuniária. Teríamos assim, uma relação jurídica entre a norma que prescreve que apenas o proprietário pode usufruir de um bem e a que prescreve que caso este arrende o bem, o usufruto passa a ser permitido apenas ao arrendatário. É uma relação entre normas, ou, se se quiser, entre condutas humanas determinadas por normas. Não é, no entanto, do ponto de vista da teoria pura do direito, uma relação entre homens sobre a qual incidem regras, mas uma relação entre regras pelas quais a conduta humana se orienta. A relação empírica entre os homens escapa ao campo de conhecimento abordado pela teoria kelseniana.

            A relação jurídica é a relação entre normas ou entre ações humanas determinadas por tais normas.

            Porém, assim como o direito subjetivo não é o interesse protegido pelas normas jurídicas mas a proteção que consiste netas mesmas normas, também a relação jurídica não é uma relação de vida que seja extrinsecamente regulada ou determinada pelas normas jurídicas como se fosse um conteúdo vestido pela forma jurídica, mas esta forma, quer dizer, uma relação que somente é constituída, instituída ou criada pelas normas jurídicas. A relação jurídica matrimonial, por exemplo, não é um complexo de relações sexuais e econômicas entre dois indivíduos de sexos diferentes que, através do Direito, apenas recebem uma forma específica. Sem uma ordem jurídica não existe algo como um casamento. O casamento como relação jurídica é um instituto jurídico, o que quer dizer: um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos no sentido técnico de normas jurídicas. As relações que aqui são tomadas em consideração são relações entre normas jurídicas ou relações entre fatos determinados pelas normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 188).

            Assim, mesmo para a análise da relação jurídica, não carece a Teoria Pura do Direito recorrer aos "fatos", mas às normas, de tal forma que a descrição que um jurista positivista faz de um assassinato não coincidiria com a descrição de uma testemunha ocular, muito menos com a de um advogado, de um Juiz, de um psicólogo ou de um sociólogo. A atenção do jurista está focalizada no Direito, não nos fatos, e o Direito é uma ordem normativa.

            A sociedade, no entanto, também é, na visão de Kelsen, uma ordem normativa.

            A Teoria Pura do Direito e a Sociedade.

            Ser e dever ser são duas ordens radicalmente distintas, de tal forma que o pensamento lógico é incapaz de deduzir, a partir de premissas de uma ordem, conclusões de outra. Ora, o Direito é da ordem do dever ser, enquanto a conteúdo de sentido de ações humanas. Estas são da ordem do ser, mas não se confundem com seu conteúdo de sentido. Analisar o Direito, portanto, exige que se tomem em consideração estes fatos na esperança deduzir ou explicar normas.

            A ordem normativa a que chamamos direito não se confunde nem com as ações com sentido que lhe deram origem, nem com as que a transformam e, com mais razão, nem com as que se orientam por seu sentido.

            Kelsen define a Sociedade como uma ordem normativa. Neste sentido cumpriria separar o estudo da Sociedade enquanto conteúdo de sentido, do estudo das ações com sentido que lhe deram origem ou por ela se orientam. Há em Kelsen uma teoria da ordem normativa. Há, em Weber, uma teoria da ação.

            A Teoria Pura do Direito e a Sociologia

            Há uma corrente de pensamento que aqui fiz representar-se pelo professor Roberto Lyra Filho que sustenta que o "reducionismo" kelseniano, ou melhor, a "pureza" de sua teoria acerca do Direito, enviesa a descrição e explicação do Direito.

            Uma devida compreensão do Direito levaria em conta fatores sociais, ou seja, uma Sociologia do Direito. Esta seria capaz ou de fornecer elementos para a avaliação da justeza do Direito posto (o que ficou representado pela definição que Lyra Filho dá do Direito) ou da função e origem do Direito (como na definição de legislação, do mesmo autor).

            Além disso, a teoria pura do Direito seria, segundo esta corrente, uma ideologia burguesa em dois sentidos: 1) sua gênese pode ser explicada por fatores sócio-econômicos e 2) constitui uma falsa consciência que legitima o sistema econômico social vigente.

            No entanto, na medida em que Kelsen pretende voltar seu estudo para o Direito positivo e não para sua origem, abstêm-se de qualquer explicação da gênese do Direito, qualquer explicação neste sentido seria compatível com sua teoria.

            Da mesma forma, se o Direito justo pode ser percebido pela sociologia, o máximo que se poderia afirmar acerca da teoria Kelseniana é que ela descreve um Direito injusto. O que, na concepção kelseniana, não seria uma crítica, mas um juízo de valor ancorado em uma ordem normativa diversa da ordem jurídica vigente. De qualquer forma, dizer que o Direito que se descreve é injusto não é uma crítica à descrição, mas ao direito, e, em verdade, Kelsen não fez o direito, mas somente a descrição.

            Quanto ao caráter histórico da concepção kelseniana, abstenho-me de tratar da questão de se sua origem deveu-se à uma burguesia vitoriosa ou decadente, uma vez que não tenho dados históricos para tanto. Já quanto a ser uma ideologia que legitima o status quo, não parece ser uma crítica fundada. Kelsen afirma, durante toda a obra, que o ordenamento jurídico é considerado válido por uma norma fundamental pressuposta que afirma que o sentido de dever ser posto por uma constituinte, ou pelo costume ou mesmo por um imperador absoluto, deve ser tido por seu sentido objetivo. Acerca disso cabem duas ponderações: em primeiro lugar, a norma fundamental não é pressuposta necessariamente pelos indivíduos de uma sociedade (não é necessariamente, em Kelsen, uma ideologia ou uma crença grandemente difundida na sociedade), nem pelos legisladores, mas é pressuposta, no sentido de pensada, pelo estudioso do Direito que entende só poder fundamentar uma norma em outra norma e, como não há qualquer norma "natural" ou "metafísica" que fundamente o Direito, supõe uma norma para que possa concebê-lo como válido. Em segundo lugar, ainda que se tome a norma fundamental como uma verdadeira norma, no sentido de que se deve efetivamente obedecê-la, a Teoria Pura do Direito seria antes uma denúncia do que uma legitimação do status quo, na medida em que afirma que o fundamento do Direito é uma mera suposição.

            Ora, se a única razão pela qual devemos obedecer ao Direito (que Kelsen identifica com o Estado) é por pressupormos, ou pelo fato de o legislador pressupor, uma norma segundo a qual devemos fazê-lo, basta que se rejeite esta suposição (mais frágil impossível) e toda a estrutura estatal seria ilegítima. De fato a resposta de Kelsen para a pergunta de por que devemos obedecer à constituição equivaleria àquela que os pais freqüentemente têm de dar aos filhos quando indagam sobre uma ordem que crêem não ser adequada: "porque sim!".

            A "sociologia crítica" de Lyra Filho vê nesse "porque sim" a efetiva base de sustentação do Estado e denuncia a teoria Pura do Direito por escamotear a ilegitimidade do mesmo.

            De fato a teoria Kelseniana do Direito não é, de forma alguma, incompatível com uma abordagem sociológica do Direito, ela apenas não é uma abordagem sociológica do Direito.

            No entanto, quando se equipara o Direito a algo "reto e correto" ou a um "processo de emancipação" e se concebe a sociologia como uma ciência capaz de revelar esse Direito, então a teoria Kelseniana se torna incompatível com esta sociologia, mas não por ser ela a legitimação de uma determinada ordem social, mas exatamente por não sê-lo.

            O pressuposto fundamental de toda a Teoria Pura do Direito é o de que do "ser" não se deduz "dever ser" e vice-versa. Tal pressuposto apenas se contradiz com uma afirmação com a qual se expresse que do "ser" é de alguma possível deduzir o "dever ser" e vice versa.

            Se a sociologia estuda o "ser" e revela o "dever ser", Kelsen não é capaz de fornecer uma teoria viável. Que a sociologia possa fazê-lo não é, decerto, ponto pacífico.

             A Teoria Pura do Direito como sociologia.

            A Teoria Pura do Direito não apenas é compatível com uma sociologia do Direito de cunho não-normativo como também encerra uma teoria da sociedade, ou melhor, a teoria pura do direito é também uma teoria pura da sociedade enquanto um complexo de ordens normativas.

            Por certo não convém pôr palavras na boca deste ou daquele autor. Não se afirma aqui que Kelsen pretendeu desenvolver uma teoria da sociedade, mas apenas que a teoria que desenvolveu para o direito é aplicável para a sociedade.

            Kelsen define o Direito como uma ordem normativa da conduta humana (cf. Kelsen, 2000: 5). Também a sociedade é definida como tal:

            A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. Estes pertencem à sociedade na medida em que a sua conduta é regulada por uma tal ordem, é prescrita, é autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa, de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre esses indivíduos. (Kelsen, 2000: 96).

            A sociedade não é, portanto, um conjunto de indivíduos, mas a ordem normativa que regula a conduta entre eles. E, como já foi dito, uma ordem normativa é um sistema de normas. Uma norma é o conteúdo de sentido objetivo dirigido à conduta de outrem. Este conteúdo é "dever-ser". Como tal apenas pode ser deduzido a partir de outro "dever ser".

            Percebe-se ao longo da obra de Kelsen que os exemplos que utiliza para demonstrar a aplicabilidade dos conceitos da teoria Pura do Direito não são todos jurídicos, mas, em larga medida, referem-se a outras ordens normativas. Eis alguns exemplos:

            O autor fale de "ordem social religiosa":

            Coação psíquica exercem-na todas as ordens sociais com certo grau de eficácia, e muitas – como, porventura, a religiosa – exercem-na numa medida mais ampla que a ordem jurídica. Esta coação psíquica, não é, pois uma característica que distinga o Direito das outras ordens sociais. (Kelsen, 2000: 38).

            Admite a possibilidade de conflito entre a ordem jurídica e as demais ordens sociais:

            Um homem que mata a esposa adúltera ou o seu amante é, segundo a maioria das ordens jurídicas vigentes, um criminoso, mas o seu feito pode por muitos não ser de forma alguma reprovado, sim, pode mesmo ser aprovado como exercício de um direito natural a proteger a sua honra. O duelo, contra o qual é cominado uma pena, é considerado por uma determinada camada social, não apenas como não imoral, mas como dever moral, e a pena de prisão que lhe corresponde não é tida como desonrosa. (Kelsen, 2000: 125).

            Como exemplo do princípio da imputação apresenta a etiqueta, o patriotismo e a religião:

            Exemplos de aplicações do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém te fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica sua vida pela pátria, a sua memória deve ser honrada, quando alguém pecou, deve fazer penitência. (Kelsen, 2000: 100).

            Além da exposição que faz acerca do fundamento de validade, quando oferece como exemplo a criança que indaga por que deve ir à escola.

            Não há qualquer dúvida que Kelsen entende a sociedade como uma ordem normativa, o mostram os exemplos citados e o fato de oferecer um critério para distinguir se uma determinada ordem social normativa é ou não jurídica:

            Como ordem coativa, o Direito distingue-se de outras ordens sociais. O momento coação, isto é, a circunstância de que o ato estatuído pela ordem como conseqüência de uma situação de fato considerada socialmente prejudicial deve ser executado mesmo contra a vontade da pessoa atingida e – em caso de resistência – mediante o emprego da violência física, é o critério decisivo. (Kelsen, 2000: 37).

            Cumpre esclarecer que toda e qualquer ordem normativa que regula e interação entre indivíduos é uma ordem social "Uma ordem normativa que regula a conduta humana na medida em que ela está em relação com outras pessoas é uma ordem social" (Kelsen, 2000: 25). Portanto, a sociedade pode ser definida mais precisamente como um conjunto de ordens normativas.

            Kelsen distingue a natureza da sociedade por ser aquela um conjunto de elementos ligados entre si pelo princípio da causalidade, e esta um conjunto de elementos ligados por imputação. Segundo o princípio ordenador utilizado (causalidade e imputação), Kelsen distingue as ciência em sociais e naturais.

            A sociologia fica, nesta distinção, como uma ciência natural, uma vez que visa explicar o comportamento humano de acordo como princípio da causalidade, o que, segundo o autor, é um objetivo perfeitamente legítimo. (41)

            As ciências sociais seriam as que se voltam para as ordens normativas. Kelsen afirma que tais são a Ética e a Jurisprudência:

            Se o domínio considerado por estas ciências é contraposto, como uma esfera de valores, à esfera da realidade natural, deve-se tem em conta que se trata de valores que são constituídos por normas positivas, isto é, normas que são postas no espaço e no tempo através de atos humanos, e que, por isso, o objeto destas ciências sociais não é irreal, que também a ele pertence ou corresponde uma realidade qualquer – só que, neste caso, é uma realidade social. Ciências sociais deste tipo são a Ética, isto é, a ciência da moral, e a jurisprudência, ciência do Direito. (Kelsen, 2000: 7).

            Mas Kelsen, apesar de não falar em uma ciência social normativa critica Zitelmann por não ver que "esta forma de ligação de elementos (imputação normativa) se apresenta não somente na descrição do Direito como também na descrição de todos os outros sistemas de normas."(Kelsen, 2000: 411).

            Assim, há duas formas de ciência que versam sobre o que chamamos "sociedade": aquela que estuda a ação humana enquanto tal, e aquela que versa sobre a sociedade enquanto um sistema de normas.

            O que tentarei mostrar de ora em diante é que não apenas a Teoria Pura do Direito é compatível com uma sociologia não normativa, como também a teoria kelseniana, se entendida como uma teoria da Sociedade, pode ainda assim ser justaposta a uma certa sociologia, a sociologia compreensiva, de modo a obter-se uma descrição da sociedade, enquanto conteúdo de sentido, e uma explicação da ação social. Para tanto, serão apresentados alguns fundamentos metodológicos weberianos, bem como alguns conceitos básicos de sua sociologia compreensiva, em seguida, será explicitada uma possível abordagem da sociedade valendo-se tanto da teoria de Kelsen como da de Weber, de modo a provar sua compatibilidade. Assim, será tratado de uma perspectiva weberiana a forma como as diferentes ordens sociais se legitimam, de uma perspectiva kelseniana a forma como se poderia descrever a sociedade como um complexo de ordens normativas e, por fim, tornando à perspectiva weberiana, auxiliada pela descrição da sociedade, como se poderia compreender uma ação social estabelecendo as conexões de sentido, de acordo com as ordens normativas, de modo a formar tipos-ideais, que apesar de não explicar causalmente a ação, facilita a compreensão intelectual de uma ação concreta


III – Kelsen e Weber

            Metodologia da sociologia compreensiva.

            Uma primeira característica do pensamento sociológico weberiano que cabe ressaltar aqui é a "neutralidade axiológica". No entender de Max Weber o campo do cientista e o do político eram distintos e o valor que o cientista assume, o valor "verdade" fica prejudicado sempre que o mesmo se deixa guiar por considerações valorativas.

            um exame atento dos trabalhos históricos mostra com facilidade que o estabelecimento conseqüente da cadeia causal empírico-histórica costuma quebrar-se quase sem exceção, com prejuízo para os resultados científicos, quando o historiador começa a "emitir juízos de valor". (Weber, 2001: 386).

            É certo que Weber é bastante conhecido por "denunciar" o desencantamento do mundo e mostrar que nos prendemos em uma "jaula de ferro". Entretanto a postura do autor não é a de uma postura "crítica" no sentido de elaborar uma " teoria" que revele as "patologias" ou os males da modernidade, mas sim a postura de compreender a sociedade, estabelecendo as conexões de sentido nas quais se pautaram as ações sociais dos indivíduos no decorrer da história.

            Weber dedica grande atenção e esforço a debater com opositores que "não querem abster-se do direito de emitir juízos de valor sobre questões políticas, culturais, éticas e estéticas, e que [afirmam] nem teriam condições de desenvolver seu trabalho sem estes juízos de valor" (Weber, 2001: 386).

