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Incoerências da Lei nº 10.409/2002

Incoerências da Lei nº 10.409/2002

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1. DO OBJETO DO ESTUDO

A questão dos entorpecentes foi, é e sempre será matéria atual. A velha Lei nº 6.368/1976 encontra-se defasada, merecendo imediata modificação, isso porque o Direito Criminal mudou significativamente nos últimos anos, sendo que seu aspecto funcionalista, ou garantista, exige maior atenção aos princípios da proporcionalidade e da humanidade.

Foi criada a Lei nº 10.409, de 11.1.02, publicada no D.O.U. de 14.1.02, que teria vigência imediata (art. 58) e regularia toda matéria relativa aos entorpecentes ilícitos, mas em razão do veto ao artigo nupercitado, passou a ter a regra da lei geral de aplicação das normas jurídicas, [1] que determina a vigência no território nacional em quarenta e cinco dias e no estrangeiro em três meses, isso quando a norma restar silente quanto ao prazo de maturação (vacatio legis). No caso, o veto determinou referidos prazos de vacatio legis (Decreto-Lei nº 4.657, de 4.9.1942, art. 1º, caput e § 1º).

A nova lei seria inovadora, relativamente para melhor na parte material e pior na parte processual, conforme será demonstrado a seguir. Com os inúmeros vetos, praticamente toda parte material restou afetada, destruindo toda a mens legis, restando unicamente sua pior parte.

Esboçar tão sucintamente a posição da lei em comento no cenário jurídico pode parecer uma irresponsabilidade, mas é necessário tratar sucintamente a matéria, a fim de evitar dilações que façam perder o objetivo do presente artigo.


2. DA ESTRUTURA

A Lei nº 10.409/02 tinha cinqüenta e nove artigos. Como foram vetados trinta artigos, restou menos da metade de seu texto, o que desnaturou sua ideologia inicial e fez com que perdurassem apenas textos esparsos, repletos de contradições.

O primeiro capítulo da lei trata de aspectos gerais relativos à aplicação da lei no tempo e no espaço. Depois, segue o capítulo destinado à prevenção, erradicação e tratamento. O terceiro capítulo, um de seus principais, eis que trata de crimes e penas, foi vetado.

O veto ao art. 1º é praticamente inexplicável. Ele tinha a segunda redação:

"Esta Lei, que tem aplicação no âmbito da União, do Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, regula as operações e ações relacionadas aos produtos, substâncias ou drogas ilícitas que causem dependência física ou psíquica".

O veto não se justifica, tendo em vista que toda ordem constitucional tem especial preocupação com o tráfico ilícito de entorpecentes, permitindo, inclusive, a extradição de traficante de entorpecente que tenha praticado o delito depois da sua naturalização, enquanto os demais criminosos só poderão ser extraditados se o crime foi praticado antes da naturalização (CF, art. 5º, inciso LI).

A CF estabelece que compete à União legislar sobre Direito Criminal e Direito Processual [2] (art. 22, inciso I). Depois, fácil é perceber que cada ente da República Federativa do Brasil pode legislar, no âmbito de seus interesses, sobre as matérias que lhes afetam. Desse modo, seria pueril afirmar que referido artigo consagra intromissão inoportuna nos entes federados. De outro modo, dizer que o artigo, diante do veto do Cap. III, já mencionado, restou esvaziado, é inadmissível. Não obstante, referido artigo foi vetado sob os seguintes fundamentos:

"A inconstitucionalidade de artigos isolados do projeto, bem como o veto sugerido a todo o Capítulo III, que trata dos Crimes e das Penas, resulta na incapacidade de o sistema legal proposto substituir plenamente a Lei nº 6.368, de 21 de outubro de 1976, que "Dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico ilícito e uso indevido de substâncias entorpecentes ou que determinem dependência física ou psíquica, e dá outras providências.

Além disso, o espírito do projeto é compatível com a Lei nº 6.368/76, que, embora carente de atualização, vem permitindo a sedimentação da jurisprudência ao longo de mais de duas décadas. O legislador, ciente dos avanços tecnológicos, da complexidade crescente da criminalidade, e da necessidade de tratamento jurídico diferenciado entre traficantes e usuários de droga, aprovou o projeto. Todavia, repita-se, a incompatibilidade de alguns dispositivos com a Constituição barrou alguns avanços. Por causa disso, estuda-se a elaboração de projeto de lei em regime de urgência para, sanados os vícios, alcançar à sociedade os aspectos positivos que o legislador sensivelmente expressou.

Assim, o projeto soma-se à ordem legal já vigente. Apenas são derrogadas as normas que tratam de matéria especificadamente veiculada nos artigos, parágrafos e incisos sancionados". [3]

Finalmente, como a nova lei, com os outros vetos, só regularia a parte processual e pequena parte material, não revogaria a ordem jurídica anterior, não revogando a Lei nº 6.368/1976 integralmente, o que retira toda justificativa do veto ao art. 1º.

O veto ao art. 3º prestigia a ANVISA, que já induziu o mundo jurídico pátrio a decisões, equivocadas, eis que já – até – retirou o lança perfume do rol de substâncias entorpecentes ilícitas. [4] Diz-se que a expressão "para fins desta lei" limita sua aplicação, ante o avanço normativo, mas isso é equivocado. O veto foi assim fundamentado:

"Em face da permanência em vigor da Lei nº 6.368/76, assim como de avanços legislativos ocorridos durante o período em que tramitava o projeto, o art. 3º corresponderia a um retrocesso em relação aos esforços empregados no aperfeiçoamento da regulamentação da matéria.

É contrário, portanto, ao interesse público que a definição de substâncias entorpecentes, psicotrópicas, que determinem dependência física ou psíquica, e afins, sofra restrições pela interpretação da lei. A expressão ‘para os fins desta Lei’ é, portanto, potencialmente lesiva à modernização e à complexidade da legislação penal brasileira."

O veto ao art. 3º parece acertado, tendo em vista que a lei não deve conter palavras vãs. Ele não apresenta maiores convenientes, mas, também, não se justifica. Conforme ensina Carlos Maximiliano não se justifica votar o texto de mais um artigo se ele nada acrescenta, in verbis: "Nos textos oficiais se não inserem palavras supérfluas". [5]

Foi vetado o art. 8º, § 3º, do texto aprovado, que dispunha:

"§ 3º Em hipóteses excepcionais, as plantações ilícitas poderão, sem a prévia autorização judicial, ser destruídas por determinação do delegado de polícia da circunscrição, que imediatamente comunicará a ocorrência e as razões da medida às autoridades e órgãos previstos no § 2º, e registrará a localização, extensão do plantio e demais informações destinadas a promover a responsabilização".

