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A possibilidade do julgamento antecipado da lide penal

A possibilidade do julgamento antecipado da lide penal

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         Com salutar felicidade devorei com afinco a sentença prolatada nos autos do Processo nº 398/2001 em tramite na 3ª Vara Criminal da Comarca de Aracajú SE, prolatada pelo d. Juiz de Direito José Anselmo de Oliveira, datada de 03 de janeiro de 2002 (a r. sentença encontra-se em forma de anexo ao presente).

            O referido decisum destaca-se dos demais pela ousadia e total pertinência ao direito consubstanciado nos autos daquela ação. Esta decisão monocrática de 1º grau é audaciosa quando aplica analogamente os dispositivos concernentes ao julgamento antecipado da lide, como conhecido em sede do juízo cível, para o âmbito penal.

            Nesta decisão, avocando os dispositivos do Código de Processo Cível, aplicou na esfera penal O JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE.

            Instigado pela motivação notívaga, ouso lançar neste despretensioso trabalho, a alegação de ser possível a aplicação subsidiária do instituto da antecipação da lide em sede de direito penal. Para tanto, arrimo tal entendimento na dicção normativa do art. 3º do Código de Processo Penal brasileiro, quando afirma que:

            A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito. (art. 3º do Código de Processo Penal, grifei)

            É sabido que o Juiz de Direito ao lançar uma decisão nos autos seja definitiva ou não este exerce o controle sobre o Jus Puniendi. Portanto a sentença é um ato em que há uma evidente outorga da tutela jurisdicional às partes. Mas urge salientar, que nem sempre, quando a sentença condenatória é proferida, após ser obedecido a todo o procedimento aplicável, chegou-se a uma VERDADE PROCESSUAL. Neste sentido trazemos à baila honrosa lição do mestre Tourinho Filho;

            "A função punitiva do Estado, deve ser dirigida àquele, que realmente, tenha cometido uma infração; portanto o Processo Penal deve tender à averiguação e descobrimento da verdade real, da verdade material, como fundamento da sentença.

            (...)

            Por outro lado, quando se fala em verdade real, não se tem a presunção de se chegar à verdade verdadeira, como se costuma dizer, ou, se quiserem, à verdade na sua essência – esta é acessível apenas à Suma Potestade -, mas tão-somente salientar que o ordenamento confere ao Juiz Penal, mais que ao Juiz não Penal, poderes para coletar dados que lhe possibilitem, numa análise histórico-crítica, na medida do possível, restaurar aquele acontecimento pretérito que é o crime investigado" (1).

            Portanto, a sentença deve ser entendida como a exteriorização da convicção adotada pelo Magistrado, resultante da análise dos autos. Por vezes no próprio interrogatório do réu, devido ao longo exercício do pragmatismo forense, este já definiu se houve ou não a culpa impingida ao Réu, as vezes pelo simples fato de se prostar a sua frente.

            Diante disto creio ser perfeitamente possível tal desiderato, pois o magistrado em sua árdua função judicante muitas vezes se encontra apto a lançar uma decisão nos autos, não o fazendo devido a mentalidade de ter de esgotar os atos procedimentais previstos para o delito que se apura.

            Neste ponto trago a colação o principio penal da dignidade da pessoa humana. Por que sujeitar um cidadão ao exânime processo judicial, se o magistrado detém naquele momento uma convicção já formada? Tomemos à guisa do procedimento comum ordinário o seguinte: Depois de oferecida a denúncia e no momento do interrogatório do réu o magistrado se convence que o fato em apreciação não deva prosperar pela evidente excludente de ilicitude – a legítima defesa. Por que sujeitar um individua a um extenuante processo judicial se o magistrado poderá exercitar o seu poder jurisdicional de pronto, uma vez que o seu convencimento já esta formado que no caso em tela há uma excludente de ilicitude evidente.

