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A constitucionalidade das cotas de inserção do negro no ensino superior

A constitucionalidade das cotas de inserção do negro no ensino superior

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"Desgraça, é descobrir bem cedo que a igualdade tem a espessura da pele"(Paulo Mendes Campos).

SUMÁRIO: 1 – INTRODUÇÃO; 2 – A LEITURA CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, 2.1 - EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, 2.2 – O PARADÓXO DO DISCURSO DA DIFERÊNÇA INCUTIDO NA IGUALDADE; 3 – O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL, 3.1 - DEMOCRACIA FORMAL E MATERIAL, 3.2 - A MARGINALIZAÇÃO DO NEGRO COMO FENÔMENO HISTÓRICO, 3.2.1 – Dados que comprovam a marginalização; 4 - AS AÇÕES AFIRMATIVAS, DIREITO X PRIVILÉGIO, A EDUCAÇÃO E AS COTAS NO INGRESSO AO ENSINO SUPERIOR COMO FOMENTADORAS DE IGUALDADE, A TEMPORALIDADE DAS COTAS; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


1 - INTRODUÇÃO

A presente monografia se propõe a discutir a validade jurídica das cotas destinadas à inserção do negro no ensino superior. Esse tema, extremamente atual e discutido, está imerso em polêmicas atinentes à abrangência e ao sentido do Princípio Constitucional da igualdade, bem como a existência de fatores determinantes que afastem o negro do ensino superior.

O entrave se dá na confrontação das noções de igualdade e privilégio, mas o que salta aos olhos, é que ambas correntes fundamentam a indicação da validade ou da negação de cotas sob a égide do mesmo argumento, qual seja a observação do Princípio da Isonomia.

Assim, cumpre empenhar-se inicialmente em um trabalho de compreensão da ordem jurídica vigente, com a precisa delimitação do Princípio da igualdade, a fim de elucidar se o direito posto enseja e considera a possibilidade de tratamento diferenciado e quando a diferença há de ser ponderada.

Registre-se desde de já, que o estudo objetiva demonstrar que a estrutura do Princípio da igualdade importa em igualdade real, a qual comporta necessariamente o tratamento desigual para com os desiguais, inserindo-se a questão racial nesse contexto, porquanto restará comprovado que a determinação da raça negra influencia no processo de inserção no ensino superior.

Dessarte, a pesquisa se pauta pelo paradoxo do discurso da diferença incutido na igualdade, posicionando-se no sentido de que a interpretação lógica não é óbvia, mas contrária à que assim parece.

Ilidindo-se a interpretação superficial e reducionista do Princípio da igualdade, espera-se fixar a noção de que as cotas de inserção do negro no ensino superior gozam de plena constitucionalidade, em detrimento da mendaz afirmação de ausência de racismo no país.

Sob o enfoque da dogmática jurídica, será corroborado que o negro está a míngua de medidas que o insira na democracia, sendo que aqui, por razão de razão de ordem e pela natureza da pesquisa, limitar-se-á ao ingresso no ensino superior.


2-A LEITURA CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE.

A elaboração constitucional é o alicerce de um povo. No caso da brasileira, continente da monografia, infere-se já por seu preâmbulo que ela se pauta por valores supremos, aqui destacado o da igualdade, a ser compreendido dentro de uma sociedade plural e sem preconceitos:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia nacional Constituinte para instituir o Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos sobre a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

Tais elementos constitucionais serão norteadores de todo o estudo que se segue e, por sua natureza, cumpre antes adentrar no campo da hermenêutica jurídica, a fim de demonstrar como eles se revelam.

Nos dizeres de Luiz Roberto Barroso, "a interpretação é a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance da norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto" (Interpretação e Aplicação Constitucional, Fundamento de uma Dogmática Constitucional Transformadora, pág.103).

Em sede constitucional, devido ao grande caráter de abstração de suas normas, a interpretação exige também o conceito de construção.

Enquanto a interpretação pura e simples busca o sentido de uma expressão, a compreensão considera elementos extrínsecos ao texto, visando a conclusões além do expresso.

Com isso, não se cogita afastar a interpretação constitucional da interpretação geral do direito. Tanto, que as regras de interpretação ditadas na legislação infraconstitucional serão válidas aqui.

No entanto, em vista da superioridade hierárquica, da natureza da linguagem, do conteúdo específico e do caráter político, as normas constitucionais hão de ser interpretadas sob um enfoque específico.

Para o efeito aqui pretendido, qual seja a compreensão do princípio da igualdade, releva-se dentre os fatores a serem ponderados, a natureza da linguagem.

Cumpre registrar, a elucidativa lição de Joseph Story, rememorada por Carlos Maximiliano (Hermenêutica e aplicação do direito, pág.200). Vejamos:

Nenhuma norma oferece fronteiras tão nítidas que eliminem a dificuldade de se determinar na espécie, se deve-se passar além ou ficar aquém do que as palavras parecem indicar. Quando exista congruência plena entre as palavras da norma e o sentido que lhes é atribuído pela razão, quando coincidem o elemento gramatical e o lógico, a interpretação será declarativa. Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao interprete operar uma retificação do sentido verbal, na conformidade e na medida do lógico.

Na análise da isonomia perante a lei, resta clara a incongruência, porquanto a expressão indica uma postura estática, enquanto a razão indica um movimento no sentido de atuar desigualmente com fins à igualação.

Em casos como esse, cabe a interpretação extensiva, alargando a expressão literal da norma, o que assente com a doutrina, uma vez que ela propugna consensualmente pela extensão em se tratando de normas que asseguram direitos.

A interpretação se dá conforme diferentes metodologias jurídicas. Os métodos clássicos são o gramatical, histórico, sistemático e teleológico, sendo que eles não se excluem, ao invés se complementam.

O método histórico exerce um papel eminentemente suplementar na busca pelo sentido da norma, pelo que não será aventado.

O método gramatical consiste na interpretação com base no significado das palavras que compõem o texto. É daqui que o intérprete deve partir, mesmo por que muitas das vezes esse método bastará. Contudo, leciona Luiz Roberto Barroso que "embora o espírito da norma deva ser pesquisado a partir de sua letra, cumpre evitar o excesso de apego ao texto, que pode conduzir à injustiça, à fraude e até ao ridículo" (Interpretação e Aplicação Constitucional, Fundamento de uma Dogmática Constitucional Transformadora, pág. 127).

A normas constitucionais são sintéticas e, como anteriormente dito, trazem conceitos indeterminados, de espectro aberto, o que comete ao intérprete a necessidade de integrar à norma sua valoração subjetiva.

No presente caso, a interpretação gramatical é insuficiente para revelar o sentido do princípio da igualdade. Semanticamente, o enunciado lingüístico igualdade traz a idéia de uniformidade, o que levaria a pensar como inconstitucional o tratamento diferenciado. Todavia, os outros métodos demonstram que assim não é.

O sistema jurídico compõe uma unidade de preceitos harmônicos, não sendo possível a análise de partes como se aleatórias fossem. Nessa esteira, Luiz Roberto Barroso cita Capograssi: "A interpretação não é senão a afirmação do todo, da unidade diante da particularidade e da fragmentaridade dos comandos singulares" (Interpretação e Aplicação Constitucional, Fundamento de uma Dogmática Constitucional Transformadora, pág 113).

Ao buscar o sentido da igualdade posta na Constituição, devemos também trazer a lume que ela convive harmonicamente com a pluralidade, a ausência de preconceitos, a promoção do bem de todos e com o valor máximo de justiça.

Toda norma visa um bem jurídico e é justamente esse bem que a interpretação teleológica busca explicitar. Muitos autores sentenciam ser esse método, que revela o fim da norma, o mais importante, por dizer o significado legítimo.