O veto se justificou basicamente na idéia de que a polícia destruiria a prova do crime, o que seria insustentável, in verbis:

"A norma presta-se ao desvirtuamento do trabalho policial, na medida em que prioriza a destruição de plantações em detrimento da consecução de prova judicial sólida. Esta última, que permite a prisão de criminosos e o desmantelamento de organizações ilícitas, é realmente instrumento eficiente no combate ao crime.

A prova capaz de ensejar a condenação deve ser judicializada. As indeterminadas ‘hipóteses excepcionais’ de eliminação da materialidade do delito seriam potencialmente nocivas ao interesse público.

Além disso, a regra geral da prévia autorização judicial para o ato policial estipula diligência de dificuldade semelhante à prevista no próprio parágrafo da proposta, qual seja a de ‘determinação do delegado da circunscrição’.

Por outro lado, normas gerais impedem que haja prejuízo ao trabalho policial em casos excepcionais. A proteção jurídica ao cumprimento do dever e a relevância penal da omissão apontam, portanto, para a desnecessidade da norma".

Alguns aspectos, sobre as razões do veto, merecem consideração, a saber: a) não se leva a juízo uma grande plantação ou indústria de refinamento de substância entorpecente, mas a prova pericial de sua existência; b) nos crimes que deixam vestígio é imprescindível a prova pericial (CPP, art. 158); não a presença material do objeto, do produto ou do instrumento do delito; [6] c) a amostra do produto destruído somada às demais provas de sua existência, suprem a ausência de apreensão do todo; d) não há hierarquia entre os Poderes da União. Assim, como a destruição do material apreendido tem natureza eminentemente executiva, não pode restar condicionada ao arbítrio do Estado-Juiz; e) a norma não é desnecessária, tendo em vista que a preservação de local de crime pode ensejar gastos contrários ao princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, o que pode ensejar o desejo de destruição urgente da maior parte da prova material do delito, mas sem prejuízo da futura instrução criminal. Mais, o Poder Judiciário se vincula ao princípio da eficiência, eis que o processo é mero instrumento para aplicação da lei material ao caso concreto. [7]

O exposto demonstra que o veto parte de premissas equivocadas, tornando-o insubsistente. Ele se funda em suposta hierarquia, pela qual o Poder Executivo estaria subordinado ao Poder Judiciário, o que é equivocado. [8] Outrossim, olvida-se da realidade que pode ensejar a providência, não podendo restar dependente da vontade de um Juiz, às vezes, inexistente na comarca.

Mais dois parágrafos do art. 8º foram revogados, a saber:

"§ 7º A autoridade que descumprir o preceito do § 6º sujeitar-se-á às sanções administrativas da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, após apuração em processo administrativo.

§ 8º As glebas em que forem cultivadas plantações ilícitas serão expropriadas, conforme o disposto no art. 243 da Constituição Federal, mediante o procedimento judicial adequado, ressalvada, desde que provada, a boa-fé do proprietário que não esteja na posse direta."

As razões expostas a respeito da inserção de palavras vãs na lei são oportunas, tendo em vista que é notório que o preceito do § 7º já está inserido na regra geral, podendo o agente ser alcançado pela Lei nº 9.605/1998. Do mesmo modo, o § 8º não se justificaria, uma vez que alcançado pela regra constitucional acerca da matéria, que não depende de regulação meramente reprodutora daquilo que a CF contém.

O art. 9º, parágrafo único, inciso II foi vetado, o qual dizia que a compra de medicamento seria regulamentada por órgão do Ministério da Saúde. O veto, curiosamente, não foi arrazoado. [9] Na verdade, repete-se a idéia de que a lei não deve conter palavras vãs, o que justifica o veto.

O art. 10, § 2º, inciso I, dispunha que seriam adotadas medidas de prevenção, mas atendendo ao objetivo de "evitar mensagens alarmantes". O veto enuncia sua necessidade por constituir ele norma que engessa a atuação estatal. Ocorre que o veto não se justifica uma vez que não se pode pretender enganar um povo, ou criar-lhe sentimentos por meio de paixões. Melhor é a razão que o engodo.

Outro defeito estrutural da lei está no fato de restar revogado o principal, mas prevalecer o acessório, ou seja, por vários momentos o caput de determinado artigo foi revogado, mas seus parágrafos foram mantidos, o que não pode ser admitido, eis que o acessório deve seguir o principal. Entendimento diverso, construído no sentido de que cada parágrafo encerra preceito autônomo independente do caput, evidencia má técnica legislativa, visto que os parágrafos deveriam constituir artigos, não parágrafos.

Repetindo o problema do art. 9º, parágrafo único, inciso II, não se arrazoou o veto do art. 12, caput. [10] A idéia, talvez, tenha sido a da preservação da autonomia dos entes federados. Não obstante, toda ordem constitucional, embora denomine nosso País de República Federativa do Brasil, ela, na verdade, constitui Estado unitário, não se justificando pretender proteger os entes federados. São várias as intromissões da União nas unidades federativas, sem qualquer cuidado com suas autonomias relativas, mas, de repente entendeu-se, provavelmente, que os preceitos em comento importavam em violação da autonomia dos entes federados.

Os crimes, as penas e a possibilidade de sujeição à tratamento, assim estavam insertos na lei:

"Art. 14. Importar, exportar, remeter, traficar ilicitamente, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, financiar, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar ou entregar a consumo e oferecer, ainda que gratuitamente, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena: reclusão, de 3 (três) a 15 (quinze) anos, e multa.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, financia, vende, expõe à venda ou oferece, ainda que gratuitamente, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de produto, substância ou droga ilícita ou que cause dependência física ou psíquica, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar;

II – semeia, cultiva ou faz a colheita de plantas destinadas ao consumo direto ou à preparação de produtos, substâncias ou drogas, relacionadas como ilícitas pelo órgão competente do Ministério da Saúde;

III – fabrica, tem em depósito ou vende, sem autorização do órgão competente ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, medicamentos, solventes, inalantes, inebriantes ou produtos que os contenham, de uso não autorizado pelo órgão competente do Ministério da Saúde;

IV – utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para tráfico ou depósito de produto, substância ou droga ilícita.

§ 2º Induzir, instigar ou auxiliar alguém a usar produto, substância ou droga ilícita, bem assim contribuir, efetiva e diretamente, para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico de produto, substância ou droga ilícita:

Pena: reclusão, de 3 (três) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 15. Promover, fundar ou financiar grupo, organização ou associação de 3 (três) ou mais pessoas que, atuando em conjunto, pratiquem, reiteradamente ou não, algum dos crimes previstos nos arts. 14 a 18 desta Lei:

Pena: reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos, e multa.

