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Honorários sucumbenciais no novo CPC: rule of law ou rule of lawyer?

Honorários sucumbenciais no novo CPC: rule of law ou rule of lawyer?

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O CPC destina as verbas sucumbenciais honorárias aos advogados, mesmo mantendo o princípio do sucumbimento. Diante dessa incoerência, surge a questão: de quem são as verbas sucumbenciais? Responde-se de acordo com a Constituição.

Uma necessária introdução

“Todo trabalhador é digno de seu salário.”[1] A frase de Jesus Cristo, reverberada pelo apóstolo cristão Paulo de Tarso, é aplicável a todos os trabalhadores, mormente após a deslegitimação da escravidão. Com os advogados, por óbvio, não é diferente. O trabalho advocatício, essencial à justiça e de extrema importância, tendo em vista que se trata do exercício da capacidade postulatória de todos os cidadãos, deve ser devidamente recompensado, na medida de seu correto e diligente exercício, e com a finalidade, também, de auxiliar no crescimento e na valorização dos causídicos.

Sendo a remuneração dos advogados uma parte essencial no seu trabalho, a Ordem dos Advogados do Brasil vem agindo diuturnamente para impedir o vilipêndio de tais valores, que tem por consequência não só a desvalorização de toda a classe, mas a “morte” dos advogados menos poderosos. Afinal, é com os honorários que os advogados mantêm tanto seus meios de trabalho (principalmente os autônomos) quanto a si próprio e seus dependentes. Os honorários são o salário do advogado. Têm natureza alimentar, e devem, realmente, ser regulados pela OAB.

Contudo, a fiscalização, regulação e limitação devem ser balizadas pelos princípios constitucionais e pela própria ética. A excessiva tutela sobre os honorários advocatícios pode causar disposições imorais e até inconstitucionais. Uma das disposições legais mais danosas é aquela que atribui ao advogado os honorários sucumbenciais, que deveriam, em verdade, ser da parte. Tal previsão encontra-se no Estatuto da Advocacia e, mesmo sendo rechaçada como inconstitucional por robusta doutrina e setor da jurisprudência – inclusive do Supremo Tribunal Federal, outrora –, foi incluída no novo Código de Processo Civil.

Rebater a transferência dos honorários advocatícios aos advogados das partes vencedoras não é atacar a nobilíssima classe; tampouco velar pela desvalorização de uma profissão extremamente importante no Estado Democrático de Direito que o Brasil pretende ser. É tão somente demonstrar que, se por um lado a vida dos profissionais há de melhorar, por outro todos os jurisdicionados se prejudicarão com tal transferência. E, antes de sermos advogado, todos somos cidadãos, que devem ter devidamente reparados seus danos. Afinal, o mesmo Jesus que legitimou a devida recompensa ao trabalhador também deu uma sábia admoestação sobre Justiça: “daí a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”[2].


Da honra à sobrevivência: os honorários advocatícios

O termo “honorários” não perdeu totalmente sua remota carga semântica. Oriundo do latim honorarius, cujo radical honor relaciona-se à honra, era a denominação dos prêmios pecuniários dados a título de agrado aos juristas defensores à época da Roma antiga. Seu sentido mudou com o desenvolvimento social[3].

Atualmente, o conceito de honorários é de remuneração por serviços prestados, usado principalmente em face dos serviços dos profissionais liberais. O uso do termo em nosso País parece refletir a separação entre os que percebem salário, remuneração e honorários. O nome da remuneração de cada estamento profissional tem um sentido próprio. A honra ainda não deixou os honorários.

A lei n° 8.906/94, chamada de Estatuto da Advocacia, trata dos honorários advocatícios no capítulo VI. O artigo 22 dispõe de maneira geral sobre os tipos de honorários existentes:

“Art. 22. A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência.”

Podem-se depreender três tipos de honorários que corresponderão à atividade advocatícia. A primeira modalidade são os honorários convencionados, ou contratuais. São aqueles em que o advogado acorda com a parte contratante quanto receberá pelos serviços prestados. Trata-se de contrato de prestação de serviços, que exige todos os requisitos comuns apontados no Código Civil.