Nesse sentido, dispõe o art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil que na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e as exigências do bem comum.

O método em comento destaca o fundamento racional da norma e, desta forma, pode implicar em uma reforma na aplicação sem a alteração do texto.

Nesse aspecto, relaciona-se com a interpretação evolutiva, que atribui novos conteúdos a norma constitucional em razão de fatores políticos históricos e sociais.

É certo, que não é a primeira vez que a igualdade perante a lei é positivada. Contudo, o ânimo da expressão agora é outro, quer-se igualdade social, oferecendo condições e oportunidades iguais à pluralidade humana.

Gritante esse novo ânimo da Constituição na busca de uma ação afirmativa, em seu art. 3º, no qual se define os objetivos fundamentais da República.

Os incisos do dispositivo estabelecem que se buscará construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade, e quaisquer outras formas de discriminação.

Ao atentar-se aos verbos, resta indubitável a dinâmica de igualização, a intenção efetiva de transformar a sociedade, em louvável detrimento da posição estática até então adotada pelos constituintes.

Outro aspecto que condiciona a interpretação constitucional são os princípios constitucionais, à medida que denotam a ideologia da constituição, a qual deverá ser observada por toda ordem jurídica.

A teoria tridimensional do direito de Miguel Reale, afirma que sempre que ocorrer um fenômeno jurídico há um fato subjacente, um valor e uma norma(Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, pág 85 e s.). Os princípios são os valores mais relevantes da ordem jurídica. São eles que cometem significado ao fato.

No tocante à igualdade, é importante salientar que o fato no qual incidirá o valor igualdade é a desigualdade, pelo que as normas pertinentes deverão integrar esses dois elementos, não se podendo partir do pressuposto de que todos são iguais.

Os princípios normalmente são positivados, como o da igualdade, mas muitos defendem que ainda que não o fosse, continuariam existindo e legitima seria a invocação dele. Nessa linha, expõe Luiz Roberto Barroso:

Esses bem sociais supremos existem fora e acima da letra expressa das normas legais e nelas não se esgotam, até porque não tem caráter absoluto e se encontram em permanente mutação (Interpretação e Aplicação Constitucional, Fundamento de uma Dogmática Constitucional Transformadora, pág.151).

Essas afirmações reforçam a idéia de um Direito supra-legal. Assim, a enunciação desses direitos preexistente seria apenas declaratória. À luz dessa doutrina de cunho jusnaturalista, é inarredável que a justiça deve guiar toda a ordem jurídica.

Destarte, ainda que se admita que a igualdade perante a lei determine uma ação uniforme, esta interpretação redundaria na não validade do preceito, uma vez que o valor igualdade, como algo acima do posto, está pautado pela justiça e a justiça, ainda que considerada como mutante, hoje, requer um tratamento diferenciado para a pluralidade de sujeitos.

Agora, mesmo aos que revelam a igualdade perante a lei sob a ótica reducionista e mantém ainda grande apego ao positivismo, o princípio da unidade da Constituição demonstra a inafastabilidade da igualdade real.

Afinal, somente pode existir uma única ordem jurídica em um território, que vincule a vida política e social da comunidade.

Ao perscrutar a Lei Maior, evidencia-se que em toda ela perpassa uma idéia de justiça e de igualdade de condições. Quantas vezes a Constituição não desiguala pessoas e discrimina situações?

A nacionalidade (art. 12, § 3º), o sexo, (art. 40, III), a idade (art. 101) e muitos outros fatores são ponderados como ensejadores de tratamento desigual na própria constituição e estão em perfeita harmonia com a igualdade perante a lei. E o que dizer então da primeira parte do inciso II do art. 150, que veda instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, permitindo, pelo óbvio, entre contribuintes em situação desigual?

Só há uma coisa a dizer: a igualdade perante a lei comporta o tratamento desigual, desde que haja razão para tal. Valendo aqui alusão também ao princípio da interpretação conforme a constituição, uma vez que essa é a única interpretação plausível que compatibiza-se com a Carta Maior.

Outro princípio que tem adquirido cada vez mais destaque na interpretação constitucional, é o da efetividade. O direito, por este princípio, afasta-se da visão meramente formalista e realiza-se socialmente. A constituição tem uma existência própria e deve-se moldar à realidade.

Não obstante seu caráter político, a Constituição tem força jurídica e desta forma deve ser cumprida. Não há norma que nasça sem finalidade. Ensina Luiz Roberto Barroso, que "existe sempre um antagonismo entre o dever ser tipificado na norma e o ser da realidade social. Se assim não fosse, seria desnecessária a regra, pois não haveria sentido algum em impor-se, por via legal, algo que ordinariamente já ocorre" (Interpretação e Aplicação Constitucional, Fundamento de uma Dogmática Constitucional Transformadora, pág 137).

Mais uma vez, a interpretação da igualdade absoluta se mostra inviável. O dever ser é a igualdade e o ser a desigualdade. O direito deve agir no ser, a fim de transformá-lo em consonância com os valores eleitos. Ao entender-se que se deve tratar os desiguais igualmente, a situação permanece e o direito renuncia à sua função transformadora, ou seja, nega a sua razão de ser.

O ultimo princípio a ser ventilado, talvez seja o que mais ilumine as questões atinentes à isonomia. É o princípio da razoabilidade, pelo qual se faz o exame da racionalidade das normas jurídicas e dos atos do poder público.

Não há menção expressa ao princípio em tela na constituição de 88, mas não há estado democrático de direito onde se renuncia à razão.

Ainda que assim não se pense, o caráter substantivo da clausula do devido processo legal, insculpida na Carta de 88, torna exigível a razoabilidade das leis, porquanto verifica a compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e o fim, bem como a legitimidade deste.

Indiferente postá-lo no campo jusnaturalista ou dos princípios gerais de hermenêutica. Importa, é saber que a razoabilidade é um controle com base no que é sensato, pautando-se nesse conceito fluido, mas fácil de ser sentido e pela justiça, extraída dos valores fundamentais, como a paz, a solidariedade e etc.

Os motivos, meios e fins da norma devem guardar uma racionalidade: Por exemplo: se os cidadãos vivem em desigualdade (motivo) e são criadas ações afirmativas para os discriminados (meio) para se alcançar à igualdade material (fim), a norma é válida pela relação razoável dos elementos. Ao invés, se diante da desigualdade (motivo), o poder público diz que os iguais serão tratados igualmente (meio) para manter a discriminação (fim), a conexão seria irrazoável, e a norma inválida.

É inegável que legislar consiste em discriminar situações e pessoas e que o critério a ser usado é o da razoabilidade. Somente ela poderá indicar quando e quais as desigualdades hão de ser ponderadas legitimamente.

Pelo óbvio, não se deve permitir a desequiparação arbitrária, sem adequação entre meio e fim. Ademais, o valor protegido com a desigualação deve ter importância suficiente para justificá-la.

Por todas essas razões, fica claro que a igualdade perante a lei importa sim em uma impessoalidade do legislador perante a generalidade das pessoas, mas que isso não impede, ao contrário, impõe um tratamento diferenciado sempre que a lógica do estado democrático de direito indicar.

2.1- Evolução Histórica do Princípio da Igualdade.

A igualdade como ideologia sempre foi discutida em todo o mundo. No ocidente, Aristóteles trabalhou o tema durante muito tempo e o vinculou a idéia de justiça, afirmando que o legislador deve tratar de maneira igual os iguais e de maneira desigual os desiguais.

Entretanto, o conceito de igualdade aristotélica não bastava, uma vez que a igualdade não era absoluta. Não se pesava juntos, por exemplo, senhores e escravos. Assim, impôs-se uma evolução do conceito.

