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Sucessão do companheiro: (in)constitucionalidade do tratamento sucessório diferente entre cônjuges e companheiros

Sucessão do companheiro: (in)constitucionalidade do tratamento sucessório diferente entre cônjuges e companheiros

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Analisa-se o tratamento sucessório do cônjuge e do companheiro conferido pelo Código Civil sob a ótica constitucional, notadamente à luz do princípio da igualdade entre as entidades familiares.

 

 

O art. 1790 do CC, que regula a sucessão do companheiro, induvidosamente, dá tratamento discrepante e desigual à sucessão do cônjuge (art. 1829 e seg. do CC). Dentre outras diferenças, o companheiro, que não foi contemplado expressamente com a categoria de herdeiro necessário, só terá direito à sucessão no tocante aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável (art. 1790 caput do CC), concorrendo inclusive com os colaterais (art. 1790 III CC). Já o cônjuge, herdeiro necessário (art. 1845 do CC), tem preferência sobre os colaterais, recebendo toda a herança no caso de ausência de descendentes e ascendentes (art. 1829 III e art. 1838 do CC).

Não param por aí as discrepâncias e desigualdades. O cônjuge, em concorrência com os descendentes, tem direito mínimo à cota igual aos descendentes, reservando-se 1/4 da herança caso seja ascendente dos herdeiros com que concorrer (art. 1832 do CC). O companheiro, em concorrência com os descendentes, não tem direito à reserva de 1/4 da herança (leia-se: bens adquiridos onerosamente na constância da união estável), podendo, inclusive, ter direito à cota menor do que os descendentes (art. 1790 II do CC). O cônjuge em concorrência com os ascendentes terá direito ora a 1/3, ora a metade da herança, a depender do caso (art. 1837 do CC). O companheiro, em concorrência com os ascendentes (art. 1790 III do CC), terá direito, tão somente, a 1/3 da herança (leia-se: bens adquiridos onerosamente na constância da união estável).

Todas essas hipóteses tratam o companheiro, sucessoriamente, de forma desvantajosa, em comparação à sucessão do cônjuge.

É verdade que em poucas hipóteses o companheiro sucederá em vantagem ao cônjuge (NEVARES, Ana Luiza Maia. Fundamentos da Sucessão Legítima. In Manual de Direito das Famílias e das Sucessões. 2ª ed. Del Rey. P. 598). Imaginemos que o de cujus tenha deixado descendentes e que todo o seu patrimônio tenha sido adquirido onerosamente durante a vigência da união estável (sem deixar bens particulares), e que o regime de bens entre os companheiros seja o da comunhão universal, da separação obrigatória ou da comunhão parcial (e também da participação final dos aquestos). Nessa hipótese, o companheiro teria direito à sucessão (art. 1.790, I e II do CC). No entanto, caso fossem casados sob esses regimes, o cônjuge supérstite não teria direito a participar da sucessão (art. 1.829, I), e, logo, não herdaria nada. Afora essas poucas hipóteses, o tratamento sucessório ao cônjuge é privilegiado e mais benéfico em relação ao tratamento sucessório do companheiro.

Daí a discussão a respeito da (in)constitucionalidade desse diferente tratamento sucessório. O STF, após longos debates nos tribunais estaduais, pacificou a questão:

A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesmas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011) Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis nº 8.971/1994 e nº 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002”. (STF. RE 646721, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2017, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-204 DIVULG 08-09-2017 PUBLIC 11-09-2017)

Como bem entendeu o STF, a inconstitucionalidade do art. 1790 do CC é manifesta.

Para que haja uma entidade familiar, ante o princípio da pluralidade de entidades familiares e conforme a norma aberta e de inclusão do art. 226 caput da CF, há necessidade de três elementos: afetividade, estabilidade e ostensibilidade. A afetividade para caracterizar a entidade familiar não se baseia em qualquer afeto e sim em um afeto especial: o afeto familiar. O afeto familiar se caracteriza pelo animus de constituição de família: o desejo dos familiares compartilharem a mesma vida, dividindo as tristezas e alegrias, os fracassos e os sucessos, a pobreza e a riqueza, enfim, o intuito de formarem um novo organismo distinto de suas individualidades, num recíproco pertencer.

Não poderia ser diferente ante o direito à felicidade. A felicidade é um direito fundamental implícito. Sendo a família instrumento para a busca da felicidade, gradativamente o direito foi consagrando a pluralidade familiar, dando vozes às formas mutantes da sociedade contemporânea, trazendo à tona a realidade como ela é. Daí surgem diversas formas de arranjo familiar.

