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A exploração e comércio ilegal de fósseis

A exploração e comércio ilegal de fósseis

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Põe-se em discussão a proteção penal aos fósseis, sendo o caso do espanhol detido, no aeroporto Tom Jobim, o ponto de partida para a análise.

Recentemente noticiou-se que um estrangeiro foi detido, quando tentava embarcar no Aeroporto Internacional Galeão-Tom Jobim com um fóssil de peixe, que, segundo os especialistas, tem grande valor arqueológico.

O material apreendido pela Policia Federal é composto por um bloco de pedra calcária, dividido em duas partes, e estava escondido na mala da pessoa que foi presa.

 “Fósseis (do latim fossilis, tirado da terra) são vestígios deixados por seres que viveram no passado. Esses vestígios podem ser ossos, dentes, pegadas impressas em rochas, fezes petrificadas, animais conservados no gelo, por exemplo. [...]”. Amabis & Martho. Fóssil é “todo resto, vestígio ou resultado da atividade de ser vivo não extinto que tenha mais de 10.000 anos ou, no caso de ser vivo extinto, sem limite de idade, preservados em sistemas naturais, tais como rocha, sedimento, solo âmbar, gelo e outros.”.

Os fósseis são registros arqueológicos deixados no solo ou no subsolo, são restos de animais e plantas que se conservaram de maneira natural ao longo de milhões ou até bilhões de anos.

São conservados em sedimentos minerais, principalmente a sílica; o processo de fossilização consiste na transformação da matéria orgânica em um composto mineral, mas que não perde sua característica física. Um fóssil pode ser definido como a substituição da matéria orgânica de um animal ou vegetal por minerais. Por meio desse elemento arqueológico, o paleontólogo (profissional que estuda os fósseis) realiza descobertas de fatos que aconteceram há milhões anos.

Por outro lado, depósitos fossilferos (Resolução CONAMA 05, de 6 de junho de agosto de 1987, artigo 8º, a), são “camadas ou horizontes geológicos, com acumulação de restos orgânicos ou suas impressões, que sofrerem transformações químicas em passado geológico”.

Trata-se de bem da União Federal como se vê do artigo 20, IX e X, da Constituição Federal.

Os fósseis estariam inseridos dentre os recursos minerais e, portanto, seriam bens da União, por força do inciso IX do art. 20 da Constituição  de 1988. O ministro Gilmar Mendes externou, expressamente, essa ideia, ao analisar a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3525/MT.

Esse pensamento é alcançado a partir da leitura dos seguintes dispositivos do Decreto-Lei nº 227/1967 (Código de Mineração), que dizem:

Art 3º Êste Código regula:

I - os direitos sobre as massas individualizadas de substâncias minerais ou fósseis, encontradas na superfície ou no interior da terra formando os recursos minerais do País; 

Art. 4º Considera-se jazida toda massa individualizada de substância mineral ou fóssil, aflorando à superfície ou existente no interior da terra, e que tenha valor econômico; e mina, a jazida em lavra, ainda que suspensa.

Colho ainda a lição trazida pela Carta Aberta apresentada, no primeiro turno de votação da Constituinte de 1988, por Associações de imprensa, geólogos e entidades de mineração:

“O Código de Minas, baixado no mesmo ano de 1934, estabelecia que as jazidas desconhecidas, depois de descobertas, seriam incorporadas ao patrimônio da Nação, como “propriedade imprescritível e inalienável.” Esse princípio foi mais tarde aperfeiçoado, por meio do Código de Minas de 1940, que determinava que as jazidas não manifestadas até a data da sua promulgação seriam incorporadas ao patrimônio da União. O Código de Minas de 40 reiterava, assim, o mesmo princípio, mas substituía a palavra Nação da antiga lei mineral por União, corrigindo, dessa forma, o lapso do legislador de 34. O silêncio da Constituição quanto à titularidade dos recursos minerais não interessa ao povo brasileiro, uma vez que criaria condições propícias à arguição de teses contrárias aos objetivos econômicos e sociais do País. Fixar, por outro lado, a Nação como titular desses recursos seria, da mesma forma, permitir que interesses diversos daqueles comprometidos com o desenvolvimento brasileiro encontrassem nessa maliciosa impropriedade o terreno fértil de que necessitam para levar adiante seus planos. (...) Os bens minerais pertencem, na realidade, a todos os brasileiros e a sua exploração deve estar sempre voltada para os legítimos interesses nacionais e para as prioridades do desenvolvimento socioeconômico do país.”

Ao conceituar recursos minerais e jazidas, aquele diploma legal teria equiparado os fósseis às substâncias minerais. De acordo com esse entendimento, os fósseis são recursos minerais e, portanto, bens da União, por disposição constitucional expressa. Logo, a exploração e o comércio ilegal de material fóssil configuram o crime do art. 2º da Lei nº 8.176/91.

A conduta ilícita está tipificada no artigo 2º da Lei 8.176/91, quando se diz que constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo titulo autorizativo.

Por sua vez, o artigo 2º, § 1º, da Lei 8.176/91 dispõe sobre o delito de usurpação de patrimônio da União Federal, ao se transportar matéria-prima pertencente à União Federal, sem a competente autorização.

Assim, constitui crime contra o patrimônio, na modalidade de usurpação, produzir bens ou explorar matéria-prima pertencentes à União, sem autorização legal ou em desacordo com as obrigações impostas pelo título autorizativo. A pena é de detenção, de 1(um) a 5(cinco) anos  e multa.

