Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/4141
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A dialética processual e a informática

A dialética processual e a informática

Publicado em . Elaborado em .

No prefácio que escreveu para a obra A fenomenologia do espírito(1), George F. Hegel, ao fazer as suas especiais considerações de autor em torno de alguns universais, particularmente sobre os opostos verdadeiro e falso, observou que ambos (segundo tradução de Henrique Cláudio de Lima Vaz e Antonio Pinto de Carvalho), conforme o ali expresso, ".. . pertencem aos pensamentos determinados que, privados de movimento, valem como essências próprias que permanecem cada uma no seu lugar, isoladas e fixas, sem se comunicar uma com a outra"- grifou-se. A seguir, em relação ao primeiro, acrescenta(ainda segundo a mesma tradução) que ".. . a verdade não é uma moeda cunhada, que está pronta para ser guardada e usada. "

Aquilo que encontra-se subjacente na observação hegeliana com relação à verdade – que o filósofo estaria concebendo como algo a ser permanente e incondicionalmente buscado –, aplica-se também ao direito, especificamente à sua realização, daí a existência do processo, que seria o meio adequado ao alcance desta, ou seja, a via própria e através da qual o direito tem o seu movimento, com vista aos seus fins. Assim, sem o processo o direito ficaria como o universal "verdadeiro", por exemplo, quando imóvel (ou melhor, destituído/privado de movimento): isolado e fixo, sem comunicar-se com o seu oposto, condição para a sua realização.

Não foi gratuita a transcrição, acima, de diminutos fragmentos relacionados àqueles dois universais(especialmente no que concerniu ao primeiro, o "verdadeiro"), oportunamente extraídos da vastíssima e complexa obra de Hegel. Este foi colocado aqui, preambulando um texto em que pretendemos abordar assunto pertinente ao mundo do direito, visando ao exclusivo propósito de se ter, desde o início, alguns parâmetros para se conduzir a presente discussão, concernente àquilo que poderíamos chamar de "o movimento do direito", expressão certamente não de todo precisa, mas que faz referência ao processo.

No plano do universo jurídico, o "diálogo processual" é similar àquele concebido por Hegel, genericamente, para a sua filosofia. Ada Pellegrini Grinover, na obra Novas tendências do direito processual(2), por exemplo, observou que a tese e a antítese, no diálogo processual, são representadas, exata e precisamente, pela ação e pela defesa, relação esta correlata àquela, ou melhor ainda, oposta, vez que ambas são colocadas ali como forças contraditórias. Lecionando, diz a douta jurista que as partes, na referida relação, haverão de gozar de igual idoneidade técnica e dispor de situações subjetivas análogas, de modo que a função que cada uma exerce tenha a mesma eficácia dinâmica no plano dialético. Finalizando suas colocações sobre aqueles aspectos do diálogo processual, a professora paulista observa que, no âmbito do direito, o processo jurisdicional moderno não pode abrir mão daquele tipo particular de colaboração que se realiza por intermédio do contraditório, entendido como um peculiar método de busca da verdade, o qual, em outras palavras, baseia-se no complexo dialético posição/ contraposição.

Relativamente ao desenvolvimento do diálogo estabelecido no âmbito da referida relação processual(que tem natureza bilateral pressuposta, obviamente), por outro lado, observa-se, quanto ao mesmo desenvolvimento, que desde o momento em que aquela relação foi historicamente fixada no mundo do direito, vem ela sempre perfazendo-se por via de articulação promovida pela interposta figura, singular ou colegiada, de um determinado e inescapável julgador – seja ele estatal(judicial ou administrativo), arbitral ou ainda privado –, o qual coloca-se(ou é colocado) entre as partes. O julgador, então, dizendo o direito, faz a síntese dialética, através de sua decisão – a sentença ou o acórdão, no caso do modelo estatal definido para o judiciário brasileiro, por exemplo.

(Eugênio Ehrlich, em seus Fundamentos da sociologia do direito (3), considera que este sempre apresenta-se como resultado de associações, as quais seriam configuradas e vislumbradas através dos mais diferentes meios e processos, como o estado, o trabalho, o contrato, etc, e assim, oportunamente, nos passa, ali, uma visão histórica e panorâmica sobre alguns dos principais aspectos relacionados com o tema que o parágrafo anterior procurou apenas pontualizar).