            Weber entende que houve, de fato, um processo de racionalização, o que não implica em um processo de alguma maneira intrinsecamente bom ou necessário. Segundo ele, "um progresso na racionalização subjetiva da ação não implica, portanto, necessariamente, também objetivamente, um ‘progresso’ em direção a uma ação racionalmente ‘correta’". (Weber, 2001: 387).

            O autor, assim como Kelsen, rejeita a "transposição do ser para o dever ser" (cf. Weber, 2001: 389) e que o problema está na ausência de um fim ou valor absoluto dado.

            O problema consiste na possibilidade de uma univocidade absoluta da caracterização da aspiração. Se esta condição é dada, trata-se de uma simples inversão de proposições causais Y, portanto, de um problema puramente ‘técnico’. Precisamente por causa disso, a ciência, em todos os casos, não é obrigada a conceber estas proposições teológicas de um outro modo do que como simples proposições causais, e, portanto, da seguinte forma: de Y segue sempre o resultado X, ou sob as condições B1, B2, B3, X é a seqüência de Y1, Y2, Y3. Pois isso significa, na realidade, a mesma coisa, e o "prático" pode daí extrair suas receitas. (Weber, 2001: 396).

            Assim, a única ocasião em que a ciência pode responder a uma questão "prática" é aquela em que o fim é dado e a discussão gira apenas em torno da adequação técnica de meios a fins.

            Isto posto, partimos para uma abordagem do pensamento weberiano.

            No entender de Max Weber a sociologia tem uma especificidade frente às demais ciências: é um ciência compreensiva. Esta especificidade lhe confere uma explicação dos fenômenos que são seu objeto de estudo qualitativamente diferente da explicação das ciências naturais. "Deve entender-se por sociologia (...) uma ciência que pretende entender pela interpretação a ação social para desta maneira explica-lo causalmente no seu desenvolvimento." (Weber, 2001: 400).

            Ação

            Eis o objeto de estudo da sociologia compreensiva: a ação social. Weber não define a sociedade ou a história como o objeto desta ciência. A pretensão de Weber não é compreender, interpretar e explicar a história como um todo, mas, pura e simplesmente, a ação social.

            Por ‘ação’ deve entender-se um comportamento humano (...) sempre quando o sujeito ou os sujeitos da ação ligam a ela um sentido subjetivo. A "ação social", portanto, é uma ação na qual o sentido sugerido pelo sujeito ou sujeitos refere-se ao comportamento de outros e se orienta nela no que diz respeito ao seu desenvolvimento. (Weber, 2001: 400).

            A ação social é, em primeiro lugar, uma ação, e tal só pode ser praticada por um indivíduo, apesar de admitir-se a construção de tipos ideais, como se verá. Além disso à ação liga-se um sentido subjetivo. A ação é dita social quando este sentido subjetivo refere-se à conduta de outros.

            Compreensão.

            Enquanto dotada de sentido, a ação humana é passível de compreensão. Compreender é distinto de explicar.

            Bem semelhante a todos os fenômenos o comportamento humano ("interior" ou "exterior") revela, no seu decurso, conexões e regularidades. Entretanto, algo há que é próprio do comportamento humano, pelo menos no seu sentido pleno: o decurso das conexões e regularidades pode ser interpretado pela compreensão. (Weber, 2001: 313).

            Compreender um comportamento dado significa apreender as conexões de sentido deste comportamento, ou melhor, interpretar tais conexões de sentido de modo a entender o por que dessa ação.

            A compreensão de uma ação pode ser empática ou puramente intelectual. A compreensão empática é aquela que se dá quando o observador é capaz de transpor-se ao "lugar" do observado, como, por exemplo, quando compartilha dos mesmos valores. Assim, ao observar que um determinado indivíduo tenha um acesso de raiva e expulse de casa sua mulher, compreendemos empaticamente a ação se conhecermos que, digamos, ele tenha acabado de descobrir que sua mulher cometera adultério. Por outro lado a compreensão intelectual se dá quando, dadas as circunstâncias em que uma determinada ação se deu, concebe-se esta ação como racional e estabelecem-se as conexões de sentido que orientaram a mesma.

            Temos de nos contentar com a sua interpretação exclusivamente intelectual, ou, em determinadas circunstâncias, aceitar aqueles valores ou aqueles fins sinceramente como dados para tratar de fazer compreensíveis o desenvolvimento de uma ação que foi motivada por eles para a melhor interpretação intelectual possível ou para reviver os pontos de interpretação o mais fielmente possível.(Weber, 2001: 401).

            Ação racional

            Max Weber admite que a ação humana não é, em geral, puramente racional, que há fatores irracionais que podem orientar a ação. No entanto a racionalidade da ação orientada por um fim ou valor é componente importante na apreensão das conexões de sentido. Pode-se dizer que toda ação é orientada por um fim, mas a racionalidade dos meios é apenas uma construção ideal, e o grau de consciência do próprio fim, de suas conseqüências, e de outros fins disponíveis, são variáveis que também interferem na ação.

            Assim, em um primeiro passo, a sociologia compreensiva concebe a ação como puramente racional com relação aos fins e como se daria seu desenrolar em tal situação. Como, porém, o procedimento da sociologia compreensiva "nada nos diz acerca da questão se as ações reais estão ou não determinadas por considerações racionais no que diz respeito a fins" (Weber, 2001: 402), ela busca explicar os demais fatores condicionantes da ação como "desvios" do desenvolvimento da ação racional.

            O método científico que consiste na construção de tipos investiga e expõe todas as conexões de sentido irracionais e afetivas sentimentalmente condicionadas do comportamento que tem influência sobre a ação como "desvios" de um desenvolvimento dessa mesma ação que foi construída como sendo racional em relação aos fins. (...) A construção de uma ação rigorosamente racional com relação a fins serve nestes casos para a sociologia – por causa de sua evidente inteligibilidade e do seu caráter de racionalidade e de univocidade – como tipo ("tipo ideal") mediante o qual é possível compreender a ação real que é influenciada por irracionalidades de todo tipo e de toda espécie (afetos, sentimentos) como um desvio do desenvolvimento esperado de uma ação racional. (Weber, 2001: 402).

            Determinação causal do comportamento humano.

            Quando Weber aponta para a especificidade do comportamento humano ser dotado de sentido, não rejeita a possibilidade de este mesmo comportamento ser causalmente determinado.

            Segundo o autor: "ficam sem sentido todos os processos ou estados humanos (...) nos quais não se sugere um sentido, e, portanto, não se enquadram numa relação entre ‘meio’ e ‘fim’". (Weber, 2001: 402). Note-se que isto não implica em que os objetos e processos naturais ficam sem sentido, mas apenas aqueles objetos, processos naturais ou mesmo ações humanas a que não se atribuem qualquer sentido. Um exemplo seria: "o ciclo da morte e o ciclo orgânico da vida desde o desamparo da criança até o do ancião –, tem obrigatoriamente alcance sociológico de primeira importância pelas diversas maneiras como a ação humana se orienta e se orientou a esse respeito. (Weber, 2001: 403).

            Assim, o sentido de uma ação ou objeto não é, de forma alguma, algo imanente ao mesmo, mas antes, algo que é "atribuído" ou "imputado", numa linguagem kelseniana, a ele.

            O sentido é, tanto Weber como em Kelsen, algo qualitativamente distinto da natureza. Tanto assim que Weber afirma que mesmo que futuramente a ciência encontrasse regularidades, leis causais, que determinassem o comportamento humano restaria compreende-lo.

            Existe sem dúvida a possibilidade de que a investigação futura talvez encontre regularidades não sujeitas à compreensão de determinados comportamentos com sentido, por mais rara que tenha sido até agora tal coisa. (...) e o reconhecimento de sua significação causal [da liderança biológica] em nada alteraria a tarefa da sociologia (e das ciências da ação de maneira geral), ou seja, compreender pela interpretação as ações orientadas num sentido. (Weber, 2001: 403).

            A explicação da ação que a sociologia compreensiva oferece é qualitativamente distinta da explicação causal.

            Todas estas compreensões representam conexões de sentido compreensíveis, cuja compreensão entendemos como sendo uma explicação do desenvolvimento real da ação. "Explicar", portanto, significa, dessa maneira, para a ciência que se ocupa com o sentido da ação, algo que pode ser formulado do seguinte modo: apreensão da conexão de sentidos em que está incluída uma ação que já é compreendido de maneira atual, no que se refere ao seu sentido "subjetivamente imaginado". (Weber, 2001: 404).

            A apreensão da conexão de sentido.

            Nem sempre, ou melhor, dificilmente a sociologia será capaz de apreender o sentido de fato mentado pelo ator na circunstância concreta de uma ação. Diante desta impossibilidade, ainda mais quando se trata de um número deveras elevado de atores, a sociologia recorre a técnicas para estabelecer conexões de sentido de maneira mais abstrata.

            Em todos estes casos, compreensão significa: apreensão interpretativa de sentido ou conexão de sentido: a) pensada realmente na ação particular (...) b) pensada como uma média ou de modo aproximativo (...) c) construída cientificamente (pelo procedimento "típico ideal"). (Weber, 2001: 404).

            Aqui se insere, no pensamento weberiano, a construção ideal típica. Esta é, de fato, um complexo de sentidos abstratamente concebidos aliado à suposição de que o indivíduo de cuja ação se trata, se fosse orientada unicamente por este complexo de sentidos subjetivos se comportaria tal e qual o tipo ideal. É bastante ilustrativo o exemplo que Weber oferece:

            "Tais construções típico-ideais são, por exemplo, os conceitos e as leis da teoria econômica pura. Elas explicam como se desenvolveria uma forma especial do comportamento humano se fosse orientada com todo o rigor tendo em mente o fim, sem a presença de perturbações alguma por parte de erros e afetos, e se fosse unicamente orientada e de modo unívoco num único fim. (Weber, 2001: 404).

            Esta construção ideal típica toma como assente que o homem busca racionalmente seus fins, e estabelece um fim como padrão de conduta, tornando rigorosamente previsível o comportamento deste indivíduo abstratamente construído.

            Podemos traçar aqui um paralelo com a teoria Pura do Direito de Kelsen. Para este autor, uma ordem normativa é, exatamente, um complexo de sentidos subjetivos. A diferença reside em que Kelsen não tem em mente explicar o comportamento orientado por este complexo de sentidos, mas o próprio complexo.

            Weber afirma uma certa distinção entre a "conexão de sentido" e a "causalidade natural". Segundo escreveu Maurício Tragtenberg na "Introdução à edição Brasileira" da obra Metodologia das Ciências Sociais de Weber, este autor "deduz uma visão de processo histórico, na medida em que o processo da natureza e da história são em si mesmos destituídos de significação" (Weber, 2001: XVIII), ou melhor, explicar o comportamento humano amparando-se apenas em uma causalidade natural de um processo histórico não é o mesmo que encontrar suas "conexões de sentido", uma vez que tal processo histórico não tem "sentido".

            Processos e regularidades que, por incompreensíveis no sentido aqui entendido, não podem ser qualificados de fatos ou de leis sociológicas, nem por isso são menos importantes. Tampouco para a sociologia, de acordo com a definição dada aqui (que implica uma certa limitação da sociologia para ser apenas ‘sociologia compreensiva’, sentido que, entretanto, não se impõe forçosamente a ninguém). Eles somente pertencem a um lugar diferente, o que, metodologicamente falando, é inevitável na ação compreensível, ou seja, a ação condicionada por ‘condições’ ou situações, ‘ocasiões’, ‘estímulos’ e obstáculos da mesma. (Weber, 2001: 407)

            Por outro lado o comportamento humano não é precisamente descrito apenas como um complexo de sentidos. Uma crença não determina absolutamente o comportamento da forma da causalidade natural.

            Mas, nenhuma interpretação de sentido, por mais evidente que seja, pode pretender, por causa deste seu mérito, ser também a interpretação causal válida [porque] 1) Com freqüência, ‘motivos’ transferidos, pressupostos e ‘repressões’ (quer dizer, motivos não admitidos) encobrem (...) a conexão real de uma trama de ação (...) 2) manifestações externas da ação, tidos por nós como sendo ‘iguais’ ou ‘semelhantes’ podem apoiar-se em conexões de sentido muito diversas. (...) 3) em situações dadas, os homens são submetidos em sua ação a uma situação de oposição a partir de impulsos contrários que são todos ‘compreensíveis’. Seja qual for a intensidade relativa com que se manifestem na ação as diferentes referências significativas subjacentes nesta ‘luta de motivos’, que são para nós também compreensíveis, mas tudo isso, conforme a experiência, é coisa que não se pode apreciar com toda segurança e, na maior parte, nem sequer de maneira aproximativa. (Weber, 2001: 405).

            A explicação da ação social, ou melhor, a interpretação causal da ação humana não é constituída apenas por interpretações de sentido. Há fatores não intencionais que influenciam na ação. Assim também, isso a que na passagem citada o autor alude como "luta de motivos" deve ser levado em conta na explicação da ação social. Uma única ação pode orientar-se por "impulsos contrários que são todos ‘compreensíveis’". Assim também em Kelsen. Para ele o fato de um ordenamento estipular uma conduta como devida não implica em que a ação se adequará à este sentido normativo.

            A sociologia compreensiva não descreve o comportamento humano como determinado por uma causalidade natural, à maneira da física, nem tampouco como um complexo de conteúdos de sentidos, como Kelsen descreve o Direito. A sociologia compreensiva vale-se de ambos em apenas uma descrição, ou melhor, a sociologia compreensiva explica o comportamento humano em termos de uma "causalidade social".

            Segundo Calliot Théliène, comentando a obra weberiana:

            Pois a compreensão da ação não era para ele uma alternativa à sua explicação nem mesmo um momento desta, interpolada numa argumentação que, em suas grandes linhas, ficasse sujeita aos objetivos e procedimentos dos saberes que ele qualificava de "nomológicos", e que em uma linguagem mais moderna chamaríamos de empírico-analíticos. (...) é manifesto que a compreensão e a explicação não são apresentadas como dois aspectos similares do conhecimento, mas como uma única e mesma démarche cognitiva.

            - A compreensão da ação social, longe de constituir um simples elo da explicação causal, é o método explicativo específico da sociologia, que daí extrais, por essa razão, uma denominação. (Calliot-Thélène, 1995: 100).

            A explicação weberiana da ação social é interpretativa e causal, e ambas são uma só coisa: interpretação causal. De fato a conexão de sentido é causa da ação social. Assim fala Tragtenberg: "para Weber, as ciências humanas utilizam a categoria da causalidade plenamente. Procuram, através da abstração, descobrir nas relações causais regras de causalidade, como explicar as relações causais concretas por meio de regras" (in: Weber, 2001: XXI).

            Se concebermos o tipo ideal, tal como aqui mencionado, porém sem a consideração da ação individual, a construção da teoria "pura" econômica nada mais seria do que uma ordem normativa, cujo fundamento de validade seria "deve-se obedecer às leis do mercado" ou "do lucro".

            A sociologia compreensiva de Weber é bastante mais ambiciosa do que a teoria kelseniana, de forma que ele não se contenta em estabelecer as conexões de sentido, mas busca oferecer uma explicação o mais precisa possível da ação humana. Weber então distingue, por um lado, a interpretação de sentido, e por outro, a explicação causal, para, enfim, apontar para uma "interpretação causal da conduta humana".

            Chamamos de "motivo" a conexão de sentido que, para o agente e para o observador, se apresenta como o "fundamento" com sentido do seu comportamento. Dissemos que um comportamento que se desenvolve como um todo coerente é "adequado com referência ao seu sentido" na medida em que podemos afirmar que a relação entre seus elementos é uma "conexão de sentido" típica (ou, como costumamos dizer, "mais correta") no que diz respeito aos hábitos mentais e afetivos médios. (...) A explicação causal, portanto, significa a seguinte afirmação: que, de acordo com uma determinada regra de probabilidade – qualquer que seja o modo de calcular, que somente em casos raros e ideais pode ser demonstrado como sendo correto conforme os dados empíricos –, a um determinado processo (interno ou externo) efetivamente observado, segue-se um outro processo determinado (ou surge juntamente com ele). (...) uma interpretação causal correta de uma ação concreta significa que o desenvolvimento externo e o respectivo motivo foram conhecidos na sua conexão significativa. Uma interpretação causal correta de uma ação típica (tipo de ação compreensível) significa que o suceder considerado típico se apresenta como adequado no que se refere ao sentido (num determinado grau) e também pode ser comprovado empiricamente como causalmente adequado (num determinado grau). (Weber, 2001: 406).

