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Considerações jurídicas sobre a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD), instituída no Município de São Paulo

Considerações jurídicas sobre a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD), instituída no Município de São Paulo

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1. INTRODUÇÃO

No apagar das luzes do ano de 2002, mais precisamente no dia 30/12/2002, foi publicada, no Diário Oficial do Município de São Paulo, a Lei Municipal nº 13.478/02, que instituiu a Taxa de resíduos sólidos domiciliares, doravante denominada simplesmente TRSD.

A hipótese de incidência da referida taxa possui os seguintes aspectos:

Aspecto material: utilização dos serviços públicos de coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos domiciliares (arts. 83 e 84 da Lei nº 13.478/02).

Aspecto espacial: limites territoriais do Município de São Paulo (parte final do art. 83 da Lei nº 13.478/02).

Aspecto temporal: A partir de 01 de janeiro de 2003.

Aspecto pessoal: (a) sujeito ativo: Prefeitura de São Paulo e (b) sujeito passivo: munícipe usuário dos serviços de coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos domiciliares, inscritos no cadastro imobiliário fiscal do Município e o usuário real dos serviços, como responsável pelo pagamento da taxa, quando a pessoa inscrita nos cadastros municipais não for a usuária (art. 86 da Lei nº 13.478/02).

Aspecto quantitativo: valores fixos estabelecidos de acordo com a natureza do domicílio e volume de geração potencial de resíduos sólidos, estabelecidos na tabela do artigo 89 da Lei nº 13.478/02.

A partir dessa segmentação esclarecedora, pode-se aferir diversos vícios, todos relevantes, que culminam com a impossibilidade de cobrança da TRSD.


2. DA IMPOSSIBILIDADE DE INSTITUIÇÃO DE UMA TAXA QUE NÃO DEFINE CLARAMENTE SUA BASE DE CÁLCULO

A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 145, §2º, a impossibilidade de criação de taxas que tenham a mesma base de cálculo de impostos.

Esta é, sem sombra de dúvidas, a primeira premissa a ser analisada para se constatar a constitucionalidade de uma taxa, isto é, a não adoção de uma base de cálculo já utilizada para um imposto.

Por tal razão, inúmeras tentativas de cobrança dessa espécie tributária foram frustradas para diversos municípios brasileiros em anos passados.

Entretanto, a Lei Municipal estabeleceu, em seu artigo 89, parágrafo único, valores-base da TRSD, apurados de acordo com a natureza do domicílio e o volume de geração potencial de resíduos sólidos.

O escalonamento desses valores-base tomou o seguinte contorno:

DOMICÍLIOS RESIDENCIAIS

VALOR BASE POR MÊS

UGR especial – geração de até 10 litros de resíduos por dia

R$ 6,14

UGR 1 – geração entre 10 e 20 litros de resíduos por dia

R$ 12,27

UGR 2 – geração entre 20 e 30 litros de resíduos por dia

R$ 18,41

UGR 3 – geração entre 30 e 60 litros por dia

R$ 36,82

UGR 4 – geração de mais de 60 litros por dia

R$ 61,36

* URG – Unidade Geradora de Resíduos

O que se pode perceber, à toda evidência, é que inexiste qualquer parâmetro mensurável, logicamente decorrente do critério material da hipótese de incidência, que possa refletir a quantificação do valor a ser recolhido.

Isto representa, por mais dissimulada que se apresente a exação, uma burla à exigência constitucional da obrigatória presença da base de cálculo.

Com efeito. Pergunta-se: Como aferir o critério quantitativo da hipótese de incidência, se inexiste base de cálculo e alíquota?

A presença da base de cálculo é indispensável para que o contribuinte saiba o custo do serviço público específico e divisível posto à sua disposição e constate a inexistência de enriquecimento ilícito por parte do Estado. Isto porque, nas taxas de serviço, como é o caso da TRSD, é cediço que a base de cálculo só pode mensurar, como teto, o custo dos serviços públicos específicos e divisíveis, sob pena de inconstitucionalidade.