Art. 16. Utilizar, transportar, oferecer, vender, distribuir, entregar a qualquer título, guardar e fornecer, ainda que gratuitamente, maquinismo, aparelho ou instrumento, ciente de que se destina à produção ou fabricação ilícita de produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

Art. 17. Prestar colaboração, direta ou indireta, ainda que como informante, ou apoiar grupo, organização ou associação responsável por crimes previstos nos arts. 14, 15 e 16 desta Lei:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.

Art. 18. Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, do tráfico de produtos, substâncias ou drogas ilícitas:

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º Influenciar, induzir ou instigar terceiro a receber ou ocultar, de boa–fé, bem ou valor proveniente de tráfico de produto, substância ou droga ilícita:

Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

§ 2º Adquirir ou receber bem proveniente de tráfico ilícito de produto, substância ou droga ilícita, que, pela desproporção entre o valor e o preço, ou pela condição da pessoa que o oferece, deva presumir ter sido obtido por meio ilícito:

Pena: reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

Art. 19. Prescrever ou ministrar, culposamente, o médico, dentista, farmacêutico ou outro profissional da área de saúde, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, em dose evidentemente superior à necessária, ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.

Parágrafo único. O juiz comunicará a condenação ao Conselho Federal da categoria profissional a que pertença o agente.

Art. 20. Adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo, para consumo pessoal, em pequena quantidade, a ser definida pelo perito, produto, substância ou droga ilícita que cause dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Penas e medidas aplicáveis: as previstas no art. 21.

§ 1º O agente do delito previsto nos arts. 19 e 20, salvo se houver concurso com os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, será processado e julgado na forma do art. 60 e seguintes da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 - Lei dos Juizados Especiais, Parte Criminal.

§ 2º Nas mesmas penas e medidas aplicáveis aos crimes previstos neste artigo, e sob igual procedimento, incorre quem cede, eventualmente, sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, maior de 18 (dezoito) anos, produto, substância ou droga ilícita, para juntos a consumirem.

§ 3º É isento de pena o agente que, tendo cometido o delito previsto neste artigo, era, ao tempo da ação, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos.

§ 4º Quando o juiz absolver o agente, reconhecendo por força de perícia oficial, que ele, à época do delito previsto neste artigo, apresentava as condições prescritas no § 3º, determinará, ato contínuo, na própria sentença absolutória, o seu encaminhamento para o tratamento devido.

Art. 21. As medidas aplicáveis são as seguintes:

I – prestação de serviços à comunidade;

II – internação e tratamento para usuários e dependentes de produtos, substâncias ou drogas ilícitas, em regime ambulatorial ou em estabelecimento hospitalar ou psiquiátrico;

III – comparecimento a programa de reeducação, curso ou atendimento psicológico;

IV – suspensão temporária da habilitação para conduzir qualquer espécie de veículo;

V – cassação de licença para dirigir veículos;

VI – cassação de licença para porte de arma;

VII – multa;

VIII – interdição judicial;

IX – suspensão da licença para exercer função ou profissão.

§ 1º Ao aplicar as medidas previstas neste artigo, cumulativamente ou não, o juiz considerará a natureza e gravidade do delito, a capacidade de autodeterminação do agente, a sua periculosidade e os fatores referidos no art. 25.

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a uso pessoal e formar sua convicção, no âmbito de sua competência, o juiz, ou a autoridade policial, considerará todas as circunstâncias e, se necessário, determinará a realização de exame de dependência toxicológica e outras perícias.

Art. 22. Dirigir veículo de espécie diversa das classificadas no art. 96 da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 — Código de Trânsito Brasileiro —, após ter consumido produto, substância ou droga relacionados como ilícitos pelo órgão competente do Ministério da Saúde:

Pena: apreensão do veículo, cassação da habilitação respectiva e multa, sem prejuízo de sanções específicas, aplicáveis em razão da natureza náutica ou aérea do veículo.

Art. 23. As penas previstas nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 são aumentadas de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se:

I – dada a natureza, a procedência ou a quantidade da substância, droga ilícita ou produto apreendidos, as circunstâncias do fato evidenciarem o envolvimento do agente com o tráfico ilícito organizado, nacional ou internacional;

II – o agente praticar o crime prevalecendo-se de função pública, ou se desempenhar missão de educação, guarda ou vigilância;

III – a prática visar atingir ou envolver pessoa menor de 18 (dezoito) anos, ou que tenha, por qualquer motivo, diminuída ou suprimida a capacidade de discernimento ou de autodeterminação;

IV – a infração tiver sido cometida nas dependências de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, em estabelecimento penal, militar ou policial, em transporte público, ou em locais onde alunos se dediquem à prática de atividades esportivas, educativas ou sociais, ou nas suas imediações;

V – o crime tiver sido praticado com violência, grave ameaça ou emprego de arma;

VI – o agente obteve ou procura obter compensação econômica;

VII – o produto, a substância ou a droga ilícita forem distribuídos para mais de 3 (três) pessoas;

VIII – o agente portava mais de uma modalidade de produto, substância ou droga ilícita.

Art. 24. São inafiançáveis e insuscetíveis de graça os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 desta Lei.

§ 1º A prisão temporária requerida para os crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

§ 2º As penas aplicadas aos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18 terão pelo menos a primeira terça parte cumprida integralmente em regime fechado.

Art. 25. Na fixação da pena, além do disposto no art. 59 do Código Penal, o juiz apreciará a gravidade do crime, a natureza e a quantidade dos produtos, das substâncias ou das drogas ilícitas apreendidos, o local ou as condições em que se desenvolveu a ação criminosa, as circunstâncias da prisão, a conduta e os antecedentes do agente, podendo, justificadamente, reduzir a pena de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço).

Art. 26. O dependente ou usuário de produto, substância ou droga ilícita que, em razão da prática de qualquer infração penal, se encontrar em cumprimento de pena privativa de liberdade ou medida de segurança poderá ser submetido a tratamento em ambulatório interno do sistema penitenciário respectivo.

Parágrafo único. Enquanto não forem instalados os ambulatórios, o tratamento será realizado na rede pública de saúde".

Injustificáveis são as razões do veto. Elas são extremamente frágeis, não sendo compatíveis com todo conteúdo preceitos vetado. Seguem as razões:

"Em que pese a louvável intenção do legislador ao tentar conferir tratamento diferenciado ao consumidor de drogas, há vício de inconstitucionalidade no art. 21, que contamina a íntegra de vários outros artigos do capítulo em questão.