Entretanto, a liberdade contratual é limitada pela Ordem dos Advogados do Brasil. Cada seccional estadual tem autonomia para editar uma tabela e estipular preços mínimos para atos feitos pelo advogado. O objetivo é garantir a concorrência livre e justa, além da dita valorização da classe advocatícia no País.

O segundo tipo de honorários são aqueles fixados judicialmente. Acontecem quando o advogado não estipula com a parte os honorários contratuais, ou quando, mesmo sendo estipulados, torna-se difícil recebê-los. Nesses casos, o causídico requererá ao juiz que arbitre um valor a título de remuneração do advogado, tanto nos próprios autos da ação corrente como em outra. A apreciação do trabalho do advogado pode ser demonstrada pelos meios de prova cabíveis.[4]


Honorários advocatícios sucumbenciais: indenização ou nova remuneração?

A figura que também existe no art. 22 do Estatuto da Advocacia é componente de uma figura maior: as verbas sucumbenciais, que são o verdadeiro “preço da derrota judicial”. Em verdade, o CPC/1973 adotou o princípio do sucumbimento, pelo qual a parte contra a qual a decisão judicial se voltou responde por todas as verbas que a parte contrária, vencedora, despendeu[5]. Tal noção de “vencedor” e “perdedor”, apesar de não se adequar ao processo civil atual, erguido pelo princípio da solidariedade, da cooperação e da boa-fé, serve para explicar pragmaticamente as obrigações de cada parte após a decisão judicial tornar-se irrecorrível (transitar em julgado).

A grande controvérsia é que o caput do mesmo art. 22 do Estatuto da OAB que aponta a existência de tais honorários dá-lhes uma destinação: os advogados. Ou seja, o valor pago pela parte derrotada no processo relativo aos honorários sucumbenciais (que estão juntos às custas, que também devem ser compensadas) serão uma nova remuneração ao advogado da parte, segundo o EOAB. Há uma grande incoerência aqui.

A definição de honorários sucumbenciais no CPC/73 passa pela definição de verbas sucumbenciais, já esposada. Façamos um sobrevoo sobre o panorama legal atual dos honorários sucumbenciais. O art. 20 do CPC-73, que trata do tema, traz a seguinte definição:

“Art. 20. A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou e os honorários advocatícios. Esta verba honorária será devida, também, nos casos em que o advogado funcionar em causa própria.”

A letra do Código é clara: as verbas sucumbenciais são indenizatórias e cabem à parte vencedora. Inclusive, é assim que dispõe a Exposição de Motivos do CPC-73:

“O projeto adota o princípio do sucumbimento, pelo qual o vencido responde por custas e honorários advocatícios em benefício do vencedor. O fundamento desta condenação, como escreveu Chiovenda, é o fato objetivo da derrota: e a justificação deste instituto está em que a atuação da lei não deve representar uma diminuição patrimonial para a parte a cujo favor se efetiva; por ser interesse do Estado que o processo não se resolva em prejuízo de quem tem razão e por ser, de outro turno, que os direitos tenham um valor tanto quanto possível e constante.”[6] (grifos nossos)

 Resta claro que o espírito do CPC-73 era o da reparação integral dos danos sofridos pela parte que teve de acionar a justiça – inclusive os dispêndios oriundos desse acionamento. As verbas sucumbenciais teriam caráter indenizatório; indenizariam a parte pelos gastos que teve com advogado, custas, taxas e emolumentos durante o processo.

Tal entendimento não surgiu com o CPC-73. O Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-Lei n 1.608/39) trazia em si disposições análogas, com o mesmo de caráter indenizatório:

“Art. 59. A parte vencedora terá direito ao reembolso das despesas do processo.

Art. 63. Sem prejuízo do disposto no art. 3º, a parte vencida, que tiver alterado, intencionalmente, a verdade, ou se houver conduzido de modo temerário no curso da lide, provocando incidentes manifestamente infundados, será condenada a reembolsar à vencedora as custas do processo e os honorários do advogado.