Ressalte-se que não há qualquer modelo preferencial entre as entidades familiares. Ao estabelecer a facilitação da conversão da união estável em casamento (art. 226, § 3º, da CF), o constituinte almejou, tão somente, tornar menos solene e complexo o matrimônio daquelas pessoas que, anteriormente, já conviviam maritalmente, como se casados fossem. Só isso. Não há, de nenhum modo, na referida disposição um intuito hierárquico, estabelecendo graus de proteção da família. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 3ª ed. p. 442).

Assim, todas as entidades familiares estão em pé de igualdade - princípio da igualdade entre as entidades familiares: casamento heteroafetivo e homoafetivo, união estável heteroafetiva e homoafetiva, família monoparental etc., consagrando o entendimento de que a família de hoje é plural, pois a base da família é o afeto - princípio da afetividade, e são múltiplas e variadas as formas de amar. 

Em outras palavras, não foi intenção da Constituição estabelecer famílias de primeira e segunda classe. Nem poderia, sob pena de violação ao princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

O núcleo axiológico da família é o afeto e o amor, pois a família é o meio, o instrumento de plena realização da pessoa humana. Essa é a função social da família – espaço de proteção avançada de dignificação da pessoa humana. A forma de família não é medida imposta pela lei ou pelo judiciário. A forma de família é escolha de seus partícipes, de acordo com as suas próprias convicções existenciais. É o direito à liberdade de autodeterminação afetiva. Uma vez escolhido o meio de busca da felicidade e dignidade, cabe ao Judiciário tão somente chancelar toda e qualquer forma de amor.

Em outras palavras, a família não é destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana. Desde a Constituição de 1988, a proteção jurídica da família deslocou-se da instituição para os sujeitos que a integram (art. 226 § 8º primeira parte CF) – concepção eudemonista de família.

Com efeito, não se pode ceder à tentação de enxergar o direito de família como um conjunto de normas destinado à proteção de entidades familiares, quando seu objeto consiste, em verdade, nas relações de família ostentadas por cada pessoa humana, cuja dignidade merece a mais elevada proteção do ordenamento constitucional. A família não deve ser enxergada como valor em si, mas tão somente como comunidade funcionalizada à proteção e ao desenvolvimento da personalidade daqueles que a integram. Como ensina Gustavo Tepedino, “a dignidade da pessoa humana, alçada pelo art. 1º, III, da Constituição Federal, a fundamento da República, dá conteúdo à proteção da família atribuída ao Estado pelo art. 226 do mesmo texto maior”. Assim, a referência às entidades familiares, expressão cuja utilidade consiste em revelar a abertura da tutela jurídica a múltiplas formas de manifestação do fenômeno familiar, não pode resultar, de modo algum, na renúncia a um olhar que conceba a família como relação de coexistência, e não como ente transpessoal. (SCHREIBER, Anderson. Famílias Simultâneas e Redes Familiares. In http://www.andersonschreiber.com.br/artigos.html).

A família, no direito positivo brasileiro, é atribuída proteção especial, na medida em que a Constituição entrevê o seu importante papel na promoção da dignidade da pessoa humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento dessa mesma função. Por isso mesmo, o reconhecimento jurídico das entidades familiares depende da concreta verificação do atendimento desse pressuposto finalístico: merecerá tutela jurídica e especial proteção do Estado a entidade familiar que efetivamente promova a dignidade e realização da personalidade de seus componentes (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Renovar. p. 326/327).

Assim, admitir a superioridade do casamento significa proteger mais, ou prioritariamente, algumas pessoas em detrimento de outras, violando, assim, a igualdade e a dignidade, simplesmente porque aquelas optaram por constituir uma família a partir da celebração do ato formal do casamento .

Todavia, embora não haja hierarquia entre os arranjos familiares, ante o princípio da igualdade entre as entidades familiares, é preciso dizer que não se trata de uma igualdade absoluta. Em outras palavras, há diferenças entre o casamento e a união estável. Contudo, as diferenças, como se verá, se dão tão somente nos seus aspectos formais, ante a segurança probatória gerada pela constituição do matrimônio, por constituir o casamento um ato formal e solene, o que não ocorre na união estável.