O art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal e o art. 1º do Código Penal dispõem que ‘não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal’. Além disso, o art. 5º, XLVI, da Lei Maior, consagra o princípio da individualização da pena, atribuindo à Lei essa tarefa. Por fim, o art. 5º, XLVII, ‘b’, também da Constituição, determina a proibição de pena de caráter perpétuo.

O projeto, lamentavelmente, deixou de fixar normas precisas quanto a limites e condições das penas cominadas. Diferentemente do que ocorre nos casos de conversão de penas restritivas de liberdade em restritivas de direitos e vice-versa, o projeto não contém limites temporais expressos que atendam aos princípios constitucionais.

Em matéria tão sensível, não se deve presumir a prudência das instituições, pois a indeterminação da lei penal pode ser a porta pela qual se introduzem formas variadas e cruéis de criminalidade legalizada.

A inconstitucionalidade apontada contamina os artigos 19 e 20, na medida em que estes descrevem tipos penais cujas penas são as presentes no art. 21.

Quanto ao artigo 14 do projeto, o primeiro do capítulo em comento, o tipo em questão já é contemplado pelo art. 12 da Lei nº 6.368/76, com a mesma cominação de pena. No projeto, todavia, dois verbos somaram-se aos verbos do tipo vigente: ‘financiar’ e ‘traficar ilicitamente’. Conquanto representassem, em tese, avanços legislativos, contêm o risco inadmissível, ainda que remoto, de provocar profunda instabilidade no ordenamento jurídico.

Veicula-se tese no meio jurídico pela qual a redação proposta pelo projeto no art. 14 promoveria uma 1evasão de traficantes das prisões’. Explique-se. O verbo "traficar" acrescentado pelo projeto, e que não aparece na lei vigente, poderia concentrar sobre si, em caráter exclusivo, a aplicação da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Crimes Hediondos), que impõe o cumprimento integral em regime fechado da pena para o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Em decorrência disso, apenados condenados por decisão judicial que contenha referência expressa a verbos como ‘produzir’, ‘ter em depósito’, por exemplo, não estariam submetidos à norma especial sobre o regime. Hediondo seria, por essa interpretação, apenas o verbo novo, o ‘traficar’. Assim, por causa do princípio da irretroatividade da lei penal mais grave, todos indivíduos condenados e processados pelo tipo do art.12 da Lei nº 6.368/76, poderiam estar, automaticamente, descobertos pela Lei nº 8.072/90.

Conquanto seja tese de duvidosa plausibilidade, divulgada ‘ad terrorem’, não é do interesse público que se corra risco algum a respeito do tema.

Em vista disso, somado ao fato de que em vários artigos há remissão expressa ao art. 14, a permanência dos demais artigos do Capítulo III acarretaria difícil e temerária conjugação com os tipos previstos na Lei nº 6.368/76. Isso porque a interpretação extensiva e a analogia são proibidas em direito penal.

Acrescente-se que, no caso do art. 18 do projeto, o tipo penal consta do art. 1º, I, da Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, que ‘Dispõe sobre os crimes de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências" comina pena mais elevada, o que, em razão do interesse público, deve ser mantida. O tema conhecido por ‘lavagem de dinheiro’ merece repressão diferenciada, pois é reconhecido como uma das bases do crime organizado, nacional e transnacional.

Por último, os sensíveis avanços contidos no projeto, mas prejudicados por inconstitucionalidade reflexa, não cairão no esquecimento, vez que se estuda, para breve, o encaminhamento de proposta legislativa que tratará de forma adequada da matéria constante do presente capítulo".

O caput do artigo 14, por absurdo, necessitava do vetado. Um tipo (descrição legal crime) deve restar claro. O legislador deve restar atento ao garantismo, que é, em primeiro lugar, um modelo normativo de direito, na medida de modelo de "estrita legalidade", portanto, assegurador de direitos individuais. Em segundo lugar, é uma teoria que se prende à validade efetiva, com uma praxe operativa da norma. E, por último, o garantismo é uma filosofia política que requer do Direito e do Estado o ônus de justificar sua base externa, que provém de bens e interesses, de cujas tutelas as normas visam. [11]

A palavra garantismo, no contexto da obra de Ferrajoli, seria um "modelo normativo de direito". Tal modelo normativo se estrutura a partir do princípio da legalidade, que é a base do Estado de Direito. [12] Tal forma normativa de direito é verificada em três aspectos distintos, mas relacionados. Sob o prisma epistemológico, pressupõe um sistema de poder que possa, reduzir o grau de violência e soerguer a idéia de liberdade – não apenas no âmbito criminal, mas em todo o Direito. [13] Essa posição, merecedora de prestígio, permite dizer que tipos confusos devem ser rechaçados. De outro modo, a proteção da liberdade pessoal, para Ferrajoli, é uma variável dependente de uma série de garantias contra o exercício do poder de punir. É, na verdade, uma barreira, um obstáculo contraposto (contra o poder), no qual litigam executivo e cidadão. [14] Corolário, é a proposição, no campo legislativo, de oportuna política, assim considerada:

- legislador só deve qualificar como crime o comportamento materialmente lesivo;

- legislador deve formular as leis penais – em particular, aquelas disposições (ou partes de disposições) descrevem as figuras dos crimes – com linguagem rigorosa e factual. É rigorosa a linguagem em que todos os termos empregados são definidos. É factual uma linguagem que emprega somente termos referenciais, não valorativos. [15]

Nosso legislador não tem restado atento a tudo que se fala acerca do garantismo, uma vez que não são raras as normas criminais confusas. A Lei nº 9.437/1997 contém o mesmo equívoco do art. 14, caput, coerentemente vetado (não pelas razões consignadas no veto, mas por violar o garantismo). Inserir vários verbos em um tipo, no qual se observa unicamente partículas aditivas, permite concluir que se trata de tipo de núcleo composto complexo.

O núcleo do tipo é o verbo que exprime a conduta positiva ou negativa proibida. Havendo um único verbo, o núcleo será simples. Como a lei consagra mais de um núcleo, ele é composto. Caso, a lei pretendesse transformar cada uma das condutas puníveis, transformando o tipo de núcleo composto em alternativo, não complexo, teria inserido conjunções alternativas, não apenas aditivas. Os incisos do § 1º, do artigo em comento não incorrem na mesma impropriedade técnica, mas – ratifica-se – não é aconselhável vetar o tipo principal, mantendo os decorrentes. Assim, concordamos com o veto, mas por motivos diferentes daqueles mencionados na Mensagem nº 25, de 11.1.02, que justificou os vetos.