Art. 64 A sentença final na causa condenará a parte vencida ao pagamento dos honorários do advogado da parte vencedora, observado, no que fôr aplicável, o disposto no art. 55.”[7]

Mesmo com a clareza da adoção do princípio da sucumbência, o tema ganhou ares controvertidos logo após a edição do CPC-1973, mormente sobre a destinação dos honorários pagos pela parte derrotada. Ocorre que, à revelia da (não tão grave) dissidência da doutrina e jurisprudência e ignorando o princípio adotado, o Estatuto da Advocacia (também chamado de Estatuto da OAB – EOAB) foi promulgado com a disposição do art. 22, decretando que os honorários sucumbenciais são dos advogados, não das partes.

Menos de um ano após a promulgação da lei n° 8.906/94, a Confederação Nacional das Indústrias ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) contra algumas disposições do Estatuto, inclusive a adotada para o pagamento dos honorários sucumbenciais. Os arts. 22 e 23, inclusive, estavam sendo rechaçados pela CNI.

Contudo, no julgamento da Ação, os ministros não apreciaram as alegações relativas aos arts. 22 e 23 por impertinência temática. Ou seja, um óbice processual – alegaram os ministros que não caberia à CNI impugnar tais dispositivos por ADIn –, não se declarou o Supremo sobre o pertencimento dos honorários advocatícios aos advogados.

Cumpre questionar: num sistema processual de sucumbimento, os honorários cabem aos advogados das partes? Se a resposta for sim, eles teriam caráter remuneratório, não indenizatório à parte. O sistema de sucumbência estaria desfalcado, enquanto os representantes judiciais receberiam duas vezes. O tema foi abordado no novo Código de Processo Civil, mas de maneira pouco plausível.


Os honorários de sucumbência no CPC-2015: o poderoso artigo 85 e as contradições com o Código

A seção III do capítulo II do CPC-2015 trata das despesas processuais. O art. 85 dessa seção tem como caput uma oração pequena, mas significativa: “a sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor”. Pelo visto, o CPC-2015 quis se alinhar com o EOAB, “acabando” com a antinomia do sistema de despesas do processo civil: de uma vez por todas, os honorários sucumbenciais são do advogado, não da parte. Houve quem comemorasse; houve quem criticasse.

Ocorre que o próprio CPC-15 não abandonou o princípio do sucumbimento (!). Pelo contrário, o §2° do artigo 82 é claro em relação às custas processuais:

Art. 82.  Salvo as disposições concernentes à gratuidade da justiça, incumbe às partes prover as despesas dos atos que realizarem ou requererem no processo, antecipando-lhes o pagamento, desde o início até a sentença final ou, na execução, até a plena satisfação do direito reconhecido no título.

Omissis

§ 2o A sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que antecipou.

Ao vencedor, o pagamento das despesas; ao advogado do vencedor, os honorários sucumbenciais, que serão calculados de maneira diferenciada. O poderoso art. 85 do CPC-15 aponta novos meios para o cálculo dos honorários, inclusive apondo uma tabela quando sucumbe a Fazenda Pública e dando algumas preferências. A verba honorária foi totalmente dada ao advogado, como se fosse mais uma remuneração pelo seu esforço. Enquanto isso, a parte ainda será indenizada pelas despesas menores. O princípio do sucumbimento do CPC-73 permanece, mas piorado, com a sonegação do principal montante despendido.

Entretanto, ainda que agora o CPC-15 disponha expressamente sobre a transferência dos honorários de sucumbência ao advogado, esse sistema é inconstitucional. Os honorários sucumbenciais são da parte. Disposição em contrário é inconstitucional por ferir os princípios do devido processo legal e da reparação integral, além do acesso à justiça.


A inconstitucionalidade da transferência dos honorários de sucumbência aos advogados

Uma simples oração como disposição normativa – mas que influencia todo um subsistema jurídico processual – está em desacordo com vários princípios da Constituição Federal. Sendo esta suprema em relação ao ordenamento jurídico infraconstitucional pátrio, seus princípios e suas regras deverão se sobrepor. O CPC-15 não afronta o princípio do sucumbimento, mas uma série de outras normas constitucionais.