            Com inteiro acerto, vale ressaltar, também a honrosa lição de Vieira de Andrade, onde destaca que o princípio da dignidade da pessoa humana, "está na base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido ao conjunto dos preceitos relativos aos direitos fundamentais. Estes preceitos não se justificam isoladamente pela proteção de bens jurídicos avulsos, só ganham sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade existencial de sentido que cada homem é para além de seus atos e atributos. E esse princípio da dignidade da pessoa humana há de ser interpretado como referido a cada pessoa (individual), a todas as pessoas sem discriminações (universal) e a cada homem como ser autônomo (livre).

            É evidente, assim, que a dignidade da pessoa humana funciona como suporte de todos os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal. Como, portanto, entender que a privação não necessária da liberdade individual não signifique uma pena precipitada e, por isso, uma ofensa à dignidade da pessoa atingida e à todos aqueles que sofram o risco de serem também, indistinta e imotivadamente, alcançados pelo arbítrio? (2)"

            Ademais, paulatinamente, observamos inúmeros casos em que a "coragem" e o "senso de justiça" de certos aplicadores de direito, são pautados e regidos pelo resultado das votações nas casas superiores, esquecendo-se de que como magistrados de 1º grau, é deles o maior reclamo por parte da sociedade em dar solução aos conflitos postos para apreciação. È o magistrado de 1º grau, profundo conhecedor da causa sob sua custódia, foi o mesmo que após dirigir toda a instrução criminal e convívio com as partes, se tornou conhecedor do caso real. Portanto, esta perfeitamente inteirado da situação sócio-jurídica que o caso reclama, para, assim, solucionar a lide.

            È o magistrado a quo que mantém contato com as partes, ouvindo o acusado, vendo as suas reações físicas às perguntas realizadas em seu interrogatório, é o conhecedor da realidade em que se inferi as partes.

            Se o mesmo, após os elementos de convicção restarem reunidos, nada mais resta a fazer não ser, deferir a tutela jurídica, seja em favor do estado ou em face do particular.

            Permitir que um inocente se mantenha sob a injusta sombra da espada da justiça, por vezes, é uma agressão maior que o suposto delito imputado ao mesmo. Como sabemos, o nosso processo penal é um árduo caminho de colheita de elementos, tudo voltado a um único fim, A VERDADE. Se esta verdade, ou sua semelhança, já se encontra ab initio, por que esperar todo o desenrolar da instrução para deferir a tutela estatal eximidora da responsabilidade do acusado, isentando-o do constrangimento responder por algo que não deve.

            Como bem assevera o d. Magistrado prolator da sentença em comento:

            "Há a previsão no art. 3º do Código de Processo Penal em vigor, da admissão da interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de Direito.

            O processo, de um modo geral, é apenas instrumento voltado a atingir o desiderato da atividade jurisdicional, ordenando os atos de acordo com princípios pré-estabelecidos e regras que têm como sede principal a ordem constitucional.

            Assim, não deve o processo se constituir numa forma de "punição" aos acusados, antes, deve servir para evitar os abusos de acusações desmotivadas, por meio das garantias constitucionais do processo.

            Lamentavelmente no Brasil, é a incompetência da Polícia Judiciária que reflete o pouco caso dos governantes em relação à segurança pública, a despeito dos insignificantes investimentos e do despreparo da maioria dos seus agentes, criando-se uma imagem distorcida do papel da Justiça Criminal, em conseqüência, produzindo-se teratologicamente inquéritos grosseiramente elaborados e com falhas gritantes.

            O processo penal é ônus excessivo para aquele que não cometeu delito algum, ou, que, à míngua de indícios suficientes, foi denunciado. (3)"

            Mas os céticos deste novo conceito penal, preferem encontrar guarida e apoio nos antigos ensinamentos do mestre legalista Kelsen, utilizando o argumento de que não se pode alterar os ritos previstos para cada caso, espancando assim, o uso da analogia.