Geraldo Ataliba, no mesmo sentido excogitado, perfilhou o seguinte entendimento acerca da base de cálculo:

A base de cálculo dos tributos deve ser estreitamente correlacionada com o elemento material da hipótese de incidência.

Nos impostos, será uma ordem de grandeza ínsita na coisa ou atividade tributada, ou inerente ao sujeito passivo.

Nos tributos vinculados, pelo contrário, há de ser uma ordem de grandeza ínsita à atividade pública que precisamente os justifica.

Como exemplo do que acaba de ser aduzido, pode-se citar o pagamento da taxa judiciária, onde o contribuinte paga para usar os serviços forenses.

Entretanto, não é o que ocorre na TRSD, conforme se pode aferir da leitura do artigo 89, da Lei nº 13.478/02. Isto porque, nesse dispositivo encontra-se um rol progressivo de valores, de acordo com a maior ou menor potencialidade de gerar resíduos sólidos domiciliares, mas sem que haja qualquer demonstração do custo do serviço público posto à disposição dos munícipes, que, na sua grande maioria, pagarão o valor lançado (R$ 6,14, R$ 12,27, por exemplo) sem questionar.

Nas palavras sempre oportunas de Roque Antônio Carrazza, a base de cálculo mede o fato descrito na hipótese de incidência, de modo a permitir que a prestação tributária seja ‘quantificada’, isto é traduzida numa expressão econômica. Inexistindo essa adequada quantificação, a taxa poderá assumir feições confiscatórias, afrontando o art. 150, IV, da CF/88.

Vale lembrar, porque oportuno, que o confisco não é só a supressão total do patrimônio do contribuinte por via da tributação. Na lição sempre arguta de Sacha Calmon Navarro Coêlho, confiscar é tirar dinheiro ou riqueza arbitrariamente dos particulares, no todo ou em parte.

No caso da TRSD, percebe-se o confisco à medida que constata-se a inadequação na eleição da base de cálculo da exação, aleatoriamente fixada em valores progressivos, tornando-a, portanto, arbitrária e inconstitucional.

Resta demonstrado, assim, que existe flagrante violação ao critério quantitativo da hipótese de incidência analisada, por ausência de instituição válida da base de cálculo, uma vez que ela não foi instituída como decorrência lógica do critério material da hipótese de incidência e não guarda pertinência com o custo do serviço público, que não foi sequer abordado, inquinando, portanto, de invalidade, a exação municipal aqui em foco.


3. DA FALTA DE ESPECIFICIDADE, MENSURABILIDADE E DIVISIBILIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS

A Constituição Federal estabelece, em seu artigo 145, II, que as taxas somente podem ser instituídas em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.

Nos serviços prestados pela Prefeitura Municipal de São Paulo, não há como se preencher os requisitos constitucionais, além de vários requisitos estabelecidos pelo Código Tributário Nacional, nos seus artigos 77, caput e parágrafo único c/c 79, incisos II e III. In verbis:

Art.77. As Taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divísivel, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

(grifamos)

Art.79. (...)

(...)

II - específicos, quando possam ser destacados em unidades autônomas de intervenção, de utilidade ou de necessidade públicas;

III - divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.

Ora, como pode ser especificada a utilização, por cada usuário, do tratamento e destinação final de resíduos sólidos??? E mais. Quanto custa, para cada cidadão, a utilização desses mesmos serviços??? Sequer será possível mensurar o aproveitamento de tais serviços individualmente, calculando o custo utilizado.

Em verdade, o benefício é para toda a sociedade; portanto, insuscetível de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários.

A própria Prefeitura reconhece essa fruição coletiva em seu informe publicitário, distribuído em conjunto com os boletos da famigerada TRSD. Destaque-se os seguintes trechos:

A taxa do lixo foi criada para acabar com o risco de um colapso no serviço de coleta e destinação do lixo na cidade.

(...)

O que eu ganho pagando a Taxa do Lixo?

De imediato, você terá garantida a manutenção e qualidade do serviço de coleta de lixo na cidade, além de outros como o transporte e o tratamento devido aos resíduos.