O § 2º do mesmo artigo continha, ainda, grande inovação, merecedora de referência. A Lei nº 6.368/1998 viola evidentemente o princípio da racionalidade, uma vez que traz a possibilidade de penas iguais para condutas completamente diversas, isso se observadas do ponto de vista da proporcionalidade. Assim, estabelecer pena menor, o § 2º demonstrou especial prestígio ao referido princípio.

O art. 15, fundamentado nos movimento de lei e ordem, que acreditam ser necessária a pena dura, a fim de combater a criminalidade, [16] o que é contrário ao que se constatou cientificamente e empiricamente no mundo, puniu mais severamente a conduta preparatória que a própria execução do crime, violando frontalmente o princípio da racionalidade. Em referido artigo, havia a previsão de pena de oito a quinze anos para quem promovesse, fundasse, ou financiasse grupo, organização ou associação de mais de duas pessoas para o tráfico, ainda que não tivesse o fim da habitualidade. Em síntese, caso uma pessoa quisesse concorrer para o crime de tráfico por meio do auxílio material (financeiro) teria, de imediato, a aplicação da teoria pluralista, [17] uma vez que os executores praticariam o crime do art. 14, enquanto ele teria praticado o crime do art. 15. Era estranha a política criminal que se pretendia estabelecer, uma vez que a distinção que se pretendia só se justificaria no caso do "empresário" do crime, mas ela poderia se operar no momento da aplicação da pena pelo Juiz, que está obrigado a individualizar as penas. Aqui, mais uma vez, concorda-se com o veto, mas por razões distintas das consignadas na mensagem encaminhada ao Senado Federal.

Acerca do crime consistente em atos preparatórios que seria ter consigo ou alienar instrumentos para produção ilícita de entorpecentes, o projeto guardava mais um tipo de núcleo composto complexo, sendo cabível, com relação ao art. 16, o que se disse sobre o art. 14, caput. Em 1976 já se sabia que a conjunção "e" é aditiva, enquanto que inserir "ou" traduz conjunção alternativa, o que não se faz presente na atualidade. O art. 16 vetado, do ponto de vista dos novos rumos do direito criminal – mais atentos aos princípios da intervenção mínima e da humanidade – evoluiu, eis que trouxe pena de dois a oito anos (enquanto a anterior era de três a dez anos), ocorre que engessar o tipo de tal maneira que haja crime se praticados todos os verbos retira praticamente toda sua aplicabilidade, o que, por si só justifica o veto. Na verdade, depois de muitos, por não restar atentos à língua portuguesa, pioramos a redação do facti species contido no art. 13 da Lei nº 6.368/1976.

Inovação interessante está no crime do art. 19, também vetado. Ele previa o crime negligente do profissional de saúde que levasse pessoa a ter a possibilidade de adquirir substância entorpecente que causa substância além da dose necessária. Tal crime já existia na Lei nº 6.368/1976 (art. 15), estando a inovação na pena e medidas possíveis. O projeto olvidou-se que o Código Penal é aplicável às leis especiais, quando não incompatíveis com elas (CP, art. 12), inserindo no art. 21 "penas e medidas aplicáveis", às quais o art. 19 faz referência.

Pela regra anterior, o Juiz poderia substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direito (CP, arts. 43 a 48), o que se mantém em razão do veto. Caso fosse sancionada a parte material da lei, o Juiz só poderia optar pelas penas restritivas de direito do seu art. 21 ou pelos tratamentos nela especificados. Assim, o veto encontra razão de ser, mas, também, por motivação distinta da inserta na mensagem mencionada.

Um aspecto que não pode ser olvidado é que a mens lege se dirige a entender que o viciado é um doente, merecendo medida de segurança (art. 20, § 3º, vetado), ao contrário de pena atenuada. O art. 20 praticamente descriminalizava o porte de substância entorpecente para uso próprio, o que é medida salutar.

O viciado é um doente, mas se deve evitar fomentar o vício ao traficante, a fim de que ele possa restar isento de pena, sujeito apenas à medida de segurança. Esta não é espécie de sanção criminal, mas apenas uma medida administrativa do Estado, decorrente do seu poder de polícia. O Estado é detentor de certo ius imperii que lhe permite intervir nas liberdades individuais, a fim de proteger a sociedade e o próprio doente, o que se concretizará por meio de uma medida de segurança.

Ante o veto e a nova roupagem da Lei nº 10.409/02, resta indubitável que não se pretende prestigiar o traficante. Na verdade, ela pretende resgatar o sistema do duplo-binário, pelo qual a medida de segurança não deixa de ser espécie de pena, que é cumprida ao lado de um tratamento, ou seja, há pena e medida de segurança ao mesmo tempo. Desde a reforma de 1984 que prevalece o sistema vicariante (ou de substituição). A palavra vicariante traduz a idéia de substituição, um ocupa o lugar de outro. Desse modo, a medida de segurança imposta tem a finalidade de substituir a pena, não se podendo impor os dois, será um ou outro.

Observe-se o art. 26 vetado que enuncia exatamente o que expusemos. Prevê a lei que a pessoa vai se submeter a tratamento durante a pena. Em síntese, estabelece que não prevalecerá o sistema vicariante para os crimes relativos aos entorpecentes, salvo o crime de porte para uso próprio. Referida previsão é contrária à moderna doutrina criminal, sendo portanto, justificável o veto, que mantém o sistema vicariante no Direito Criminal pátrio.

A parte processual da Lei nº 10.409/02 não foi vetada em sua maior parte, prevalecendo em relação a quaisquer outra. Ademais, como ela modifica todo o sistema consagrado na ordem anterior, entendemos que ela revogou tacitamente toda parte processual da Lei nº 6.368/1976, pois se "a lei nova cria, sobre o mesmo assunto da anterior, um sistema inteiro, completo, diferente, é claro que todo outro sistema foi eliminado". [18]

A Lei nº 10.409/02 disciplina os efeitos da condenação em matéria criminal, dando roupagem diversa da estabelecida no Código Penal (arts. 91/92 deste), o que faz com que a nova prevaleça sobre tal matéria.


3. DO PROCEDIMENTO

3.1 Generalidades

O processo se exterioriza por meio do procedimento, que indica o caminho a ser percorrido até a decisão final. O procedimento pode ser comum (previsto no Código de Processo Penal e Lei nº 9.099/1995), ou especial, que o caso do procedimento por crime previsto na Lei nº 6.368/1976.