            Uma simples descrição de fatos relacionados à conduta humana sem qualquer conteúdo de sentido seria útil à explicação do comportamento, fatos como a fecundação humana, o movimento dos astros, fenômenos meteorológicos em geral, etc. Mas não constituiriam uma explicação desta conduta. Da mesma forma me parece que seria útil a descrição de puros conteúdos de sentido, em um estremo oposto, como faz Kelsen. Ou seja, uma descrição de conteúdos de sentido como crenças e normas em sua sistemática interna, uma descrição alheia ao comportamento humano. Seria esta também distinta da explicação da sociologia compreensiva e evidentemente incompleta, mas, assim penso, ainda seria útil.

            Se falta a adequação de sentido, nós simplesmente nos encontramos em face de uma probabilidade estatística que não é susceptível de compreensão (ou, apenas compreensível de maneira incompleta). Por outro lado, a mais evidente adequação de sentido só pode ser considerada como sendo uma proposição causal correta para o conhecimento sociológico, na medida em que se prova a existência de uma probabilidade (determinável de certa maneira) de que a ação concreta tomará de fato, com determinada freqüência ou determinada aproximação (uma "média" concernente ao caso puro) a forma que foi considerada adequada com relação ao sentido. (Weber, 2001: 406).

            A sociologia compreensiva de Weber não se restringe a uma explicação conforme uma causalidade natural (como seria, por exemplo, uma sociobiologia) mas ousa penetrar naquilo que é próprio à conduta humana, as conexões de sentido. Faz isto sem perder o caráter de ciência causal. De fato, oferece esta sociologia uma interpretação causal da conduta humana.

            O objeto de estudo da sociologia.

            A sociologia weberiana, enquanto teoria da ação, tem o indivíduo como elemento principal de seu objetivo de estudo. "Ação como orientação significativamente compreensível do próprio comportamento só existe para nós enquanto comportamento de uma ou várias pessoas individuais" (Weber, 2001, 407). Neste sentido, instituições sociais e "corporações" não são personificados, mas vistos como "entrelaçamento de ações": "para a interpretação compreensiva da sociologia, pelo contrário, estas formações não são outras coisas que desenvolvimento e entrelaçamentos de ações específicas de pessoas individuais, já que somente estas podem ser sujeitos de uma ação orientada num sentido." (Weber, 2001: 407). Kelsen e Weber, por caminhos opostos, chegam a resultados semelhantes quanto a este ponto.

            O objeto de estudo da sociologia, enquanto definido como a ação orientada por conexões de sentido, é distinto do objeto da psicologia.

            Segundo Weber:

            Sem dúvida, o sentido de um cálculo aritmético, pensado por alguém, não é, decerto, coisa "psíquica". A reflexão racional de um homem sobre si mesmo e sobre o fato se em função de determinados interesses exige-se ou não uma certa ação por causa das conseqüências que se espera dela, e a decisão que se toma em função desses raciocínios, são coisas cuja compreensão de maneira alguma nos facilitam as considerações "psicológicas". (...) Pelo contrário, a psicologia compreensiva pode prestar indubitavelmente serviços decisivos para a explicação sociológica no que se refere aos aspectos irracionais. Mas isso não altera em nada a situação básica metodológica. (Weber, 2001: 413).

            O conteúdo de sentido e a ação por ele orientada são, portanto, objetos de uma ciência social, com método e explicação próprios. Tal ciência, diferentemente das demais, não apenas explica, mas também compreende seu objeto de estudo. (42) Esta ciência, enfim, é útil na medida em que auxilia o estudo e compreensão da história.

            Kelsen e Weber.

            Apresentada, assim, sumariamente, o que Weber entende ser a sociologia, pretendo ressaltar alguns aspectos de aproximação entre a teoria weberiana e a kelseniana. Todo o texto que segue deve ser interpretado como uma hipótese. A aproximação das teorias de Kelsen e Weber aqui aventada não é precisa e não constituiu o objeto sobre o qual com mais vagar me debrucei. Especialmente no que concerne à obra weberiana se notará uma falta de profundidade e mesmo imprecisão que por ora apenas posso lamentar. No entanto espero ser capaz de mostrar, ao menos que: a) o objetivo de estudo de Kelsen e o de Weber são distintos, um sistema de conteúdos de sentido para aquele e a ação social para este; b) que a teoria weberiana é mais ampla que a de Kelsen e, por fim; c) que em alguma medida a teoria kelseniana pode ser aplicada à sociedade resultando em um corpo de conhecimento útil à sociologia compreensiva.

            Ambos os autores entendem que de um ponto de vista científico ou no campo daquilo que se pode falar baseado em fatos empíricos ou na lógica, é impossível decidir racionalmente entre valores opostos.

            Ambos concordam que apenas o indivíduo humano age orientado por sentidos, e que estes sentidos constituem algo de qualitativamente diverso da natureza enquanto conjunto de elementos ligados por leis causais.

            Pode-se traçar um paralelo entre o tipo ideal weberiano e a conduta conforme uma ordem normativa, em Kelsen, além do que, segundo Weber:

            Chamamos de conteúdo de sentido de uma relação social: a) uma "ordem" apenas no caso em que a ação se orienta (de maneira média ou aproximativamente) em máximas que podem ser claramente dadas (...). De fato, a orientação da ação por uma ordem se dá entre os que participam desta ação por muitos motivos diferentes. Mas a circunstância de que, ao lado de outros motivos, pelo menos para uma parte dos que participam da ação, esta ordem é tida como obrigatória, ou como modelo, ou seja, algo que deve ser, aumenta a possibilidade de que a ação se oriente por ela e isso, num grau considerável. (Weber, 2001: 423).

            Assim, uma teoria acerca destas ordens ou dos conteúdos de sentido que formam um tipo ideal abstratamente falando seria, pelo menos, útil.

            Da mesma forma, em Kelsen, a norma é posta por uma ação dotada de sentido orientado à conduta de outrem, ou seja, por uma ação social no sentido weberiano do termo. Assim, a explicação da gênese de uma determinada ordem não se pode dar senão por uma sociologia compreensiva. Ainda, como o conhecimento formado a partir da teoria pura do Direito volta-se para as normas, não explica qualquer ação que por elas se orientem. Assim, a ação empírica, jurídica ou não, também fica a cargo da sociologia compreensiva explicar.

            Segundo Kelsen:

            A partir do ponto de vista da jurisprudência normativa, a ordem de pagar impostos difere da ameaça do bandido e do pedido do amigo pelo fato apenas de a ordem fiscal ter sido emitida por um indivíduo autorizado por uma ordem jurídica pressuposta como válida. A partir do ponto de vista da jurisprudência sociológica de Max Weber, a diferença é que o indivíduo que recebe a notificação interpreta esse aviso desse modo. Ele paga o imposto considerando o comando de pagar o imposto como um ato emitido por um indivíduo autorizado por uma ordem que o contribuinte considera válida. (Kelsen, 2000b: 254).

            Enfim, enquanto Kelsen volta-se para explicar as normas, Weber volta-se para a explicação da ação.

            Assim, penso que não só uma aproximação entre as teorias é possível como que seria algo de bastante útil ao conhecimento sociológico. Há aqui uma inversão das pretensões da sociologia do Direito. Enquanto esta busca explicar o Direito com base em elementos explicativos e teorias sociológicas, aqui buscar-se-á trazer elementos de uma teoria específica do Direito para colaborar com a explicação sociológica.

            Não pretendo, é claro, que Kelsen ou Weber teriam efetivamente concebido um pensamento em tudo compatível ou que aproximando ambas teorias teríamos um todo coeso que explicasse a sociedade. Afirmo simplesmente que a teoria de Kelsen é uma teoria das ordens normativas e, portanto, de uma dimensão chave da sociedade, que se volta única e exclusivamente para a compreensão de conteúdos de sentido postos por ações humanas e, portanto, apesar de útil, carece de uma explicação acerca da ação social que cria os mesmos conteúdos de sentido e por eles se orientam. Afirmo ainda que Weber ao explicar a ação recorrendo a tipos ideais e ao pressuposto da racionalidade, ao que junta os desvios da ação racional, oferece uma teoria da ação que é demasiado complicada enquanto metodologia, uma vez que a construção ideal típica requer um profundo conhecimento histórico do objeto pesquisado. Assim, a assunção da teoria kelseniana por parte da sociologia compreensiva e a utilização da descrição das ordens normativas feita pela teoria pura do direito como tipos ideais facilitaria o trabalho daquele que analisa o comportamento humano baseado na sociologia compreensiva.

            Segue-se um esboço desta aproximação de teorias no intuito de demostrar a compatibilidade do pensamento dos autores e de oferecer, dentro de evidentes limitações, uma sugestão de uma abordagem rigorosamente racional da sociedade e da ação social, que sustente uma neutralidade axiológica e ambicione uma explicação o mais completa e precisa possível.

            Este esboço se dividirá em três partes, onde a primeira corresponde a uma abordagem da problemática acerca da fundamentação das ordens normativas, a segunda a uma teoria que busca a descrição e explicação lógico-sistemática destes conteúdos de sentido postos por ações sociais e, por fim, a terceira àquilo que entendo ser uma explicação compreensiva da ação social orientada pela ordem normativa de que se falou.

            A legitimação da ordem.

            O conceito de ordem aqui referido é bastante semelhante em Kelsen e Weber. Esta ordem poderia ser definida como um complexo de conteúdos de sentido normativos ressaltando-se que uma norma pode prescrever não apenas um comportamento como também uma crença.

            Assim, uma ordem válida é uma ordem eficaz em certa medida e considerada legítima. Weber afirma que "a validade de uma ordem significa para nós algo mais do que a mera regularidade do desenvolvimento de uma ação social, que é simplesmente determinada pelo hábito ou por uma situação de interesses" (Weber, 2001: 423). A validade de uma ordem é a idéia que considera a ordem "um mandamento cuja transgressão não somente traz prejuízos, mas que (normalmente) é rejeitada devido ao "sentimento do dever" (Weber, 2001: 423). No entanto, Weber afirma que "para a sociologia, a validade de uma norma consiste unicamente naquela possibilidade e probabilidade de poder orientar-se por esta idéia". (Weber, 2001: 425).

            Nota-se aqui alguma semelhança com o conceito kelseniano que vê a ordem válida como uma ordem em conformidade com uma norma suposta como objetiva e que seja eficaz. Penso que se pode aproximar esta "probabilidade e possibilidade" às "condições de validade" que Kelsen apresenta, ou melhor: a eficácia. Desta forma, esta probabilidade é condição sine que non e, também, é um condição de relevância, uma vez que pouco sentido poderia haver em analisar de que forma uma ordem que não tem qualquer probabilidade de servir de orientação à conduta se legitima.

            Weber encontra a legitimação de uma ordem em crença, que, aliás, é uma crença normativa, ou melhor, a crença em uma validade, o que, por fim, é o mesmo que o pressuposto kelseniano. No entanto Weber detalha de forma mais precisa e preocupada com a ação concreta as questões atinentes a esta validade.

            Neste sentido, afirma o autor:

            Os que agem socialmente podem atribuir uma validade legítima a uma determinada ordem: a) por causa da validade daquilo que sempre existiu b) por causa de uma crença afetiva (emotiva especialmente): validade do recente revelado ou do exemplar. c) Por causa de uma fé racionalizada com relação a fins: validade do revelado de forma absoluta e definitiva. d) Por causa de um estatuto positivo, em cuja legalidade se crê. Esta legalidade pode ter validade legítima: a) por causa de um entendimento entre os interessados b) Por causa do outorgamento por parte de uma autoridade que é considerada legítima e da respectiva submissão e obediência a ela. (Weber, 2001: 428).

            Aquilo que sempre existiu é considerado válido. Algo válido é algo que não apenas é, mas que deve ser. A crença da validade da tradição assemelha-se ao que Kelsen chama de Constituição. Poderíamos, talvez, entender a idéia de que aquilo que é tradicional é válido como uma norma mais ou menos nestes termos: "Deve-se agir conforme à tradição", e, portanto qualquer comportamento tradicional passaria a ser descrito na forma de uma norma. Neste sentido, a crença na validade de uma norma seria algo semelhante ao fundamento de validade kelseniano.

            É, portanto, a crença na validade de uma forma de pôr as normas o fundamento de validade de uma ordem normativa. No primeiro caso, por exemplo, a forma referida é a de que a norma deve estar concorde com princípios há muito observados. Ou melhor, uma norma é válida se posta há muito e observada desde então. O modo de pôr normas, ou melhor, as regras ou normas que regulam a produção normativa são chamadas, em Kelsen, de constituição, em sentido jurídico-positivo e material.

            Se aceitássemos este paralelo, teríamos na passagem citada, quatro "constituições": a) "Deve-se agir conforme a tradição"; b) "deve-se seguir o recente revelado ou o exemplar"; c) "Deve-se orientar-se por determinado valor absoluto"; d) "Deve-se obedecer à legalidade". Haveria assim um certo paralelismo nos conceitos de norma fundamental de Kelsen e de crença na validade em Weber. Uma "dominação", segundo Weber (Weber, 1997: 170) requer tanto um "quadro administrativo" para executar as ordens, como a obediência dos dominados: "Debe entenderse por ‘dominación’, de acuerdo con le definición ya dada, la probabilidad de encontrar obediencia dentro de un grupo determinado para mandatos específicos (o para toda classe de mandatos)". (Weber, 1997: 170) e "’obediencia’ significa que la acción del que obedece transcurre como si el contenido del mandato se hubiera convertido, por si mismo, em máximo de conducta; y eso unicamente en mérito de la relación formal de obediencia, sin tener en cuuenta la propria opinión sobre el valor o desvalor del mandato como tal" (Weber, 1997: 172).

            A primeira forma de legitimação seria a crença na validade da tradição:

            A validade de uma ordem por causa do caráter sagrado da tradição é a forma mais universal e mais primitiva. O medo de determinados prejuízos mágicos fortalece a resistência psíquica a qualquer tipo de mudança de formas habituais e inveterados de comportamento, e os vários interesses que costumam ser vinculados à manutenção da submissão à ordem existente cooperam no sentido de sua conservação. (Weber, 2001: 428).

            Weber afirma que a forma mais primitiva de dominação é a tradicional, ancorada em sanções mágicas, ou melhor, no princípio retributivo. O autor explicita, com maior detalhe, ou de maneira nítida, tanto o fundamento de sua validade quanto aspectos gerais de sua constituição. O fundamento de validade de uma ordem normativa deste tipo "descansa en la santidad de ordenaciones y poderes de mando heredados de tiempos lejanos, ‘desde tiempo inmemorial’, creyéndose en ella en méritos de esa santidad" (Weber, 1997: 180). Os princípios e normas já "longe no tempo" são supostos como válidos.

            Uma ordem normativa que assim estabelecida impõe, por seu próprio fundamento de validade, que a produção ou legitimação das normas se dará tanto por um princípio estático como por um dinâmico. Isto porque se é que seja possível alguma produção normativa, esta se dará por três vias: interpretação de normas postas "desde tempos imemoriais", revelação de normas recuperadas de "tempos imemoriais" e exercício de autoridade legislativa conferida por normas imemoriais. Estas seriam "normas constitucionais" dessa ordem:

            No se obedece a disposiciones estatuidas, sino a la persona llamada por la tradición o por el soberano tradicionalmente determinado (...) El señor o los señores están determinados en virtud de reglas tradicionalmente recebidas (...) Los mandatos de esta persona són legítimos de dos maneras: a) en parte por la fuerza de la tradición que señala inequivocamente el contenido de los ordenamientos, así como su amplitud y sentido, tal como son creídos (...); b) en parte por el arbitrio libre del señor, al cual la tradición le demarca el ámbito correspondiente (...) Es impossible la "creación" deliberada, por declaración, de nuevos princípios jurídicos o administrativos. Nuevas creaciones efectivas sólo puedem ser legitimadas por considerarse válidas de antaño y ser reconocidos por la "sabiduría" tradicional. (Weber, 1997: 180/ 181).