Entre os antigos, a igualdade era tema de propostas legislativas e almejava-se que fosse implementada na sociedade.

Na idade média, não houve avanço prático significativo, mas a idéia perpassou a era, sendo tema central entre filósofos como São Tomás de Aquino, para quem não há ordem na desigualdade.

Ao longo dos séculos, diversas correntes tentaram justificar ou afastar a idéia de igualdade. Para os nominalistas a desigualdade era intransponível, pelo que concebiam a igualdade como um fim inatingível.

Por outro lado, os idealistas propugnaram a noção de igualdade absoluta, decorrente de um direito natural.

Para Rousseau, existe uma desigualdade natural, na qual não se há o que igualar (idade, cor, força...) e outra artificial, a moral ou política, que consiste nos privilégios de uns em detrimento dos outros, mas, por não ter razão de ser, não pode prosperar.

Afinal, de acordo com a doutrina realista, todos os seres humanos, apesar das particularidades, são da mesma espécie, havendo uma igualdade. Como lembra José Afonso da Silva, "cada um possui o mesmo sistema de características inteligíveis que proporciona aptidão para existir" (Curso de Direito Constitucional Positivo, pág.189).

No bojo de tamanha discussão ideológica, inevitável se tornou a positivação do tema.

Muitos defendem que a Magna Carta do Rei João sem terra, de 1215, foi o primeiro documento a positivar o princípio da igualdade. Contudo, essa leitura é meramente formal. Afinal, tal documento foi fruto do interesse dos barões e materialmente visava, tão somente, a manutenção de privilégios.

Que pese, a burguesia jamais ter reivindicado o direito de igualdade como fez quanto à liberdade, de acordo com os fundamentos de domínio de classe da democracia liberal burguesa.

O constitucionalismo brasileiro sempre ostentou o princípio da isonomia, o que não deve levar a falsa ilação de que tenha se verificado nos moldes hoje almejados. Isso não ocorreu nem em sua acepção formal, uma vez que o princípio chegou a conviver até mesmo com a escravatura, na carta de 1824, quando negros não eram considerados gente.

Com o advento da República, na conseguinte Constituição de 1891, todos os privilégios foram formalmente extirpados e previu-se que todos seriam iguais perante a lei. Todavia, com o tempo aferiu-se que no Brasil, em detrimento da República, o autoritarismo, os títulos e as arbitrariedades, ainda que não escritas, foram mantidas sob a força.

A de 1934 mantêm a igualdade perante a lei, mas traz um novo elemento, dizendo que não haveria distinções por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas, ou seja, assume que existem questões tradicionalmente ensejadoras de desigualdade e as recrimina, pelo menos em tese.

Entretanto, a oportuna menção inovadora foi excluída da Constituição seguinte, a de 1937. Na vigência desta, destaca-se a Consolidação das Leis do Trabalho, a qual tornou defesa a diferenciação nos rendimentos com base no sexo, nacionalidade ou idade. Na prática, nossos dias revelam a insuficiência da previsão.

A Constituição de 1946 reafirmou o princípio da igualdade e proibiu-se a propaganda de preconceitos de raça ou classe. Vejamos o que diz o Ministro do Supremo Tribunal do Trabalho Carlos Alberto Reis de Paula a este respeito:

Introduziu-se assim, no cenário jurídico, por uma via indireta, a lei do silêncio, inviabilizando-se, de uma forma mais clara, mais incisiva, mais perceptível, o trato do preconceito (Seminário "discriminação e sistema legal brasileiro, promovido pelo Supremo Tribunal do Trabalho/ Palestra: ótica constitucional-a igualdade e as ações afirmativas. 20/11/2002)".

Passados dois anos da promulgação desta Carta, nasce a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamando que "todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, opinião pública ou de qualquer natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição". Com isso, o Brasil, seguindo a comunidade internacional, se atêm para a necessidade de se observar o princípio da realidade.

Sob a vigência da Carta em comento, vale mencionar o surgimento da primeira lei penal sobre a discriminação no Brasil, em 1951, graças a Gilberto Freire e Afonso Arinos, tendo este criticado no Jornal Folha de São Paulo de 08 de junho de 1980: "A lei funciona, vamos dizer, à brasileira, através de uma conotação mais do tipo sociológico do que a rigor jurídico...".

A respeito da Constituição de 1964, pertine mencionar ainda que o Brasil tornou-se signatário da Convenção nº111 da Organização Internacional do trabalho, a qual definiu a discriminação como "toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha o efeito de anular a igualdade de oportunidade ou de tratamento em emprego ou profissão".

Persistiu a formalidade pura e simples do preceito na Carta Política de 1967, havendo que se mencionar somente que se deu a constitucionalização da punição do preconceito de raça.

Em 1968, a Convenção Internacional sobre eliminação de todas as formas de racismo, ratificada pelo Brasil, manifesta um importante salto na concepção da igualdade, ao dispor que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais", admitindo a necessidade e a validade de ações para o progresso de determinados grupos raciais.

A Constituição de 1969, em sua emenda nº1 proclamou tão somente que não seria tolerada a discriminação.

Dessarte, após séculos de formalismo e iluminados por densa doutrina que muito avançou na direção de comprometer a isonomia com o social, devendo ser observada inarredavelmente pelo legislador, administrador, julgador e toda a sociedade, os constituintes da atual Carta buscam redirecionar a ordem jurídica de forma a recompor uma sociedade desigualada pelo arbítrio. Por isso, nos dizeres de Cármem Lúcia, "o princípio mais vigoroso juridicamente, no documento constitucional, é o da igualdade" (O princípio constitucional da igualdade, pág 67).

Irrepreensível o conteúdo da Constituição de 5 de outubro de 1988, no que pertine à igualdade. Afinal, ela inovou já em seu preâmbulo ao eleger a igualdade como valor supremo de uma sociedade pluralista e sem preconceitos.

O art. 3º denota uma ação afirmativa, uma determinação para se mudar a realidade em consonância com os valores de um Estado do bem estar social. Como dito alhures, objetiva-se, por exemplo, promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Além disso, na seara dos direitos e garantias individuais, destaca-se em relação ao tema vergastado o caput do art. 5º, o qual se inicia com a previsão de que todos são iguais perante a lei e ainda garante aos brasileiros e estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito a igualdade, dentre outros.

Dentre os setenta e sete inciso seguintes, cabe citar o XLI, que define que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais e o XLII, segundo o qual a prática de racismo constitui crime inafiançável e imprescritível.

E ainda, coaduna com tais ditames o §1º do mesmo artigo, o qual comete aplicação imediata às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.

Em verdade, não se depreende a noção de igualdade apenas nos dispositivos supra mencionados. A igualdade permeia toda a constituição, ora igualando e ora desigualando para se alcançar à igualdade de oportunidades.

Quantos não são os dispositivos que se atêm à igualdade. A universalidade da seguridade social, a declaração de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações sem impedir prerrogativas inerentes ao sexo, a igualdade de acesso e permanência na escola.

Contudo, por falta de vontade política, a constituição cidadã também não tem sido suficiente para igualar materialmente, mas o capítulo seguinte demonstrará ser imperioso a implementação de medidas a esse fim.

2.2 - O paradoxo do discurso da diferença incutido na igualdade.

Obviamente, perante a infinita pluralidade de pessoas, a lei não pode alcançar peculiaridades atinentes a cada um. Todavia, certas características físicas, sociais e psicológicas ressaltam, permitindo e obrigando que se legisle tendo-as em conta.

Quando se diz que o legislador não deve distinguir, deve ser impessoal, não significa que a lei tratará todos absolutamente iguais. Nesse sentido, esclarece José Afonso da Silva, em citação de Petzold:

O tratamento igual não se dirige a pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que os "iguais" podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador (Curso de Direito Constitucional Positivo, pág. 192).