Por disposição expressa da Lei nº 10.409/02, aplica-se subsidiariamente a ela o Código de Processo Penal e a Lei de Execução Penal (art. 27), restando afastada, portanto, toda parte processual da Lei nº 6.368/1976.

O caput do art. 28 da Lei nº 10.409/02 foi vetado porque foi considerado inconstitucional, tendo em vista que a CF determina que a prisão em flagrante seja comunicada imediatamente ao Juiz (art. 5º, inciso LXII), enquanto que o texto vetado previa a comunicação no prazo de vinte e quatro horas. O excesso de rigor na análise do artigo não se justifica, uma vez que o texto não proibia a comunicação imediata ao Juiz, apenas fixando prazo máximo. O que ocorreu foi, mais uma vez, a manutenção de um corpo sem caput (cabeça).

3.2 Da faz policial

Prevê a lei que o auto de prisão em flagrante só pode ser feito depois da lavratura de um laudo preliminar da constatação, mas que não precisa ser lavrado por pessoa com habilitação técnica (art. 28, § 1º). Caso tenha seja um perito a aquele que lavrou o laudo preliminar, não restará impedido da lavratura do laudo definitivo (art. 28, § 2º).

O inquérito policial tem prazos de quinze e trinta dias para réus preso e solto, respectivamente, podendo respectivos prazos, serem duplicados pelo Juiz, mediante pedido da autoridade policial (art. 29).

O Ministério Público terá prazo de 10 dias para o oferecimento da denúncia, sendo que a lei em comento reproduz, sem qualquer atenção ao princípio da racionalidade, providências já consagradas em nosso Direito Processual. Ela prevê, por exemplo, que o pedido de arquivamento rejeitado será encaminhado ao Procurador-Geral (art. 37, § 2º), ensejando a providência do art. 28 do CPP, o que torna insubsistente o povo preceito.

3.3 Fase judicial

O art. 32 teve o caput e § 1º vetados, eles dispunham:

"Art. 32. Antes de iniciada a ação penal, o representante do Ministério Público ou o defensor poderão requerer à autoridade judiciária competente o arquivamento do inquérito ou o seu sobrestamento, atendendo às circunstâncias do fato, à personalidade do indiciado, à insignificância de sua participação no crime, ou à condição de que o agente, ao tempo da ação, era inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato e de determinar-se de acordo com esse entendimento, em razão de dependência grave, comprovada por peritos.

§ 1º A solicitação, qualquer que seja a natureza ou a fase do processo, também poderá se basear em qualquer das condições previstas no art. 386 do Código de Processo Penal.

.........................................................."

As razões do veto restaram assim expostas:

"O Ministério Público é o titular privativo da ação penal pública, conforme disposto no art. 129, I, da Constituição. O juízo de conveniência a respeito da transformação de um inquérito ou de uma notitia criminis em ação penal é, repita-se, exclusivo do Ministério Público. Só ele está legitimado a pedir o arquivamento de inquérito policial. Por isso, mesmo quando o pedido feito pelo Ministério Público é indeferido em primeiro grau, a solução da controvérsia mantém-se sob a responsabilidade do mesmo órgão, dessa vez, contudo, do Procurador-Geral. É o que dispõe o art. 28 do Código de Processo Penal.

A hipótese de facultar ao defensor o pedido de arquivamento implica, portanto, limitação ao exercício constitucional da ação penal pelo Ministério Público, pois, em caso de deferimento do pedido feito por advogado ao juiz, o Ministério Público ficaria impedido de exercer sua prerrogativa constitucional.

Por outro lado, não há prejuízo para a defesa, pois continua ela dispondo do instrumento constitucional do habeas corpus.

O §1º do art. 32, por indissociável do caput, resta prejudicado".

O art. 129, inciso I, da CF foi mal interpretado, uma vez que ele institui que somente o Ministério Público tem atribuição para promover a ação criminal de iniciativa pública. Isso não o transforma em dominus litis, apenas lhe dá legitimação para a propositura da ação em nome do Estado, detentor do ius puniendi. Decidir sobre o recebimento da denúncia ou da queixa é da competência do Juiz, que poderá rejeitar a petição inicial. Dessa decisão caberá recurso em sentido estrito (Código de Processo Penal, art. 581, inciso I), ao qual poderá ser negado provimento pelo tribunal. Desse modo, resta claro que o MP não é dono da ação criminal.

Caso o Juiz entenda cabível a petição inicial (denúncia ou queixa), o réu poderá impetrar habeas corpus se verificar, por exemplo, a ausência de justa causa, manifestada pela ausência de qualquer uma das condições da ação. O veto representa, portanto, a consagração de posição equivocada sobre o preceito constitucional. Ora, verificando o Juiz a impunibilidade do acusado, em face de doença mental, admite o CPP a suspensão do processo (arts. 149-152). O requerimento do incidente de insanidade mental pode ser feito pelo réu, mutatis matandis, não há justificativa plausível para o veto, isso quanto à suspensão.

Não obstante o exposto, a suspensão do processo por dependência grave levaria a posições contraditórias, se mantida também a parte material da nova lei, pois ela induz à idéia do sistema do duplo-binário, enquanto que a suspensão antes da sentença é própria do sistema vicariante, eis que não se poderá impor pena ao inimputável.

Quanto ao pedido de arquivamento baseado na personalidade do agente, circunstâncias do fato e insignificância de sua participação quando incapaz de entender o caráter ilícito do fato em decorrência de dependência grave, o veto, não pela motivação inserta na Mensagem nº 25, é coerente, uma vez que poderá fomentar o vício, a fim de alcançar a total impunidade. No caso de suspensão do processo de pessoa incapaz, deve-se internar provisoriamente o acusado ou determinar seu tratamento ambulatorial, a fim de que ela mereça o tratamento próprio, não se justificando o arquivamento puro e simples do processo, como um prêmio ao viciado. Então, vetada a possibilidade arquivamento do inquérito ou de sobrestamento do processo, prevalece a regra geral. O indiciado viciado, incapaz de entender o caráter ilícito do fato, será inimputável (Código Penal, art. 26, caput), podendo ter em seu favor a suspensão prevista no Código de Processo Penal, conforme exposto.