Como dito, a diferença entre tais entidades é tão somente formal. O casamento é provado pela apresentação da certidão de casamento. A união estável, por ser uma relação conjugal fática, não se prova através de uma certidão cartorária, e, quando contestada, demanda uma ação judicial.

Todavia, substancialmente, não há diferenças entre o casamento e a união estável. Como entidades familiares, o casamento e a união estável não possuem diferenciações. Ambas são entidades lastreadas na afetividade, estabilidade e ostensibilidade. Ambas são comunidades que merecem proteção especial do Estado, por se constituírem em espaços de proteção avançada de dignificação da pessoa humana. Em outras palavras, as relações familiares geradas pelo casamento ou união estável são idênticas em sua essência, baseadas em iguais vínculos de afeto, solidariedade e respeito.

As diferenças, portanto, ocorrem tão somente no tocante à constituição da relação conjugal, ante a solenidade e formalidade do enlace matrimonial, além da facilidade probatória do casamento. Por isso, as diferenças entre o casamento e a união estável devem se relacionar, tão somente, a questões formais, sob pena de inconstitucionalidade.

Mostra-se de extrema relevância para a construção de uma jurisprudência consistente acerca da disciplina do casamento e da união estável saber, diante das naturais diferenças entre os dois institutos, quais os limites e possibilidades de tratamento jurídico diferenciado entre eles. Toda e qualquer diferença entre casamento e união estável deve ser analisada a partir da dupla concepção do que seja casamento - por um lado, ato jurídico solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico, e, por outro, uma entidade familiar, dentre várias outras protegidas pela Constituição. Assim, o casamento, tido por entidade familiar, não se difere em nenhum aspecto da união estável - também uma entidade familiar -, porquanto não há famílias timbradas como de "segunda classe" pela Constituição Federal de 1988, diferentemente do que ocorria nos diplomas constitucionais e legais superados. Apenas quando se analisa o casamento como ato jurídico formal e solene é que as diferenças entre este e a união estável se fazem visíveis, e somente em razão dessas diferenças entre casamento - ato jurídico - e união estável é que o tratamento legal ou jurisprudencial diferenciado se justifica. (STJ. REsp 1299866/DF, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 25/02/2014, DJe 21/03/2014)

De fato, há casos em que os efeitos decorrentes do instrumento formal do casamento justificam o tratamento distinto entre ele e a união estável. São hipóteses que decorrem diretamente da solenidade e da publicidade do matrimônio, atributos que, inclusive, asseguram a confiança e a segurança aos terceiros que porventura venham a travar negócios jurídicos com os consortes.

 Exemplo é a outorga conjugal (art. 1647 do CC). Em regra, não se pode exigir o consentimento do companheiro para alienar e gravar bens imóveis (art. 1647 I CC), porque isso geraria insegurança jurídica, eis que terceiros – de boa fé - poderiam desconhecer a relação conjugal fática daquele que vive em união estável, não sabendo, assim, que aquele com quem negocia depende de consentimento do companheiro para alienar e gravar bens imóveis. O mesmo se diga no tocante à prestação de fiança e aval (art. 1647 III do CC). Todavia, essa é uma presunção. Se o terceiro sabia - ou devia saber - que aquele com quem negocia vive em união estável, sua boa-fé resta afastada. Assim, a proteção jurídica ao terceiro deixa de existir, por conhecer ele a situação fática conjugal daquele com quem trava relações negociais. Ou seja, a outorga conjugal não se aplica, em regra, à união estável, em respeito ao terceiro de boa-fé, mas pode ser plenamente aplicada quando verificado que esse terceiro não está de boa-fé. Ou, em outras palavras, a outorga conjugal aplica-se à união estável cum grano salis, adequando-se, todavia, seus efeitos às nuances próprias da ausência de exigências formais para a constituição dessa entidade familiar.