            Um outro tipo de dominação ou de legitimação de uma ordem normativa seria o "carismático".

            Neste tipo de dominação é bastante fácil confundir-se a eficácia e a legitimidade, uma vez que quando o líder carismático perde o êxito em fazer seus prodígios ou fazer cumprir sua vontade, cai a validade da ordem.

            Si le falta ade modo permanente la corroboración, si el agraciado carismático parece abandonado por su dios o de su fuerza mágica o heróica, le falla el éxito de modo duradero (...) entonces hay la probabilidad de que su autotidad se dissipe. (Weber, 1997: 194).

            No entanto, mesmo aqui a validade da ordem não se assenta no fato da eficácia. Destaca-o o próprio Weber, fazendo notar que apesar de depender do reconhecimento, por parte de seus súditos, de seus poderes, o líder carismático não tem neste reconhecimento o fundamento de sua dominação.

            Sobre la validez del carisma decide el reconocimiento (...) por parte de los dominados; reconocimiento que se mantiene por ‘corroboración’ de las supuestas cualidades carismáticas – siempre originariamente por medio del prodigio. Ahora bien, el reconocimiento (en el carisma genuino) no es el fundamento de la legitimidad, sino un deber de los llamados, en méritos de vocación y de la corroboración, a reconocer esa cualidad. (Weber, 1997: 194).

            De fato o fundamental de validade é uma norma fundamental segundo a qual se deve obedecer àquele que é "exemplar", "prodigioso" ou que possui dotes sobrenaturais.

            Debe entenderse por "carisma" la cualidad, que pasa por extraordinária (...), de una personalidad, por cuya virtud se le considera en posesión de fuerzas sobrenaturales o sobrehumanos – o por lo menos específicamente extracotidianas y no asequibles a cualquier otro –, o como enviados del dios, o como ejemplar y, en consecuencia, como jefe, caudilho, guía o líder. (Weber, 1997: 193).

            Eis o fundamento de validade: deve-se obedecer àquele que demonstra dotes sobrenaturais. No silogismo normativo esta seria a premissa maior. A premissa menor seria a de que determinado indivíduo possui tais dotes sobrenaturais, donde a conclusão seria a de que se deve obedecer a este indivíduo.

            Este tipo de dominação também é bem propenso a ser entendido como desprovido de constituição, ou melhor, desprovido de um conjunto de normas que regulamentem a produção legislativa.

            Assim:

            No existe reglamento alguno, preceptos jurídicos abstratos, ni aplicación racional del derecho orientada por ellos, mas tampoco se dan arbitrios y sentencias orientados por precedentes tradicionales, sino que solamente son lo decisivo las creaciones de derecho de caso en caso, originariamente sólo juicios de Dios y revelaciones. (Weber, 1997: 195).

            No entanto o que precede não implica na ausência de uma constituição, em sentido kelseniano. De fato, Weber mostra regras, por exemplo, de formação do quadro administrativo que é órgão aplicador, e como toda aplicação de norma – salvo a aplicação de um ato coercitivo – é também produtor de normas, estas regras são constitucionais. "No hay ninguna ‘colocación’ ni ‘destituición’, ninguna ‘carrera’ ni ‘ascenso’, sino sólo llamamiento por el señor según su propria inspiración fundada en la calificación carismática de vocado" (Weber, 1997: 194).

            Dizer que o líder carismático pode chamar qualquer um para seu séquito é enunciar um dever, uma autorização. Ao mesmo tempo não se pode pertencer ao séquito de outra forma, donde dizemos que há, também, uma proibição. Não se deve, ainda segundo a ordem carismática, haver hierarquia entre os vocacionados. Devem estes, porém, permanecer subordinados ao líder.

            O processo de produção legislativa também é constituído por normas, ou melhor, pela norma segundo a qual deve-se obedecer à decisão do líder carismático para o caso específico em questão, seja esta decisão qual for. "Sin embargo, en su aspecto material rige en esta dominación carismática genuina la frase: ‘estaba escrito, pero yo en verdad os digo" (Weber, 1997: 195).

            O fundamento de validade da ordem normativa carismática é, então: "deve-se obedecer a um determinado indivíduo que possui dotes extra-cotidianos" e sua constituição prescreve pelo menos: "o líder pode por qualquer norma seja geral ou individual, de acordo com o procedimento que considerar conveniente. O corpo administrativo será formado por pessoas chamadas diretamente pelo líder carismático."

            Weber apresenta um outro tipo de dominação que geralmente é deixado de lado, a saber, a dominação fundada na crença na racionalidade de certos valores, ou melhor, no caráter absoluto dos mesmos. Esta forma de dominação difere da forma chamada de racional legal porque na primeira se crê na racionalidade de um valor, e, na segunda, na racionalidade de uma forma da ordem normativa.

            Segundo Weber:

            O tipo mais puro de uma validade com relação a fins é o "direito natural". Qualquer que tenha sido a sua limitação frente a suas pretensões ideais, não pode negar-se entretanto, a influência efetiva e não insignificante dos seus preceitos logicamente deduzidos sobre o comportamento, os quais temos de separar dos preceitos revelados, dos estatuídos e dos direitos tradicionais (Weber, 2001: 429).

            Esta forma de fundamentação normativa aceita, única e exclusivamente, o princípio estático para a dedução de normas válidas a partir da norma fundamental. Talvez seja isto que praticamente inviabilize sua efetivação como uma ordem jurídica. Seu fundamento de validade é simples: deve-se obedecer a determinado preceito. E sua constituição: pode-se deduzir logicamente, como do geral para o particular, novas normas a partir do preceito entendido como racional.

            De fato, a validade aqui se funda na crença (ou fundamento de validade) de que se obedecer à razão e de que a razão pôs determinada norma. No entanto, como a razão não é volição, a não ser que se entenda haver uma autoridade competente para dizer qual é a vontade da razão, ou melhor, um corpo de "sábios" ou "cientistas" que fossem capazes de deduzir, com base na razão, as normas gerais e individuais deste ordenamento. Isto porque a razão não pode ser erigida em autoridade legislativa, o que implicaria em que houvesse um órgão que arroga-se para si a tarefa de legislar em nome da razão, o que redundaria na aceitação de um princípio dinâmico de produção normativa.

            A moral dos indivíduos é, parece-me, em grande parte baseada em uma fundamentação deste tipo. Assim, se não encontra expresso em um ordenamento social mais amplo, esta dominação de "direito natural" ainda é muito útil para a compreensão da ação. Por exemplo, o princípio segundo o qual a vida humana deve ser preservada serve, para muitos, como uma norma pressuposta da qual se derivam muitas outras, como: não se deve aceitar a guerra de conquista; a eutanásia; o aborto; etc. Uma sociologia compreensiva, já por isso, não abriria mão desta forma de fundamentação. Isto sem mencionar que muitos dos movimentos sociais contemporâneos se baseiam em fundamentos do mesmo tipo, como os movimentos ecologistas (deve-se proteger a natureza) e feminista (não deve haver supremacia de gênero).

            Por fim, a última forma de estabelecer a validade de um ordenamento normativo apresentada por Weber é a crença na legalidade de uma ordem posta arbitrariamente, ou melhor, deliberadamente. "A forma de legitimidade mais corrente é a crença na legalidade: a obediência a preceitos jurídicos estatuídos segundo o procedimento usual e formalmente corretos." (Weber, 2001: 429).

            Esta forma de legitimidade, assim como as demais, assenta-se na crença em uma validade, ou uma norma, e tem estabelecido o processo de produção normativa. As normas, nesta forma, são sabidamente arbitrárias e mutáveis, o processo de sua formação é claro e evidencia que os produtores de normas são indivíduos. Portanto, enquanto princípio de validação prevalece com relação a esta forma de legitimidade, o princípio dinâmico.

            Weber indica algumas idéias que estariam na base desta forma de dominação, chamada de dominação racional-legal, ou, simplesmente, legal:

            1.- Que todo derecho, "pactado" u "otorgado", puede ser estatuido de modo racional – racional con arreglo a fines o racional con arreglo a valores (o ambas cosas) –, con la pretensión de ser respetado, po lo menos, por los miembros de la associación (...) 2- Que todo derecho según su essencia es un cosmo de reglas abstratas (...), que la judicatura implica la aplicación de esas reglas al caso concreto; y que la administración supone el cuidado racional de los intereses previstos por las ordenaciones de la asociación (...) 3- Que el soberano (...), en tanto que ordena y manda, obedece a su parte al orden impersonal (...) 4- Que el que obedece solo lo hace en cuanto miembro de la asociación y solo obedece "al derecho"(...) 5- (...) Que los miembros de la asociación, en tanto que obedecen al soberano, no lo hacen por atención a su persona, sino que obedecen a aquel orden impersonal; y la competencia limitada, racional y objetiva, a él otorgada por dicha orden. (Weber, 1997: 174).

            Nesta passagem encontramos mesclados o fundamento de validade e normas constitucionais – lembro que uso o termo no sentido kelseniano. É quando Weber analisa a forma de dominação do direito moderno que percebemos sua abordagem ultrapassar a de Kelsen no que tange ao fundamento de validade. Este autor afirma ser o fundamento de validade de uma ordem jurídica o pressuposto de que sua constituição é válida, mas, apesar de definir a constituição como as normas que definem a produção normativa, Kelsen deixa a impressão de que tais normas seriam aquelas postas pela constituinte, pelo legislador e pelo costume apenas. Seu intento é não recorrer a nada extra-jurídico. Por dar-se a liberdade de fazê-lo, Weber pode encontrar outras normas que são também pressupostas válidas e, por isso, podem ser entendidas como normas constitucionais.

            É certo que de fatos não decorrem normas, mas na medida em que aceitamos o conceito Kelseniano de sociedade como uma ordem normativa, é perfeitamente possível que a ordem jurídica encontre fundamentação em normas da ordem social. Note-se que quando Kelsen fala do fundamento de validade, afirma que este é uma norma pressuposta segundo a qual se deve obedecer à constituição. Esta é um conjunto de normas acerca da produção e aplicação de normas. Portanto o fundamento de validade é a crença (ou pressuposição) de que um determinado conjunto de normas é válido. Weber afirma, e é plausível, que a dominação racional legal assenta-se na crença nos seguintes elementos: a) racionalidade da forma jurídica; b) limitação dos poderes do soberano; c) limitação da submissão do súdito. Estas crenças seriam já partes da constituição, bastando que, sabendo que são crenças normativas, sejam expressas no imperativo: a) a forma jurídica deve ser racional; b) o poder do soberano deve ser limitado e c) a submissão deve ser limitada. Quando se diz que a forma jurídica deve ser racional estão contidas duas idéias básicas: 1- deve ser objetiva, claramente expressa, de modo compreensível e 2- deve ser relativamente estável, transformando-se de uma maneira claramente posta anteriormente.

            Se expressarmos estas crenças normativas em sentenças negativas teremos que: a) Não se deve obedecer a uma ordem jurídica pessoal, imprevisível ou incompreensível; b) não se deve obedecer a um soberano absoluto e c) não se deve obedecer de maneira absoluta e incondicional.

            Estas são três normas básicas da constituição do Direito moderno e o fundamento de validade é uma norma pressuposta que afirma ser esta constituição devida. No entanto não são normas jurídicas, mas fazem parte de outros ordenamentos normativos. Assim, a ética protestante não admite a submissão incondicional senão a Deus e o ordenamento do chamado "mercado" exige estabilidade. Não afirmo que são estes ordenamentos que fundamentam o Direito, mas que o Direito, enquanto um ordenamento social, se entrelaça com outros.

            Assim, diríamos que se deve obedecer a uma norma individual porque posta de acordo com a lei geral, deve-se obedecer à constituição porque ela é racional e "não-absoluta" e deve-se obedecer a ordens formalmente racionais e não absolutas.

            Cumpre observar, por fim, que a crença (normativa) que constitui a norma fundamental pode ser encontrada em diferentes etapas de uma ordem normativa. O filho que perguntara por que devia ir à escola poderia obter como resposta a de que seu pai havia ordenado e, ao questionar a razão de obedecer ao pai, poderia já ouvir a resposta de que não cabe indagar a validade desta ordem. Assim, a delimitação de uma ordem normativa pode ser arbitrária, ou melhor, a definição de ordem normativa como um sistema de normas vinculadas por um mesmo fundamento de validade comporta também qualquer subsistema, bastando que se pressuponha uma outra norma como norma fundamental.

            Enfim, a norma fundamental pressuposta é a crença na validade de uma ordem. Tal crença é conteúdo de sentido das ações humanas, e, enquanto tal, objeto de estudo de uma sociologia histórica e compreensiva.

            A "teoria Pura da Sociedade".

            A sociedade é algo distinto dos indivíduos, mas criado por eles. A sociedade não é um dado, mas um artefato que de alguma forma é elaborado pelos indivíduos humanos.

            Constitui um fato fundamental o de que, quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que uma determinada conduta é justa ou boa e uma outra é injusta ou má, ou seja, de que os membros do grupo, sob determinados condições, se devem conduzir por determinada maneira, e isto num sentido objetivo, por tal forma que o indivíduo singular que num caso concreto deseje uma conduta oposta e de fato se conduza conforme seu desejo tem consciência de não se ter conduzido como se deve conduzir. Isto significa que, na consciência dos homens que vivem em sociedade, existe a representação de normas que regulam a conduta entre eles e vinculam os indivíduos. (Kelsen, 2000: 92).

            Uma teoria "pura" da sociedade seria, conforme a analogia que pretendo realizar, uma teoria que não estaria voltada para a descrição e explicação do funcionamento da mente humana, nem do mecanismo que criou a sociedade, nem tampouco com o comportamento humano concreto. A forma como se criam os conteúdos de sentido não é seu objetivo, mas sim os próprios conteúdos de sentido. A forma como os homens se orientam pelos sentidos também não o é. Apenas os próprios conteúdos de sentido figurariam como objeto de estudo de uma tal teoria.

            Assim é que Kelsen, ao analisar que chama de "ordens normativas" não faz, necessariamente, referência à conduta efetiva de homens, mas sim aos conteúdos de sentido, descrevendo-o segundo os princípios lógicos. Kelsen formulou sua teoria, ao menos em grande parte, de maneira suficientemente abstrata, de modo que muito daquilo que o autor fala acerca do Direito se aplicaria à sociedade enquanto uma ordem normativa. Buscarei apresentar as idéias que julgo ser úteis para a descrição e explicação da sociedade, enquanto ordem normativa.

            Dinâmica "social".

            É importante que, antes de mais, se defina o conceito de sociedade:

            A sociedade, como objeto de uma ciência social normativa, é uma ordem normativa da conduta dos homens uns em face dos outros. Estas pertencem à sociedade na medida em que a sua conduta é regulada por uma tal ordem, é prescrita, é autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando autorizada, ou é positivamente permitida por essa ordem. Quando dizemos que uma sociedade determinada é constituída através de uma ordem normativa que regula a conduta recíproca de uma pluralidade de indivíduos, devemos ter consciência de que ordem e sociedade não são coisas diferentes uma da outra, mas uma e mesma coisa, de que a sociedade não consiste senão nesta ordem e de que, quando a sociedade é designada como comunidade, a ordem que regula a conduta recíproca dos indivíduos é, no essencial, o que há de comum entre esses indivíduos. (Kelsen, 2000: 96).

            Assim como o Direito, a sociedade é uma ordem normativa. Enquanto tal é o entrelaçamento de elementos (crenças e fatos) segundo o princípio da imputação (43). Uma ciência desta sociedade visa descrevê-la de forma clara e não contraditória e, portanto, assume-se o princípio da não-contradição.

