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Responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98

Responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98

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SUMÁRIO: INTRODUÇÃO. 1. ASPECTOS HISTÓRICOS. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESSOA JURÍDICA. 3. ASPECTOS PENAIS: 3.1 A Culpabilidade; 3.1.1 Imputabilidade; 3.1.2 Potencial Consciência da Ilicitude; 3.1.3 Exigibilidade de Conduta Diversa; 3.2 Noções Sobre Responsabilidade; 3.3. Intervenção Penal Mínima: 3.3.1 O Caráter Subsidiário ou Acessório do Direito; 3.3.2 O Caráter Fragmentário do Direito Penal. 4. FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA: 4.1. Fundamentos Doutrinários Favoráveis; 4.2. Fundamentos Doutrinários Contrários; 4.3. As Sanções Aplicáveis a Pessoa Jurídica Pela Lei dos Crimes Ambientais; 4.4. A Abrangência da Lei n. 9.605/98 às Pessoas Jurídicas de Direito Público. CONSIDERAÇÕES FINAIS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


INTRODUÇÃO

A possibilidade de responsabilizar penalmente uma pessoa jurídica há muito é discutida em diversos países. No sistema common law, tal possibilidade é pacífica. Alguns países de origem jurídica romano-germânica, que adotavam o princípio societas delinquere non potest, já prevêem sanções criminais aos entes coletivos. Trata-se de uma tendência que expressa o objetivo de coibir ilícitos praticados por pessoas físicas, porém acobertadas pelo imune manto penal da pessoa jurídica.

O legislador constituinte brasileiro autor da vigente Constituição Federal manifestou-se favoravelmente à responsabilização dos entes coletivos, por força do artigo 173 e do artigo 225. Em 1998, foi sancionada a Lei dos Crimes Ambientais, a Lei nº 9.605, que veio a regulamentar o dispositivo constitucional, sendo que o artigo 3º da referida Lei, explicitamente, confirmou o discutido ditame constitucional. Portanto, pode-se afirmar que foi abolido o clássico princípio societas deinquere non potest, adotando a responsabilidade penal da pessoa jurídica.

Tido por muitos como uma cópia do modelo francês, o legislador não se preocupou em adequar o sistema penal brasileiro à punição de entes coletivos, como foi feito naquele país. Desta forma, surgiram incoerências no ordenamento jurídico vigente, rompendo postulados que regem o direito penal moderno, como, v. g., a culpabilidade e o princípio da individualização das penas.

Em contrapartida, a sociedade brasileira necessita de uma resposta ao indagar-se sobre até quando pessoas físicas se utilizarão de empresas para cometer atrocidades. Empresas despejam, sem tratamento algum, lixo altamente poluidor nas águas que servem para consumo e banho, há devastação da fauna e da flora sem controle, gerando a extinção de espécies etc. Evidentemente, existe uma crescente conscientização acerca da importância e da necessidade da tutela do meio ambiente, inclusive, do ponto de vista penal, e a edição da lei supramencionada evidencia um claro indicativo desta situação.

Visando a uma melhor e mais ampla compreensão deste assunto, serão expostos alguns aspectos referentes à evolução histórica no Brasil e em outros países, bem como um breve relato acerca da pessoa jurídica como sujeito de direito. A teoria da culpabilidade e a responsabilidade penal antecederão um estudo sobre o direito penal mínimo. Será realizada uma análise mais profunda sobre os argumentos contrários e favoráveis deste tão debatido tema. Por fim, a manifestação sobre a possibilidade de um ente público estar sujeito à Lei n.º 9605/98, bem como às sanções tipificadas à pessoa jurídica e sua real possibilidade de aplicação.


1. ASPECTOS HISTÓRICOS

O Direito de antanho admitia a imposição de sanções a entes coletivos. Desde clãs até cidades ou grupamentos eram punidos por atos de seus integrantes. A título de exemplos, o direito canônico medieval admitiu amplamente a responsabilidade penal das corporações (conventos, claustros, congregações, cidades, comunas etc.), que eram passíveis de serem autores da prática de crimes e serem punidos conforme a prática então dominante.

No Direito Romano, segundo Fausto Martin de Sanctis, "o sistema jurídico reconhecia as pessoa jurídicas, inclusive chegou a regulamentá-las. Esta regulamentação existiu desde a época da Lei das XII Tábuas e disciplinou, com precisão, os direitos, as obrigações, a imputabilidade, os delitos e as penas aplicáveis às pessoas coletivas." Entretanto, tal entendimento não é absoluto e o citado autor expõe: "Apesar da existência deste sistema jurídico, que permitiria às pessoas jurídicas ser processadas e condenadas criminalmente, alguns autores negavam estes fatos e consideravam que a questão não existia no direito romano."

Conforme ensino de Ataides Kist, "com o advento da era imperial, passaram a ser consideradas as entidades como pura ficção, sendo um artifício legal a que não correspondia qualquer realidade social ou jurídica. Em virtude da natureza fictícia, as pessoas coletivas não eram responsáveis criminalmente no direito romano, ante ao próprio adágio Societas delinquere non potest."

Nos termos do Direito Germânico, era plenamente admitida a responsabilidade de entes coletivos, chegando-se a dividir a população em grupos, cujos integrantes, ligados entre si por traços de mútua responsabilidade, ao se verificar um delito, deveriam deter o criminoso sob pena de, não o fazendo, pagarem uma indenização em dinheiro.

O mesmo pode ser dito do Direito Francês, que admitiu, até a Revolução Francesa, a responsabilização penal dos grupamentos. Há notícias de punições de cidades: Toulouse, em 1331, Bordeaux, em 1558 e Montpellier, em 1739, foram condenadas pelo Parlamento de Paris à perda de seu direito de corpo e comunidade, com o confisco de seu patrimônio. Citado por Fausto Sanctis, o doutrinador espanhol Aquiles Mestre ensina que a Lei de 1670, já no art. 1º do Título XXI, anuncia que a ação penal será dirigida contra as cidades, vilarejos, corpos e companhias que tenham cometido qualquer rebelião, violência ou outro crime, consagrando o procedimento aplicável às cidades e comunidades. Vê-se, portanto, que esta lei admitia a responsabilidade penal aos grupos de direito público e de direito privado. Quanto às penas, aplicavam-se multas, indenizações, reparações civis e perda de privilégios, v.g. o confisco do patrimônio, modificação da forma de governo, destruição de muros e defesas, derrubada de portas, entre outras.

Atualmente, nos países anglo-saxões destacam-se os seguintes países que adotam a responsabilidade penal às empresas: a Inglaterra, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Escócia. Influenciado pelo mesmo sistema, o Japão também adota tal responsabilidade. Por outro lado, observa-se que os países de que adotam o sistema romano-germânico, em regra, filiam-se ao princípio societas delinquere non potest, excluindo a possibilidade de punir criminalmente um ente coletivo.

No Brasil, a responsabilidade penal da pessoa jurídica não foi adotada somente na Constituição Federal de 1988. Antes mesmo dos portugueses chegarem, os povos indígenas viviam sob responsabilidade coletiva. Famílias inteiras se opunham às outras, sentiam e reagiam como um ente coletivo, no qual a responsabilidade individual vigia em raras exceções. João Bernardino Gonzaga, em sua obra O direito penal Indígena: à época dos descobrimentos do Brasil, citado por Ataides Kist, menciona que … "os vários laços que estabelecem forte coesão social; coesão inclusive de natureza mágica, totêmica: fatores vários, enfim, fazem com que cada membro se confunda com o grupo a que pertença. Não é concebível um homem isolado na própria individualidade. O indígena é sempre indestacável do seu grupo. Há círculos concêntricos de coletividade que superpõem – a família, a aldeia, o clã, a tribo, o totem, cada uma delas apresentando-se qual massa uniforme em que se dissolvem as pessoas".