O art. 32, § 2º da Lei nº 10.409/02 consagra a delação premiada, inaugurada no Brasil pela Lei Hedionda (art. 8º, parágrafo único), [19] o que é criticável porque ela – delação premiada – constitui medida de caráter unicamente pragmático, conforme ensina Silva Franco, citando Molina:

"Dá-se o prêmio punitivo por uma cooperação eficaz com a autoridade, pouco importando o móvel real do colaborador, de quem não se exige nenhuma postura moral, mas, antes, uma atitude eticamente censurável. Na equação ‘custo-benefício’, só se valoram as vantagens que possam advir para o Estado com a cessação da atividade criminosa ou com a captura de outros delinqüentes, e não se atribui relevância alguma aos seus reflexos que o custo possa apresentar a todo sistema legal, enquanto construído com base na dignidade da pessoa humana". [20]

O parágrafo nupercitado diz que o "sobrestamento do processo ou a redução da pena podem decorrer de acordo entre o Ministério Público e o indiciado". O preceito inova, em relação à lei hedionda, uma vez que, implicitamente, estende o alcance do acordo à impunidade, ou seja, o indiciado delator não será punido. A inovação tem razão de ser porque o delator beneficiado com a redução da pena, pela "lei" do cárcere, deve morrer. Assim, o preceito restaria inócuo se mantida apenas a redução da pena. No entanto, a impunibilidade do delator não é novidade no sistema jurídico pátrio, ela já consta da Lei nº 8.884/1994, que admite o acordo de leniência, no que tange ao cartel (art. 35-C). [21] Caso o acordo tenha sido feito após o oferecimento da denúncia, o Juiz poderá deixar de impor pena ou reduzi-la, de um sexto a dois terços, não cabendo o sobrestamento do processo.

A Lei nº 10.409/02 remete seu aplicador à Lei nº 9.034/1995, que é a lei do colarinho branco (à brasileira – ressalte-se), permitindo a infiltração policial, técnica que na prática, só traz problemas. [22] A lei prevê, ainda, medidas já consagradas em nosso Direito, tais quais: a) acesso às informações fiscais, bancárias e patrimoniais; b) observação de sistemas de computação de instituições financeiras, mas por tempo determinado; c) escuta telefônica.

A nova lei (em comento) está repleta de palavras vãs, tendo em vista que ao mesmo tempo que remete seu aplicador ao Código de Processo Penal, reproduz preceitos deste. Com efeito, é inócuo prever que o Juiz pode discordar do pedido de arquivamento do inquérito e remeter o processo ao Procurador-Geral do órgão do MP (art. 37, §§ 2º e 3º), pois tal regra já consta de referido código (art. 28). Outrossim, é inútil dizer que se deve respeitar ao art. 5º, inciso LV, da CF, que determina a observância dos princípios do contraditório e ampla defesa (art. 38), eis que tão norma constitucional não depende de regulação por lei, sua eficácia é imediata.

Segundo a nova lei, as comunicações judiciais obedecerão à regra geral (art. 38, § 2º), ou seja, se o réu for citado por edital, serão suspensos o processo e o prazo prescricional (art. 38, § 6º).

O prazo para o oferecimento da denúncia é de dez dias (art. 37), sendo que o descumprimento de referido prazo possibilitará a propositura de ação de iniciativa privada subsidiária da pública, ou seja, o ofendido, ou seu representante legal, poderão, por intermédio de advogado, propor a ação por meio de uma queixa (CF, art. 5º, inciso LIX). No entanto, caso haja acordo com o MP, ou pedido de arquivamento do inquérito por este, não será admissível a iniciativa privada subsidiária da pública, uma vez que esta se fundamentará na inércia ou lentidão do parquet – tendo ele agido, não subsistirá o direito à iniciativa subsidiária.

O art. 39 da Lei nº 10.409/02 nada traduz. Ele enuncia que, além dos motivos da rejeição da denúncia insertos no art. 43 do Código de Processo Penal, poderão ensejá-la: a) inépcia, ausência de pressuposto processual ou condição da ação; b) ausência de justa causa. Fácil é a constatação de que o mentor da lei não se apercebeu de questões propedêuticas, relativas à técnica legislativa e às condições da ação. A primeira, conforme exposto, se manifesta pelo fato de se ter incluído palavras vãs na lei, enquanto a segunda se manifesta pela inserção de uma quarta condição da ação, que é a justa causa.

O art. 40 da nova lei traz toda roupagem do procedimento judicial, baseado unicamente na audiência de instrução e julgamento, na qual se ouvirá o interrogado, testemunhas e, finalmente, acusação e defesa, que em debates orais, sustentarão suas teses (art. 41). Mantém-se, pois, a oitiva do réu antes da produção da prova, o que é equivocado. Até mesmo o Código de Processo Penal Militar (Decreto- Lei 1.002, de 21.10.1969) instituía o interrogatório do réu após a oitiva das testemunhas. Aliás, essa concepção veio consagrada na Lei nº 9.099/1995. Nesse sentido, o próprio CPP, no que concerne ao flagrante, prevê a oitiva do autuado por último. Tudo isso só demonstra que a Lei nº 10.409/02 deveria restar mais atenta aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

O tempo para a sustentação oral (alegações finais orais), primeiro a acusação e depois a defesa, será de vinte minutos, podendo o Juiz ampliar o prazo para trinta minutos. Ressalte-se que se o Juiz ampliar o prazo em favor da acusação, deverá fazê-lo também em relação à defesa e vice-versa, isso em homenagem ao princípio do contraditório. E, se o Juiz, não ampliar o prazo no início dos debates assegurando apenas vinte minutos à acusação e depois pretender aumentar o prazo para a defesa, deverá primeiro conceder dez minutos à acusação e depois os dez restantes à defesa, isso em respeito ao princípio da ampla defesa.

O art. 41 da nova lei é silente quanto a replica e a tréplica, aqui mencionadas, podendo dizer que isso é inadmissível. Ora, desde que não restem violados os princípios do contraditório e da ampla defesa, não há qualquer inconveniente na admitir tal prática. O artigo, ao mencionar a ampliação do prazo, preceitua que ela se dará "a critério do Juiz". Também, o CPP admite a analogia (art. 3º) e conforme exposto a lei em comento remete seu aplicador a ele. Finalmente, os debates, com réplica e tréplica, são previstos para o procedimento no tribunal do júri (CPP, art. 474, caput), o que permite a analogia. Assim, o que não se pode admitir é unicamente a quebra dos princípios mencionados, mas se respeitados, o Juiz poderá após a defesa, abrir prazo de dez minutos para a acusação, sendo que igual período deverá ser concedido para tréplica.

Durante o procedimento, poderão ser instaurados procedimentos incidentes para seqüestro ou indisponibilidade dos bens (art. 44, parágrafo único – ressalte-se que é mais um artigo cujo caput foi vetado). Tais medidas tem duração máxima de cento e oitenta dias, contada do oferecimento da denúncia (art. 45, caput). Importante notar, que a lei se preocupa com sua eficácia, condicionando o pedido de liberação do bem ao comparecimento pessoal do acusado (art. 45, § 1º).