Desta feita. É preciso rechaçar o mito de que o legislador tem que partir do princípio de que todos são efetivamente idênticos. O que o legislador deve fazer, é encontrar os aspectos das pessoas que se relacionam com a essência da Lei, e, aí sim, tratar aquelas que estão em situação idêntica, perante a lei, de maneira igual.

As pessoas estão em situações ora iguais e ora desiguais, de acordo com os elementos que são ponderados. Seabra Fagundes, também citado por José Afonso da Silva, lembra que "os conceitos de igualdade e desigualdade são relativos, impõem a confrontação e o contraste entre duas ou várias situações, pelo que onde uma existe não é possível indagar de tratamento igual ou discriminatório" (Curso de Direito Constitucional Positivo, pg 192).

A Constituição estabelece e a sociedade atual busca a igualdade, mas não é possível chegar aos direitos iguais sem antes refletirmos sobre a diversidade, que é o que nos legitima como seres humanos.Conforme ressalta a celebrada socióloga Cláudia Werneck, "diferentes não são os deficientes, os gays ou os negros. Diferentes somos todos nós" (Jornal Estado de Minas, 12 de novembro de 2001, pg 28).

A desigualdade deve ser o fundamento jurídico para a igualação. E, por sua vez, essa igualação deve manifestar o respeito à pluralidade humana. Do contrário, o próprio Estado democrático inviabiliza-se, conforme expõe Cármem Lúcia, acrescentando que "igualdade princípio não pode significar a uniformidade de pessoas. Isso conduziria e traduziria incontestável e inaceitável totalitarismo".(O princípio Constitucional da Igualdade, pág 15).

Sendo a desigualdade um fato incontestável, ao direito cabe a criação de normas que permitam a igualdade de oportunidades, consagrando a dignidade humana.

Afinal, não somos todos iguais em vista da natureza multiforme do homem, mas sim, diante do fato de que pertencemos à mesma espécie, na qual não se encontra base legítima para a alienação da dignidade de qualquer membro.

Não há um único conteúdo para o princípio da igualdade. Aqui, busca-se a compreensão do princípio afeito à necessidade de comunhão justa de objetivos dos membros da comunidade política estatal, conforme o sistema constitucional brasileiro determina.

Como anteriormente demonstrado, a Constituição manifesta com vigor sua determinação na mudança de estrutura na direção da igualdade econômica, social, política. Não se trata de uma regra a ser observada tão somente pelo legislador. É uma obrigação do governante perante os governados e presente até mesmo nas relações entre os cidadãos.

Agora, não basta o legislativo se abster de legislar de forma contrária ao princípio. Toda a máquina estatal deve se voltar à igualação. Deve agir efetivamente de forma a oferecer a cada um uma condição de vida apta a oferecer caminhos dignos ao desenvolvimento pessoal e profissional, consonante a sua singularidade.

Destarte, o que permanece à míngua de constitucionalidade é a utilização de elementos pessoais - destacado o sexo, a raça, a cor, a idade e o credo – em razão de juízo de valor previamente concebido e sem relação lógica com o bem jurídico chancelado.

No entanto, não só nada impede, mas ao contrário obriga, que os fatores que guardem coerência com o interesse protegido sejam prudentemente ponderados, para a consecução de fórmula normativa efetivamente igualadora.


3- O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL

É imperioso admitir-se que a democracia racial no Brasil é um mito. Durante décadas, manteve-se a idéia de que este era o país da miscigenação, onde todas as raças viviam harmonicamente, não havendo um por que para se distinguir etnias e suas implicações, porquanto, na prática, isso não alterava a situação de ninguém.

Urge ressaltar, que uma das mais poderosas armas para a manutenção de privilégios é a aparência de não existirem, não suscitando assim nenhuma forma de indignação ou revolta. Por isso, o maior progresso da nação no combate à discriminação foi assumir sua existência. O marco desta assunção ocorreu em Durban, na Conferência Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância.

Nessa histórica conferência, o Brasil mostrou ao mundo pela primeira vez sua face racista e iníqua, causando surpresa nos delegados de muitas nações, as quais, até então, o país se dizia imune ao problema.

Agora, espera-se que haja o fomento da discussão e o conseqüente surgimento de soluções a uma das mais graves máculas da sociedade brasileira: os negros ainda não foram incorporados à democracia.

3.1 - Democracia Formal e Material

Em essência, podemos afirmar que democracia é o sistema político que conduz a vida social pautando-se pelos princípios da igualdade e da liberdade de todos os homens.

O conceito de democracia compõe-se de elementos imprecisos, os quais, não bem definidos, podem levar a uma deturpação do que é democrático.

Desta forma, é preciso diferenciar os Estados democráticos em substancialmente democráticos e formalmente democráticos. .

Os estados formalmente democráticos não são materialmente afeitos aos valores democráticos da liberdade e da igualdade, a par dos governantes serem eleitos pelo povo, de haver separação dos poderes e, aparentemente, fundar-se na legalidade.

Essa mera exteriorização democrática é quista e mantida pelas elites dominantes, uma vez que salta aos olhos o fato da democracia e o desenvolvimento nacional andarem quase sempre juntos, parecendo até que são expressões sinônimas.

As elites só permitem o desenvolvimento democrático enquanto não ameaçam seus privilégios. Suprimindo-a em seu desenvolvimento natural e submetendo-a aos seus interesses.

Pela ilegitimidade de sua formação, superficial por não resultar de uma natural maturação política, a democracia não se presta a efetivar sua razão de ser.

Além disso, não dispõem os cidadãos dos meios indispensáveis para a garantia de seus direitos formalmente anunciados. E, não bastando, vivem em condições econômicas meramente para a sobrevivência, não têm acesso à educação e cultura, pelo que são manipulados ao sabor dos dominadores. Nem mesmo a consciência da soberania popular é conferida a seus, ditos, titulares.

Sobre isso, vale citar Cármem Lúcia:

Não se faz democracia com desigualdade jurídica, nem se propõe direito legítimo que não se arrime em atuação estatal idêntica entre os cidadãos. Os regimes totalitários fizeram seu discurso, e com isso uniformizaram a sociedade na miséria e no desrespeito aos direitos fundamentais. Pensa-se como democracia como o exercício dos direitos igualados, às oportunidades equilibradas, as circunstâncias de vida instaladas nos mesmos planos jurídicos, políticos, sociais e econômicos (O Princípio Constitucional da Igualdade, pág 45).

As tradicionais funções estatais extraídas do Estado Liberal já não mais bastam quando se quer evoluir ao estado de democracia. Para tanto, faz-se necessárias ações afirmativas, uma vez que a democracia e, pelo óbvio, as liberdades e igualdades, ainda são aspirações.

A respeito do Brasil, manifesta-se O Ministro Carlos Alberto de Reis Paula:

Cidadania não combina com desigualdade. República não combina com preconceito. Democracia não combina com discriminação. E, no entanto, no Brasil que se diz querer republicano e democrático, o cidadão ainda é uma elite, pela multiplicidade de preconceitos que subsistem, mesmo sob o manto fácil do silêncio branco com os negros, da palavra gentil com as mulheres da esmola superior com os pobres, da frase lida para os analfabetos...Nesse cenário sócio-político e econômico, não seria verdadeiramente democrática a leitura superficial e preconceituosa da Constituição, nem seria verdadeiramente cidadão o leitor que não lhe rebuscasse a alma, apregoando o discurso fácil dos igualados superiormente em nossa história feita pelas mãos calejadas dos discriminados (Seminário "discriminação e sistema legal brasileiro, promovido pelo Supremo Tribunal do Trabalho/Palestra: ótica constitucional: a igualdade e as ações afirmativas. 20/11/2002)".