Inconstitucionalidade: a supremacia da Constituição em xeque

A Constituição, como a própria terminologia indica, é documento que representa em seu corpo a constituição do um Estado. É o vértice de todo o sistema político-jurídico estatal, contendo os meios e instrumentos para que, dali, a sociedade consiga seus fins. Daí decorrem dois de seus principais princípios: rigidez e supremacia.[8]

José Afonso da Silva aponta que a supremacia constitucional é oriunda de sua rigidez. Apesar de controvertida a ilação – uma vez que é mais plausível pensar em contrário, a rigidez vem da supremacia –, ambos os princípios (aqui se entenda princípio como critério norteador) são correlatos. A Constituição é suprema e rígida por ser o centro de nosso ordenamento, mormente nas nações do Civil Law após a Segunda Guerra Mundial, com o advento do Neoconstitucionalismo[9].

Desta forma, sendo a pedra angular sobre a qual se assenta todo o ordenamento, este deve estar totalmente de acordo com os preceitos da Constituição. A carta constitucional seria o ponto de partida para o corpus político e jurídico estatal. O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se adequem às regras e aos princípios constitucionais.[10]

Quando quaisquer atos dos poderes estatais desobedeçam à eficácia vertical da constituição, trata-se de uma inconstitucionalidade. A eficácia horizontal advém do princípio da supremacia, e visa impedir que quaisquer situações jurídicas se perpetuem no tempo em desacordo com o pilar fundamental do Estado em que ocorre. A inconstitucionalidade pode ser na forma de constituição do ato ou em seu conteúdo, em sua materialidade.

A incompatibilidade entre atos dos poderes estatais e a carta magna do Estado ofende fortemente a orientação de harmonia e coerência das normas, que se reúnem sob um fundamento único e vinculante[11]. Qualquer desrespeito à constituição e a seus princípios, por ferir o instrumento da sociedade para a consecução de seus fins através do Estado, deve ser expurgada da ordem jurídica o mais depressa possível.


Ser o devido, dar acesso, ter efetividade e reparar: algumas linhas sobre os princípios que orientam o processo constitucional

O título deste tópico contém os princípios que orientam o processo constitucional em nosso Estado de Direito. É importante frisar que o termo princípio é usado em seu sentido Pós-Positivista, quando o Direito ascendeu à categoria central os princípios que espelham a ideologia da constituição. Assim, princípios constitucionais não são meros subsídios hermenêuticos, mas têm a mesma categoria que as regras: normas jurídicas constitucionais.[12] Desta forma, os princípios elencados têm status de norma jurídica, cogente, com eficácia direta e negativa[13].

O devido processo legal é um dos princípios mais vetustos dos ordenamentos constitucionais mundiais, esboçado desde a Magna Carta inglesa – que completou 800 anos em 2015. Em verdade, o devido processo legal é um “direito fundamental de conteúdo complexo”, incluindo nele desde a basilar necessidade de contraditório até o novel[14] princípio da razoável duração do processo.[15]

Em verdade, o princípio do devido processo legal significa justamente o que está posto em seus termos. O processo deve ser devidamente legal, sendo que a amplitude do termo “devido” será indicada por cada ordem constitucional. Obviamente, o sentido do due process of law na Inglaterra oitocentista é diferente do due estadunidense no começo do século XX e do due de nossa constituição[16]. Contudo, pode-se assim resumir: o princípio do devido processo legal garante que este será útil e efetivo instrumento para a aplicação justa do direito material aos casos apresentados.

Incluso no devido processo legal está a garantia do acesso à justiça, estatuída no art. 5°, XXXV, de nossa Constituição. Ao tomar para si a apreciação de quaisquer lesões ou ameaças de lesões, o Estado brasileiro, implicitamente, se compromete a resolver as contendas e tentar impedir ou indenizar/compensar as lesões. Se há a garantia do acesso à justiça de um lado, do outro há o direito de apreciação pelo Estado-Juiz do caso apresentado.