            Descabe tais alegações. Até mesmo por que o nosso Código Penal permite o uso da ANALOGIA IN BONAM PARTEM, ou seja, de modo que favoreça o acusado, como é o caso sustentado, não podendo, ai sim, utilizá-la para o contrário, condenar. O processo pelo qual verifica-se uma transgressão à norma penal, e devido a tal agressão, poderá cominar com uma aplicação de uma pena. Ficou patenteada na doutrina pátria como sendo o principio da criminalização. Conforme basilar lição de Luiz Flávio Gomes:

            "Por criminalização (stricto sensu) entende-se o processo que reconhece formalmente a ilicitude de uma conduta, descrevendo-a como infração penal ou transformando-a de contravenção em delito. (4)"

            A nossa Doutrina e a Jurisprudência já se pacificaram no sentido de se permitir o uso da analogia para beneficiar o acusado.

            Ademais é de se registrar que a nossa Sociedade caminha a saltos largos, devendo o direito penal moderno tentar alçar vôos maiores para alcançá-la, sob pena de se denominar ultrapassado.

            Em muitos casos, devido à ausência de norma que tipifique certos crimes, têm, os Tribunais, se socorrendo da analogia para o ajustamento da conduta atípica à norma penal, o que pelo Princípio da Legalidade, onde se assenta o nosso Direito punitivo, poderia ser considerado terminantemente proibido em matéria penal, como é o caso dos crimes praticados atualmente pelos hackers, que na sua maioria, são isentos de punição, ante a ausência de tipificação legal.

            Desta feita, carecem, estes indivíduos, da devida sanção penal por absoluta falta de tipificação legal de tal delito, bem como na falta de legislação específica que as regule. Aliás, neste sentido é de se observar a honrosa lição do mestre Noberto Bobbio no entendimento que:

            "É impossível que o Poder Legislativo formule todas as normas necessárias para regular a vida social; limita-se então a formular normas genéricas, que contêm somente diretrizes, e confia aos órgãos executivos, que são muito mais numerosos, o encargo de torná-las exequíveis. (5)"

            Se é impossível para o legislador determinar todas as condutas passíveis de reprovação legal, como assevera Bobbio, como então regulamentá-las. È por tal razão que se deve fazer uso da analogia afim de evitar um grave constrangimento para aquele que se apresenta como acusado.

            Já discorremos á pouco, que os Tribunais de todos os modos tentam conter os chamados "crimes virtuais", cada qual observando o caso em concreto, aplica uma solução que acha justa. Ora, na medida que a lei é omissa, deixa margens a ação do aplicador legal, que muitas vezes se ver em uma árdua tarefa, que foge a sua competência originária, pois é forçado a legislar, tudo devido a um caso concreto que lhe foi apresentado.

            A par da norma insculpida no art. 5.º, inc. XXXV, da Carta Constitucional, que aflorou o principio da efetividade da jurisdição, quando for instando a se pronunciar ao caso concrento, impõe-se, ao Poder Judiciário, como um dever, prolatar uma decisão, não podendo desta forma ausentar-se de tal. No Direito Penal, ao contrário do que ocorre no Civil, só pode, o Magistrado, aplicar a analogia se a mesma for considerada benéfica para o acusado.

            Tal instituto é tratado no caderno processual penal, em seu art. 3º, mas somente à analogia in bonam partem, é aceita, mesmo assim, com severas restrinções e acirradas criticas por parte de boa parte da doutrina penal, sendo sua interpretação jurisprudência bastante divergente, uma vez que seu campo de aplicação é bastante reduzido, como bem assevera Nélson Hungria:

            "Em face de um Código, como o nosso, que enumera, em termos suficientemente dúcteis, as causas descriminantes ou de imunidade penal; que aboliu a ´responsabilidade objetiva´, consagrando irrestritamente o princípio nulla poena sine culpa; que é profuso no capítulo das causas de renúncia ao jus puniendi por parte do Estado; que faculta, em vários casos, o perdão judicial; que deixa ao juiz um extenso arbítrio na medida da pena (art. 42), haveria pouquíssimo espaço para a analogia in bonam partem. (6)"

            Ora o legislador penal não proibiu o uso da analogia, somente o restringiu a casos, entre tais, poderiamos acrescer, o debatido.