Para que as democracias meramente formais possam ascender a uma condição transitória à democracia, é crucial que passem a adotar uma postura transformadora.

3.2-A marginalização do negro como fenômeno histórico

Nos dizeres de Carmem Lúcia, "racismo é a prática política que marginaliza e inferioriza determinadas pessoas em relação à referência superior de outra raça a quem eles não pertençam" (O Princípio Constitucional da Igualdade 76).

Em toda a história, os negros foram uns dos que mais sofreram com o racismo, fundado na cor, raça e origem.

No Brasil, após 500(quinhentos) anos de história e passados reis, feitores, ditadores e presidentes, de certa forma permanece a visão do negro como mercadoria.

O drama dos negros começa na África. As tribos disputavam a permanência e a conquista de áreas, e, com o advento do mercantilismo, os derrotados transformavam-se em peças, extremamente úteis ao imperialismo europeu na forma resumida de mão-de-obra. Valendo conforme os dentes, canelas, músculos, tal qual os animais.

O Brasil foi o último país americano a abolir a escravatura, somente após terem aqui desembarcados 3 milhões de negros, sendo que a cada três que embarcavam na África, apenas um chegava vivo.

Desde de 1550, quando chegaram os primeiros escravos, até hoje, persistiu o problema de como integrar uma população tão desigual

Contudo, sempre restou evidente, mormente nos Brasis colonial e imperial, a vontade do país ser uma nação branca, havendo sempre uma vergonha perante o resto do mundo, uma frustração pela "mácula preta", pelo "primitivismo cultural" do negro.

Esperava-se sempre civilizar o negro pelo trabalho, poder tê-lo como um animal domesticado. Assim não sendo, atribuiu-se ao negro os atributos do vício, da brutalidade, da selvageria...

Pelo óbvio, como toda ideologia discriminatória, não faltaram fundamentos frívolos - científicos, religiosos, morais - para a diferenciação. A antropologia evolucionista dos primatas, a descendência desvirtuada dos filhos de Caim, a natureza criminosa...

Em 1888, a Lei Áurea extinguiu a escravidão e revogou todas as disposições em contrário. Como salta aos olhos, não houve a menor preocupação em regular a sobrevivência dos negros então libertados.

Com a República, surgiram as primeiras e intencionalmente acanhadas tentativas de integração social do negro

Somente com o movimento modernista, na década de trinta, a República começou a reconhecer e a se deixar entender a lógica que massacrou o negro no país. Desta forma, extirpou-se as justificativas do sistema escravagista, tendo ele sido declarado desumano. Reconheceu-se a dívida cultural com os negros e admitiu-se que o povo brasileiro constitui-se de um único povo mestiço.

Mesmo assim, permeou por todo o século XX a visão distorcida dos negros. Como, por exemplo, a de que pretos têm propensão para o crime, sendo que não raras vezes chegou-se ao absurdo de se sentenciar sem perquirir as causas da delinqüência.

Mais uma vez, afere-se que a força insensata do racismo invisível toliu a busca pelas razões essenciais dos problemas do negro. Foi e é mais fácil relacionar a questão dos altos índices de criminalidade entre os negros com sua natureza, do que admitir que o fato resulta de terem sido eles, após a escravidão, relegados ao segundo plano de convivência social, restando-lhes amontoarem-se em favelas sob condições desumanas.

Nessa seara, passagem de Celso Antônio Bandeira de Mello mostra-se reveladora tanto em relação à postura dos negros coagidos, quanto a dos brancos receosos pela perda de seus privilégios:

Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo risco ao seu bem estar substituem suas convicções e ideais mais elevados pela pragmáticas racionalizações e atacam com zoológica violência (A democracia e suas dificuldades contemporâneas. In: Jus Navegandi, n.51. -Internet- http://www.jus.com.br/doutrina /texto.asp?id-2290-capturado em 05.nov.2001).

Isso indica por que muitos pretos furtados em sua sobrevivência digna entram para criminalidade e por que muitos brancos injustificadamente receosos pela perda de sua segurança- leia privilégios-, criam surtos de racismo.

Contudo, isso não há que ser aceito, uma vez que se trata de um retorno a um estado de natureza e barbárie, contrária a subsistência de qualquer Estado, e, menos ainda, de um Estado democrático, onde todos podem viver segura e dignamente.

Ainda hoje a segregação existe em quase todo o mundo e o Brasil não foge a regra, apesar de repudiar o racismo em suas relações internacionais e internas (art. 4º da Constituição da República).

Apesar de formalmente não se admitir qualquer forma de racismo, o que levando-se em conta a história já é um grande avanço, negros e brancos estão inseridos em uma realidade cheia de espectros que associam o ser negro ao pior e o ser branco ao melhor.

Exemplos disso não faltam: as princesas, as bonecas, as estrelas da novela, os ricos..., sempre nos remetem a pessoas brancas. Por sua vez, os bandidos, os pobres, as faxineiras...,nos lembram os negros. Nada mais flagrante do que a cor negra representar o mal, o sujo... E a branca o bem, a paz...

Para que se alcance verdadeiramente a igualdade, imperativo que se destruam os mitos e os espectros em que negros e brancos estão imersos. É preciso ir além da proibição do racismo. É preciso demonstrar e fixar culturalmente a idéia de que a diferença das raças não implica em superioridade de uma ou de outra.

Por tudo isso, percebe-se que não há como tratar negros pobres e brancos pobres da mesma forma em uma cultura tão racista. Pois, os primeiros são duplamente discriminados. O favelado preto é pior que o branco. A questão racial sobrepõe-se à questão de classes.

Não se quer defender que pobres devem ser afastados do tratamento diferenciado. De forma alguma. Entretanto, cumpre estabelecer para a criação de medidas eficazes, que não se trata de um mesmo problema.

O negro sofreu um atraso de quase quatrocentos anos no seu desenvolvimento social e isso requer um tratamento específico. Conforme expõe a professora da Puc-Minas e coordenadora do N’zinga – coletivo de mulheres negras de Minas Gerais – Benilda Regina de Brito, "o negro é credor social de um país que promoveu sua acumulação primitiva de capital pela exploração do trabalho escravo" (informativo Puc-Minas/junho de 2002, pg.9).

O que para muitos pode soar estranho, vem ocorrendo em países desenvolvidos tal como a Alemanha, a qual tem concedido indenizações milionárias às vítimas e parentes das vítimas do nazismo.

Com certeza, o cabimento ou não de indenizações aos negros seria assunto para fervorosas discussões. No entanto, não há justificativa racional para negar-lhes a integração social.

3.2.1- Dados que comprovam a marginalização

Os dados a seguir apresentados foram capturados junto ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), através da publicação "desigualdade racial no Brasil: evolução das condições de vida na década de 90", de autoria de Ricardo Henriques, e demonstram como o recorte racial é revelador das desigualdades economico-sociais brasileiras.

Os dados demonstram que os principais determinantes da pobreza no Brasil estão associados, sobretudo, à desigualdade na distribuição de recursos. Isso significa, que o Brasil, tanto em termos absolutos, como em relação aos diversos países do mundo, não pode ser considerado um país pobre, mas, sem dúvida, deve ser considerado um país injusto, mormente em relação aos negros.

O Brasil é a segunda maior nação negra do mundo, atrás somente da Nigéria. Em 1999, de acordo com a pesquisa nacional por amostra de domicílios, entre os cerca de 160 milhões de indivíduos que compunham a população brasileira, 54% se declararam brancos, 45,3% se declararam pretos ou pardos, 0,46% amarelos e 0,16 índios.