            Como aqui se trata de trazer idéias formuladas sobre o Direito para um objeto mais amplo, exporei tais idéias de forma mais breve, apenas apontando pontos que penso ser de mais difícil aplicação daquelas idéias.

            Diferentemente do Direito, a sociedade não é redutível a apenas uma ordem normativa ou um fundamento de validade. É, antes, um complexo não apenas de normas, mas de ordens normativas. Portanto, não cabe buscar uma "norma fundamental da sociedade".

            Aquele que tem como objetivo descrever este complexo de ordens normativas, de forma clara e precisa as ordens normativas que considere necessárias. Para tanto, uma vez que uma ordem normativa é um conjunto de normas que compartilham o mesmo fundamento de validade, basta que se identifique as diferentes normas, e tal se faz pondo em questão a validade das normas.

            A norma fundamental é a crença na validade de uma ordem. Esta crença torna a norma que é seu objeto o ponto inicial numa série de imputação. Este ponto, no entanto, é arbitrário, uma vez que não há qualquer razão para não se indagar a validade das ordens de Deus ou da Constituição. Assim sendo, ao "cientista social normativo" caberia identificar critérios a partir dos quais tomar uma crença normativa como norma fundamental. Em geral, me parece, as "constituições" são de identificação mais clara. Assim, as regras acerca de quem é, como deve agir e o que e como pode legislar o chefe de família, de uma religião, de um grupo de amigos, de uma ONG ou de um Estado indicam que se crê na validade das normas postas em sua conformidade.

            Se tomarmos, por exemplo, ema determinada escola, pode ser que o aluno deva obedecer às ordens da professora, da orientada e dos funcionários; e estes devam obedecer à coordenadora, assim como a professora e a orientadora; a professora pode dever obedecer também a orientadora. Isto segundo o princípio dinâmico, e de forma bem simples. Mas nenhum dos que podem comandar estão autorizados a, por exemplo, ferir um aluno, além de estar limitados a comandar acerca de determinado tema, ou limitados a um espaço ou tempo. Pode ser que a professora ordene que não se diga determinadas palavras tidas por insultos. Pode bem ser que também a mão de um determinado aluno tenha ordenado a mesma norma, bem como o padre, o personagem de desenhos animados (herói), etc. Ainda que diante do comportamento correspondente dos alunos, há de se levar em consideração que de um dever não decorre um ser, e que a correspondência não se aplica pela ordem.

            Se voltarmos a atenção para o indivíduo teremos a situação de "obrigatoriedade" da norma. No entanto, enquanto "pura" teoria da sociedade, o estudo volta-se para as próprias normas, e as normas postas pela mãe e pela professora não são entendidas como idênticas. Não se deve falar determinada palavra porque a professora ordenou, não é equivalente a não se deve falar determinada palavra porque a mãe mandou. O conteúdo da norma inferior é o mesmo, mas não a fundamentação da mesma. Segundo Kelsen uma revolução pode revogar apenas a Constituição sem revogar as leis inferiores, no entanto, a recepção de tais leis, ainda assim, constitui criação normativa.

            Em regra, por ocasião de uma revolução destas, somente são anuladas a antiga constituição e certas leis politicamente essenciais. Uma grande parte das leis promulgadas sob a antiga constituição permanece, como costuma dizer-se, em vigor. No entanto, esta expressão não é acentuada. Se estas leis devem ser consideradas como estando em vigor sob a nova constituição, isto somente é possível porque foram postos em vigor, expressa ou implicitamente, pelo governo revolucionário. O que existe, não é uma criação de Direito inteiramente nova, mas recepção de normas de uma ordem jurídica por uma outra; tal como, e.g., a recepção do Direito romano pelo Direito Alemão. Mas também essa recepção é produção de Direito. (Kelsen, 2000: 233).

            Assim, quando se vale da identificação de normas fundamentais para distinguir diversas ordens normativas, deve-se ter em conta que não se trata de separar as normas em ordens normativas, mas de identificar as normas que são derivadas de cada norma fundamental.

            Um segundo ponto que creio ser valer a pena destacar é que o princípio estático parece desempenhar papel muito importante nas ordens sociais. Há muitas normas que são sustentadas pela crença na validade de seu conteúdo, e delas se derivam outras mais. Talvez sejam exemplos as normas segundo as quais deve-se agir com os outros como se espera que ajam consigo; deve-se respeitar a vida humana; não se deve demonstrar medo; etc. Estas normas ainda que outrora fundamentadas, por exemplo, pela norma segundo a qual se deve obedecer a Deus parecem ser, hoje, pontos iniciais de séries de imputação.

            Acerca da estrutura escalonada das normas fica o mesmo que foi dito acerca do Direito.

            Estática "Social".

            De fato a norma "você deve ir à escola ou será posto de castigo", é o mesmo que "você será posto de castigo se não for à escola". A norma põe como dever ser uma sanção, condicionada a certo ato ou omissão.

            Uma norma jurídica põe como sanções, penas ou recompensas, mas predominantemente penas. Tais penas são, em geral, privação de bens, da vida, da liberdade ou da saúde. As normas sociais põe como sanções outras penas, já que a ordem jurídica veda que se ponham as penas mencionadas, que ela reserva para si. (a exceção das ordens "ilícitas", que põe mesmo as sanções vedadas pela ordem jurídica).

            É por isso duvidoso que seja sequer possível uma distinção entre ordens sociais sancionadas e ordens sociais não sancionadas. A única distinção de ordens sociais a ter em conta não reside em que umas estatuem sanções e outras não, mas nas diferentes espécies de sanções que estatuem. (...) As sanções estabelecidas numa ordem social têm ora um caráter transcendente, ora um caráter socialmente imanente. Sanções transcendentes são aquelas que, segundo a crença das pessoas submetidas ao ordenamento, provêm de uma instância supra-humana (...) [sanções imanentes] são aquelas que não só se realizam no aquém, dentro da sociedade, mas também são executadas por homens, membros da sociedade (...) tais sanções podem consistir na simples aprovação ou desaprovação, expressa de qualquer maneira, por parte dos nossos semelhantes, ou em atos específicos, determinados mais rigorosamente pelo ordenamento social, o qual designa os indivíduos por quem esses atos são realizados ou postos num processo pelo mesmo ordenamento regulado. Nesta última hipótese podemos falar de sanções socialmente organizadas. (Kelsen, 2000: 31).

            A fim de descrever uma determinada ordem normativa, é necessário que se descreva sob que pressupostos entende-se que qual indivíduo realizará de que forma que ato coercitivo. Assim, também acerca das ordens sociais cabe o conceito de "norma não-autônoma", referindo-se àquela que depende de uma outra que estatua uma sanção.

            Como conceitos auxiliares da ordem jurídica tem-se o conceito de direitos subjetivos (ou reflexos), deveres jurídicos e pessoa jurídica – que em Kelsen não se distingue da pessoa física. Tais conceitos, se tomados para o âmbito da sociedade seriam próximos ao que se costuma chamar "papel social". A diferença é que este último em geral se refere ao desempenho de uma "função social" que de alguma forma é necessária à sociedade. Entendida como uma ordem normativa uma sociedade não tem "necessidade". Ela não vive, e sequer se mantém. Não passa de um imenso complexo de conteúdos de sentido, não morre e não vive, e, se deixa de ser "válida", ainda pode ressurgir.

            O papel social é um conjunto de funções ou atribuições de um indivíduo frente a uma determinada instituição. O linguajar de Kelsen é bastante mais preciso e claro quando define a pessoa (jurídica) como o conjunto de direitos subjetivos (reflexos) e deveres (jurídicos) que têm como ponto terminal da série imputativa a conduta de um indivíduo ou corporação (o que redundaria no mesmo a não ser porque a determinação do indivíduo sujeito de cada dever ou direito é delegada à corporação). E define o direito subjetivo como o reflexo de um dever jurídico e este como nada mais do que a descrição de uma norma individual.

            Um determinado indivíduo classificado por um ordenamento normativo como "Padre", por exemplo, tem o dever de manter-se celibatário, de participar de certas reuniões, de atender os fiéis, e tem o direito de, por exemplo, por exemplo, receber um salário ao fim do mês, de um repouso semanal às segundas-feiras, de fazer o sermão nas missas ou de celebrar a mesma missa.

            No entanto, como a sociedade não é apenas uma mas várias ordens normativas, a conduta de um mesmo indivíduo corresponde a inúmeras "pessoas" (no sentido jurídico), uma para cada ordenamento que incida sobre a mesma conduta. Assim, tem determinados direitos e deveres segundo um ordenamento, como, digamos, a família, tem outros direitos e deveres segundo sua profissão, segundo seu grupo de amigos, segundo os costumes da vizinhança, segundo o Estado, a Igreja, etc.

            Cumpre agora notar que por "relação social", assim como "relação jurídica" seria entendia a relação entre normas sociais e entre ordens normativas. Não seria propriamente uma relação entre indivíduos que se orientam por um conteúdo de sentido (crenças e normas) mas sim relações entre os próprios conteúdos de sentido. Isto, é claro, do ponto de vista de uma "Teoria Pura da Sociedade".

            Do ponto de vista de uma ciência do Direito que descreva o ordenamento jurídico em proposições jurídicas, a função daquele ordenamento consiste em ligar a certos pressupostos, por ele determinados, um ato de coerção, por ele igualmente fixado, como conseqüência (...) A relação matrimonial, por exemplo, não é um complexo de relações sexuais e econômicas entre dois indivíduos de sexo diferente que, através do Direito, apenas recebem uma forma específica. Sem uma ordem jurídica não existe algo como um casamento. O casamento como relação jurídica é um instituto jurídico, o que quer dizer? um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos no sentido técnico específico, que, por sua vez, significa: um complexo de normas jurídicas. (Kelsen, 2000: 162, 187).

            Da mesma forma, aquele que se volta para a descrição da sociedade como ordem normativa descreveria uma relação social como um conjunto de normas relacionadas, "determinando" a conduta de um ou mais homens, sento tais normas pertencentes ou não a um mesmo ordenamento jurídico. Para a descrição dos conteúdos de sentido não é necessária uma referência direta à ação dos indivíduos. Pode-se ainda descrever relações entre tais conteúdos sem esta referência, de modo que o estudo da sociedade e o estudo do comportamento dos homens em relação uns com os outros são duas coisas distintas.

            Quanto à interação entre normas de ordenamentos diferentes cabe dizer que não há contradição possível entre elas. A afirmação segundo a qual "A" deve fazer "a" segundo o ordenamento "" não é contraditória com uma outra segundo a qual "A" não deve fazer "a" segundo "". O dever ser de uma norma é válido pela aceitação de uma norma que a fundamente, em última instância esta norma é pressuposta. Podem-se pressupor várias normas. Assim, a validade de uma norma é relativa ao ordenamento de que se trata, ou ainda, o "dever ser" é sempre "dever ser segundo uma ordem". Portanto, não há contradição possível entre normas de ordenamentos diferentes (tais ordenamentos são não-contraditórios apenas internamente), há apenas conflitos entre normas que, apesar de ser um problema interessante para a compreensão da ação, do comportamento e do pensamento humanos, não o é para um conhecimento dirigido ao sentido das ordens sociais, uma vez que a impossibilidade de contradição inviabiliza o estudo lógico destes conflitos no plano de seus conteúdos. Uma teoria pura da sociedade enquanto complexo de ordens normativas é absolutamente incapaz de solucionar conflitos entre normas de ordenamentos diferentes, mas é perfeitamente capaz de identificar sua existência.

            Kelsen, ao diferenciar a ciência social normativa da sociologia, estabelece que aquela é a ciência que estuda os conteúdos de sentido criados pela mente humana e que servem para orientação da mesma. Já a psicologia teria por objeto de estudo a própria mente humana, seus mecanismos e processos, causalmente determinados. Uma teoria pura da sociedade, portanto, analisa o conteúdo de sentido criado pela mente humana, não a ação humana e nem tampouco a própria mente humana. Em analogia com a teoria pura do direito, a da sociedade tem por objetivo descrever e explicar as diferentes ordens sociais enquanto sistemas de conteúdos de sentido não-contraditórios (internamente) (44) que interferem uns nos outros, seja por um conflito de normas, seja por normas que se reforçam.

            Esta postura, no entanto, é alheia ao estudo do indivíduo. Volta-se apenas para os conteúdos de sentido. É, para uma ciência que estuda o comportamento humano, algo semelhante a uma gramática para uma que estude a linguagem. sua precisão e objetividade (buscadas) implicam na limitação do objeto e, portanto, da capacidade explicativa.

            Porém, um conhecimento assim construído pode ser de alguma valia para uma teoria da ação social, na medida em que a descrição de uma relação social enquanto relação de conteúdos de sentido normativos sirva para esta teoria como "tipos ideais" que auxiliam a compreensão.

            Uma teoria da ação.

            A ação social.

            A sociologia weberiana é uma ciência da ação, não tanto uma ciência da "sociedade". Pretendo aqui mostrar que na visão de Weber a ação social supõe um sentido, e que este sentido seja dirigido a outrem. Esta ação social se "orienta" por "ordens sociais", que, a meu ver, nada mais são do que sistemas de conteúdos de sentido, conforme o conceito kelseniano. Afirmar isto não é, para Weber, explicar a ação social, uma vez que resta explicar a influência dos fatores irracionais da ação e de certos interesses individuais que entram no "cálculo" racional.

            O que segue no trabalho é uma tentativa de exposição do pensamento weberiano acerca da explicação da ação, durante a qual tentarei mostrar que a teoria pura da Kelsen poderia oferecer uma valiosa ajuda à empreitada da sociologia compreensiva. A idéia é, basicamente, a seguinte: Kelsen trata apenas dos conteúdos de sentido, como sistemas logicamente compreensíveis, enquanto que Weber trata da ação social, que se orienta por conteúdos de sentido. Penso que a teoria pura de Kelsen é abarcada pela sociologia compreensiva.

            A respeito do conceito de "ação social" em Weber, há duas características essenciais: em primeiro lugar, ela se dirige ou se orienta à ação ou comportamento de outrem, e, em segundo lugar, é dotada de sentido.

            Eis como se expressa o autor:

            A ação social (incluindo tolerância ou omissão) orienta-se pelas ações dos outros, as quais podem ser ações passadas, presentes ou esperadas como sendo futuras (por exemplo: vingança por ataques anteriores, réplica a ataques presentes, medidas de defesa diante de ataques futuros). (Weber, 2001: 415).

            A primeira condição para que se identifique um determinado comportamento humano como uma ação social é ser ele orientado pela conduta de outrem. Não tem, porém, de ser relacionado de alguma maneira física necessariamente. Pode um indivíduo armar-se por esperar que outro planeje contra ele um ataque sendo que este outro sequer o conheça. Esta ação, no entanto, mesmo não sendo fisicamente relacionada à outra conduta, tem um sentido que o é. E esta é a segunda condição para afirmar que um comportamento humano é uma ação social: ter um sentido. Assim, o choque entre dois ciclistas distraídos, por não ter qualquer sentido, não é ação social. Pode, no entanto ganhar sentido após o fato, como quando um dos indivíduos atribui ao outro uma responsabilidade pelo acontecido (cf. Weber, 2001: 415).

            Assim definida, uma "ação social não é idêntica a) nem a uma ação homogênea de muitos, b) nem a toda ação de alguém influenciada pelo comportamento dos outros." (Weber, 2001: 416). Os exemplos dados pelo autor são bastante ilustrativos: se numa rua vários indivíduos abrem o guarda-chuva ao mesmo tempo, isto não quer dizer que haja aí uma ação social (Weber, 2001: 416), uma vez que, mesmo juntos, o sentido da ação de um não se orienta em função do outro. Seria diferente, por exemplo, se um homem, por entender-se na obrigação cavalheiresca de oferecer ajuda a uma dama, abrisse e oferecesse a ela o guarda-chuvas. O segundo caso que Weber afirma não tratar-se de ação social é o comportamento imitativo, e que muitas vezes se dá no comportamento de massas (Weber, 2001: 416).