Percebe-se, com solar clareza, que o serviço público prestado não pode ser dividido e fruível individualmente, de sorte que seu custeio deve exsurgir da receita decorrente da arrecadação dos impostos já instituídos.

Nesse sentido, o seguinte posicionamento foi recentemente exposto pelo STF:

Taxa de Coleta de Lixo Domiciliar

Concluindo o julgamento de embargos de divergência (v. Informativo 288), o Tribunal, por maioria, decidiu que os serviços públicos custeados pela taxa de coleta de lixo domiciliar instituída pela Lei 691/84, do Município do Rio de Janeiro, não são específicos e divisíveis para efeito do art. 145, II, da CF ("Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:.. . II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços público e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição"). Entendeu-se que o referido tributo vincula-se à prestação de serviços de caráter geral (varrição, lavagem e capinação de vias e logradouros públicos, limpeza de praias e outros), insusceptíveis de serem custeados senão por via do produto de impostos. Vencido o Min. Gilmar Mendes.

RE (EDv-ED) 256.588-RJ, rel. Ministra Ellen Gracie, 19.3.2003. (RE-256588)

(grifou-se)

Em resumo, se o serviço público é genérico, é o imposto que lhe atende ao dispêndio. Se, todavia, tratar-se de um serviço particularizado, na condição da especificidade e individualidade, será atendido, tal dispêndio, pela receita obtida pela taxa.

Neste diapasão, é lógico que os citados serviços importam em prestações gerais do Estado e não particularizados; atendidos, portanto, pelas receitas de impostos, sendo a taxa cobrada (TRSD) de absoluta inconstitucionalidade.

O próprio Supremo Tribunal Federal, em outra oportunidade, entendeu, no julgamento do RE nº 204.827-SP (DJU de 25.04.97, Rel. Min. Ilmar Galvão, Plenário, por maioria), a inconstitucionalidade na cobrança de taxas com este vício na base de cálculo ou com falta da condição de serviço específico, particularizado, que lhe é característica constitucional e legal (art. 145, II, CF/88 e art. 77/78 CTN):

MunicÍpio de São Paulo. TRIBUTÁRIO. Lei 10.921/1990, que deu nova redação aos arts. 7º, 87 e incs. I e II, e 94 da Lei 6.989/1966, do município de São Paulo. Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana. Taxas de Limpeza Pública e de Conservação de Vias e Logradouros Públicos.

Inconstitucionalidade dos dispositivos sob enfoque. O primeiro, por instituir alíquotas progressivas alusivas ao IPTU, em razão do valor do imóvel, com ofensa ao art. 182, par. 4º, II da constituição Federal, que limita a faculdade contida no art. 156, par. 1º, a observância do disposto em Lei Federal e a utilização do fator tempo para a graduação do tributo.

Os demais, por haverem violado a norma do art. 145, par. 2º, ao tomarem para base de cálculo das taxas de Limpeza e Conservação de Ruas, elemento que o STF tem por fator componente de base de cálculo do IPTU, qual seja, a área de imóvel e a extensão deste no seu limite com o logradouro público.

Taxas que de qualquer modo, no entendimento deste relator, tem por fato gerador prestação de serviço inespecífico, não mensurável, indivisível e insuscetível de ser referido a determinado contribuinte, não tendo de ser custeado senão por meio do produto da arrecadação dos impostos gerais.

Não-conhecimento do Recurso da Municipalidade.

Conhecimento e provimento do recurso da contribuinte.

(grifou-se)

O E. Superior Tribunal de Justiça também já se posicionou acerca da falta de especificidade desses serviços, no julgamento do Recurso Especial nº 104.959/SP:

TRIBUTÁRIO. TAXAS. Lei nº 6.989, de 1966, NA REDAÇÃO DADA PELA LEI Nº 11.152, DE 1991, DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO.