A apreciação, contudo, deve atender a algumas finalidades. (Nenhum princípio constitucional é simples em suas aplicações; se as relações sociais não o são, não há porque disposições tão complexas serem.) O Estado-Juiz quando aprecia os casos apresentados deve atentar para que sua decisão seja justa, efetiva e útil.

A efetividade da decisão judicial também é ampla, e se estende tanto ao reconhecimento célere e correto dos direitos quando à sua efetivação. Isto é, em relação ao conhecimento, o Estado-Juiz deve observar todas as situações expostas e dali extrair a maior efetividade de reconhecimento possível. Não só o Estado-Juiz, mas o Estado-Legislador também, já que a lei deve extrair de todos os seus fatos imponíveis abstratos a maior eficácia possível para a parte prejudicada que necessite recorrer ao judiciário.

O acesso à ordem jurídica deve ser acompanhado das qualificações desta ordem de justa, tempestiva, adequada e eficiente[17]. O acesso à justiça abarca tanto o ingresso quanto a solução no processo. Ademais, ainda abrange a execução, que é a concretização real do direito e o reconhecimento da força e respeitabilidade do Judiciário.

A eficácia de reconhecimento e a eficácia executiva estão intimamente ligadas a outro princípio de status constitucional: o da reparação integral. O art. 944 do Código Civil/2002 ergue o princípio de forma clara: “a indenização mede-se pela extensão do dano”. A indenização/compensação do dano deverá ser tão grande quanto for sua extensão.

O legislador brasileiro do último quartel do século XX, que escreveu o Código Civil de 2002 desde a década de 70, decidiu estender a reparação do dano até onde este fosse, não se atendo a outros caracteres como culpa, dolo ou situação econômica das partes, exceto em casos excepcionais[18].

Calcado no brocardo francês “tout le dommage, mais rien que le dommage” (“todo o dano, mas nada além do dano”), a reparação integral serve como piso e teto. O piso seria a extensão do dano que deverá ser reparado; o teto, o limite do dano, a fim de evitar enriquecimento ilícito[19]. Em danos imateriais, tal tática é bastante controvertida, o que praticamente desaparece quando se está perante danos materiais. Ou seja: todo o dano causado precisa ser reparado.

Devido processo legal, acesso à justiça, efetividade de legisfeituras e decisões estatais, efetividade judicial e reparação integral. Apesar da cultura processualística doutrinária de respeito a tais princípios constitucionais, é de se observar que a simples disposição do artigo 85 do novo CPC fez o que os arts. 22 e ss. do EOAB fizeram: os ofenderam. A destinação legal dos honorários sucumbenciais aos advogados das partes ofende alguns dos pilares principiológicos do processo civil constitucional.


Os honorários sucumbenciais sob a ótica dos princípios processuais: do advogado ou da parte?

O princípio do sucumbimento, exposto acima, tem relação estreita com o princípio da reparação integral do dano. Em verdade, pode-se dizer que o sucumbimento é consequência da reparação integral, tanto na seara civil quanto processual.

Em verdade, quando se condena a parte a pagar, como consectário da condenação, as verbas que despendeu indo a juízo, está se querendo garantir que todo o dano causado pela pretensão ou resistência ilegítima de alguma das partes seja indenizado/compensado pela outra, através da decisão oriunda do Estado. Assim, legisladores e magistrados se estruturam sobre a norma legal da completa reparação: além do dano extraprocessual, que se compense o intraprocessual.

Claro que tal compensação raramente será realmente completa. Mesmo quando de condenações materiais, pode-se apontar as oportunidades perdidas enquanto o valor a se pagar não estava já com a parte vencedora. Assim não é diferente no processo: as verbas sucumbenciais são arbitradas de acordo com presunções, mormente os honorários advocatícios.