            Escreve o autor:

            O simples fato, porém, de que alguém aceite para si uma determinada atividade, apreendida em outros e que parece conveniente para seus fins, não é uma ação social na nossa acepção. Pois neste caso, a ação não se orientou pela ação dos outros, mas, pela observação, alguém se deu conta de certas probabilidades objetivas que, em seguida, orientaram seu comportamento. A sua ação, portanto, foi determinada causalmente pela ação alheia, mas [não] pelo sentido desta ação alheia. Quando, ao contrário, se imita um comportamento alheio porque está em "moda" ou porque é tido como "distinto" enquanto estamental, tradicional, exemplar ou quaisquer motivos semelhantes, então sim, temos uma relação de sentido no que se refere ã pessoa imitada, a terceiras pessoas ou a ambas. (Weber, 2001: 416).

            Portanto, a ação social é uma ação com sentido orientada à conduta de outrem. Weber apresenta, então, o que chama de "razões que definem a ação social", ou seja, como o comportamento humano se orienta pelos conteúdos de sentido (se não houver conteúdos de sentido, não é ação social).

            Tipos de ação social – tipos de racionalidade.

            Há, para Weber, quatro tipos de ação social.

            A ação social, como toda ação, pode ser: 1) racional com relação a fins; determinada por expectativas no comportamento tanto de objetos do mundo exterior como de outros homens, e, utilizando essas expectativas como "condições" ou "meio" para o alcance de fins próprios racionalmente avaliados e perseguidos. 2) racional com relação a valores: determinada pela crença consciente no valor – interpretável como ético, estético, religioso ou de qualquer outra forma – próprio e absoluto de um determinado comportamento, considerado como tal, sem levar em consideração as possibilidades de êxito. 3) afetiva, especialmente emotiva, determinada por afetos e estados sentimentais atuais; e 4) tradicional: determinada por costumes arraigados.

            Os dois últimos tipos, a saber, a ação emotiva e a tradicional estão no limite daquilo que se pode chamar de ação "com sentido". Uma ação emotiva tem em geral como fundo da emoção ou afeto em questão um conteúdo de sentido, como o valor da fidelidade está por traz de um ato movido por ciúmes. No entanto, o conteúdo de sentido não é o principal motor da ação. Assim também o comportamento tradicional e o cotidiano encerram conteúdos de sentido mas que são, por assim dizer, automatizados de modo que o hábito mova a ação antes que seu sentido.

            A ação racional com relação a valores é claramente orientada por conteúdos de sentido. Determinados valores são entendidos como absolutos e a ação se orienta por ela, valendo-se do princípio estático de dedução de normas. Este tipo de ação social leva em conta o sentido normativo como algo absoluto, bom por si, de modo que não importam as conseqüências da ação, mas a própria ação.

            Age de modo estritamente racional com relação a valores que, sem considerar as conseqüências previsíveis, se comporta segundo as suas convicções sobre ou referente ao que é dever, a dignidade, a beleza, a sabedoria religiosa, a piedade ou a importância de uma "causa", qualquer que seja o seu gênero. (Weber, 2001: 418).

            Já a ação racional com relação a fins é aquela que, a partir de um determinado objetivo, fim, dado, busca os meios mais adequados para atingi-lo. É, em suma, a adequação técnica dos meios para o fim que se busca.

            Age racionalmente com relação a fins aquele que orienta a sua ação conforme o fim, meios e conseqüências implicadas nela e nisso avalia racionalmente os meios relativamente aos fins, os fins com relação às conseqüências implicadas e os diferentes fins possíveis entre si. Em qualquer caso, pois, é aquele que não age nem afetivamente (sobretudo emotivamente) nem com relação à tradição. Por outro lado, a decisão entre os diferentes fins e conseqüências concorrentes e conflitantes pode ser racional com relação a valores. (Weber, 2001: 418).

            Cada tipo de racionalidade, com relação a fins ou valores, além do comportamento tradicional e afetivo, são, de fato, tipos diferentes de conexões de sentido. Quando o "sociólogo compreensivo" consegue perceber as conexões de sentido de uma certa ação, sejam elas racionais com relação a fins ou valores, ou ainda afetivas ou tradicionais, realiza a interpretação causal, ressaltando que também são tornados em linha de conta as irracionalidade da ação e os fenômenos destituídos de sentido.

            Relação social

            O sentido da ação social, ou melhor, da ação com sentido de um indivíduo orientada para a ação de um outro indivíduo ou indivíduos não é, necessariamente recíproca. Assim, uma ação mutuamente referida não tem, necessariamente, um sentido unívoco.

            Não afirmamos de modo algum que num caso concreto os participantes da ação mutuamente referida ponham o mesmo sentido nessa ação, ou que adotam em sua intimidade a atitude da outra parte, vale dizer, que exista "reciprocidade" nessa acepção do termo. O que num é "amizade", "amor", "piedade", "fidelidade contratual", "sentimento da comunidade racional", pode encontrar-se noutro com atitudes completamente diferentes. Os participantes associam então à sua conduta um sentido diferente: a relação social é assim, para ambos os lados, objetivamente "unilateral". (Weber, 2001: 419).

            De fato, podemos entender uma relação social de duas maneiras: como uma relação entre duas condutas de indivíduos orientadas por um complexo de conteúdos de sentido, o que implica em que, neste caso, haveriam duas relações sociais "unilaterais", uma vez que a conduta de cada indivíduo não está relacionada à do outro mas orientadas por complexos de conteúdos de sentido diferentes. Uma relação social "unilateral" seria, a rigor, uma ação social. Se, no entanto, tomarmos o conceito kelseniano de "relação social", haveria aí uma autêntica relação entre normas, passível ou não, conforme as normas sejam ou não pertencentes à mesma ordem normativa, de descrição sistemática.

            A explicação da ação orientada por complexos de conteúdos de sentido supõe a descrição deste complexo. Weber então, busca teorizar sobre tal complexo identificando o que chama de "ordens" e, também, formulando tipos ideais.

            O costume e as ordens sociais.

            O comportamento, ou melhor, a ação social encontra de fato regularidades. Os mesmos indivíduos repetem uma mesma ação ou muitos indivíduos diferentes perfazem ações idênticas ou com conteúdos de sentido idênticos. Weber denomina a probabilidade desse comportamento como "costume".

            Pelo termo "costume" deve entender-se a probabilidade de uma regularidade do comportamento, de um grupo de homens, quando e em que medida esta probabilidade é dada por seu exercício de fato. O costume deve chamar-se hábito quando o exercício de fato se baseia num enraizamento duradouro. Diferentemente, deve ser denominado como "condicionado" por "situações de interesses" ("condicionado por interesses") quando e em que medida a possibilidade de sua real existência empírica se baseie unicamente no fato de que os indivíduos orientam racionalmente a sua ação em relação a fins por expectativas similares. (Weber, 2001: 421).

            A ação humana não é, portanto, rigorosamente individualizada. Também o próprio sentido desta ação encontra certas regularidades. Costume é, então, um termo genérico, que pode ser subdividido em "hábito" e "condicionamento por interesses". O costume, enquanto "probabilidade de uma regularidade" é, por certo, um elemento da ordem do ser e, como o hábito e o condicionamento por interesses são, nesta terminologia, espécies de costumes, também o são. Enquanto probabilidade, a descrição do costume supõe uma observação empírica que formula regularidades de acordo com o princípio da causalidade: se A é, B é, ou se A é, B, em uma proporção de x/y, é.

            Um costume é a probabilidade de uma regularidade social e subdivide-se em "hábito" e "situação de interesse".

            O hábito é semelhante à convenção e ao direito, que são espécies de "ordens", a não ser por não estar garantido por sanções externas.

            Em oposição à "convenção" e ao "direito", por hábito entendemos uma norma não garantida exteriormente e a qual é observada pelas pessoas "voluntariamente", ou simplesmente "sem reflexão alguma", por "comodidade" ou por outros motivos quaisquer, e cujo provável cumprimento por causa de tais motivos pode ser esperado por parte dos outros homens que pertencem ao mesmo círculo ou grupo. (Weber, 2001: 421).

            Por enquanto temos que o costume é a probabilidade de regularidade de um comportamento. Como espécies de costume temos o hábito e a "situação de interesses". O hábito é uma norma que se difere da "ordem" pela ausência de garantia externa. Uma ordem é, assim, um hábito garantido "exteriormente" ou, na linguagem weberiana, um hábito válido. O autor dá um exemplo de situação de interesse, um de hábito e um de ordem:

            Quando as sociedades ou as firmas encarregadas com o transporte de móveis fazem regularmente publicidade nos jornais referente ao tempo e condições do transporte, estas regularidades são determinadas por situações de interesses. Quando um comerciante-viajante visita os seus clientes de maneira regular em determinados dias do mês ou da semana, isto se deve a um hábito arraigado, ou a uma situação de interesses (rotação de sua zona comercial). Mas quando um funcionário chega diariamente ao seu escritório na mesma hora, isto não ocorre apenas por causa de um costume (ou por causa de um hábito) arraigado, e nem tampouco por causa de uma situação de interesses – que seria possível entender – mas também (pelo menos via de regra) por causa da "validade" de uma ordem (regulamento do serviço), que é considerada como um mandamento cuja transgressão não somente traz prejuízos, mas que (normalmente) é rejeitada devido ao "sentimento de dever" pelo próprio funcionário (dos mais diversos graus possíveis e imagináveis, obviamente). (Weber, 2001: 423).

            Validade é, segundo Weber, a probabilidade de que um comportamento se oriente na "representação da existência de uma ordem legítima" (cf. Weber, 2001: 423). Esta legitimidade é a garantia "exterior" (ao indivíduo) do cumprimento da ordem.

            Há duas espécies de "ordens legítimas": a convenção e o direito. Estas espécies de ordens se distinguem pela existência ou não de um "quadro" coercitivo:

            Uma ordem deve chamar-se: a) convenção: quando a sua validade é garantida externamente pela possibilidade de que, dentro de um determinado círculo de homens, um comportamento discordante deverá encontrar uma (relativa) reprovação geral e praticamente sensível. b) Direito: quando a validade é garantida externamente pela possibilidade da coação (física ou psíquica) que é exercida por um conjunto de indivíduos instituídos com a emissão de obrigar a observância desta ordem ou de castigar e punir a sua transgressão. (Weber, 2001: 426).

            A convenção assim definida fica muito pouco diferenciada do "hábito". Esta diferença reside na garantia externa da convenção, alheia ao hábito. Porém, o próprio Weber admite que também o hábito tem uma certa garantia externa (45), de modo que a diferença seja apenas de grau, referente à intensidade da garantia externa.

            É significativo que a definição da convenção deixe claro ser ela um hábito, e a definição de "direito" apenas acrescente o quadro coercitivo.

            "Convenção" deve chamar-se ao "hábito" que, dentro de um círculo de homens, se considera como válido e que está garantido pela reprovação do comportamento discordante. Em oposição ao Direito (no sentido em que usamos esse termo) falta o quadro de pessoas que está especialmente dedicado a garantir esse cumprimento (...) Para nós, o decisivo no conceito de "direito" é a existência de um quadro coercitivo. (Weber, 2001: 426).

            É característica da ordem legítima o caráter coercitivo, embora os "meios de coação" sejam "irrelevantes". Portanto a ordem legítima diferencia-se do hábito pela coação externa, e diferenciam-se direito e convenção pela existência ou ausência de um quadro de funcionários dedicados à coerção (não é, portanto, a violência física o caráter decisivo aqui (46)).

            Desta forma temos que: o costume pode ser um hábito ou uma "situação de interesses"; um hábito pode ser um hábito propriamente dito ou uma ordem legítima. E uma ordem legítima pode ser um direito ou uma convenção.

            Estas definições diferem em larga medida dos conceitos kelsenianos, que definem o direito como ordem normativa, que são "conteúdos de sentido". Po outro lado, Weber afirma que a "ação social se orienta unicamente em ‘ordens’ " (Weber, 2001: 424).

            Segundo Weber, pode-se entender uma "regra" de dois modos diversos, como lei da natureza ou como juízo de valor:

            Por "regra" podem ser entendidas, em primeiro lugar: 1) afirmações gerais sobre conexões causais, "leis da natureza" portanto. (...) Por "regra", podemos entender também uma "norma" (2) na qual serão medidos acontecimentos atuais, passados e futuros no sentido da "emissão de um juízo de valor". (...) No segundo caso, a "vigência" de uma regra significa um postulado imperativo geral, cujo conteúdo é a própria norma. No primeiro caso, a "vigência" de uma regra significa apenas a pretensão à "validade" da afirmação de que a respectiva regularidade fática está "dada" e presente efetivamente na realidade empírica ou que seja deduzível via generalização. (Weber, 2001: 233,234).

            Em uma discussão com Stammler, que afirmava que o comportamento de Robinson Crusoe em seu isolamento, na medida em que buscava poupar recursos e agia conforme padrões econômicos de conduta, se tratava de uma mera técnica e não da observação de normas, Weber faz uma nítida distinção entre uma ação que se orienta em normas e uma ação que se oriente em uma percepção de reações causalmente determinadas, ainda que acerca da conduta de outros indivíduos humanos. (cf. Weber, 2001: 233 ss.). Assim, o comportamento das máquinas em uma indústria se dá em conformidade com regras em um sentido diferente daquele do comportamento dos operários.

            Neste último caso talvez seja a "coerção psíquica que faz com que o operário obedeça a ordem do mecanismo global, ou seja a "idéia" de que seja expulso da fábrica no caso em que ele não obedeça "regras estabelecidas para o trabalho", ou imaginar a carteira vazia frente à família que passa fome, etc. é, ainda eventualmente, talvez provocada por outras "imaginações" e idéias, de natureza ética, por exemplo, ou pelo simples costume. (Weber, 2001: 235).

            Weber não admite uma explicação da ação humana que não leve em conta suas conexões de sentido. Mesmo o comportamento de Robinson Crusoe não pode ser explicado sem qualquer referência a sentidos orientados à conduta de outrem, uma vez que ele se orienta em uma ordem, no caso, uma ordem de conduta econômica que é constituída também por um conjunto de conteúdos de sentido.

            A compreensão de uma ação social é a apreensão de suas conexões de sentido, e "conteúdos de sentido" de uma relação social podem ser "a) uma ‘ordem’ apenas no caso em que a ação se orientar em máximas claramente dadas. b) "validade" desta ordem quando (...) sejam vistas como obrigatórias ou como modelos do comportamento" (Weber, 2001: 423).

            Portanto, com o intuito de estabelecer as "conexões de sentido" de uma ação, cumpre conhecer os "conteúdos de sentido" envolvidos, que constituem "ordens" e estabelecem, como dito anteriormente, uma "luta de motivos" da ação.

            A metodologia da sociologia compreensiva consiste, basicamente, na construção de tipos ideais que servem de parâmetro para apreciação da ação concreta de modo a encontrar, nesta, outros determinantes da ação que a "desvia" do tipo idealmente criado.

            Se tomarmos a teoria kelseniana como uma teoria das ordens normativas, que são sistemas de conteúdos de sentido, talvez fosse viável que ela servisse ao pensamento weberiano precisamente enquanto um tipo ideal, ou uma forma de construção de tipos ideais. Kelsen fornece uma teoria capaz de descrever, de forma "pura", ordens normativas e, se supormos uma conduta em perfeita harmonia com tal ordem, teríamos um tipo ideal.

            Uma ordem normativa, no sentido kelseniano (que está bastante próximo ao weberiano, a não ser pela vinculação que este autor faz com a regularidade probabilística do comportamento fático), pode ser utilizada proveitosamente por uma tal sociologia como uma construção ideal típica, ou como um instrumento para tal construção.