No Código Criminal Brasileiro de 1830, em seu artigo 79, havia expressa previsão de punição de pessoa jurídica: Reconhecer o que for cidadão brasileiro, superior fora do Império, prestando-lhe efetiva obediência. Penas: de prisão de 4 a 16 meses e Artigo – Se este crime for cometido por corporação, será esta dissolvida.

O Código Penal republicano também adotou a responsabilidade coletiva. Seu artigo 103 previa: Se este crime for cometido por corporação, será esta dissolvida; e, caso os seus membros se tornem a reunir debaixo da mesma, ou inversa denominação, com o mesmo ou diverso regime: pena – aos chefes, de prisão celular por um a seis anos; aos outros membros, por seis meses a um ano. Não obstante, o artigo 25 do mesmo diploma estabelecia que a responsabilidade penal deve ser exclusivamente pessoal, incongruência que gerou grandes discussões doutrinárias, concluindo os doutrinadores da época que houve má redação do referido dispositivo legal.

O Código Penal vigente de 1940, com alterações introduzidas pela Lei nº 7.209/84, possui sua parte geral voltada estritamente para pessoa física. É clara sua intenção de punir apenas a vontade "humana" e jamais a "coletiva", adotando, portanto, o princípio societas delinquere non potest.

Esta a regra também na legislação especial. As exceções que podem ser citadas são: a Lei 4595/64, cujo artigo 44, § 7º, prevê que quaisquer pessoas físicas ou jurídicas que atuem como instituição financeira, sem estar devidamente autorizadas pelo Banco Central do Brasil, ficam sujeitas à multa referida neste artigo e detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos, ficando a esta sujeitos, quando pessoa jurídica, seus diretores e administradores. Na Lei n. 4.729/65, artigo 6º, consta que quando se tratar de pessoa jurídica, a responsabilidade penal pelas infrações previstas nesta Lei será de todos os que, direta ou indiretamente ligados à mesma, de modo permanente ou eventual, tenham praticado ou concorrido para a prática da sonegação fiscal. Já a Lei 4.728, que disciplina o mercado de capitais, estipula no artigo 73, § 2º, que a violação de qualquer dos dispositivos constituirá crime de ação pública, punido com pena de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção, recaindo a responsabilidade, quando se tratar de pessoa jurídica, em todos os seus diretores.

Entretanto, a Lei nº 9605/98, conforme já dito, prevê explicitamente a responsabilização criminal de pessoa jurídica, fazendo-o no artigo 3º: As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade. Parágrafo único. A responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato.

É bem verdade que o legislador não se preocupou com a real possibilidade de aplicação deste preceito, limitando-se a criar a norma, não se preocupando com o processo, dispondo o artigo 79 da referida Lei que deve ser utilizado o Código de Processo Penal. Portanto, é incumbência dos operadores do direito encontrar os meios para desenvolver validamente um procedimento penal direcionado à pessoa jurídica.


2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PESSOA JURÍDICA

Sendo o direito fruto da sociedade, esta, por sua natureza evolutiva, demonstrou a necessidade de reconhecimento legal das já existentes instituições comerciais ou representativas, formadas pela incapacidade do ser humano em, por si só, realizar certos fins, por ultrapassarem suas forças e limites individuais. Tais instituições se personalizaram, tornando-se passíveis de direitos e obrigações e se desvinculando das pessoas físicas que as compunham.

Entre as teorias que explicam a natureza dos entes coletivos, destacam-se duas, as mais significativas. A primeira é a teoria da ficção, que predominou no século XIX e teve como defensor SAVIGNY, que afirmava ser a personalidade jurídica fictícia, não decorrendo de ato natural, e, sim, legal. O ente jurídico nada mais é que uma criação artificial da lei, carecendo de realidade: sua existência teria por escopo apenas facilitar determinadas funções. A teoria da realidade, de origem germânica, sustenta que a vontade, pública ou privada, é capaz de dar vida a um organismo, que passa a ter existência própria, distinta da de seus membros, capaz de tornar-se sujeito de direito, real e verdadeiro. A idéia básica é que as pessoas jurídicas, longe de serem mera ficção, são uma realidade sociológica, seres com vida própria, que nascem por imposição das forças sociais. Pessoas jurídicas são corpos sociais, que o direito não cria, mas se limita a declarar existentes.

Nos termos do artigo 40 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002), as pessoas jurídicas dividem-se em pessoas jurídicas de direito público, interno ou externo, e pessoas jurídicas de direito privado.

As características e formas de constituição são distintas. Nas de direito privado, para que um grupo de pessoas físicas, ou apenas uma, crie uma pessoa jurídica, faz-se necessário, além da vontade humana e da atividade lícita, o preenchimento dos requisitos legais para sua constituição, que podem ser de ordem material (elaboração dos estatutos, contrato social, etc) e de ordem formal (o registro). Quanto às espécies de pessoas jurídicas de direito privado, consta no artigo 44 do Código Civil: I - as associações; II – as sociedades; e III – as fundações.

Já a pessoa jurídica de direito público tem determinada sua formação por fatos históricos, de criação constitucional, de lei especial e de tratados internacionais, conforme se trate de pessoa jurídica de direito público externo. Consoante o artigo 41 do Código Civil, são pessoas jurídicas de direito público interno a União, os Estados, o Distrito Federal e os Territórios, os Municípios, as autarquias e as demais entidades de caráter público criadas por lei.


3. ASPECTOS PENAIS

3.1 Culpabilidade

Faz-se necessária uma breve incursão na teoria geral do delito para analisar o instituto da culpabilidade e, em ato contínuo, verificar da possibilidade de penalização das pessoas jurídicas.

O crime consiste em uma ação típica, antijurídica e culpável.

O fato típico divide-se em quatro ramificações: conduta (ação e omissão), resultado, nexo de causalidade e tipicidade. A conduta positiva (ação) ou negativa (omissão) manifesta-se sob dois aspectos: a vontade e a consciência. A vontade, que não deve ser confundida com o dolo, significa a voluntariedade, ou seja, o agente pratica determinada conduta por vontade própria. A consciência diz respeito à noção psíquica do agente em relação à prática daquele ato. O agente deve ter pleno senso de realidade, objetivando o fim a que se dispôs.

O resultado origina-se em uma conduta e, conseqüentemente, altera o mundo exterior, seja material ou formalmente. Há casos em que não há resultado - crimes de mera conduta -, punindo-se, simplesmente, o comportamento. Nos crimes materiais, o resultado é uma conseqüência da ação e dela se desvincula, se destaca, pois a ação pode existir sem que se alcance o resultado desejado. Nestes casos, conforme nossa legislação penal, pune-se a tentativa. Já nos crimes formais, o resultado realiza-se com a prática da própria conduta, ou seja, há simultaneidade entre ação e resultado.

O nexo de causalidade compreende a ligação da conduta ao resultado. É analisada a equivalência dos antecedentes contribuitivos realizados pelo agente, objetivando a consumação, o resultado. O Código Penal adota, aparentemente, a conditio sine qua non, embora na exposição de motivos manifesta-se para a não conceituação de causa.