1. TAXA DE LIMPEZA URBANA. A taxa de Limpeza Urbana, no modo como disciplinada no município de São Paulo, remunera - além dos serviços de "remoção de lixo domiciliar" - outros que não aproveitam especificamente ao contribuinte ("varrição, lavagem e capinação"; "desentupimento de bueiros e bocas-de-lobo"); ademais, a respectiva base de cálculo não está vinculada à atuação estatal, valorizando fatos incapazes de mensurar-lhe o custo (localização, utilização e metragem do imóvel) - tudo com afronta aos artigos 77, "caput" e 79, inciso II, do Código Tributário Nacional.

2. TAXA DE CONSERVAÇÃO DE VIAS E LOGRADOUROS PÚBLICOS. A taxa de conservação de Vias e Logradouros Públicos, assim como instituída no Município de São Paulo, tem como fato gerador serviços que beneficiam toda a comunidade (de conservação do calçamento e dos leitos não pavimentados das ruas, praças e estradas do Município), insuscetíveis de utilização, separadamente, por parte de cada um dos seus usuários, contrariando o disposto no artigo 79, inciso III, do Código Tributário Nacional.

Recurso Especial conhecido e provido.

(Recurso Especial-STJ-data 14/12/1998)

(grifou-se)

Em outro julgamento daquela Corte encontra-se a mesma linha de raciocínio:

AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. IPTU PROGRESSIVO E TAXA DE CONSERVAÇÃO E LIMPEZA DE RUA. MATÉRIAS JÁ DIRIMIDAS PELO PLENÁRIO DESTA CORTE.

1-) A jurisprudência desta Corte é no sentido de que a progressividade do IPTU, que é imposto de natureza real em que não se pode levar em consideração a capacidade econômica do contribuinte, só é admissível, em face da Constituição, para o fim extra-fiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade.

2-) Lei Municipal nº 10.921/90. Taxa de limpeza e conservação de rua. Inconstitucionalidade. Ofensa ao artigo 145, § 2º da Constituição Federal pelo fato de não serem divisíveis os serviços públicos a custear.

(AGRRE-197676/SP, Relator Min. Maurício Correia, 2ª Turma STF, Agrte.: Município de São Paulo; Agrdo.: Joaquim Gonçalves de Almeida)


4. DA TERATOLÓGICA ISENÇÃO CONCEDIDA PELA LEI MUNICIPAL Nº 13.478/02

Outro ponto que está a vulnerar a constitucionalidade da TRSD é a concessão de isenções que desbordam do magno princípio da isonomia.

Ora, se o objetivo é tributar, gradativamente, quem produz mais lixo, conforme previsto no artigo 89 da Lei Municipal, mostra-se totalmente desarrazoada a isenção concedida pela lei aos proprietários de imóveis com valor venal abaixo de R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), como estampado no art. 248. Não há a menor correlação lógica entre a discriminação havida (isenção) e o fator descrímen trazido pela lei (ser proprietário de imóvel no valor apontado), malferindo diretamente o artigo 150, II, do texto constitucional.

Com efeito, quem garante que um imóvel desse valor, no qual residam sete pessoas, não produzirá muito mais lixo que um imóvel de R$ 500.000,00 onde resida apenas um casal???

Nem se alegue que a isenção está em consonância com o princípio da capacidade contributiva, pois a hipótese de incidência da taxa nada tem a ver com os signos presuntivos de maior ou menor capacidade contributiva dos contribuintes, mas, sim, à realização de serviços públicos que, como visto, não são específicos e divisíveis.

Por mais este ângulo, também percebe-se a inconstitucionalidade da taxa, uma vez que a mesma não foi estabelecida de forma isonômica para todos os munícipes produtores de lixo.


5. CONCLUSÕES

A cobrança da TRSD afronta diversos dispositivos legais e constitucionais, contrariando todo o Sistema Tributário vigente, pelos seguintes motivos:

1.Por faltar-lhe os requisitos mínimos para delineação do critério quantitativo da sua hipótese de incidência;

2.Pela ausência de vinculação a uma atividade estatal específica, divisível e mensurável;

3.Pela instituição da obrigação tributária em descompasso com o princípio constitucional da isonomia.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Eduardo Amorim de. Considerações jurídicas sobre a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD), instituída no Município de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 66, 1 jun. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4180. Acesso em: 28 mar. 2024.