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PATRIMONIAL DE FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL.ALIENAÇÃO DE BEM IMÓVEL ADQUIRIDO NA CONSTÂNCIA DA UNIÃO.NECESSIDADE DE CONSENTIMENTO DO COMPANHEIRO. EFEITOS SOBRE O NEGÓCIO CELEBRADO COM TERCEIRO DE BOA-FÉ.1. A necessidade de autorização de ambos os companheiros para a validade da alienação de bens imóveis adquiridos no curso da união estável é consectário do regime da comunhão parcial de bens, estendido à união estável pelo art. 1.725 do CCB, além do reconhecimento da existência de condomínio natural entre os conviventes sobre os bens adquiridos na constância da união, na forma do art. 5º da Lei 9.278/96, Precedente.2. Reconhecimento da incidência da regra do art. 1.647, I, do CCB sobre as uniões estáveis, adequando-se, todavia, os efeitos do seu desrespeito às nuanças próprias da ausência de exigências formais para a constituição dessa entidade familiar.3. Necessidade de preservação dos efeitos, em nome da segurança jurídica, dos atos jurídicos praticados de boa-fé, que é presumida em nosso sistema jurídico.4. A invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida a união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente.5. Hipótese dos autos em que não há qualquer registro no álbum imobiliário em que inscrito o imóvel objeto de alienação em relação a co-propriedade ou mesmo à existência de união estável, devendo-se preservar os interesses do adquirente de boa-fé, conforme reconhecido pelas instâncias de origem.6. RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.(STJ. REsp 1424275/MT, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/12/2014, DJe 16/12/2014)

            Aliás, verifica-se que o novo CPC estabelece que o cônjuge necessitará de consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário (art. 73 do NCPC), devendo ambos serem citados nessas ações (art. 73 § 1º do NCPC), tal qual o art. 1647, II, do CC, que também estabelece a necessidade de outorga conjugal para pleitear como autor ou réu acerca desses direitos. O novo CPC, de acordo com a exegese que aqui se propõe, estabelece no art. 73, § 3º, que referido consentimento aplica-se à união estável comprovada nos autos.

A emancipação tem se admitido na união estável, embora não prevista expressamente (art. 5º, parágrafo único, II do CC). Ora, se as núpcias tornam capazes seus contraentes para os atos da vida civil, o mesmo se dirá no tocante à união estável.

Não parece razoável privar o companheiro menor de idade da emancipação. Isto porque se a união estável é entidade familiar, merecedora de especial proteção do Estado, não há sentido em restringir a proteção do companheiro menor de idade. (ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito das Famílias. Lumenjuris. 5ª ed. p. 546).

Sendo o casamento civil uma das formas de cessação da menoridade, tem-se que também a união estável  é forma de emancipação (TJGO. AC 57266-0/188. Des. Ney Teles de Paula. DJ 09.10.2001).

Evidente que o terceiro que travar negócios jurídicos com o companheiro emancipado deverá ter redobrada cautela na averiguação da emancipação. Inclusive, o terceiro não restará prejudicado caso aquele com quem negocia venha a invocar ser emancipado – em razão da união estável - de forma fraudulenta. Nesse caso, o negócio jurídico persistirá, ante a aplicação analógica do art. 180 do CC, aplicando-se, no caso, a boa-fé objetiva, que veda o abuso do direito (art. 187 do CC), proibindo, assim, o comportamento contraditório. Trata-se daquilo que se denominou chamar de tu quoque - espécie de proibição do comportamento contraditório, que nada mais é do que a proibição de se valer da própria torpeza. Ora, se o menor que omite sua idade ou a invoca fraudulentamente não pode dessa situação tirar proveito para invalidar a obrigação, o mesmo se dirá no tocante àquele que se diz emancipado em razão da união estável de forma fraudulenta.

A suspensão da prescrição na constância da união estável, embora não prevista expressamente (art. 197 I do CC), também se tem admitido. Assim,  o Enunciado 296 das Jornadas de Direito Civil/CJF: Não corre prescrição entre companheiros, na constância da união estável. Afinal, a ratio do dispositivo é a proteção do núcleo familiar, seja ele matrimonial (casamento) ou fático (união estável). Daí não ser possível qualquer diferença.

A presunção pater is est (art. 1597 do CC) também vem sendo admitida à união estável, em razão do princípio da igualdade entre os filhos (art. 227 § 6º da CF), sob pena do Código Civil criar duas diferentes classes de filhos, em clara violação à Constituição: os filhos de pessoas casadas (que gozam de presunção e podem exigir, automaticamente, os seus direitos decorrentes do parentesco paterno) e os filhos de pessoas não casadas que vivam em união estável (que, não dispondo de presunção, precisam de reconhecimento pelo pai, e, não ocorrendo espontaneamente, precisam ajuizar ação judicial para terem os seus direitos reconhecidos).