4. CONCLUSÃO

Temos o hábito de criticar o legislador pátrio, mormente os que tem elaborado leis criminais nos últimos anos. A Lei nº 10.409/02 demonstra que nossa crítica é procedente, uma vez que não são raras as inserções de palavras vãs nas leis, bem como de normas incriminadoras confusas, violando o necessário garantismo.

O legislador deve ser uma pessoa sóbria, que não reste atento apenas a um (sub)sistema de uma sociedade complexa. Direito é comunicação e essa só é possível na sociedade, mas não pode admitir uma comunicação ditada por um único (sub)sistema da sociedade. É necessário que haja efetiva comunicação entre todos os (sub)sistemas, a fim de que não haja corrupção dos signos (alopoiese), ou, no mínimo, que as normas criminais sejam resultado de procedimento político que respeite à tradição (garantismo).

Toda vez que há um crime grave, os meios de comunicação de massa (sistema imprensa) preciona o Poder Executivo para dar uma providência imediata (sistema administrativo). Este preciona o Poder Legislativo (sistema político) para que nasça mais uma lei criminal, normalmente mais dura, eis que o provo já foi levado a acreditar (pela imprensa) que a nova lei resolverá o problema. Então, rapidamente nascem as leis criminais, normalmente imperfeitas. Isso apenas demonstra total violação ao funcionalismo, moderna corrente jusfilosófica que entende ser necessária a comunicação de todos os (sub)sistemas da sociedade complexa para a produção do Direito. Também, mesmo que não concordemos com o funcionalismo, a inflação legislativa atenta apenas às paixões populares, fomentadas pelos meios de comunicação de massa, viola o necessário garantismo.

Destarte, é melhor que repensemos todo o Direito, mormente no momento de criarmos novas leis, principalmente as criminais, uma vez que o que se percebe na atualidade é que se pretende dar solução à criminalidade apenas pela criação de novas leis incriminadoras, olvidando-se que, na maioria das vezes, o problema é anterior. Aliás, não devemos nos esquecer que é inócuo combater um problema lutando contra seus efeitos. Para superá-lo, devemos atacar suas causas. Sendo o crime, normalmente, efeito de muitos outros problemas existentes na sociedade complexa, são estes que precisam ser superados antes.

A Lei nº 10.409/02, vetada a parte material, praticamente não inova, salvo naquilo que foi apresentado, no tocante à defesa prévia antes do recebimento da denúncia e aos debates na audiência de instrução e julgamento, uma vez que sua parte processual, praticamente toda, já estava consagrada em nosso sistema jurídico, com aplicação à persecução criminal decorrente de crimes de entorpecentes.


NOTAS

01. O Decreto-Lei nº 4.657, de 4.9.1942, foi denominado de Lei de Introdução ao Código Civil. O Código Civil vigente na época era de 1916, sendo estranha a denominação. Referida norma não se restringe ao Código Civil mas se dirige à aplicação de todas normas jurídicas, mormente no que concerne à integração da lei.

02. Boa posição da CF, é a de não distinguir Direito Processual Civil de Direito Processual Criminal. Ela prefere tratar unicamente Direito Processual.

03. Cf. www.presidencia.gov.br, 8.4.03, 3h.

04. Em 07.12.2000 a Anvisa publicou a Resolução n. 104, de 06.12.2000, e retirou o cloreto de etila (lança-perfume) da Lista F2 (substâncias entorpecentes ou psicotrópicas), colocando-o na Lista D2 (Insumos químicos precursores, que não são proibidos, senão apenas controlados pelo Ministério da Justiça). Com isso, eliminou o caráter ilícito do cloreto de etila. Tal situação perdurou por uma semana. Em 15.12.2000 voltou a proibição.

05. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 357/358.

06. Seria absurdo, por exemplo, pretender que o cadáver fosse conservado até que a prova da morte fosse judicializada.

07. Acerca da instrumentalidade do processo, vide: DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000.

08. FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Conflito entre poderes – o poder congressual de sustar atos normativos do Poder Executivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 14-19.

09. A informação se baseia no fato de não constar a razão do veto ao preceito na página da Presidência da República (www.presidencia.gov.br), que diz conter seu inteiro teor (consulta em 8.4.03, 23h30).

10. Idem.

11. GIANFORMAGGIO, Letícia. Direito e ragione tra essere e dover essere. GIANFORMAGGIO, Letizia (Org.). Le regioni del garantismo – discutendo com Ferrajoli. Turim: Gianppichelli, 1993, p. 25.

12. Idem, ibidem. p. 891.

13. FERRAJOLI, Luigi. Diritto e ragione – Teoría del Garantismo Penale. Roma: Laterza, 1990. p. 892.

14. GUASTINI, Riccado. I fondamenti teorici e filosofici del garantismo. GIANFORMAGGIO, Letizia (Org.). Le regioni del garantismo – discutendo com Ferrajoli. Turim: Gianppichelli, 1993, p.49.

15. Idem, ibidem, p. 53.

16. DAHRENDORF, Ralf. A lei e a ordem. Brasília: Instituto Tancredo Neves, 1987. passim.

17. Acerca do concurso de pessoas, nosso CP é inicialmente monista, enunciado que todo aquele que concorre para o crime responde por ele, não por outro (art. 29, caput), mas no § 2º do artigo nupercitado consagra a teoria dualista, pela qual participe pode praticar crime diverso do autor.

18. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 358.

19. Diz-se que a Lei nº 8.072/1990 é a Lei dos Crimes Hediondos, ocorre ela é tão ruim que pode ser denominada de lei hedionda, eis que pior que os crimes que enumera.

20. FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: notas sobre a Lei 8.072/1990. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 318.

21. A respeito de tal acordo, que denominamos de acordo de conivência, vide: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Prescrição penal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 120/121.

22. O autor foi Tenente da Polícia Militar do Distrito Federal e, mais, percebe que há certa razão na máxima "o homem é produto do meio". É muito perigoso deixar um policial convivendo com traficantes, verificando o quanto é "fácil" a riqueza decorrente de atos ilícitos. A LEP é sábia em perceber que o pessoal penitenciário tende a assimilar valores dos condenados. Será que a lei não percebe a grande possibilidade de existência do "policial bandido", ao lhe dar imunidade?


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa de. Incoerências da Lei nº 10.409/2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4135. Acesso em: 7 maio 2024.