            Diante de tais argumentos chega-se a ilação lógica que a priori não há qualquer vedação legal que iniba a aplicabilidade da analogia em sede de direito penal. Atente-se ao fato que tal procedimento deverá ser observado em favor do réu e nunca em seu detrimento, pois assim importaria em sérias violações ao estatuido no art. 5º incs. LIV, LV e LVII da Constituição Federal por resguardarem as garantias aos inculpados em geral.

            Desta feita tendo como norte os elementos invocados, chega-se a conclusão de ser perfeitamente plausível o julgamento antecipado da lide, nos moldes expostos no art. 330, inciso I do Código de Processo Civil, em matéria penal, utilizado para tal intento através da Analogia.

            Para tanto, deve ser utilizada apenas com o fito de ser utilizada apenas para o beneficio do acusado não podendo de modo algum ser utilizada para agravar sua situação sob pena de se cometer um constrangimento ilegal, passível de reprovação.

            Portanto, é perfeitamente possível haver um ajustamento das normas penais e civis, quando se tratar de antecipação da lide. Tudo isso sendo ajustado com os modernos preceitos a que se destina a justiça penal e a boa doutrina.


ANEXO (sentença).

            Processo nº 398/2001

            3ª Vara Criminal da Comarca de Aracajú (SE)

            1. Relatório

            O Ministério Público estadual ofereceu denúncia contra A.P., vulgo "C.", natural de Aracajú (SE), filho de A.P. e de M.O.M.P., à época, com 41 anos de idade, residente e domiciliado à Rua "M", nº 25, Conjunto Almirante Tamandaré, nesta Capital, em razão dos seguintes fatos:
"Segundo noticiam os autos do inquérito policial, advindos da Delegacia Especial de Roubos e Furtos de Veículos, no dia 26 de abril de 2001 o policial J.V.A. recebeu um telefonema anônimo dando conta que, dentro de uma casa no bairro Almirante Tamandaré, haviam diversos carros importados.

            J.V., a fim de investigar, se deslocou até a residência e observou que realmente existiam diversos carros no local. Então solicitou ao denunciado os documentos dos veículos, tendo constatado irregularidade com o veículo Suzuki Siderkick, ano e modelo 1994, PP-JLJ2461, de cor verde, chassis JS3TD03V6R4113130, o qual possuía restrição para furto.

            (...)

            Face à ocorrência de furto do veículo, foi ele apreendido (doc. fls. 9)."

            Cumpre notar que o réu foi preso em flagrante em 26 de abril de 2001, tendo sido libertado em razão de fiança arbitrada judicialmente em 30 de abril de 2001.

            O inquérito foi concluído em 8 de maio de 2001, onde somente foi ouvido como testemunha o policial civil J.V.A., que investigou tudo e que esteve com o réu, não sendo presente no "flagrante".

            Recebida a denúncia em 28 de maio de 2001, foi designado interrogatório para o dia 11 de outubro do mesmo ano.

            Interrogado em juízo, o réu declarou "ter adquirido o veículo marca Suzuki/Sidekick, tipo Jeep, cor verde, ano e modelo 1994, placa policial JLJ-2461 BA, chassi JS3TD03V6R4113130, do senhor L., a quem conhece a cerca de 4 anos e que reside na cidade de Feira de Santana no endereço (...), e somente o adquiriu após consulta ao Detran da Bahia, e que pagou pelo mesmo R$ 7.000,00 (sete mil reais), em razão do veículo se encontrar com a caixa de câmbio quebrada e sem módulo de injeção eletrônica, cujo preço das peças na concessionária, que é exclusiva, seria em torno de R$ 20.000,00 (vinte mil reais)". Declarou ainda que, "o licitamento estava atrasado desde 1995, e que para sua surpresa foi convidado a comparecer à Delegacia de Roubo e Furto de Veículo nove meses depois de ter adquirido o veículo para explicar a origem do mesmo que foi apreendido e que se encontrava em sua garagem desde que o comprou, porque não encontrou as peças, e foi quem pagou o guincho para levar o veículo até a delegacia, e mais surpreso ficou quando o delegado lavrou ´auto de prisão em flagrante´ (fls. 52/54)".