No que se refere à população masculina, temos que 53% são brancos e 46,4% negros; entre as mulheres, 55% são brancas e 44,3% são negras.

De acordo com a pesquisa de 1999, os negros representam 45% da população brasileira, mas correspondem a 64% da população pobre e 69% da população indigente. Os brancos, por sua vez, são 54% da população total, mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes.

Dos 53 milhões de brasileiros pobres, 19 milhões são brancos e 33,7 milhões são negros e pardos. Entre os 22 milhões de indigentes, temos 6,8 milhões de brancos e 15,1% de negros e pardos.

Assim, infere-se que os negros correspondem à cerca de 63% da população pobre e a ilação incontornável é que nascer preto aumenta significativamente a probabilidade de ser um brasileiro pobre por toda a vida, pois ao longo de toda a pirâmide etária do país existe uma sobre-representação da comunidade negra no interior das populações pobre e indigente.

Os negros representam 70% dos 10% mais pobres da população, enquanto, entre o décimo mais rico da renda nacional, somente 15% da população é negra.

Em um recorte ainda mais detalhado, considerando os centésimos da distribuição de renda brasileira, observa-se que de cada dez pessoas no segmento mais pobre da distribuição de renda, oito são negros. De cada dez pessoas participantes do último centésimo mais rico, somente uma é negra.

E mais, mesmo no segmento mais rico, os brancos ricos são 20% mais ricos que os negros pertencentes a ele.

Os brancos representam 85% da população do décimo mais rico da sociedade brasileira e apropriam-se de 87% da renda desse décimo. Esse contingente da população branca, apropria-se de 41% da renda total do Brasil. Os negros que se encontram nesse extremo mais alto da renda brasileira se apropriam de 6% da renda total do país.

A metade mais pobre da população se apropria de cerca de 12,5% da renda do país. Em 1999, entre os 50% mais pobres do país encontram-se 40% de brancos, que se apropriam de 5,5% da renda do país. Os negros, por sua vez, representam 59,6% desse conjunto pobre da população, e se apropriam de 7% da renda do país.

O pior, é que esse quadro manteve-se inalterado por toda a década de 90, donde constata-se que a sociedade não tem avançado espontaneamente no sentido da igualização. Pasmem: "O Brasil branco é 2,5 vezes mais rico que o Brasil negro".

Outro importante aspecto que denota a situação do negro no Brasil é a educação.

A escolaridade de um jovem negro no Brasil, com 25 anos de idade, gira em torno de 6 anos de estudo; um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo. O diferencial é de 2,3 anos de estudo.

A escolaridade média entre os brancos e os negros tem aumentado de forma contínua ao longo do século, mas o padrão de discriminação racial, expresso pelo diferencial nos anos de escolaridade entre brancos e negros, permanece inalterado.

Interessante observar também, que os jovens negros apresentam em todos os anos, níveis de qualidade no aprendizado menores que os brancos. Os níveis de freqüência à escola e de analfabetismo por exemplo, são piores entre os jovens negros do que entre os brancos. Em 1999, 8% dos negros entre 15 e 25 anos eram analfabetos, enquanto entre os brancos da mesma faixa etária o índice é de 3%.

As maiores diferenças absolutas em favor dos brancos encontram-se nos segmentos mais avançados do ensino formal. Por exemplo, entre os jovens brancos de 18 a 23 anos, 63% não completaram o ensino secundário. Embora elevado, esse valor não se compara aos 84% de jovens negros da mesma idade que ainda não concluíram o ensino fundamental.

A realidade do ensino superior é desoladora. Em 1999, 89% dos brancos entre 18 e 25 anos não haviam ingressado na universidade. Os jovens negros nessa faixa de idade, por sua vez, praticamente não dispõem de direito ao acesso no ensino superior, na medida em que 98% deles não ingressam na universidade. Ou seja, só 2% dos negros estão no ensino superior.

Vale citar, que na USP, apenas 8,3% dos alunos são afro-descendentes, enquanto os amarelos consistem em 13% dos alunos da citada universidade, mesmo compondo menos de 1% da população brasileira.

A taxa de analfabetismo entre os brancos com mais de 15 anos é de 8,3%. Entre os negros, essa taxa sobe para 19,8%. Agora, tomando por base os analfabetos funcionais, com menos de 4 anos de escolaridade, observa-se 26,4% entre os brancos, contra 46,9% entre os negros. Portanto, quase, metade da população negra com mais de 25 anos, pode ser considerada analfabeta funcional.

Em 1999, não completaram o ensino fundamental 57,4% dos alunos brancos e 75,3% dos alunos negros. Paralelamente, só completaram o ensino médio 12,9% dos brancos, e 3,3% dos negros. Além disso, todos os níveis dos indicadores de escolaridade dos adultos negros, no ano de 1999, são ainda muito inferiores aos dos brancos em 1992.

O nível de vida dos negros mostra-se inferior em todos os campos. No ano de 1999, 13% das crianças negras participavam do mercado de trabalho. Por seu turno, 20% das crianças negras participavam do mercado de trabalho.

No que tange ao desemprego, observou-se em 1999, que apesar da população economicamente ativa dos brancos (43 milhões) ser muito superior à dos negros (35,7 milhões), o contingente de 7,6 milhões de desempregados é equânime entre as duas raças. Destarte, a taxa de desempregados entre os brancos é de 8,9%, e entre os negros é de 10,6%.

Muitos são os outros indicativos da discriminação do negro na sociedade brasileira, como por exemplo, a Habitação e o consumo de Bens duráveis.

Assim, não resta amparo algum à velha noção de inexistência de racismo no Brasil, pelo que não há como afastarmos a constitucionalidade de ações afirmativas com o escopo de suprimir esta evidente desigualdade.


4 - AS AÇÕES AFIRMATIVAS

A Convenção Internacional Sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 26 de março de 1968 dispôs que "não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais, tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades".

Desta forma, o país adentrou ao campo das ações afirmativas, assumindo a postura de atuar positivamente na direção de agente transformador para a efetiva igualização de condições aos grupos e indivíduos.

Todavia, pouquíssimo se fez desde de então, para a implementação de tais ações. Mas, a partir da Conferência Mundial da ONU Contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia a Intolerância Correlata, que ocorreu no mês de Setembro de 2001, muito tem se avançado na discussão do tema.

Como resultado de diversas conferências internacionais, em 1990, definiram-se sete metas a serem alcançadas até 2015, no intuito de reduzir drasticamente a pobreza e as condições subumanas de vida, quais sejam:

redução da proporção de pessoas vivendo em extrema pobreza em 50%;

eliminação de disparidades em gênero na educação(2005);

redução da mortalidade infantil das crianças menores de cinco anos em 75%;

redução da mortalidade materna;

acesso universal a serviços de saúde reprodutiva;

implementação de estratégias nacionais para o desenvolvimento sustentado até 2005, de forma a reverter as perdas de recursos ambientais até 2015.

Como se vê, mais uma vez a questão racial ficou de fora. Contudo, a plataforma de Durban (África do Sul) sanou esse vício, com a criação da oitava meta: a redução ou eliminação das defasagens/gaps raciais e étnicos antes de 2015.

Com o programa de ação aprovado em Durban, importantes assuntos, até então ignorados, passaram a compor a pauta das Nações Unidas, tais como: a efetivação da igualdade como inserção social e econômica da comunidade negra; a liberdade de culto às religiões africanas...

Talvez o maior mérito, foi o reconhecimento da necessidade de promover a integração de todas as pessoas discriminadas através de ações positivas por parte das instituições públicas e privadas.