            Que Robinson e o capitalista, dos quais falamos, apresentem um certo comportamento concernente aos bens materiais e às reservas em dinheiro, da maneira que este comportamento se nos apresenta, aparentemente, como um comportamento "que se baseia em regras", pode ser para alguém o motivo para formular teoricamente aquela "regra" que, na nossa opinião, pelo menos parcialmente, possui influência determinante sobre aquele comportamento: como o "princípio do uso máximo possível de racionalidade", por exemplo. Esta regra ideal, neste caso, contém uma afirmação doutrinal teórica sobre aquilo que é o conteúdo da "norma", conforme a qual Robinson "deveria" proceder se ele pretende, como tal, observar o ideal de um "agir racionalmente orientado pelo fim". Ao lado disso, podemos tratá-la como um "padrão de avaliação". Obviamente não se trata de uma avaliação no sentido "ético", mas "teleológico" que pressupõe como um "ideal" a ação "racionalmente orientada por um fim". Mas, por outro lado, e de maneira destacada, ela funciona também como um princípio heurístico, para que se consiga perceber na ação empírica de Robinson o efetivo condicionamento causal – se pressupomos ad hoc a existência real de semelhante indivíduo. Neste último caso, ela serve como construção "ideal-típica", e nós, a usamos como hipótese cuja comprovação deveria ser "verificada" nos "fatos". Desse modo, ajudar-nos-ia apreender a causalidade efetiva do seu agir e o grau de aproximação ao "tipo ideal". (Weber, 2001: 238) (47)

            Neste sentido, a Teoria Pura do Direito, ou das Ordens Normativas, serviria à sociologia compreensiva na medida em que separa as diferentes ordens normativas de maneira lógica e sistemática, por meio da norma fundamental, e descreve, também de maneira rigorosamente lógica as diferentes ordens, através da estrutura escalonada das normas, dos princípios estático e dinâmico e dos conceitos da "Estática Jurídica" que permitem mesmo chegar à relação jurídica como uma relação entre normas. A pureza lógica destas construções poderia ser fértil fonte de construtos ideal-típicos de conexões de sentido a ser utilizados por aquele que busca explicar a ação.

            Assim, por exemplo, a teoria poderia ajudar a descrever uma ordem normativa ancorada na idéia de que se deve obedecer a Deus, que instituiu determinados mandamentos, distinguindo-a da ordem normativa ancorada na idéia de que se deve obedecer ao Patriarca. Distinguiria, assim, com uma pureza não encontrada na realidade, o Catolicismo e o Patriarcalismo, por exemplo, ou poderia ajudar a notar, talvez, quais são precisamente os pontos de entrelaçamento entre ambas ordens sociais. Acerca dos conceitos de "pessoa jurídica" ou de "relação jurídica" penso que talvez também sirvam para a construção de tipos ideais.

            Por certo que a descrição e explicação lógica de uma ordem não é sinônimo de explicação da ação, uma vez que o indivíduo pode orientar-se por uma ordem seja para agir em conformidade, seja para agir em desconformidade com ela; pode orientar-se de maneira racional com relação a valores, de modo a tomar como absolutas as normas de uma ordem; pode orientar-se de maneira racional com relação a fins, de modo a tomar certos objetivos (conteúdos de sentido) estipulados em uma ordem e buscá-los em conformidade com a racionalidade instrumental; pode, enfim, o indivíduo, ter sua ação determinada por uma multiplicidade de fatores de determinações causais que a ordem, por certo, não contempla.

            Há, por fim, uma diferença de perspectiva entre Kelsen e Weber. Kelsen volta seu estudo para as normas, para o dever ser, desvinculando-o do plano empírico e abstendo-se de prescrever um ideal, ou melhor, abstendo-se de especulações metafísicas, como ele afirma, acerca de como deveria ser o dever ser. Weber volta-se para o estudo da ação social, que é orientada por (e criadora de) conteúdos de sentido. Assim como não há contradição possível entre ser e dever ser, não há contradição possível entre a descrição de um e a de outro e, portanto, não há contradição possível entre Kelsen e Weber.

            Resta, por fim, a dificuldade de encontrar a origem dos conteúdos normativos de sentido que, de fato, existem de alguma forma nas mentes humanas. A este respeito, penso ser adequado pensar, valendo-se de uma breve sugestão de Kelsen, em um "fato fundamental", análogo à "norma fundamental". Este "fato fundamental" seria o "fato pressuposto" de que, "quando os homens vivem em comum num grupo, surge na sua consciência a idéia de que (...) se devem conduzir por determinada maneira, e isto num sentido objetivo". (Kelsen, 2000: 92).

            Tem-se, portanto, em Kelsen uma teoria da sociedade, entendida como um complexo de conteúdos de sentido e, em Weber, uma teoria da ação social, enquanto ação empírica orientada por um sentido. Tratam-se de objetos diferentes e, por isso, não são incompatíveis e, na medida em que a teoria weberiana é mais ampla, é capaz de absorver a contribuição da teoria pura de Kelsen e dela valer-se para a construção de seus tipos ideais. (48)


Conclusão

            A Teoria Pura do Direito foi desenvolvida relativamente há muito pouco tempo, mas já nasceu recebendo críticas por seu "reducionismo" de modo que é entendida, de maneira geral, como uma teoria "ultrapassada". A influência que exerceu na teoria do Direito parece ter sido grande, no entanto. Todos os autores a citam. Conceitos como o de pessoa jurídica ganharam sua marca e idéias como a de que os "direitos reais" não são direitos sobre coisas, mas a obrigação de todos frente a apenas um foram quase que unanimemente acatadas. Por outro lado, a marca de reducionista ainda é amargada por esta teoria.

            Que Kelsen "reduz" o Direito à um sistema de normas não há qualquer dúvida, mas há, por certo, no que diz respeito a ser isso um equívoco.

            Juristas afirmam, como Miguel Reale e Roberto Lyra Filho, que Kelsen perdeu em sua teoria duas dimensões essenciais do Direito: a dimensão fatual e a valorativa. Ao analisar o Direito como um sistema de normas sem referência à sua realidade social, Kelsen retirou dele a Sociologia. Ao não considerar a dimensão valorativa, retirou o que chama de "especulações metafísicas" ou "debates políticos".

            O Direito, no entanto, segundo dizem, seria um "fato social", seria parte da sociedade e deveria, por isso, ser estudado em suas "relações" com a mesma. (Sociedade é aqui entendida, basicamente, por um grupo relativamente grande de seres humanos em determinado espaço e tempo). Além disso, as normas jurídicas seriam a positivação de valores sociais, que são de alguma forma nascidos nas "relações sociais" ou "lutas de classes".

            Como a sociologia estuda estes fatos sociais, estas lutas de classes e estas relações sociais, é uma disciplina essencial ao Jurista e configura quase que a antítese da Teoria Pura do Direito de Kelsen.

            Procurei mostrar, ao longo deste trabalho, que esta oposição entre Kelsen e a sociologia decorre de que Kelsen assume uma postura de distinção entre ser e dever ser e a sociologia é entendida como uma disciplina capaz de revelar o dever ser real, correto ou justo, a partir de uma análise científica de fatos da ordem do ser, além de ser capaz de encontrar fatores sociais que explicam como e porque Kelsen formulou sua teoria, sendo ela própria uma espécie de dever ser (ideologia) que se podia explicar por fatos da ordem do ser.

            Se a sociologia efetivamente pudesse fazê-lo, haveria razão em contrapô-la à teoria pura do direito, no entanto, a sociologia não tem (ou ao menos não é algo unânime que o tenha) qualquer poder prescritivo ou normativo e as vinculações do pensamento kelseniano a fatos sociais são tanto contraditórias como pouco fundamentadas.

            Por outro lado, mesmo a crítica de que o autor sustenta ou legitima uma determinada ordem social, melhor dizendo, o status quo é infundada uma vez que o autor afirma não haver qualquer razão natural ou sobrenatural para a observância das leis estatais.

            Em um segundo momento, procurei mostrar que a Teoria Pura do Direito é perfeitamente compatível com uma sociologia não prescritiva, a sociologia weberiana, e que, não apenas o é para uma descrição do Direito, mas também pode com grande valia (para uma descrição e explicação compreensiva da ação social) ser aproveitada na análise da sociedade.

            Kelsen, no próprio prefácio da primeira edição de sua "Teoria Pura do Direito" já não esperava acolhida, justamente por ter como objetivo a explicação não-orientada por valores políticos do Direito. As críticas que a ele se dirigiram foram, em geral, dirigidos a esse objetivo.

            A sociologia, porém, não é estranha ao objetivo de Kelsen, e descrever a sociedade de maneira alheia aos valores políticos é ainda uma tarefa a ser realizada pelos sociólogos. Se, de fato, é um árduo trabalho descrever e compreender ou explicar a sociedade e o comportamento humano cientificamente, não é, porém algo de que a sociologia tenha desistido. Uma ciência da sociedade, hoje como ontem, não parece ainda mais útil que uma crença normativa a respeito dela, mas a sociologia assume o "ideal de toda ciência: objetividade e exatidão" (Kelsen, 2000: XIII).

            Por fim, gostaria de ressaltar uma contribuição de Kelsen para o conhecimento sociológico: a distinção entre a natureza e a sociedade. Esta distinção implica em uma separação entre ciências sociais normativas por um lado, e ciências sociais causais por outro, conforme estas estudem a sociedade como fatos relacionados causalmente ou como conteúdos de sentido relacionados normativamente. Esta ciência social normativa é, também, objetiva, mesmo lidando com valores, lógica, mesmo que seja diferente das ciências naturais e precisa, ainda que nem sempre empírica. A aliança desta ciência social normativa com a sociologia compreensiva (ciência social causal) pode resultar em um conhecimento acerca da sociedade que, se não chega a determinar leis causais e oferecer explicações exatas, ao menos pode ser preciso em suas afirmações e lógico em seu desenvolvimento.


Notas

            01. (Lyra Filho, 1999: 16) O autor dedica um capítulo inteiro para conceituar ideologia, mas penso que não prejudico seu pensamento com esta breve citação, lembrando apenas que o autor esclarece que a ideologia não é a falsa consciência de um indivíduo isolado, mas sim um fato social, condicionado pelas relações de produção e pelas lutas de classe.

            02. (Lyra Filho, 1999: 11) grifo do autor.

            03. Considero particularmente difícil distinguir, em certos autores como Lyra Filho e Boaventura de Sousa Santos, o que, dentre aquilo que dizem, refere-se à teoria e o que se refere à empiria. Tem-se a impressão de que a ciência cria o mundo empírico ou o modela pelo simples ato de descreve-lo. Assim, se o positivismo descreve o direito como sendo constituído única e exclusivamente pelas normas estatais, então não comete apenas um erro empírico, mas causa conseqüências maléficas. A teoria transforma o mundo. Da mesma forma, alargar a visão do direito, em Lyra Filho, ou propor uma transformação do paradigma, em Boaventura, não significa transformar o modo como a ciência olha para a realidade, mas transformar a realidade mesmo.

            04. (Lyra Filho, 1999: 30). Aqui, Lyra Filho apresenta o conceito positivista de Direito, que é bastante próximo de seu conceito de "legislação". No entanto, ao invés de travar a discussão com os termos comparáveis, Lyra insiste em criticar o positivismo por sua redução do Direito às leis. Dar este ou aquele nome ao conjunto de leis parece ser das mais irrelevantes questões, mas, a fim de ter uma presa fácil a que criticar, Lyra filho constrói seu adversário como um ser ambíguo que adota o conceito de Direito de Lyra Filho (ou seja, algo próximo ao conceito de Justiça) mas afirma que é a legislação. A questão é que, para Lyra Filho, o positivismo reduz a Justiça, e não a legislação ao conjunto de leis, mas a definição positivista de direito corresponde precisamente à legislação.

            05. (Lyra Filho, 1999: 33). grifo do autor.

            06. Por enquanto cumpre apresentar o pensamento de Lyra Filho, deixando para mais adiante uma comparação com Kelsen, mas devo registrar que Lyra Filho não cita a fonte das passagens que menciona, o que dificulta a pesquisa, no sentido de que não se pode saber em que obra ou trecho Kelsen faz as afirmações mencionadas. Entretanto, em nenhum lugar das obras pesquisadas de Hans Kelsen pude encontrar afirmações semelhantes. Não encontrei qualquer tentativa de legitimar o direito através do recurso à "paz social", como afirma Lyra Filho. Uma preocupação constante de Kelsen é a de supor o direito legítimo, ou seja, reconhecer que não há qualquer razão, jurídica, moral ou natural, para que se obedeça ao direito, a não ser a suposição de sua validade. As afirmações feitas são contrárias ao principal ponto da obra de Kelsen, o que me faz levantar suspeitas acerta do domínio que Lyra Filho tem da teoria de Kelsen.

            07. O que o autor chama de "positivismo de esquerda" é a aceitação de que o Direito é um conjunto de leis postas pelo Estado aliada à caracterização do Estado como um instrumento de dominação. Ou seja, positivista de esquerda é o pensamento marxista que não faz a distinção entre lei e Direito que Lyra Filho faz.

            08. (Lyra Filho, 1999: 50) grifo do autor.

            09. Na continuação da passagem citada o autor afirma que deve-se distinguir Sociologia do Direito de Sociologia Jurídica. Aquela seria acerca de um direito específico, enquanto que esta acerca do Direito em geral. Ora, se admitirmos o Direito como os princípios libertadores que emanam da práxis social, teremos que haveria uma sociologia acerca de cada princípio libertador. É nítido que Lyra Filho pretende aqui afirmar que haveria uma sociologia para cada Direito estatal, entendido como um conjunto de normas. É nítida a imprecisão conceitual ainda quando se pretende conceituar duas formas distintas da sociologia.

            10. é nítida a distinção deste conceito com o conceito Durkheimiano de anomia. Não se deve tomar um pelo outro.

            11. Poder-se-ia perguntar até que ponto Kelsen realmente entende a natureza como uma ordem criada pela mente humana. Mais sensato seria afirmar que o modo como o homem descreve a natureza, relacionando elementos segundo a lei da causalidade é artificial, no entanto, a descrição feita por tal meio é descrição de uma realidade empírica, de existência concreta. Por certo o metal não se expande ao ser aquecido por causa da lei causal que afirma a relação entre o metal e o calor, mas, de fato, o metal expande-se ao ser aquecido. O princípio da causalidade os elementos, que pela relação que lhes são atribuídos, são denominados "natureza".

            12. Talvez devesse tê-lo feito ao início da exposição sobre Hans Kelsen, mas achei que seria melhor tratar primeiramente das idéias e noções mais gerais, partindo da natureza, passando pela sociedade, pelo homem e pela ciência, para só então esclarecer como a ciência, aos olhos de Kelsen, vê o Direito, feito pelo homem, parte da sociedade e distinto da natureza.

            13. Segundo Kelsen: "Do ponto de vista de uma ciência do Direito que descreva o ordenamento jurídico em proposições jurídicas, a função daquele ordenamento consiste em ligar a certos pressupostos, por ele determinados, ,um ato de coerção, por ele igualmente fixado, como conseqüência" (Kelsen, 2000: 162)

            14. Houve casos de o autor citar uma frase de Kelsen, com precisão de página, que quando lida no contexto original, ou melhor no parágrafo original, assumia um sentido totalmente diverso daquele que o autor lhe atribuiu. Houve também um autor que afirma ser a "Teoria Pura do Direito" uma obra fundamental para compreender o pensamento burguês decadente, mas critica essa teoria fazendo referência apenas a seus comentadores, ou seja, sem citar a obra fundamental sequer uma vez ou fazer-lhe referência.

            15. Kelsen afirma: "A autoridade política que cria o Direito, e, portanto, que deseja conservá-lo pode ter dúvida em saber se uma cognição puramente científica dos seus produtos, livre de qualquer ideologia política, é desejável. De modo semelhante, as forças inclinadas a destruir a ordem presente e substituí-la por outra supostamente melhor tampouco terão muita serventia para uma tal cognição do Direito. Mas uma ciência do Direito não faz caso nem de um, nem do outro. É tal tipo de ciência que a teoria pura do Direito deseja ser" (Kelsen, 2000b: XXXII)

            16. Segundo Kelsen: "É precisamente por seu caráter antiideológico que a teoria pura do Direito prova ser uma verdadeira ciência do Direito" (Kelsen, 2000b: XXXVII).