As alíneas do art. 20, § 3° do CPC-73 e os incisos do art. 85, § 2° indicam os critérios nos quais deve o magistrado se calcar para fixar os ditos honorários sucumbenciais. Tal solução foi preferível a adotar uma em que a parte apresente o quanto gastou com honorários e requeira tal montante a título de sucumbência, a fim de evitar engôdos no processo (imagine-se que parte e advogado pactuariam um valor exorbitante para depois dividirem entre si o valor). Assim, examinando tais critérios, o magistrado estipularia um valor razoável para compensar a parte por seus gastos com advogado – ainda que eventualmente não haja cobertura total.

Ou seja, a ilação é plausível: a parte gasta com advogados e, no final do processo, se vencedora, tem reparado não só seu dano (ou outro bem de vida que buscou), mas seus gastos intraprocessuais. É o princípio constitucional da reparação integral processual, através do princípio do sucumbimento. Uma correta e justa aplicação da indenização pelos danos em sua totalidade.

Contudo, quando o EOAB e o CPC-2015 vêm retirar da parte a propriedade dos honorários sucumbenciais, a questão desanda. O sucumbimento e a reparação integral são violentamente afrontados, e o sistema processual de indenização pelos danos perde sua coerência e lógica. Isso porque se os honorários são legalmente atribuídos aos advogados, a parte nada ganha, enquanto o advogado é duas vezes remunerado pelos seus serviços.

Em verdade, o Código Civil estipula faz parte da condenação por perdas e danos os honorários advocatícios; assim, restaria ação autônoma para obter os mesmos, se não couberem nos pedidos iniciais. Mas, veja-se: nesta ação autônoma, também serão devidos honorários, enquanto os honorários sucumbenciais vão para o advogado. Então, ocorre a necessidade de outra ação para repor honorários da ação que cobrava honorários, numa ciranda interminável de processos[20]. Incoerente e injusto.

Vejamos estas situações que podem ocorrer sob os panoramas apresentados:

  • A parte convenciona em R$ 2.000,00 os honorários contratuais para que um causídico atue em causa cível cujo valor é de R$ 10.000,00. Sendo vencedora, o juiz condena a parte adversa ao pagamento da quantia total, inclusive honorários sucumbenciais de 15% sobre o valor da condenação para o advogado – ou seja, R$ 1.500,00. Assim, a parte fica com R$ 8.000,00, enquanto o causídico ficará com R$ 3.500,00;

  • No mesmo caso, os honorários se destinam para a parte. Assim, o advogado receberá os R$ 2.000,00 convencionados, enquanto a parte ficará com R$ 9.500,00 – quase todo o valor da condenação.

Em ambos os casos, pode a parte pugnar em ação cível autônoma pelo seu ressarcimento em honorários sucumbenciais. Só que enquanto no caso A ela requererá R$ 2.000,00, no B ela pedirá R$ 500,00 – sendo esta de solução mais palpável.

Como se pode ver, a destinação legal dos honorários aos advogados resulta em injustiças e incoerências. A maior de todas, por certo, está no CPC-15, que, à revelia da disposição do art. 85, dispõe em seu art. 82 que as verbas menores serão indenizadas. Ou seja, mantém o princípio do sucumbimento, mas retira os honorários advocatícios das partes.

Apesar de o Supremo Tribunal Federal estar hoje no sentido de que tais honorários são do advogado – dando-lhes inclusive natureza alimentar, autônoma e até preferencial ao montante da condenação da parte, em caso de precatórios[21] – quando do julgamento da ADIn 1194, alguns ministros se manifestaram a favor do entendimento de que as verbas sucumbenciais pertencem em sua totalidade às partes.