Em julho deste ano, realizou-se na Cidade do México o Primeiro Seminário Regional de Especialistas para América Latina e Caribe sobre o Cumprimento do Programa de Ação Adotado em Durban.

Reiterou-se a necessidade de efetivação das medidas específicas de combate ao racismo contra os grupos vulneráveis, solicitou-se ao Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos a criação de uma Convenção Interamericana Contra a Discriminação Racial e sugeriu-se que as agências e organizações de desenvolvimento levantem e apresentem dados anuais em relação às metas almejadas.

O cumprimento da plataforma de Durban é um compromisso do Estado brasileiro com a comunidade internacional e com a população afro-descendente do país. Assim, ele tem dado os primeiros passos nessa direção. Tanto, que o governo tem ostentado em conferências e publicidades, que o tema do novo milênio é a "igualdade de oportunidades".

Dessarte, criou-se um grande debate entre os movimentos sociais e o governo brasileiro, visando à mudança do quadro de desigualdade social no país, mormente no âmbito do trabalho e da educação, através das ações afirmativas. Felizmente, diversos Projetos de Lei e até mesmo o programa de governo do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, indicam uma nova legislação atinente ao tema.

Além disso, a sociedade também começa a apresentar indícios de que entende e propugna pela existência das ações afirmativas. Louvável exemplo foi a primeira recomendação extraída da Conferência Estadual da OAB/MG (Poços de Caldas, junho de 2002). Vejamos:

"Reafirmar os compromissos da OAB/MG com a efetividade dos direitos fundamentais da cidadania e exigir ações concretas do Poder Público em favor da inclusão social".

Após a Conferência de Durban, ressoa mais alto, em todos os níveis e setores, o grito pela real promoção de igualdades.

4.1- Direto x Privilégio

Atualmente, calorosas discussões estão sendo travadas a respeitos das ações afirmativas e, principalmente, em relação à criação de cotas, devido à iminência de sua normatização.

Pelo óbvio, o tema não refoge à característica constante em todas discussões jurídicas, havendo parte da doutrina que questiona a legalidade e a conveniência da criação de cotas para a inserção do negro no ensino superior.

Nessa linha, posicionam-se os professores e juristas William Douglas e Sylvio Motta, em artigo publicado pela revista Consulex (Reserva de Vagas em Universidades Públicas - ano VI – nº127 – 30 de abril de 2002, pg. 28 a 30). O texto expõe as questões contrárias às cotas, valendo suscitar e combater os principais argumentos.

Os autores defendem a inconstitucionalidade de se distinguir as pessoas pela cor da pele.

Ora, a grande maioria da doutrina em todo mundo consente em relação à realização efetiva do princípio da igualdade em consonância com os ideais democráticos, através de medidas positivas.

Se a intenção do princípio fosse manter a situação, sua existência seria dispensável. Ele existe para promover a igualdade, conforme se depreende de toda a constituição, como alhures vergastado.

Estranhamente, ao final do mesmo artigo, em referência e defesa da criação de cotas a população de baixa renda, manifestam-se assim os autores, anotando que "nossas leis estão repletas de tratamentos diferenciados em prol da igualdade: tributos diferenciados, usucapiões especiais, Defensoria Pública, proteções especiais ao índio, ao idoso à criança, ao adolescente, etc".

Então, a diferenciação pela cor da pele também não pode ser vista como inconstitucional, uma vez que a lógica capta perfeitamente a diversidade de situações. E valendo-se de citação do próprio artigo ora questionado, vale reiterar a seguinte passagem bíblica: "não necessitam de médico os que estão sãos, mas sim os que estão enfermos" -Jesus (Lucas, 5:31).

Outro argumento vastamente utilizado é de que a criação das cotas e das demais ações afirmativas seria a assunção de inferioridade da raça beneficiada, o que seria intolerável.

Contudo, não há que se considerar essa "defesa" quimera à raça negra. Afinal, apesar de não se relacionar com a natureza das raças, que não revela desequiparação, a raça negra, por medidas artificiais, foi realmente colocada em situação de inferioridade. Os dados e o dia a dia comprovam a condição subumana e inferior de vida da grande maioria dos negros.

Impugnam-se as cotas também, por que existiriam em detrimento de outros grupos discriminados, tais como os índios. Acontece, que a justiça para com um grupo determinado apenas criaria um valoroso precedente a outros grupos discriminados, não impedindo em nada, ao contrário, ajudando na conquista de seus direitos.

Além disso, defende-se que "utilizar a desculpa do passado para promover a discriminação para o futuro é apenas reincidir em erros pretéritos, tentar corrigir uma distorção criando novas ou repetindo-as apenas em sentido contrário".

O que é colocado como desculpa do passado, são quase quatrocentos anos de escravidão. Ocorre que o equívoco não se encontra apenas no desprezo em relação a problema tão grave, mas também no tempo verbal.

O erro não ocorreu. Ele ainda hoje é reiterado diariamente. A exclusão continua, pelo que, aqui, defende-se não uma espécie de vingança, mas, apenas, a inserção de todos na sociedade conforme determina a Constituição.

Por derradeiro, menciona-se provavelmente o mais usado argumento em desfavor das cotas, qual seja a suposta impossibilidade de se aferir quem é, ou não, negro.

Inicialmente, o Direito jamais pode se escusar de regular uma situação em vista da possibilidade de existência de fraude. Ninguém contesta a existência do negro. Assim, se existe alguém a quem é dado um direito, cabe ao legislador criar a melhor forma de garanti-lo.

A proposta de cotas deve ser implantada e aperfeiçoada, até prova em contrário. Não é por que no Brasil existem milhares de sonegadores, que se defenda a extinção da cobrança de impostos, mas tão somente a evolução dos meios de cobrança e controle.

Ademais, o ideal do branqueamento é tão forte, que dificilmente um branco se assumiria negro. E ainda que haja, e ao certo acontecerá, diversas soluções podem ser colocadas, como um inquérito genealógico coadunando com a percepção visual.

A verdade, é que nunca se discutiu quem seria o negro para se discriminar. Agora, para se reparar alega-se dificuldades suficientes para que seja suprimido um direito certo. Negro, é quem é tratado como negro.

4.2- A Educação e as Cotas no Ingresso ao Ensino Superior como Fomentadoras de Igualdade

O homem é um ser inacabado, incompleto, assim como uma árvore ou um animal. A diferença, segundo o cultuado educador Paulo Freire, é que o ser humano tem essa consciência e assim busca incessantemente ser mais (Educação e Mudança, pág.27).

Donde conclui-se, que um Estado do Bem Estar Social, como o Brasil, jamais pode escusar-se de ofertar educação a toda população.

Em uma nação que, em tese, pauta-se pela ordem em vistas ao progresso, a educação é primordial, a medida em que ela caminha lado a lado com a idéia de melhoria, conforme mostra a história. Por definição, a "educação é a prática dos meios aptos para o desenvolvimento das possibilidades humanas" (Octavi Fullat, Filosofia da Educação, pg. 149).

Sendo a educação o principal processo socializador, quem é colocado à margem do meio social deixa de progredir e entra em um ciclo que o afasta cada vez mais do meio. Por isso, ao se falar em educação, no seio de uma democracia, que inevitavelmente a humaniza, imperiosa se torna a universalização da educação a todos, até o limite das reais possibilidades de cada indivíduo.

Nessa esteira, dispôs a Constituição Federal de 1988, que "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade".

Agora, cumpre a árdua tarefa de ultrapassar a enfática disposição constitucional e efetivá-la, com consciência de sua importância e da infinidade de positivas conseqüências que podem ser geradas pela educação.

Uma dessas possibilidades, é o atendimento das justas necessidades e a inserção social de grande parcela da população, através da promoção da igualdade entre pretos e brancos.