            17. Esta citação não é de qualquer texto de Hans Kelsen, mas de Edgar Bodenheimer.

            18. Genro afirma que a leitura da Teoria Pura do Direito é fundamental para compreender o pensamento da decadente burguesia, mas não a cita sequer uma vez em seu texto: "A obra que sintetiza a filosofia jurídica de Kelsen é a Teoria Pura do Direito. Uma leitura deste trabalho é fundamental para compreender o ponto de vista mais acabado da burguesia, já em crise profunda, sobre o Direito." (Genro, 1988; 27)

            19. Princípio segundo o qual uma norma posterior revoga a norma anterior. O tema será tratado mais adiante, quando da exposição da Teoria Pura do Direito, mais especificamente, daquilo que Kelsen chama de Dinâmica Jurídica.

            20. A distinção entre constituição em sentido formal e em sentido material, que será tratada mais à frente, é, em suma, a seguinte: constituição em sentido formal é o conjunto de normas postas em um documento que constitui a lei maior de um Estado, que tem por função regrar a produção de normas, mas pode conter normas de direito civil ou penal, por exemplo. Já constituição em sentido material é o conjunto de normas, pertencentes ou não ao documento constitucional, que regulamentam a produção e aplicação de normas.

            21. idem p 8.

            22. Maria Helena Diniz também explica o positivismo por suas bases sociais, mas de modo diferente de Lyra Filho: "O racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria kelseniana, expressão máxima do estrito positivismo jurídico, é uma repercussão ideológica de sua época, é uma conseqüência da decadência do mundo capitalista – liberal, marcada pela Primeira Guerra Mundial. Para a ciência jurídica, segundo essa doutrina, não importa o conteúdo do direito. Isto porque, como nos ensinam Machado Neto e Legaz y Lacambra, essa teoria, fruto da época denominada ‘racionalização do poder’, devia reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do conteúdo liberal ou social-democrático que exibia nos povos europeus ocidentais. Deveria constituir-se numa teoria do Direito que tivesse condições conceituais para admitir a existência, ao lado do direito democrático-liberal, de um direito soviético, fascista, nazista. Daí a sua vocação adiáfora da mais absoluta neutralidade em face do conteúdo político, ético, religioso, das normas jurídicas. A teoria pura nasce, portanto, como uma crítica das concepções dominantes na época sobre os problemas do direito público e da teoria do Estado." (Diniz, 1995: 105)

            23. "A comunidade consiste na ordem normativa que regula a conduta de uma pluralidade de indivíduos. Diz-se, na verdade, que a Ordem constitui a comunidade. Mas ordem e comunidade não são dói objetos distintos. Uma comunidade de indivíduos, quer dizer, aquilo que a estes ~e comum, consiste apenas neste ordem que regula a sua conduta." (Kelsen, 2000: 168)

            24. Segundo Lyra Filho, não se pode ver o Direito como restrição à liberdade: "Também é um erro ver o direito como pura restrição à liberdade, pois, ao contrário, ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-se apenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absoluta liberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade para ninguém, pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral" (Lyra Filho, 1999: 89). Uma concepção como esta é, a meu ver, bastante "conservadora", preocupada em garantir a ordem e sustentar o direito. A necessidade de afirmar-se progressista, aliada à veneração ao Direito, faz com que, na minha opinião, Lyra Filho sustente uma posição pretensamente "revolucionária" e praticamente "conservadora".

            25. Karl Popper (1974) notara esta forma de valorização do porvir, mostrando que a concepção de que o futuro será, necessariamente, melhor do que o presente, encerra em si a idéia de que o presente é, definitivamente, melhor do que o passado

            26. Note-se que o sentido que Kelsen dá à norma fundamental é o de um pressuposto, não o de uma legitimação de fato. Como uma norma só pode advir de outra norma e não há qualquer razão (norma) para que obedeçamos ao direito mas o jurista estuda o direito como um dever ser, Kelsen supõe a norma fundamental. A compreensão disto parece ser, de alguma forma, vedada a certos autores, fato que não consigo explicar de forma alguma.

            27. Esta apresentação do pensamento kelseniano não segue claramente o esquema de apresentação adotado por Kelsen, seja na Teoria Pura do Direito, seja na Teoria Geral do Direito e do Estado, o que implica na não percepção de um elemento interessante: o autor trata do fundamento de validade e dos princípios de tal fundamento (serão apresentados mais adiante) como referentes a um sistema de normas, e não a um sistema jurídico de normas, do qual o autor apenas trata mais à frente em sua obra, quando trata do fundamento de validade do Direito. Penso ser este um indício de que a Teoria Pura do Direito não é aplicável apenas ao Direito, mas antes, a qualquer ordem normativa.

            28. Acerca do conceito de Constituição, cf infra.

            29. Se aceitarmos que as ordens sociais podem ser objeto de um estudo normativo tal como o que Kelsen faz acerca do Direito, alguns ordenamentos, como o Direito Canônico teriam uma característica bastante interessante, a saber, têm a pretensão de ser válidos para a conduta de indivíduos que não os consideram como tais. Assim, um católico considera que todas as pessoas, qualquer que seja sua religião, estão obrigadas a não mentir, não adorar vários deuses, etc. Como as sanções nestes casos são aplicadas mesmo a tais indivíduos (também o não cristão que viole os Dez Mandamentos, expiará seus pecados no purgatório ou penará eternamente no inferno, além das sanções imanentes, como o desprezo, a exclusão, o ridículo, etc.) este ordenamento mesmo aí tem eficácia. Kelsen, por exemplo, não compartilha da opinião de Lyra Filho de que sua teoria deve ser capaz de ajudar a transformar a ordem estabelecida, mas mesmo assim recebe como sanção a crítica de ideológico, por não ter observado uma norma que não considera válida. Assim, o limite pessoal de validade de um ordenamento não é dado pela opinião subjetiva dos atores de que ele é válido, mas pelo próprio ordenamento, na medida em que é eficaz (capaz de impor sanções).

            30. Afirma o autor: "Como todas as normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas no conteúdo da norma pressuposta, elas podem ser deduzidas daquela pela via de uma operação lógica, através de uma conclusão do geral para o particular" (Kelsen, 2000: 218).

            31. Toda ordem normativa tem uma constituição, mesmo a mais absoluta tirania. Neste caso o que a constituição estabelece é que se deva obedecer a toda e qualquer ordem, expressa por qualquer forma que seja, desde que postas por um determinado indivíduo, o tirano, sob pena de sofrer qualquer sanção que o mesmo tirano expresse.

            32. Quanto maior a competência para criação de normas por meio de negócio jurídico, diz-se que mais democrático é o ordenamento, uma vez que o negócio jurídico é um fato produtor de normas, e a democracia é um governo do povo, e o governo consiste justamente na criação e aplicação de normas.

            33. A sustentação de uma postura de neutralidade axiológica em nenhum momento leva Kelsen a impor o capitalismo como algo necessário ou como um bem, antes permite que ele, mesmo sendo confessadamente democrata, admita outros sistemas políticos como Direito, tanto em um plano cognitivo como a possibilidade fatual de os países capitalistas tornarem-se socialistas ou mesmo e os regimes totalitários baseados em preconceitos étnicos dominarem o Direito dos países ocidentais, o que, levando em consideração o período histórico em que escreve e vive o autor, constitui um intrigante problema para a sociologia do conhecimento.

            34. A obra de Kelsen intitulada "Natruraleza y Sociedad" (1945) é repleta de exemplos como o que segue, que Kelsen cita de Heckewelder: "Encontré asimismo que los indios, por una razón similar, respetaban grandemente a la serpiente de cascabel, a la que le llamaban su abuelo y no lo destruían por nada del mundo. Cierto día caminando con un indio viejo por los bancos del Muskingun, vi una gran serpiente cascabel tendida através de la senda, y me dispuse a matarla. El indio me lo prohibió inmediatamente; porque la serpiente, dijo, es el abuelo de los indios, y está colocada aquí intencionalmente, para guardarnos y avisarnos del peligro inminente con su cascabel, lo que es lo mismo que si nos dijera "¡alerta!" Además, agregó, si matáramos a algunas de ellas, las otras lo sabrían bien pronto, y toda la raza se alzaría contra nosotros y nos mordería. Le hice notar que los hombres blancos no sentían ese temor, ya que mataban todas las serpientes de cascabel que encontraban. Al oír esto preguntó si algún hombre blanco había sido mordido por aquellos animales, y contesté naturalmente en forma alternativa. ‘no es de extreñar, entonces’: replicó, ‘¡tenéis la culpa de ello! Lo que habeis hecho es como declararles la guerra, y vais a encontrar en vuestro país, donde no dejarán de hacer frecuentes incursiones. Son un enemigo muy peligroso; guardaos de irritarlas en nuestro país; ellas y sus nietos están en buenos términos e ni ellas ni nosotros no dañaremos" (Kelsen, 1945: 130).

            35. Na terminologia kelseniana, o uso do termo direito subjetivo é restrito à atribuição que um determinado indivíduo recebe do estado para entrar ou não com uma "ação" judicial contra um outro indivíduo de quem demande algo determinado. O direito subjetivo à vida, por exemplo, como reflexo da norma que proscreve o assassinato, não é, para Kelsen, um direito subjetivo, mas antes, um direito reflexo.

            36. Diz o autor: "A este respeito recorde-se uma vez mais que, se a proposição jurídica é formulada com o sentido de que, sob determinadas condições ou pressupostos, deve intervir um determinado ato de coação, a palavra ‘deve’ nada diz sobre a questão de saber se a aplicação do ato coercitivo constitui conteúdo de um dever jurídico, de uma permissão positiva ou de uma atribuição de competência (autorização), antes, as três hipóteses são igualmente abrangidas". (Kelsen, 2000: 133).

            37. Pessoa Jurídica não é sinônimo de corporação, esta, como qualquer comunidade, organização ou instituição são, para Kelsen, ordens normativas, enquanto que aquela é o conjunto de direitos e deveres de um determinado indivíduo ou corporação.

            38. Kelsen afirma: "Se apenas se toma em conta o Direito estadual, e não o Direito internacional, o estatuto de uma corporação representa uma ordem jurídica parcial em confronto com a ordem jurídica estadual como ordem jurídica global."(Kelsen, 2000: 197).

            39. Afirma Kelsen que " na medida em que a divisão do trabalho significa que certas funções não podem ser desempenhadas por todo e qualquer indivíduo e, portanto, que não o podem ser por todos os indivíduos sujeitos a uma ordem normativa, mas devem ser realizadas apenas por determinados indivíduos qualificados de certa maneira por aquela ordem normativa, e que a função nestas precisas circunstâncias é concebida como relativamente centralizada, divisão do trabalho e centralização relativa coincidem". (Kelsen: 2000: 176).

            40. Cumpre não confundir órgão com pessoa. Ambos têm sua conduta normatizada pela ordem, mas só aquele tem sua conduta normatizada segundo o princípio da divisão do trabalho.

            41. "Mas não há uma razão suficiente para não conceber a conduta humana também como elemento da natureza, isto é, como determinada pelo princípio da causalidade, ou seja, para a não explicar, como os fatos da natureza, como causa e efeito (...) Na medida em que uma ciência que descreve e explica por esta forma a conduta humana seja, por ter como objeto a conduta dos homens uns em face dos outros, qualificada de ciência social, tal ciência social não pode ser essencialmente distinta das ciências naturais". (Kelsen, 2000: 85).

            42. Afirma o autor: "Com referência a ‘formas sociais’ (em oposição a ‘organismos’), nós nos encontramos na situação, para lá da simples determinação das suas conexões e regras (‘leis’), de chegar a um resultado que é negado às ciências naturais (no sentido do estabelecimento e da formulação de leis causais referentes aos fenômenos e às formas, e da explicação destes através das mesmas leis): a sociologia pode ‘compreender’ o comportamento dos indivíduos que participam neste todo, ao passo que, contrariamente, não podemos ‘compreender’ o comportamento, por exemplo, das células, mas apenas apreendê-lo funcionalmente e, em seguida, determina-lo com a ajuda de deis às quais estão submetidos. Este maior resultado da explicação interpretativa em comparação com a explicação observadora tem certamente como preço o caráter essencialmente mais hipotético e fragmentário dos resultados obtidos pela interpretação. Mas ela é exatamente o específico do conhecimento sociológico." (Weber, 2001: 409).

            43. Afirma o autor: "Exemplos de aplicações do princípio da imputação no domínio das ciências sociais normativas são: quando alguém te fez algum bem, deves mostrar-te agradecido; quando alguém sacrifica sua vida pela pátria, a sua memória deve ser honrada; quando alguém pecou, deve fazer penitência." (Kelsen, 2000: 100).

            44. Afirmar que a teoria pura descreve os diferentes sistemas de conteúdos de sentido de forma não contraditória não é o mesmo que afirmar que a mente humana assim os criou, percebe ou deveria perceber. A descrição é que não pode ser contraditória, não o sistema de conteúdos de sentido. Kelsen admite que o legislador (que pode ser uma vontade supra-humana, um homem, o costume, etc.) pode pôr como devendo e não devendo ser um mesmo ato sob as mesmas circunstâncias e ao mesmo tempo. No entanto, este conteúdo de sentido é descrito como desprovido de sentido normativo e, portanto, irrelevante para a descrição da ordem normativa enquanto tal. Ademais constituiria um problema bastante sério afirmar que a mente humana organiza os conteúdos de sentido em sistemas não contraditórios, mas a descrição lógica e sistemática destes conteúdos leva a tal organização. Seria interessante analisar se, com o passar do tempo, a complexificação da sociedade não corresponde a multiplicação de tais ordens ou sistemas sociais.

            45. "A estabilidade do mero hábito se apoia essencialmente no fato de que aquele que não orienta a sua ação nela procede ou age de "modo impróprio", isto quer dizer, aceita de antemão incomodidades e inconveniências, maiores ou menores, durante todo o tempo em que a maioria dos que formam o seu meio-ambiente acreditam na existência do hábito e dirigem o seu comportamento por ele. A estabilidade de uma situação de interesses baseia-se, analogamente no fato de que alguém que não orienta o seu comportamento nos interesses dos outros – não os inclui no seu "cálculo" – provoca a sua resistência ou acarreta conseqüências não desejadas e nem previstas por ele, e, conseqüentemente, corre o perigo de prejudicar seus próprios interesses." (Weber, 2001: 423).

            46. Weber afirma: "Os meios de coação são irrelevantes. Também a admoestação fraternal – uma prática comum em muitas seitas como meio suave de coação frente ao comportamento dos pecadores – pertence a estes meios sempre que se orienta numa norma e quando é executada por um quadro de pessoas que existe exatamente para isso (...) Trata-se, portanto, de um ‘direito’, não interessa se este é garantido politicamente, ou por uma forma hierocrática, ou por estatutos de uma associação, ou pela autoridade de um patriarca, ou cooperativas ou qualquer outro tipo de associação (Weber, 2001: 427).

            47. Sobre a capacidade explicativa da norma acerca do comportamento humano, ver: Weber, 2001: 239 ss.

            48. Como uma última sugestão, deixo que a obra de Max Weber "a ética protestante e o espírito do capitalismo" pode ser entendida como a descrição do surgimento e entrelaçamento de duas ordens normativas, tanto assim que Weber se preocupa em descrever em detalhes as normas de conduta que cada ordem impõe como devida, como o "lembre-se de que tempo é dinheiro", e em mostrar em que a ética (que, definitivamente é um conjunto de normas, ou normas e crenças) protestante se difere da católica. De fato, a tese da obra é a de que a ética protestante, mesmo sendo desvinculada do espírito do capitalismo (que, aliás, poderia ser chamado a "ética do capitalismo", uma vez que é também um conjunto de regras de conduta), prescreveu condutas semelhantes que, portanto, foram reforçadas.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Nelson do Vale. Teoria Pura do Direito e sociologia compreensiva. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4014. Acesso em: 26 abr. 2024.