Ao enquadrar-se no tipo penal pré-existente, a conduta adquire o atributo da tipicidade, ou seja, passa a ter relevância no mundo jurídico. A tipicidade significa, assim, a adequação da conduta à norma. O tipo penal consiste na norma abstrata, que descreve esta conduta lesiva à sociedade. O tipo é o injusto abstratamente, que ainda está por acontecer, já descrito na norma. O tipo não é a conduta, mas, sim, a previsão legal da conduta que fere a ordem pública.

Desta sinopse sobre a os elementos do fato típico, identifica-se que a conduta de um agente, ao gerar um resultado sob a égide da tipicidade, configura, em regra, um crime. É em regra, pois a antijuridicidade ou, simplesmente, ilicitude, está relativamente suprida pelo fato típico. Ou seja, havendo um fato típico, há indícios de crime, e assim não será somente se existir alguma causa de exclusão de ilicitude, que são, nos termos do artigo 23 do Código Penal, a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular do direito e o estrito cumprimento do dever legal.

A culpabilidade interpreta-se sob dois aspectos: de um lado, é pressuposto para aplicação da pena, ou seja, consiste na capacidade individual de responder pela sanção penal. A outra forma de manifestação da culpabilidade diz respeito aos elementos de aplicação e medição da pena. Nesta acepção, a culpabilidade funciona, não como fundamento da pena, mas como limite desta, impedindo que a pena seja imposta aquém ou além da medida prevista pela própria idéia de culpabilidade, aliada, é claro, a outros critérios.

Ao adotar a teoria finalista, o código penal brasileiro recepcionou a teoria normativa pura da culpabilidade. O dolo e a culpa são excluídos da culpabilidade e inseridos no tipo penal, enquanto a consciência da ilicitude é desvinculada do dolo e analisada sob os ditames da culpabilidade. A culpabilidade, desta forma, traz consigo três elementos, a saber: a imputabilidade, a potencial consciência da ilicitude e a exigibilidade de conduta diversa. Assim, a imposição de uma pena de caráter criminal exige a concorrência destes três dados, na seqüência analisados.

3.1.1 Imputabilidade

A imputabilidade diz respeito à possibilidade do agente de sofrer as sanções penais tipificadas à conduta praticada. Com a imputabilidade se pretende designar a capacidade psíquica de culpabilidade: "...para que se possa reprovar uma conduta a seu autor, é necessário que ele tenha agido com um certo grau de capacidade, que lhe haja permitido dispor de um âmbito de autodeterminação. A capacidade psíquica requerida para se imputar a um sujeito a reprovação do injusto é a necessária para que lhe tenha sido possível entender a natureza de injusto de sua ação e que lhe tenha podido permitir adequar sua conduta de acordo com esta compreensão da antijuridicidade." Toledo menciona que a "imputabilidade é sinônimo de atribuibilidade.". Cezar Roberto Bitencourt menciona que: "...sem a imputabilidade entende-se que o sujeito carece de liberdade e de faculdade para comportar-se de outro modo. Com o que não é capaz de culpabilidade, sendo portanto, inculpável."

A inimputabilidade, em conseqüência, consiste na ausência total da capacidade criminal, característica diferente daqueles que possuem parcial capacidade, pois, se o agente sofrer de desenvolvimento mental retardado, mas puder, ao tempo da ação, ter a mínima noção do caráter ilícito do fato, lhe é imputada uma sanção, mesmo que diminuída em seu quantum.

3.1.2 Potencial Consciência da Ilicitude

Além disso, é imprescindível que o sujeito tenha consciência da reprovabilidade de sua conduta e, no momento do fato, lhe era absolutamente esperada outra, diferente da escolhida e configuradora do crime.

Muñoz Conde ensina que a conduta criminosa "quase sempre vem acompanhada da consciência de que se faz algo proibido, sobretudo quando o bem jurídico, protegido no tipo em questão seja um bem fundamental para convivência, em cuja proteção tem sua razão de ser o Direito Penal".

A falta de consciência da ilicitude, portanto, exclui a culpabilidade. Entretanto, dela não pode se aproveitar a agente quando: a) teria sido fácil para ele, nas circunstâncias, obter essa consciência com algum esforço de inteligência e com os conhecimentos hauridos da vida comunitária de seu próprio meio; b) propositadamente, recusa-se a instruir-se para não ter que evitar uma possível conduta proibida; c) não procura informar-se convenientemente, mesmo sem má intenção, para o exercício de atividades regulamentadas.

3.1.3 Exigibilidade de Conduta Diversa

Exige-se que o sujeito tenha uma conduta em conformidade com o ordenamento jurídico-penal, ou seja, uma conduta não antijurídica. A contrário senso, em situações nas quais não lhe pode o direito exigir tal conduta, está prevista a inexigibilidade desta e que funciona como forma de exclusão de culpabilidade. A exigência em fazer com que o agente tenha outra conduta em situações adversas representaria uma situação desumana.

Neste sentido, doutrina Francisco Muñoz Conde: "O direito não pode exigir comportamentos heróicos, ou, em todo caso, não pode impor uma pena quando, em situação extrema, alguém prefere realizar um fato proibido pela lei penal a ter que sacrificar sua própria vida ou sua integridade física."

Encontram-se positivadas no Código Penal causas que excluem, total ou parcialmente, a culpabilidade: a) doença mental (art. 26 caput); b) desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26 caput e § único); c) embriaguez proveniente de caso fortuito ou força maior (art. 28, §§ 1ºe 2º); d) menoridade (art. 27); e) erro de proibição (art. 21); f) coação moral irresistível (art. 22); g) obediência a ordem superior hierárquica (art. 22); h) descriminantes putativas (art. 20, § 1º).

Os itens "a" a "d" excluem a imputabilidade, o erro de proibição refere-se à potencial consciência da ilicitude, enquanto os demais itens excluem a culpabilidade por não ser exigível do sujeito outra conduta, se não a que gerou o ilícito.

Portanto, pelo estudo da culpabilidade conclui-se que o agente poderá ser punido quando é passível de sanção penal e quando tiver livremente decidido pelo ilícito. Neste sentido é o ensino da doutrina, como se observa em Klaus Günter: "O fato pode ser ‘reprovado’ ao autor, quando este não tenha utilizado sua capacidade para uma autodeterminação moral."

Evidencia-se, assim, ser incontestável o argumento de que a pessoa jurídica não pode ser sujeito ativo de crime, por não ser imputável, não possuindo capacidade psíquica. Também não tem consciência alguma, seja lícita ou ilícita e mais, a pessoa jurídica é desprovida de qualquer forma de conduta, incidindo o brocardo nullum crimen sine conducta. Conforme prelecionam Zaffaroni e Pierangeli, "quem quiser defender a vigência de um direito penal que reconheça um mínimo de respeito à dignidade humana não pode deixar de reafirmar que a base do delito – como iniludível caráter genérico – é a conduta (…)".

3.2 Noções sobre responsabilidade

Em termos genéricos, a palavra "responsabilidade" originou-se do latim spondeo, noção que ligava o devedor nos contratos verbais do direito romano. Em sentido geral, pois, responsabilidade exprime a obrigação de responder por alguma coisa, revelando o dever jurídico em que se coloca a pessoa, seja em virtude de contrato, seja em face de fato ou omissão que lhe sejam imputáveis, para satisfazer a prestação convencionada ou para suportar as sanções legalmente previstas.

Responsabilidade civil é a que se apura para que se possa exigir a reparação civil, que é a sanção imposta ao agente ou responsável pelo ato ilícito. O Código Civil Brasileiro impõe àquele que, por ação ou omissão, lesar direito de outrem, fica-lhe obrigado a reparar o dano.