Com certeza, uma das principais formas de se alcançar essa situação é a criação de cotas para ingresso de negros no ensino superior.

Afinal, a universidade tem função de destaque no prol da sociedade e da cultura. Tanto, que um dos seus principais compromissos é estender a toda a comunidade as idéias e as ações nela cultivadas. O ensino superior não acaba em si e os privilegiados alunos têm um dever para com a sociedade.

Objetiva-se também a formação de seres humanos capazes de refletir em profundidade as questões de sua especialidade e os problemas sociais de maneira holística.

Diante disso, espera-se que com a inserção efetiva de negros na universidade, em quantidade suficiente, crie-se uma elite negra intelectual atuante e consciente do papel de fundo que sua educação superior representa à comunidade negra e, em última instância, aos cidadãos de toda a democracia.

Nessa área, experiências de sucesso foram e estão sendo realizadas em outros países.

Na Califórnia, Estados Unidos, foram adotados sistemas de cotas durante mais de 20(vinte) anos, e realmente formou-se uma elite intelectual negra, que tem impulsionado o ingresso de outros negros, e têm sabido cobrar a igualização. Os Estados Unidos ainda mantêm universidades para negros, sendo duas públicas.

Na Malásia, implementou-se política de cotas para malaios puros, perante o fato de que somente os descendentes de chineses chegavam a faculdade. Satisfatórios resultados já foram alcançados.

Na Belgica, foram concedidas bolsas de formação a toda a população negra, com duração de um ano. Após seleção, os melhores alunos ganharam bolsas e entraram nas faculdades. Vários intelectuais negros saíram dessa iniciativa, inclusive o Professor de Antropologia da USP, Kabengele Munanga.

Tal exemplo derroga outra afirmação contraria as cotas, a de que cairiam os níveis dos profissionais e da universidade.

Como explicou o próprio Kabengele, no Seminário Nacional de Ações Afirmativas promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, as universidades dispõem de recursos para a eventual necessidade de complementação da formação. Ademais, o diploma não garante o emprego. Logo, os negros, bem como qualquer outro universitário, se empenharão no aperfeiçoamento.

Hodiernamente, sabe-se o acerto das palavras da Rainha Catarina II da Rússia, quando asseverou que "a continuidade dos privilégios da realeza está na razão direta da ignorância do povo".

Cientes disso, o papel da educação contra o racismo ganhou relevo nas discussões de Durban. Defendeu-se que a educação nos direitos humanos deve tornar-se uma constante nos programas de instrução.

Todavia, cumpre anotar a importância de voltar-se a educação para a superação das dificuldades e não para a confrontação dos indivíduos ou grupos sociais.

Somente com o desenvolvimento de uma consciência crítica o homem negro poderá transformar a realidade conforme as determinações constitucionais. Sobre isso, ensina Paulo Freire:

Não há transição que não implique um ponto de partida, um processo e um ponto de chegada. Todo amanhã se cria num ontem, através de um hoje. De modo que o nosso futuro baseia-se no passado e se corporifica no presente. Temos de saber o que fomos e o que somos, para saber o que seremos (Educação e Mudança, pág.32).

4.3 - A Temporalidade das Cotas

O princípio constitucional da igualdade posta-se no campo jurídico, ao contrário da ideologia da igualdade, que está mais afeita à filosofia. Logo, a solução do primeiro se dará de acordo com o sistema jurídico. Conforme explica Cármem Lúcia, "o princípio jurídico põe-se no âmbito do sistema normativo da sociedade estatal e é nessa seara que busca o seu continente e o seu conteúdo" (O princípio Constitucional da igualdade, pág 13).

Como o sistema jurídico e a sociedade na qual ele atua são mutantes, o princípio da igualdade pode ser alterado e, além disso, ainda que permaneça o mesmo, poderá variar sua incidência ou não conforme a realidade.

Por isso, faz-se necessário árduo trabalho de compreensão de sua estrutura conforme o direito posto. Mas, cumprida tal tarefa, a maior dificuldade é aferir como se dará a subsunção do princípio à realidade.

Mais ainda, por ser o princípio em tela um agente transformador, cumpre estabelecer até quando é válida e legal a sua aplicação, sob pena de se causar novas desigualdades após a satisfação de suas finalidades.

Resta claro, que hoje o negro está em situação inferior em comparação às outras raças, pelo que faz jus à criação de ações afirmativas decorrentes do princípio constitucional da igualdade. Contudo, espera-se, sendo essa a única razão de ser do princípio, que no menor tempo possível sejam igualadas as oportunidades, e, por conseguinte, percam as ações afirmativas o seu respaldo jurídico.

Como anteriormente salientado, assim ocorreu na Califórnia, Estados Unidos, onde as políticas de cotas permaneceram por vinte anos, alcançando excelentes resultados.

No Brasil, o prazo também será limitado ao tempo de conquista de êxito. No projeto de Lei do senador José Sarney, por exemplo, a reserva de vinte por cento de cota mínima para os negros nas universidades, deverá durar, em princípio, cinqüenta anos, devendo ser a cada dez anos reavaliada a necessidade de mantença da política.

Em verdade, quanto maior a mobilização das instituições públicas, privadas e de toda a sociedade para a efetiva inserção social do negro, menor será o prazo de duração de quaisquer ações afirmativa nesse sentido.


5 - CONCLUSÃO

Pode-se asseverar, que o princípio da igualdade é, por excelência, o princípio fim, que existe com o intuito único de transformar a realidade desigual de forma que, alcançado seu êxito, perca sua razão de ser e deixe de existir.

Não existe o menor fundamento para que alguns seres humanos tenham naturalmente uma condição superior a dos outros, bem como é quimera condenar pessoas, desde seu nascimento, a uma vida de exclusão, na qual, mesmo no melhor uso de suas potencialidades, jamais poderão galgar espaços previamente reservados a certos indivíduos.

Pelo óbvio, sempre haverá diversidade de situações entre indivíduos. Contudo, um Estado que se pretende democrático não pode amparar elementos ilegítimos e artificialmente eleitos como mantenedores de privilégios de certos grupos, hauridos do sacrifício de seres humanos.

A esperança advinda da possibilidade de melhoras é sem dúvida um dos elementos que dão sentido à vida. Por seu turno, a limitação da capacidade humana, principalmente tendo-se em conta a condição ilimitada e infinitamente superior do outro, causa intensa revolta. Neste aspecto, repousa o gérmen para a destruição de qualquer sistema político em vigência.

Assim, tem-se como imprescindível, para a própria perpetuação do Estado democrático, a sua evolução a um nível efetivo, no qual haja a real igualdade de oportunidades.

Certamente, muitos são os casos nos quais refletem as luzes do princípio da igualdade.

Não obstante, nenhum salta aos olhos de forma tão evidente quanto a exclusão do negro, principalmente, considerando que eles representam larga parcela da população.

Urge que se insira o negro na sociedade, restaurando a dignidade à raça e revigorando os ideais democráticos.

A história mostrou que os lentos passos da sociedade não satisfazem a premente necessidade de inclusão, cabendo ao Direito impulsionar o meio social nessa direção, evitando-se, por conseguinte, os iminentes conflitos. Afinal, conforme sentencia Kant:

Paz perpétua não se funda na compaixão ou na caridade entre indivíduos, mas numa constante relação de direito em que não haja espoliação nem a violência entre os homens, mas um comportamento de pessoas livres e iguais...

Sem dúvida, a política emergencial de reserva de cotas para ingresso do negro no ensino superior cumprirá esse dever.


6 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMORIM, Marcelo Sherman. A constitucionalidade das cotas de inserção do negro no ensino superior. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 65, 1 maio 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4032. Acesso em: 28 mar. 2024.