            A defesa prévia oferecida às fls. 56/61, onde demonstra que o documento apresentado como a prova de que o veículo apreendido com o réu era roubado, às fls. 17, não corresponde ao mesmo, e sim a um outro veículo da marca Santina, modelo Beljipe, cor verde, modelo e ano 1994, chassi JS3TD03VGR4113130, inclusive não sendo informado o local do furto. Enquanto isso, o veículo apreendido e de propriedade do réu é da marca Suzuki, modelo Siderkick, ano e modelo 1994, cor verde, chassi JS3TD03V6R4113130.

            Alega a defesa que no dia em que adquiriu o veículo o réu consultou o Detran/BA, ou seja, em 21.07.2000, conforme cópia do documento de fls. 10, dos autos do pedido de relaxamento de prisão, Proc. nº 356/2001, em apenso a ação penal.

            Ao final, pede a defesa o julgamento antecipado da lide e a absolvição do réu.

            Vieram os autos conclusos.

            É o relatório.

            2. Da antecipação do julgamento da lide em matéria penal.

            Há a previsão no art. 3º do Código de Processo Penal em vigor, da admissão da interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de Direito.

            O processo, de um modo geral, é apenas instrumento voltado a atingir o desiderato da atividade jurisdicional, ordenando os atos de acordo com princípios pré-estabelecidos e regras que têm como sede principal a ordem constitucional.

            Assim, não deve o processo se constituir numa forma de "punição" aos acusados, antes, deve servir para evitar os abusos de acusações desmotivadas, por meio das garantias constitucionais do processo.

            Lamentavelmente no Brasil, é a incompetência da Polícia Judiciária que reflete o pouco caso dos governantes em relação à segurança pública, a despeito dos insignificantes investimentos e do despreparo da maioria dos seus agentes, criando-se uma imagem distorcida do papel da Justiça Criminal, em conseqüência, produzindo-se teratologicamente inquéritos grosseiramente elaborados e com falhas gritantes.

            O processo penal é ônus excessivo para aquele que não cometeu delito algum, ou, que, à míngua de indícios suficientes, foi denunciado.

            A divulgação da notícia nas páginas policiais, os antecedentes policiais, a mística da "passagem pela polícia", e o próprio processo em si, operam danos irreparáveis ou de difícil reparação em desfavor do inculpado.

            Assim, tratando-se o processo penal de fatos considerados típicos na lei penal, e baseado em indícios, pelo menos, suficientes da autoria e da prova da materialidade, quando estes elementos não se fizerem presentes impossibilitando até mesmo o oferecimento da denúncia, não há dúvidas de que deva ser aplicado analogamente o julgamento antecipado da lide como dispõe o Código de Processo Civil em seu art. 330, in verbis: "o juiz conhecerá diretamente do pedido, proferido em sentença: I - quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência".

            É exigência do Direito processual que somente preenchidas determinadas condições, é que se legitima o direito de ação. Não é diferente no processo penal, tanto que o art. 43, do Código de Processo Penal, entre elas, com toda a certeza, a possibilidade jurídica do pedido, no caso, o efetivo enquadramento da conduta do agente à norma penal tipificadora e devida provada.

            O não atendimento às condições da ação é causa suficiente de rejeição da denúncia conforme o inciso III do art. 43, do CPP.