Voltando, então, à figura do julgador, tem-se que hoje, com o fantástico e extraordinário avanço obtido em várias áreas da ciência e da tecnologia – nesta, especialmente em tudo aquilo que se concebe na atualidade como o conjunto de meios, de conhecimento e respectivos aplicativos que é denominado de informática –, já pode ser visualizada a futura definição de um novo quadro processual(nas suas mais diferentes modalidades), no qual a relação tese/antítese, lá estabelecida, certamente irá dispensar a figura convencional de um julgador, ante a perspectiva de a conseqüente síntese dialética, e mais ainda, a busca da verdade que esta supostamente finaliza, poder vir a ser realizada por via da informática.

Se confirmadas no futuro aquilo que hoje apresenta-se como algo tecnicamente já plausível e factível, a mencionada busca da verdade e a síntese dialética que a segue, então, caminharão para um previsível modelo cartesiano, inexorável e inequívoco, que as sustentará de um modo tal que a intervenção humana que as media, articula e conduz(com todas as suas debilidades e vulnerabilidades, e tudo o mais de prejudicial que nela há manifestando-se em desfavor do direito) para um destino sempre imprevisto e indeterminado, poderá ser dispensada, provavelmente, alterando-se, assim, todo o desenvolvimento e até a respectiva conclusão do processo dialético no âmbito do direito – em qualquer uma de suas diferentes modalidades.

As políticas de modernização e aperfeiçoamento do conjunto de ações, meios, instrumentos e processos abrangidos nas diversas esferas da máquina estatal, por outro lado, no âmbito da união e respectivos poderes, estados e municípios, em curso ou já implantadas – atendendo a um sem número de demandas e exigências históricas e operacionais que, ontem e hoje, apresentam-se como grandes e evidentes desafios à sociedade e ao estado brasileiro –, estima-se que deverão contar, cada vez mais, com toda a sorte de recursos e suportes que irão, provavelmente, ser disponibilizados nas áreas da informática e dos novos domínios tecnológicos, isso sempre que os mesmos puderem ser adequados às necessidades de otimização de meios e de fins de quaisquer atividades.

Hoje, considerando as novas tecnologias que já estão disponíveis em benefício do processo(seja o judicial ou o administrativo), salta aos olhos o evidente e inequívoco descompasso existente entre o acompanhamento dos feitos no âmbito do aparelho judiciário, por exemplo(que em nossos dias se faz, opcionalmente, por via da última, ou seja, da informática), e a forma do secular(ou seria milenar?, dada a condição do Brasil de estado derivado) desenvolvimento do processo naquela área – do respectivo poder. Referido processo continua guiado por atos que seguem, unicamente, as exclusivas e arcaicas estruturas dos códigos. Estes, assim, permanecem manuseados, injustificadamente, como há cem, duzentos, trezentos anos.. . , do mesmo modo que antes – como se não existissem novas tecnologias – pelos operadores do direito, os quais, paradoxalmente, persistem neste século operando-o sem os softwares jurídicos, que certamente poderiam ser criados e ofertados no mercado para favorece-los, especialmente naquilo que concerne à observância dos princípios de celeridade e economia processuais, que não são apenas do interesse daqueles e das partes, mas de toda a sociedade.

A idéia que se faz de um processo informatizado/virtualizado, no momento ainda inacabada e muito grosseira, consistiria de um modelo a ser concebido em um projeto que torne possível reunir, no sistema eletrônico já disponível ao usuário, o texto legal e os autos processuais – estes com todos os dados e informações habitualmente encerrados no conjunto de papéis assim denominado –, os quais seriam "transferidos" juntamente para o computador, de modo a se permitir que ambos, então, passem a ser operados de forma unívoca, simultânea e instantaneamente, com todos os recursos e meios próprios de que são dotados os acervos documentais e de dados envolvidos pelos elementos binários. Talvez uma pequena ilustração com alguns exemplos que poderiam se aproximar da idéia permita que esta seja mais inteligível, acaso ainda não o tenha sido. Aí vão dois, os de maior envergadura e mais impactantes:

Exemplo 1: o processo eleitoral brasileiro atual, que permite a votação do eleitor e a posterior apuração do voto, ações distintas – uma do cidadão no uso de seu respectivo direito, óbvio, e outra do estado, representado pela Justiça Eleitoral –, mas devidamente integradas no objetivo comum de eleger a representação política, ou seja, o poder legitimamente constituído. Ambas são desenvolvidas sem o uso de papel e sem a aplicação de métodos que demandam mais tempo e dinheiro, como no antigo sistema manual, que exigia muito mais recursos humanos, mais horas de trabalho e que resultava em menos transparência, por mais ética e observância à lei que houvesse da parte dos que então operavam o sistema – não se pode esquecer das já quase extintas "Juntas Apuradoras", das infindáveis contagens de votos e de recursos processuais eleitorais, das impugnações de votos, mapas eleitorais manuais, etc, que compunham um conjunto estrutural que já faz parte do passado, praticamente. O estado brasileiro criou um novo processo nessa área que hoje serve de exemplo para o mundo, e assim o Brasil é vanguarda com a sua experiência. Bom para o eleitor, em todos os sentidos possíveis e imagináveis; bom para a Justiça Eleitoral, pelas mesmas razões, e bom para a sociedade como um todo, que conhece mais rápido e seguramente os eleitos.

Exemplo 2: o método de declaração do imposto de renda pela internet, opção para os velhos e complicados formulários de papel, os quais ainda subsistem, pois continuam a ser usados por uma minoria de contribuintes, mas pouco a pouco serão, certamente(ou talvez inexoravelmente), substituídos pelo processo de declaração informatizado, que é bem mais rápido, bem mais simples – dado que o contribuinte não precisa "bater cabeça" com muitas contas –, econômico, seguro e previsível que o processo de declaração por meio de formulário. Com a declaração de ajuste pela internet, ganha o contribuinte, a Receita Federal e a sociedade.

À primeira vista, todavia, salta aos olhos de qualquer um que procure entender e assimilar, objetiva e honestamente, esta discussão, a evidência de haver uma aparente e profunda diferença existente entre aqueles dois processos já institucionalizados e o que ora é vislumbrado. Neste, para funcionar a contento e satisfatoriamente, o contraditório e a ampla defesa deveriam ser disponibilizados internamente, isto é, dentro do próprio processo, ou melhor, no âmbito do sistema que o encerra, ao contrário daquilo que ocorre com os outros dois da exemplificação, nos quais o contraditório e ampla defesa(do contribuinte, no caso do IR, do eleitor e do candidato, no caso do processo eleitoral) realizam-se por via exógena, ou seja, tanto no caso do contribuinte, na hipótese do IR, quanto no caso do eleitor e do candidato, no caso do processo eleitoral, a defesa do interessado é exercida de fora dos sistemas – o contribuinte deve comparecer, pessoalmente ou através de procurador, perante a Receita Federal, para justificar-se, no interesse desta ou do seu próprio, havendo alguma dúvida de informações ou de resultados de processamento, seja de parte desta ou daquele; do mesmo modo, com as devidas adequações, o eleitor e o candidato perante à Justiça Eleitoral).

Considerando as linhas gerais daquilo que foi colocado aqui, e retornado-se ao exemplo do que houve com ao imposto de renda(que, óbvio, vem a ser referência ao Ministério da Fazenda e à Receita Federal), é razoável conjeturar-se que o secular modelo processual que ainda hoje é desenvolvido e aplicado no âmbito do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda, poderá ter o mesmo e previsível destino dos velhos formulários da declaração de ajuste do imposto de renda, ou seja, o desuso. Nesta hipótese, o CRPS – Conselho de Recursos da Previdência Social, do Ministério da Previdência Social fará o mesmo, provavelmente, com o seu modelo processual administrativo, para adotar um similar ao que o Conselho de Contribuintes vier a ter, supostamente.

Eis, assim, algumas perspectivas que já podem ser vislumbradas para o processo(judicial e administrativamente), com as novas tecnologias na área da informática, já disponibilizadas ou em construção. Esta discussão teve como objetivo apenas debater aquilo que foi exposto em linhas gerais sobre determinados aspectos da dialética processual, que hoje já pode dispor de outros meios para desenvolver-se(rumo à síntese), como nos asseguram todas as inovações que surgem na área em referência, com a velocidade da luz.


Bibliografia:

– Editora Nova Cultural, 1989 – Volume II

– Editora Forense - Rio de Janeiro, 1990

– Editora Universidade de Brasília, 1986


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RAULINO, Láurence Ferro Gomes. A dialética processual e a informática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4141. Acesso em: 29 mar. 2024.