A responsabilidade administrativa é a que resulta da infringência de norma da administração estabelecida em lei (em sentido geral, compreendendo também o regulamento, os cadernos de encargos etc.) ou no próprio contrato, impondo um ônus ao contratado para com qualquer órgão público. É independente das demais responsabilidades e é pessoal, mas a sanção nem sempre é de execução personalíssima, caso em que pode transmitir-se aos sucessores do contratado, pessoa física ou jurídica, como ocorre com as multas e encargos tributários. A própria administração é quem aplica as sanções pertinentes (advertência, multa, interdição de atividades, suspensão provisória ou declaração de idoneidade) conforme o estatuto da classe, por meio de um processo interno, que faculta ao acusado defender-se.

Tanto no Direito Civil como no Administrativo, a responsabilidade pode ser objetiva ou, até mesmo, impessoal.

No Direito Penal, face ao bem indisponível que regula, muitas vezes irreparável, a responsabilidade deve ser subjetiva, personalíssima e atender aos ditames da teoria geral do delito. Será um sujeito responsabilizado criminalmente quando sua conduta violar ou contribuir para violação de um bem jurídico tutelado na esfera penal e ainda possuir culpabilidade.

Para Noronha, a responsabilidade penal "...é a obrigação que alguém tem de arcar com as conseqüências jurídicas do crime. É o dever que tem a pessoa de prestar contas de seu ato. Ele depende da imputabilidade do indivíduo, pois não pode sofrer as conseqüências do fato criminoso (ser responsabilizado) senão o que tem a consciência de sua antijuridicidade e quer executá-lo (ser imputável)."

Francisco Muñoz Conde menciona que as causas de extinção da responsabilidade criminal diferenciam-se das causas de justificação e de inculpabilidade, pois não afetam em nada a existência do delito, mas, sim, à sua persecução no processo penal. Nosso Código Penal contempla as causas de extinção de punibilidade no título VIII.

3.3 A Intervenção Penal Mínima

O princípio da intervenção mínima do Direito Penal impõe que o Estado intervenha na sociedade, por intermédio deste, somente quando todos os outros meios de controle falharam, revelando o caráter subsidiário, acessório e fragmentário do Direito Penal. Embora se trate de princípio do Direito Penal moderno, o que se constata é que os Estados contemporâneos, cada vez mais, lançam mão desta forma de controle social, sem antes esgotar as outras possibilidades. O fenômeno é conhecido, dentre outros termos, como inflação legislativa no campo penal e é duramente criticado pela doutrina.

O Direito Penal deve ser utilizado como mecanismo regulador da vida em sociedade somente em última instância. Ou seja, trata-se da última e mais enérgica manifestação do poder estatal. No Brasil, a Constituição proclama que são invioláveis os direitos à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade (artigo 5º, caput), e põe como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III). Inegavelmente, da explícita adoção destes princípios segue que a restrição ou privação destes direitos somente se legitima se a sanção penal for estritamente necessária para a tutela de bens fundamentais do homem, assim como a de bens instrumentais indispensáveis para sua realização social.

Portanto, embora não esteja expresso no texto constitucional vigente no Brasil, o princípio da intervenção mínima se deduz de normas explícitas da Constituição, sendo, inegavelmente, um postulado nela existente.

Assim, a importância deste princípio reside no fato dele ser um critério limitador do legislador penal na criação de tipos penais. Com efeito, ainda que o princípio da legalidade imponha limites ao arbítrio judicial, não é capaz de evitar que o Estado, observando a reserva legal, crie tipos penais inócuos. Por isso, tal princípio "… orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável".

Por outro lado, o princípio da intervenção mínima também deve orientar o legislador na cominação das penas, tanto a sua tipologia, quanto a sua quantidade. Nestes termos, a pena privativa de liberdade, em vista dos deletérios efeitos que sua execução impõe ao condenado, deve ser a última a ser cominada e reservada para os crimes mais graves.

3.3.1 O Caráter Subsidiário ou Acessório do Direito Penal

Trata-se da premissa segundo a qual o Direito Penal somente deve ser empregado para a proteção de bens jurídicos em forma subsidiária, como ultima ratio, reservando-se para aqueles casos em que seja o único meio de evitar um mal ainda maior. As normas penais, portanto, são normas excepcionais, aplicadas quando não há outra possibilidade de conservação da segurança, da paz e da ordem social.

A tarefa imediata do Direito Penal, de fato, é proteger bens jurídicos. Contudo, neste propósito está empenhado todo o ordenamento jurídico. Já se disse que, além dos ilícitos penais, há os civis e administrativos, com as respectivas sanções. Mas, somente quando estas últimas se revelem insuficientes, é lícito utilizar as sanções penais. É nisso que se revela a subsidiariedade ou acessoriedade do Direito Penal: onde a proteção dos outros ramos do direito falhar ou for insuficiente e se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico for relevante e grave, pode e deve o legislador lançar o manto do Direito Penal, como ultima ratio regum.

Em conseqüência, uma conduta somente pode ser tipificada, e a ela cominada uma pena, diante da prova de que não existem modos não penais de intervenção aptos a coibirem as situações ameaçadoras de direitos. Não basta, pois, haver prova de idoneidade da resposta penal; é preciso, também, a demonstração de que esta não é substituível por outros modos de intervenção, de menor custo social. Aliás, o custo social da sanção penal é importante fator que deve ser levado em conta, eis que os efeitos das penas sobre os condenados, no âmbito familiar e social, são de extrema gravidade, notadamente quando se trata de pena privativa de liberdade, pelo caráter desumano que os cárceres apresentam.

Portanto, o Direito Penal tem fisionomia subsidiária, pois sua intervenção só se justifica quando fracassam as demais maneiras protetoras do bem jurídico predispostas por outros ramos do direito. Em outras palavras, o Direito Penal serve subsidiariamente à proteção dos bens jurídicos, e a razão da subsidiariedade reside no rigor da sanção penal.

3.3.2 O Caráter Fragmentário do Direito Penal

Como visto, nem todo fato ilícito reúne os elementos necessários para subsumir-se a um fato típico penal. Contudo, o crime deve sempre ser um fato ilícito para todo o direito. Dentre todos os fatos ilícitos possíveis, somente alguns, os mais graves, são alcançados pelo Direito Penal.

Em outros termos, o Direito Penal não encerra um sistema exaustivo de proteção de bens jurídicos, mas um sistema descontínuo de ilícitos decorrentes da necessidade de criminalizá-los, por ser este o meio indispensável de tutela jurídica. Este ramo do direito só se ocupa de fragmentos das ações proibidas e de alguns bens jurídicos protegidos, que são os mais importantes. O princípio é o de que só se deve castigar, com uma sanção penal, atos extremos, que são visíveis no mundo exterior e que vulneram bens fundamentais para a vida social. Portanto, a fragmentariedade é um critério para a criminalização de condutas, que é deduzido do princípio da intervenção mínima do Direito Penal: limitando a criminalização somente à proteção de bens relevantíssimos; os ilícitos penais não abrangem a totalidade da área da ilicitude, constituindo apenas fragmentos desta. E sendo a reação penal a ultima ratio, ela não pode ultrapassar, na qualidade e na quantidade da sanção, o dano ou o perigo causado pelo crime. A fragmentariedade, por outro lado, não representa deliberada lacunosidade na tutela de certos bens e valores, mas o limite necessário para evitar um totalitarismo pernicioso à liberdade.

Em síntese, propugna o princípio em tela que o Direito Penal deve prevenir os ataques mais graves aos bens jurídicos mais importantes para a vida em sociedade. É ilegítima a intervenção penal quando o bem jurídico possa ser protegido por outros ramos do Direito.