            É necessário que nós, juízes, saiamos desse imobilismo, dessa "capa protetora enferrujada" do legalismo estrito, inconseqüente, que não atende aos fins da Justiça. O caminho é da hermenêutica, responsável e científica, da análise do todo e não da limitada visão recortada da simples necessidade de dar uma satisfação à sociedade a qualquer custo, nem que seja ao preço da vileza da injustiça.

            Têm-se, até como normal, se produzir a condenação, até por fatos anteriores e desconectados com a imputação. Quer se condenar a má reputação, que deve ser observada na aplicação da pena e não da condenação. Quer se condenar pelos erros que nunca foram punidos anteriormente, sem as devidas provas, coisa inadmissível no Estado Democrático de Direito.

            Assim, numa interpretação sistêmica e aplicando ao caso concreto, por autorização legislativa, tenho por cabível a aplicação da regra do art. 330, do CPC, - julgamento antecipado da lide.

            Esse entendimento é compartilhado com decisão proferida na Justiça Federal em Sergipe da lavra do eminente Juiz Federal Ricardo Mandarino, que me inspirou a análise da questão:

            "Processo nº 2001.85.00.3835-8/SPCr - Classe 07000 - 1ª Vara.

            Ação: Penal.

            Autor: Ministério Público Federal.

            Réu: G.G.P.

            Penal e Processual Penal. Estelionato. Julgamento antecipado da lide. Possibilidade, quando se tratar de hipótese de absolvição do réu.

            "

            3. Da inexistência de requisitos para a denúncia.

            A análise dos autos permite, desde já, concluir pela inexistência de indícios suficientes para o início da ação penal, diante da inidoneidade do documento que se avista às fls. 17, pois se trata de veículo diverso do que foi apreendido e que foi adquirido pelo réu. O mesmo documento é visto mais um vez às fls. 35, 36 e 37. Todos se referindo a um outro veículo - marca Santina/Beljipe e com chassi diferente.

            O senhor delegado e presidente do inquérito de maneira indevida cadastrou o veículo do réu em 26.04.2001 como roubado como se avista às fls. 71, sem qualquer existência de queixa ou ocorrência, o que constitui uma irregularidade grave.

            Fica, ao meu sentir, que o inquérito foi uma "armação", cuja finalidade deve ser objeto de apuração pela Corregedoria Geral da Polícia Civil, desde já requisitada.

            O que se têm, então?

            Têm-se a evidência de mais uma abuso de autoridade por parte da Polícia Judiciária, pois ausentes mínimos indícios de que existiu na conduta do réu a prática de crime previsto em nossa legislação penal.

            4. Decisão

            O prosseguimento do processo somente traria ao réu um ônus exagerado diante da ausência de condições da ação penal.

            Opto pelo julgamento antecipado da lide, e diante do que foi relatado e discutido, com fundamento no art. 386, inciso III, do CPP, absolvo o réu A.P., já qualificado.

            Oficie-se à Corregedoria Geral de Polícia requisitando a abertura de procedimento administrativo para apurar o destino do veículo apreendido, e a sua devolução ao seu legítimo dono, o senhor A.P.

            Oficie-se ao Detran/SE ordenando que seja anulada a informação de ocorrência do veículo apreendido.

            Procedam-se as notificações e anotações pertinentes.

            Sem custas.

            Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

            Aracajú, 3 de janeiro de 2002.

            José Anselmo de Oliveira

            Juiz


Notas

            01. Manual de Processo Penal, Saraiva, pp. 12/13.

            02. Os Direitos Fundamentais, 1983, p. 101.

            03. Apud sentença em anexo

            04. Suspensão Condicional do Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, pág.101.

            05. ob., cit., pág. 20.

            06. ob. cit., p. 101.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAMALHO TERCEIRO, Cecílio da Fonseca Vieira. A possibilidade do julgamento antecipado da lide penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4015. Acesso em: 28 mar. 2024.