O Min. Marco Aurélio afirmou que: “os honorários de sucumbência, a teor do disposto no artigo 20 do CPC, são devidos à parte vencedora e não ao profissional da advocacia”; sendo acompanhado assim pelo Min Gilmar Mendes e pelo então Min. Cezar Peluso, que opinou:

"Penso que tal norma também ofenderia o princípio do devido processo legal substantivo, porque está confiscando à parte vencedora, parcela que por natureza seria destinada a reparar-lhe o dano decorrente da necessidade de ir a juízo para ver sua razão reconhecida." (grifo nosso)[22]

O Min. Joaquim Barbosa, como de praxe, foi sarcástico em suas palavras, fazendo, inclusive, o trocadilho que intitula este trabalho:

“Os dispositivos impugnados [entre os quais estão os arts. 22 e 23 do EOAB], ao disciplinarem que a verba de sucumbência pertence ao advogado, não promovem propriamente a rule of law, mas o rule of lawyers. Com isso, não se incrementa a proteção judiciária, mas apenas se privilegia certa classe de profissionais que devem atuar sempre em interesse da parte que representam, de acordo com as regras de conduta da advocacia."[23] (grifo nosso)

Percebe-se que nossa Suprema Corte caminhou no sentido de reconhecer que os honorários sucumbenciais caberiam às partes. A doutrina processualista, mormente a clássica, também destrinchou o princípio do sucumbimento e entendeu que a destinação dos honorários sucumbenciais é das partes, não dos causídicos.

O cerne da questão não é vedar a possibilidade de o advogado combinar com seu cliente sobre os honorários de sucumbência. A liberdade de contratar permite isso. Assim, caem por terra as alegações de que o preço dos honorários convencionais aumentará se a lei não os destinar aos profissionais; podem estes receberem apenas os honorários contratuais; ou contratuais e sucumbenciais (ou fração desses), em caso de vitória; ou, ainda, somente se fiar na possibilidade dos honorários sucumbenciais, sem contratuais[24].

Ovídio Baptista confirma essa possibilidade de compactuar sobre os honorários de sucumbência:

"ao cliente cabe a legitimação para postular reembolso contra o vencidosalvo se o advogado tiver direito aos honorários de sucumbência por haver contratado com o cliente que estes lhe pertencem, em caso de vitória, cumulativamente com os honorários entre eles ajustados".[25] (grifo nosso)

Resolvem-se, assim, possíveis questões que se ergam. Os advogados não devem ser destinatários legais dos honorários sucumbenciais, mas podem transigir sobre com a parte. Ainda, tais verbas caberiam ao Estado no caso da advocacia pública, não ao advogado público; e poderia haver disposição legal que destinasse à instituição da Defensoria Pública as mesmas verbas, já que as partes são representadas pela mesma, sem custo algum.


Conclusão – ao advogado, o que lhe cabe; à parte, o que lhe é de direito

Por tudo o que foi exposto, a conclusão deste trabalho é de que a destinação legal dos honorários sucumbenciais aos advogados da parte vencedora no processo é situação jurídica que afronta o art. 5°, incisos XXXV e LIV. Ofende os princípios do devido processo legal, acesso à justiça, efetividade e reparação integral.

Contudo, não há nenhuma perspectiva de que o “cavalo de troia” que é o art. 85 possa ser impugnado judicialmente. A jurisprudência do País caminha no sentido de dar ao advogado as verbas sucumbenciais, como afirma o EOAB e, quando em vigor, o CPC-15. Também o sentido é de conferir-lhes natureza autônoma e alimentar.

A correta e ética destinação dos honorários de sucumbência diminuiria o famoso “custo Brasil”, além de resolver inúmeras contradições que tal sistema traz a nosso ordenamento, aumentando, inclusive, a ideia de justiça e compensação por parte do judiciário brasileiro. Se a Justiça é valorizada, os advogados, indispensáveis a ela e representantes perante a mesma, também o são.

A Ordem dos Advogados do Brasil tem feito um fantástico trabalho, ajudando na evolução e valorização da classe advocatícia, mormente pela vigilância das prerrogativas, exigência de respeito e tutela da lei. Contudo, a Ordem peca quando defende tal privilégio inconstitucional. Dar à classe advocatícia os honorários somente aumenta o estereótipo do jurista ávido por dinheiro. Em verdade, o advogado, indispensável à Justiça, deve ser ávido por ela; a remuneração, apesar de essencial, é consequência.


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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 25ª Ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2005.


Notas

[1] Bíblia. Lucas 10.7.