4 FUNDAMENTOS DOUTRINÁRIOS SOBRE A RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDICA

4.1 Fundamentos Doutrinários Favoráveis

Antes de qualquer menção doutrinária, cabe-nos salientar que o Brasil prevê, constitucionalmente, a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica, e isso em dois capítulos da Constituição Federal: "Dos princípios gerais da atividade econômica" e "Do meio ambiente". Ressaltamos ainda que tais previsões não são auto aplicáveis e até a presente data foi sancionada somente lei reguladora das atividades de pessoas jurídicas lesivas ao meio ambiente.

Não se discute sobre a importância do meio ambiente ecologicamente equilibrado para manutenção da vida. Devido a esta necessidade, o direito passou a tutelá-lo por meio da tipificação das infrações ambientais que, na maioria das vezes, são praticadas por empresários, em grande parte acobertados pelo significativo poder econômico e também pelo escudo do anonimato que suas empresas lhes proporcionam. Tais infrações, não raras vezes, demonstram-se mais letais do que as provocadas por entes individuais. E, em grande parte, permanecem impunes.

Esta situação sensibilizou a doutrina e a jurisprudência e, atento a isto, o direito, em nível mundial, tem reconhecido não só a utilização do Direito Penal contra condutas lesivas ao meio ambiente, mas a utilização deste ramo para punir pessoas jurídicas. Cabe salientar, a esse respeito, as palavras de Edward Ferreira Filho, promotor de justiça no Estado de São Paulo, sobre a Lei dos crimes ambientais: "... a Lei Federal n. 9.605 de 12.02.1998 (...), veio, na verdade, contemplar e seguir a tendência mundial de estender o instituto da pena criminal aos entes coletivos, já que, cada vez mais, as empresas e pessoas jurídicas em geral estão assumindo papéis mais relevantes na sociedade e, por isso mesmo, ao menos em relação a várias condutas sociais, não podem simplesmente ser consideradas como ente fictício...".

Como defensores da responsabilização criminal dos entes coletivos, cabe citar os renomados juristas Luíz Paulo Sivinskas, Toshio Mukai, Gilberto e Vladimir Passos de Freitas, Sérgio Salomão Shecaira, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Fausto Martin de Sanctis, Walter Claudius Rothenburg, Celeste Leitos dos Santos Pereira Gomes, Paulo Affonso Leme Machado, Eládio Lecey, José Afonso da Silva, Pinto Fereira, Édis Milaré, entre outros. Sua tese, em síntese, é que o princípio societas delinquere non potest não é absoluto e que, no direito moderno, deve ser analisada a responsabilidade social, e quanto ao princípio da culpabilidade, este deve ser revisto: "A responsabilidade penal das pessoas jurídicas não pode ser definida a partir do conceito tradicional de culpabilidade. (...) A responsabilidade penal há de ser associada à responsabilidade social da pessoa jurídica, que tem como elementos a capacidade de atribuição e a exigibilidade. (...) A responsabilidade social permite construir um juízo de reprovação sobre a conduta da pessoa jurídica. Não se trata de um fato psicológico, mas de um comportamento institucional."

Salienta-se aqui que com a mencionada responsabilidade social enfatiza-se o compromisso social que cada pessoa, seja jurídica ou física, atualmente possui. Entretanto, tal obrigação está sendo utilizada soberanamente, aniquilando clássicos conceitos da teoria geral do delito, o que, ao nosso ver, merece cautela.

Observa-se, por outro lado, que grande parte dos autores favoráveis a sujeição criminal das pessoas jurídicas omitem a forma de aplicação desta responsabilidade no ordenamento penal vigente. Alguns doutrinadores defendem uma reformulação da teoria geral do delito, no sentido de que esta se concilie com as necessidades de repressão das atividades ilícitas praticadas por pessoas jurídicas.

Quanto à forma correta da imputação, há necessidade de distinguir a responsabilidade pessoal da coletiva, sob o aspecto do benefício almejado: será responsabilizado somente o representante legal, quando este agir em benefício próprio, não visando proveito para a pessoa jurídica. Quando este representante agir visando vantagens para sua empresa, esta, a beneficiada, deve sofrer a imputação. Haverá casos de co-autoria entre a pessoa jurídica e seu representante legal.

Conforme o ensino de Fernando A. N. da Rocha, Promotor de Justiça do Estado de Minas Gerais, o princípio de que a pena não passará da pessoa do condenado não pode ser erigido como óbice à criminalização, uma vez que toda e qualquer pena é dirigida diretamente ao autor da violação à norma protetiva do bem jurídico, mas os seus efeitos são sentidos por terceiros, como é o caso dos familiares de um condenado que sofrem com sua estada na prisão.

Vladimir Passos de Freitas preleciona que a utilização do direito penal é imprescindível para tutelar o meio ambiente: "As sanções administrativas e civis têm se revelado insuficientes para inibir a ação nociva dos predadores (...). As indenizações, muitas vezes, compensam o dano causado, no raciocínio custo/benefício".

Para Abel Costa de Oliveira, "... aplicar-se apenas os Direitos Administrativo ou Civil não é reduzir o curso da degradação ambiental, pois, no campo administrativo, há interferência política, o jogo de interesses, o que quase sempre redunda na impunidade (...). Além do que, na esfera cível, as demandas se estendem, são prolongadas e difíceis, causando sempre a sensação de impunidade, além das sérias dificuldades em se valorar ou quantificar os danos causados, a ausência de técnicos, o custo das perícias, etc. Sem contar as dificuldades para a execução da sentença ou sua liquidação, quase sempre inviáveis, permitindo que tais processos mofem nos escaninhos".

Ainda referente aos argumentos contrários à utilização somente do direito administrativo, há que mencionar a escassez de funcionários nos órgãos ambientais de fiscalização e, em última análise, do próprio sucateamento dos órgãos governamentais. "O IBAMA, por exemplo, realizou, no decorrer do ano de 1994, apenas 105 inquéritos administrativos e sindicâncias, um número que, convenhamos, é irrisório diante da extensão territorial de nosso país e das constantes denúncias de lesões ao meio ambiente diariamente noticiadas...". Entretanto, em que pese a repulsa e indignação geradas pela evidente ineficiência dos órgãos operacionais, seja por motivos de gestão financeira ou operacional, cremos que a falta de fiscalização de uma autarquia não deve ser motivo para transferir tal responsabilidade ao Direito Penal.

Os doutrinadores favoráveis à sujeição criminal do ente coletivo respondem às críticas de ausência de culpa da pessoa jurídica e, conseqüentemente, à impossibilidade de responsabilização penal, sob o argumento de que nas sanções civis e administrativas reprova-se alguém que, também, não tem consciência nem vontade. Shecaira enfatiza: "não seria uma burla de etiquetas permitir a reprovação administrativa e civil por um crime ecológico (por exemplo), mas não uma reprovação penal?". Manifesta-se, ainda, que o procedimento processual penal possui mais garantias (devido processo legal, contraditório e ampla defesa) do que o civil. E conclui citando a doutrina francesa de Roger Merle e André Vitu: "... a pessoa coletiva é perfeitamente capaz de vontade, porquanto nasce e vive do encontro das vontades individuais dos seus membros. A vontade coletiva que anima não é um mito e caracteriza-se, em cada etapa importante de sua vida, pela reunião, pela deliberação e pelo voto da assembléia geral dos seus membros ou dos seus conselhos de administração, de gerência ou de direção. Essa vontade coletiva é capaz de cometer crimes tanto quanto a vontade individual".