Por sua vez, o parágrafo primeiro determina que incorre na mesma pena aquele que, sem autorização legal, adquirir, transportar, industrializar, tive consigo, consumir ou comercializar produtos ou matéria-prima, obtidos na forma prevista no caput do artigo. Trata-se de crime material e de dano.É norma penal em branco, na medida em que necessita de complementação do seu preceito primário para integrar o conceito de bens e matéria-prima pertencente à União.

Disse, aliás, Augusto Frederico Gaffrée Thompson , em Tese de concurso à docência livre de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que norma penal em branco, lei aberta, ou lei moldura, é norma penal específica, fragmentária e de complementação heterogênea, quanto ao preceito primário, adotando a definição de Giuseppe Maggiore, que dizia que se tratava de norma penal que, prevista em lei formal-material quanto à sanção e a um preceito genérico, necessita de ser complementada, relativamente ao modelo abstrato do crime nela inscrito, por um ato normativo emanado de fonte hierarquicamente inferior.

Paulo José da Costa Jr.  leciona que não são as normas em branco incompletas ou imperfeitas. Faltam-lhes apenas, como ensinou Leone, concreação e atualidade. Não se trata, então, de de uma sanção cominada à inobservância de um preceito futuro, mas de um preceito genérico, que irá concretizar-se com um elemento futuro, que deverá, entretanto, preceder o fato que constitui crime.

Para Rogério Greco, as normas penais em branco apenas conferem a órgão legislador extrapenal a possibilidade de precisar o seu conteúdo, fazendo-o, por inúmeras vezes, com maior rigor e mais detalhes do que os determinados tipos abertos, que dependem da imprecisa e subjetiva impressão do juiz.

Assim as normas penais em branco podem ser compostas de maneira complexa, mas nunca imperfeita, em respeito aos princípios da legalidade e da taxatividade, que são primordiais em matéria penal.

Disse bem a Delegada Federal Aline Kaline Assunção, em artigo sobre o tema, que os sítios arqueológicos são distintos dos sítios paleontológicos. “Os chamados sítios arqueológicos são locais em que esteja determinada a presença, à superfície ou debaixo do solo, de vestígios de ocupação humana, nomeadamente artefatos e estruturas, edificadas ou não.”. Por outro lado, a expressão “sítios pré-históricos” se refere aos sítios de determinado período de tempo na história: a pré-história.

Por certo, a competência para instruir e julgar esses crimes é da Justiça Federal, a teor do artigo 109, IV, da Constituição Federal.Sendo os fósseis, patrimônio da União, quem não for pesquisador e quiser levar um para fora do país deve passar pelo trâmite do Departamento Nacional de Produção Mineral ( DNPM) para pedir autorização de coleta.

De toda sorte é vedado pela legislação, o mau uso, a deterioração ou destruição de material fóssil.

A exploração de fósseis somente será possível para fins científicos e culturais, mediante prévia aprovação do DNPM, como dito.

O mau uso ou conservação de material fossilífero (ainda que autorizado), que importe na sua deterioração, destruição ou inutilização, pode ser classificado como crime previsto no art. 62 da Lei 9.605/98 (“Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial;”). E, não sendo autorizada exploração que resultou em deterioração ou destruição de fósseis, restará caracterizada a prática de dois tipos penais em concurso formal: art. 2º, §1º da Lei 8.176/91 e art. 62 da Lei nº 9.605/98. Com efeito, haverá o concurso formal entre os crimes, uma vez que cada qual se destina à tutela de bens jurídicos diversos: patrimônio da União e meio ambiente, respectivamente.

O tráfico internacional de fósseis nacionais encontra capitulação no artigo 334–A do Código Penal. É crime de contrabando, envolvendo a conduta de  “importar ou exportar mercadoria proibida”, incorrendo, na mesma pena quem, “pratica fato assimilado em lei especial, a ação de contrabando, importa ou exporta clandestinamente mercadoria que dependa de registro análise ou autorização de órgão público competente”. Tal o regime legal a partir da Lei 13.008/14.

 Lembre-se que a pena aplica-se em dobro se o crime de contrabando ou descaminho (iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria),é praticado em transporte aéreo, marítimo ou fluvial.Em sendo a pena de reclusão de 2(dois) a 5(cinco) anos não há falar no beneficio de suspensão condicional do processo, instituto despenalizador previsto no artigo 89 da Lei 9.099/95.

Não se põe em prática, para o delito,  o sursis processual, porque a pena mínima a ser aplicada não é igual ou inferior a um ano. O sursis processual é uma alternativa à jurisdição penal, um instituto de despenalização: sem que haja exclusão do caráter ilícito do fato, o legislador procura evitar a aplicação da penal (STF, HC 74.017, 1ª Turma, Ministro Octávio Gallotti, DJU de 27 de setembro de 1996, pág. 36.153).

Lembre-se que preenchidas as condições legais, a suspensão provisória do processo é um direito do acusado, não configurando sua proposição uma faculdade do Ministério Público, titular da ação penal pública.

Necessário, por fim, lembrar a preocupante elevação quantitativa dessa espécie de crime, no comércio entre o Brasil e a Europa e os Estados Unidos, que tem sido uma prática extremamente lucrativa em detrimento de nosso patrimônio.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A exploração e comércio ilegal de fósseis . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4389, 8 jul. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/40636. Acesso em: 29 mar. 2024.