[2]  Bíblia. Mateus 22.21

[3] OLIVEIRA, Antônio José Xavier. Linhas gerais acerca dos honorários advocatícios:. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1288, 10 jan. 2007. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9378>. Acesso em 28/06/2015.

[4] AZEVEDO, Flávio Olímpo de. Op. cit. A utilização de tal meio não é costumeira, tendo em vista o cuidado dos advogados em realizar os contratos de honorários ou se fiarem nas verbas sucumbenciais – modalidade abordada neste trabalho.

[5] CÓRDOVAR, Milton. Honorários de sucumbência pertencem à parte e não ao advogado. Migalhas. 20 de novembro de 2012. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI167866,91041-Honorarios+de+sucumbencia+pertencem+a+parte+e+nao+ao+advogado. Acesso em 28/06/2015.

[6] Apud CÓRDOVAR, Milton. Op. cit.

[7] BRASIL. Decreto-Lei n° 1.609, de 18 de setembro de 1939 – Código de Processo Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCiVil_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del1608.htm. Acesso em 28/06/2015.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional. 25ª Ed. Malheiros Editores: São Paulo, 2005, p. 45.

[9] ARAUJO, Higor Alexandre Alves de. A Constituição de 1988: admirável Brasil novo. Revista Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/27221, p. 2. Acesso em 09/07/2015.

[10] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 46.

[11] Idem, ibdem, p. 47.

[12] BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 317.

[13] A eficácia direta ocorre, segundo Barroso, quando um princípio é aplicado à realidade como uma regra, sem intermediação. A negativa, quando certo princípio paralisa quaisquer atos em conflito com o mesmo. Há ainda a eficácia interpretativa, que advém da capacidade de o princípio orientar o intérprete na aplicação das normas. Idem, ibdem, p. 318-320.

[14] Novel em relação aos demais, já que o inciso LXXVIII foi incluso no artigo 5° da CF em 30/12/2004, pela EC 45.

[15] DIDIER, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 17ª Ed. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015, p. 66.

[16] Idem, ibdem, p. 65.

[17] Idem, ibdem, p. 113.

[18] SANSEVERINO. Paulo de Tarso. O princípio da reparação integral e os danos pessoais. Carta Forense. 02/10/2009. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/o-principio-da-reparacao-integral-e-os-danos-pessoais/4768. Acesso dia 09/07/2015.

[19] Idem, ibdem.

[20] GIMENES, José Jácomo. Honorários sucumbenciais no novo CPC é maldade para os jurisdicionados. Revista Consultor Jurídico. 11/02/2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-fev-11/jose-jacomo-honorarios-sucumbencia-cpc-senso. Acesso em 09/07/2015.

[21] Eis notícias da revista eletrônica Consultor Jurídico: Precatórios podem ser fracionados para pagar honorários, de 30/10/2014. Disponível em:  http://www.conjur.com.br/2014-out-30/precatorios-podem-fracionados-pagar-honorarios. E Nova Súmula Vinculante confere natureza alimentar a honorários de sucumbência, de 27/05/2015. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-mai-27/stf-confere-natureza-alimentar-honorarios-sucumbencia-sumula. Acessos dia 09/07/2015.

[22] CÓRDOVAR, Milton. Honorários de sucumbência... Op. Cit.

[23] Idem, ibdem.

[24] Poderia haver cláusula de destinação dos honorários sucumbenciais em caso de advocacia pro Bono, por exemplo, ou mesmo aos advogados dativos remunerados pelo Estado.

[25] Comentário ao CPC, Volume 1, Editora RT, ano 2000 apud GIMENES, José Jácomo et. al. Advogado não tem de receber verba indenizatória. Revista Consultor Jurídico. 26/03/2012. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2012-mar-26/advogado-recebe-honorario-nao-receber-verba-indenizatoria#_ftn3_4458. Acesso dia 09/07/2015.


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ARAÚJO, Higor Alexandre Alves de. Honorários sucumbenciais no novo CPC: rule of law ou rule of lawyer?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6232, 24 jul. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41688. Acesso em: 4 maio 2024.