Ataides Kist, trazendo ensinamentos do alemão Klaus Tiedmann, ensina que "(…) as dificuldades dogmáticas tradicionais para acolher penalmente a criminalidade das agrupações reside no contido das noções fundamentais da doutrina penal: ação, culpabilidade e capacidade penal. Se a pessoa moral pode concluir um contrato, por exemplo de compra e venda, ela é que é sujeito de obrigações que se originam destes contratos e ela é quem pode violar essas obrigações. Isso quer dizer que a pessoa moral pode atuar de maneira antijurídica".

Nota-se que as discussões conflitantes pairam, principalmente, sobre um aspecto: a culpabilidade. Dentre os defensores da responsabilização penal dos entes coletivos, há aqueles que superam este problema e outros que, mesmo favoráveis, vislumbram alguma dificuldade para concretizá-la no atual ordenamento jurídico pátrio. Lembra-se que na França, o legislador preocupou-se, em 1992, em editar a chamada Lei de Adaptação, para, em 1994, dar vigência ao atual código penal.

Por isso, pode-se afirmar que o legislador brasileiro, ao adotar a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, adotou o que havia de mais moderno no Direito Penal, europeu, em especial, mas não alterou uma vírgula da parte geral do Código Penal. Desta forma, relegou aos operadores do Direito a tarefa de aplicar esta legislação, em boa medida incompatível com as regras precedimentais vigentes acerca da persecutio criminis.

4.2 Fundamentos Doutrinários Contrários

Analisar-se-á, na seqüência, os fundamentos contrários à responsabilidade penal dos entes coletivos. Observa-se que no Brasil tem prevalecido o fenômeno da criminalização de condutas, seja por influências externas, seja pela evidente incapacidade da ordem jurídica, por meio de outras sanções, manter a ordem social. É nesse contexto que se insere a Lei nº 9.605/98, ou Lei dos crimes ambientais.

Inúmeros argumentos combatem este recente, ao menos no Brasil, Instituto Penal. Há críticas desde a sua natureza jurídica, incompatível com o ordenamento jurídico pátrio, até a forma de execução da pena, passando pela problemática questão do procedimento processual penal aplicável à pessoa jurídica.

É preciso desmistificar em nosso país a concepção de que o Direito Penal irá solucionar, através das inúmeras leis elaboradas de forma fugaz, no calor da divulgação massificada pela mídia de determinado caso concreto, os problemas sociais emergentes, como os ambientais.

O alemão Winfried Hassemer, em conferência proferida na Universidade de Lusíado-Porto, em 25/11/1995, manifestou-se contrariamente à tutela penal do meio ambiente: "o Direito penal, considerando o seu papel no tocante à política ambiental, tem-se revelado amplamente contraproducente". O autor menciona que há um "déficit de execução", pois só os pequenos poluidores sofrem as sanções penais e, normalmente, os casos são complicados demais para a justiça processual criminal.

Na doutrina nacional, destacam-se na oposição à responsabilidade penal das pessoas jurídicas: René Ariel Dotti, Ivan Lira de Carvalho, Tupinambá Pinto de Azevedo, Luiz Vicente Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior, Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli, Luiz Régis Prado, César Roberto Bitencourt, e dentre outros civilistas Caio Mário de Silva Pereira e Washington de Barros Monteiro.

Os principais argumentos elencados nesse sentido podem ser assim resumidos:

a) Em relação às normas constitucionais que prevêem a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, Luiz Vicente Cernicchiaro, considerando que estas somente desenvolvem sua personalidade jurídica por meio de pessoas físicas, afirma que o legislador constituinte, caso quisesse resolver a polêmica questão, teria sido expresso no capítulo em que definiu os princípios acerca do Direito Penal. Portanto, "(…) a constituição brasileira não afirmou a responsabilidade penal da pessoa jurídica, na esteira das congêneres contemporâneas", somente possibilitando a aplicação das demais sanções jurídicas que lhe são compatíveis.

Em linha de raciocínio semelhante, César Roberto Bitencourt afirma que, como o artigo 173, § 5º da Constituição Federal esclarece que a pessoa jurídica sujeitar-se-á "(…) às punições compatíveis com a sua natureza", a interpretação constitucional não admite a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Ao contrário, condicionou a sua responsabilidade à aplicação de sanções compatíveis com a sua natureza.

b) Lúcio Ronaldo Pereira Ribeiro, citando René Ariel Dotti, elenca alguns argumentos contrários à responsabilidade das pessoa jurídicas na esfera penal. Segundo Dotti, o princípio da isonomia seria violado porque a partir da identificação da pessoa jurídica como autora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices, poderiam ser beneficiados com o relaxamento dos trabalhos de investigação. Outro aspecto situa-se nas formas concursais: como na quadrilha os participantes se reúnem com um fim ilícito, questiona-se se seria diferente na sociedade. Discorre também sobre o suposto direito de regresso, nos casos de ressarcimento contra o preposto causador do dano. Ocorre que lhe faltaria legitimidade, pois um réu não pode promover contra o co-réu a ação de reparação de danos oriunda do fato típico, ilícito e culpável que ambos cometeram.

Partindo deste raciocínio, visualiza-se a situação de um sócio que pratica um crime ambiental, em benefício da empresa, contrário à decisão dos outros sócios. Ocorrerá que, além destes também serem punidos monetariamente, estarão impossibilitados de regressar contra o primeiro.

c) Segundo ensinamentos do promotor de justiça Carlos Ernani Constantino, a lei pode causar o bis in idem: "Com o que foi previsto no parágrafo único do art. 3º da nova Lei do Meio Ambiente, ou seja, ‘a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo fato’, imaginemos a seguinte hipótese: "A", sócio da empresa "X", com poderes de administração, comete um crime doloso ou culposo contra o meio ambiente, sem que os demais sócios, "B", "C" e "D", da mesma pessoa jurídica, saibam o que ele está fazendo... Pelo caput do citado art. 3º, a sociedade, em si, será condenada pela responsabilidade penal objetiva, passando à condenação - ou seja, o caráter aflitivo da pena e as suas conseqüências a todos os sócios: a "A", culpado, e a "B", "C", "D", inocentes (que também participam do fundo comum, do qual sairá o pagamento da multa, ou que terão que envidar, igualmente, esforços para o cumprimento de eventual prestação de serviços à comunidade ou restrição de direitos). Pelo mesmo fato, o sócio administrador "A", culpado, sofrerá também condenação, individualmente; ou seja, acabará pagando duas vezes pelo mesmo delito, como sócio da pessoa jurídica, em função da pena a ela aplicada (pelos reflexos imediatos aos sócios, conforme acima se expôs, da sanção imposta ao ente coletivo) e como pessoa física!"

"Portanto, a responsabilidade penal objetiva das pessoas jurídicas, introduzida pelo art. 3º da nova Lei Ambiental, além de ser inconstitucional, por fazer com que a condenação passe do ente coletivo para as pessoas de seus sócios (culpados e inocentes), cria a terrível heresia jurídica do ‘bis in idem’, ao impor dupla apenação ao sócio culpado."

d) Outra situação delicada cria-se no caso de um menor comerciante devidamente emancipado (16 a 18 anos). Como resolver a questão de se processar a pessoa jurídica, com citação do responsável? É certo que a menoridade penal deve ser respeitada. Mas quem responderá pela empresa? Como punir criminalmente um menor de 18 anos? Com certeza, este não pode ser tratado sob os mesmos critérios de uma pessoa física. Ironicamente, poderia ser uma empresa inimputável e, ainda, regida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente!?

e) Outro caso que gera perplexidade é a da alteração contratual de uma pessoa jurídica que esteja sendo processada criminalmente. Parece pouco razoável a punição do novo proprietário. O mesmo raciocínio pode ser aplicado nos casos de fusão ou cisão societária, em que haverá problemas insuperáveis para a definição acerca de quem deve sofrerá as sanções penais. Idêntico é o problema no caso de um contrato social onde está previsto que a sucessão do de cujus assumirá suas cotas. Serão os sucessores os punidos? E se forem menores? Recairá a pena sobre o tutor? Igualmente, é de antever que nos casos de dissolução da sociedade durante o processo fatalmente haverá impunidade.

Tais indagações urgem esclarecimentos. E sob o ordenamento jurídico pátrio vigente, erige-se dificuldade imensa em encontrar soluções mantendo os direitos individuais até a presente data conquistados, especialmente porque não é admissível, no direito penal moderno, a responsabilidade sem culpa.

f) O artigo 24 da Lei dos Crimes Ambientais prevê como espécie de sanção aplicável à pessoa jurídica sua liquidação forçada. Mutatis mutandi, trata-se da pena de morte para a pessoa jurídica. Entretanto, é mister lembrar que esta é uma das penas proibidas pelo texto constitucional vigente, ressalvada a hipótese de guerra declarada. E, como a Lei dos Crimes Ambientais, em termos práticos, promoveu uma equiparação entre a pessoa jurídica e física (ser sujeito ativo de delitos), não há como adotar uma pena para a pessoa jurídica que, para a pessoa física, é proibida constitucionalmente.

g) Outro problema de vulto diz respeito ao processamento dos crimes praticados por pessoas jurídicas, devendo ser salientado que o processo penal brasileiro foi pensado e estruturado tendo em vista a ‘pessoalidade’ do agente. Em vista disso, deve o réu ser citado pessoalmente; o interrogatório é ato personalíssimo em que o acusado tem a ocasião de expor sua versão sobre os fatos, podendo, eventualmente, confessar; o réu pode ser preso preventivamente; pode o réu recusar a participação em determinadas provas ou atos em vista da proteção da intimidade e do direito de não se auto-incriminar.

Nesse diapasão, Tupinambá Pinto de Azevedo pergunta se assistirá à pessoa jurídica o mesmo direito de não auto-incriminação, garantido à pessoa física, pois a Constituição Federal não assegura à pessoa jurídica o direito de silêncio.

Ainda no âmbito processual, outra situação esdrúxula se verifica relativamente à prisão preventiva, sendo evidente sua impossibilidade. Assim, por maior desordem pública que possa ser criada com uma conduta criminosa em matéria ambiental ou, até mesmo, na eminência de uma dissolução da sociedade, o juiz nada poderá fazer para garantir a ordem pública ou econômica ou para assegurar a aplicação da lei penal.

Conclui-se, portanto, que sob a perspectiva processual a Lei nº 9.506/98 conta com omissões e imperfeições inadmissíveis.

h) Deve ser referido, também, que o direito penal universal consagra o princípio da personalidade das penas. Por isso, quem efetivamente cumprirá as penas impostas às pessoas jurídicas serão seus sócios, com o que estará afrontado este princípio. Nos termos do ensinamento de Carlos Ernani Constantino, "devido à natureza aflitiva da pena e ao fato de a pessoa jurídica, criação abstrata do Direito, não ter psiquismo próprio, não é ela, mas, sim, as pessoas de seus sócios que sentem a aflição e os ônus da sanção penal; assim, o caráter aflitivo e o cumprimento do que ficar estabelecido na reprimenda passará, inegavelmente, às pessoas físicas formadoras da sociedade, sejam elas culpadas ou inocentes quanto ao crime ambiental relacionado à empresa; nesta linha de raciocínio, todos os sócios acabam arcando com a pena aplicada à pessoa jurídica".

Lembra-se que as posições favoráveis à imputabilidade penal dos entes coletivos, no que tange à personalidade da pena, afirmam que a pena não passará da pessoa do condenado, somente se projetando para além os seus efeitos, tal como acontece com a pessoa física. Tal argumento, permissa venia, não pde prevalecer, haja vista haver colossal diferença entre "sofrer os efeitos da pena" e "cumprir a pena". A família do apenado, realmente, sofre os efeitos da pena, especialmente os relacionados ao sustento que ficará prejudicado; entretanto, nenhum familiar do preso irá com ele para o presídio sofrer a sanção penal.

i) Outra questão que prejudica a aplicação de sanções penais às pessoas jurídicas é a incapacidade de arrependimento ou reeducação. Desta forma, os fins da pena não poderiam ser atingidos pela aplicação de uma sanção deste tipo.

j) Há manifestações sobre a inconstitucionalidade do artigo 3º da Lei dos Crimes Ambientais, em que, positivamente, quebra-se o axioma societas delinquere non potest. Conforme ensina Luiz Régis Prado, "(...) em rigor, diante da configuração do ordenamento jurídico brasileiro – em especial do subsistema penal – e dos princípios constitucionais penais (v.g., princípios da personalidade das penas, da culpabilidade, da intervenção mínima), que regem e que são reafirmados pela vigência daquele, fica extremamente difícil não admitir a inconstitucionalidade desse artigo, exemplo claro de responsabilidade penal objetiva."

No mesmo sentido vai a posição de Ernani Constantino: "Analisando-se este dispositivo, conclui-se que a ‘mens’ do legislador infraconstitucional foi, indubitavelmente, a de estabelecer a responsabilidade penal objetiva para as pessoas jurídicas ou morais, pela prática de crimes contra o meio ambiente".

k) Por fim, deve ser estabelecido que no âmbito da culpabilidade, tal qual concebida atualmente, não pode haver responsabilidade sem culpa, sendo esta um particular juízo de censura que vai ao encontro de uma inteligência e de uma vontade próprias.

Partindo-se do pressuposto de que a pessoa jurídica não possui existência corpórea própria, nem atividade psicológica genuinamente sua, erige-se como incontestável o argumento de que ela não tem capacidade de se autodeterminar, nem de praticar, por si mesma, ações ou omissões conscientes ou, ao menos, oriundas de uma parcela remota da consciência, pois esta é atributo exclusivo da pessoa humana; destarte, não pode a pessoa coletiva ser considerada autora, co-autora ou partícipe consciente de um fato criminoso.

Ora, consoante o liceu de Cezar Roberto Bitencourt, "(…) a responsabilidade penal ainda se encontra limitada à responsabilidade subjetiva e individual." E, citando René Ariel Dotti, afirma que "no sistema jurídico positivo brasileiro a responsabilidade penal é atribuída, exclusivamente, às pessoas físicas. Os crimes ou delitos e as contravenções não podem ser praticados pelas pessoas jurídicas, posto que a imputabilidade jurídico-penal é uma qualidade inerente aos seres humanos".

No mesmo sentido manifestam-se Zaffaroni e Pierangeli: "(…) Não se pode falar de uma vontade em sentido psicológico no ato da pessoa jurídica, o que exclui qualquer possibilidade de admitir a existência de uma conduta humana. A pessoa jurídica não pode ser autora de delito, porque não tem capacidade de conduta humana no seu sentido onto-ontológico".

Também seria tarefa penosa analisar a culpabilidade, a personalidade, os motivos e as circunstâncias do crime, que são circunstâncias judiciais com base nas quais o juiz fixa a pena base, quando o delito for "cometido" por uma pessoa jurídica.

Portanto, conclui-se que uma breve leitura dos princípios que informam a teoria geral do crime e toda parte geral do nosso Código Penal evidencia que a sistemática penal é estruturada para tratar de conduta humana, e somente desta. Não obstante a argúcia e razoabilidade de certos argumentos favoráveis à punição penal da empresa, ressaltando-se a necessidade de evitar a impunidade e a própria existência de fundamento legal para tanto, deve ser reconhecido que o Direito Penal, tal qual formulado, não admite que seja punida uma empresa, nem que seja esta exposta à persecução criminal; seria abolir tudo o que foi conquistado e defendido até o presente momento sobre garantias e direitos individuais. Ou seja, embora conveniente, o sistema jurídico-penal brasileiro não a comporta.

4.3. As Sanções Aplicáveis à Pessoa Jurídica Pela Lei dos Crimes Ambientais

Tanto a Constituição Federal como o Código Penal prevêem modalidades de penas aplicáveis à pessoa física. Relativamente à pessoa jurídica, a Lei dos Crimes Ambientais adotou, no artigo 21, a pena de multa, a restritiva de direitos e a prestação de serviços à comunidade. As penas restritivas de direitos, nos termos do artigo 22, foram divididas em: suspensão parcial ou total de atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade e proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações. Além destas sanções, está prevista, no artigo 24, a liquidação forçada da empresa, nos casos especiais ali elencados.

Uma análise cuidadosa revelará que as penas efetivamente aplicáveis às pessoas jurídicas não têm caráter criminal. Não será a empresa que irá prestar serviços à comunidade, podendo, isso sim, financiar serviços, obras, etc., evidenciando-se sanção de caráter civil. Também no caso da pessoa jurídica que tem suspensas ou interditadas suas atividades, bem como a que for proibida de contratar com poder público, não sofrerá sanção de caráter criminal, mas administrativa. Isso demonstra que na lei em comento houve inadequado uso do Direito Penal, seguindo-se a conseqüência necessária: inocuidade.

Há um outro dado deveras interessante para ser analisado relativamente ao subsistema penal instituído pela Lei dos Crimes Ambientais. Os crimes em espécie estão previstos no capítulo V desta Lei, e nota-se que a pena cominada para todos os tipos é a privativa de liberdade, cumulada, ou não, com multa. Pela impossibilidade material de execução, sobre a pessoa jurídica, da pena privativa de liberdade, deverá o juiz substituí-la por uma pena restritiva de direito, que será a efetivamente executada. A questão que se levanta é a solução a ser adotada quando do descumprimento da pena restritiva imposta. Nos termos do Código Penal, quando o condenado descumpre a pena alternativa, haverá a conversão desta em pena privativa de liberdade, devendo cumprir, desta forma, o restante da pena. Aplicada esta regra na Lei em análise, voltar-se-á à situação originária, revelando-se, mais uma vez, a inadequação da punição criminal do ente coletivo.

4.4 A abrangência da Lei nº 9.605/98 às Pessoas Jurídicas de Direito Público

Há, por fim, intrigante questão que diz com a aplicabilidade da Lei dos crimes Ambientais às pessoas jurídicas de direito público. Ou seja, o Estado, mesmo sendo detentor exclusivo do jus puniendi, pode cometer crimes e cumprir penas? Neste aspecto, pode-se afirmar que há uma postura unânime na doutrina no sentido de não haver compatibilidade em, ao mesmo tempo, punir e ser punido.

Outro aspecto a ressaltar é que o Estado será sempre atingido quando da prática de um crime, na condição de sujeito passivo. Pedro Krebs, citando Walter Coelho, leciona que "(…) além do sujeito passivo em sentido estrito, ou seja, direto, específico ou material, há também que considerar o sujeito passivo em sentido genérico, denominado de sujeito passivo indireto ou formal, e que é o Estado. De fato, o Estado, que visa assegurar a harmonia e estabilidade sociais, imprescindíveis à realização do bem comum, sente-se, também, afetado pelo crime e por isso é, igualmente, sujeito passivo genérico em todas as infrações penais".

Outro dado que impõe a conclusão acima delineada situa-se no campo das penas, pois seria inócua, por exemplo, a pena de multa aplicada à União. Na verdade, não seria sanção penal alguma, mas simples remanejamento de créditos orçamentários.

Não se pode esquecer, também, que, na prática, a responsabilidade penal do Estado resultaria em dupla punição às vítimas, uma vez que, ao se atingir um órgão estatal, todos os cidadãos pertencentes a esse Estado também a suportariam, de maneira direta.

Por fim, o Poder Público não pode ser punido no sentido de ser interditado temporariamente estabelecimento, obra ou atividade, etc., o que é imposto pelo princípio da continuidade do serviço público, mesmo motivo que impede a suspensão de suas atividades. Por fim, esdrúxula se mostraria a imposição da proibição de contratar com o Poder Público, tudo revelando que as penas em tela são voltadas ao ente privado.


Considerações Finais

Como visto, a Constituição Federal prevê que as pessoas jurídicas podem ser penalizadas criminalmente, sendo editada a Lei nº 9.605/98, para regulamentar tal dispositivo. Trata-se de uma tendência mundial que atingiu o direito brasileiro, pois não pode persistir a impunidade daqueles que, aproveitando-se de um ente coletivo, praticam crimes. Em síntese, meio ambiente é um bem jurídico tutelável pelo Direito Penal.

A problemática que se estabeleceu com o advento da citada lei é a incompatibilidade de diversos dispositivos seus com o sistema penal vigente, ou seja, o legislador brasileiro inseriu a responsabilidade penal da pessoa jurídica no ordenamento jurídico sem se preocupar com a necessária adequação com os institutos vigentes e que são incompatíveis, ensejando, como demonstrado, inúmeras críticas, muitas das quais insuperáveis, sendo que as mais contundentes referem-se à incompatibilidade da nova criminalização com o princípio da culpabilidade, bem como à aplicação de penas à pessoa jurídica.

Entende-se que, subscrevendo o entendimento de respeitáveis doutrinadores, o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem jurídico passível de tutela penal e, à medida que pessoas jurídicas atentam contra este equilíbrio, devem também ser penalizadas, admitindo-se, inclusive, punições de índole criminal.

Entretanto, não há como deixar de reconhecer a total falta de adequação desta criminalização com o sistema penal vigente no Direito pátrio. O Direito Penal, inserto na Constituição Federal e no Código Penal, com efeito, prevê princípios e institutos cuja aplicabilidade só é viável para a pessoa física, ressaltando-se o princípio da culpabilidade, da personalidade das penas, a individualização das sanções penais.

Impunha-se, assim, a criação de um sistema próprio que viabilizasse a aplicação de sanções criminais à pessoa jurídica, a exemplo do trabalho legislativo feito na França para, antes de adotar a responsabilidade coletiva, compatibilizar o ordenamento jurídico penal com a inovação.

Por todos os aspectos destacados, evidencia-se que a aplicabilidade da Lei dos Crimes Ambientais, no tocante às pessoas jurídicas, está comprometida, esperando-se que o legislador penal, sempre tão ágil na tarefa criminalizadora, empenhe-se na criação de um subsistema próprio para a aplicação plena e efetiva desta Lei e tenha a sabedoria suficiente para não criar um monstro ainda maior. Enquanto isso não ocorrer, ela integra o infindável rol de leis penais sem efetividade, que apenas alimentam a impunidade e vulgarizam e banalizam o Direito Penal.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

KIST, Dario José; SILVA, Maurício Fernandes da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica na Lei nº 9.605/98. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4168. Acesso em: 29 mar. 2024.