Assim, se nosso ordenamento jurídico, notadamente o próprio texto constitucional (art. 226, §3º), admite a união estável e reconhece nela a existência de entidade familiar, nada mais razoável de se conferir interpretação sistemática ao art. 1.597, II, do Código Civil, para que passe a contemplar, também, a presunção de concepção dos filhos na constância de união estável. Na espécie, o companheiro da mãe da menor faleceu 239 (duzentos e trinta e nove) dias antes ao seu nascimento. Portanto, dentro da esfera de proteção conferida pelo inciso II do art. 1.597, do Código Civil, que presume concebidos na constância do casamento os filhos nascidos nos trezentos dias subsequentes, entre outras hipóteses, em razão de sua morte. Dessa forma, em homenagem ao texto constitucional (art. 226, §3º) e ao Código Civil (art. 1.723), que conferiram ao instituto da união estável a natureza de entidade familiar, aplica-se as disposições contidas no artigo 1.597, do Código Civil, ao regime de união estável. (STJ. REsp 1194059/SP, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/11/2012, DJe 14/11/2012)

No tocante à adoção do sobrenome, a LRP (art. 57 §§ 2º e 3º) é bem mais restritiva que o CC (art. 1565 § 1º), merecendo, portanto, integral aplicação o regramento do CC, mesmo à união estável.

O art. 57, § 2º, da Lei 6.015/73 não se presta para balizar os pedidos de adoção de sobrenome dentro de uma união estável, situação completamente distinta daquela para qual foi destinada a referida norma. Devem ter aplicação analógica as disposições específicas do Código Civil, relativas à adoção de sobrenome dentro do casamento, porquanto se mostra claro o elemento de identidade entre os institutos. Em atenção às peculiaridades da união estável, a única ressalva é que seja feita prova documental da relação, por instrumento público, e nela haja anuência do companheiro que terá o nome adotado, cautelas dispensáveis dentro do casamento, pelas formalidades legais que envolvem esse tipo de relacionamento, mas que não inviabilizam a aplicação analógica das disposições constantes no Código Civil, à espécie. Primazia da segurança jurídica que deve permear os registros públicos, exigindo-se um mínimo de certeza da existência da união estável, por intermédio de uma documentação de caráter público, que poderá ser judicial ou extrajudicial, além da anuência do companheiro quanto à adoção do seu patronímico (STJ. REsp 1306196/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 28/10/2013)

Lado outro, é inconstitucional o art. 1790 do CC por tratar a sucessão do companheiro de forma discrepante da sucessão do cônjuge (art. 1829 e seg. do CC), e por deixar, na maioria das vezes, o companheiro, em sede sucessória, em situação de desvantagem ao cônjuge supérstite. Além de violar o princípio da igualdade entre as entidades familiares (art. 226 caput da CF), o dispositivo ofende o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º III da CF), o princípio da igualdade (art. 5º caput I da CF) e o princípio da solidariedade (art. 3º I da CF), bem como o princípio da proporcionalidade, como vedação da proteção deficiente.

Afinal, o que fundamenta a sucessão é a convivência familiar e não o ato solene de constituição da família. O que fundamenta a sucessão legítima é a solidariedade existente entre os componentes do agrupamento familiar, pressupondo que o sucessor integre a comunidade familiar do de cujus.

Entre as entidades familiares não há hierarquia, já que todas desempenham a mesma função: promover o desenvolvimento da pessoa de seus membros. Não há superioridade de uma em relação à outra, mas igualdade diante da proteção estatual (art. 226 da CF), uma vez que a tutela da dignidade da pessoa humana (art. 1º III da CF) é igual para todos. Nesta proteção do Estado, integram-se as normas pertinentes à sucessão legítima. Assim, em que pese casamento e união estável constituírem situações diversas, este fato não é suficiente para que a tutela na sucessão hereditária seja discrepante, conferindo-se mais direitos sucessórios a uma ou outra entidade familiar, pois ambas constituem família, base da sociedade, com especial proteção do Estado (art. 226 da CF) e é a família o organismo social legitimador do chamamento de determinada pessoa à sucessão, em virtude do dever de solidariedade que informa as relações familiares. A tutela sucessória dispensada ao cônjuge e ao companheiro não pode, portanto, ser diferente, exclusivamente pelo fato de integrarem entidades familiares diversas. Neste aspecto, não há razão para que os estatutos hereditários do casamento e da união estável sejam diferentes (NEVARES, Ana Luiza Maia. Fundamentos da Sucessão Legítima. In Manual de Direito das Famílias e das Sucessões. 2ª ed. Del Rey. p. 605).

É possível sustentar, ainda, o princípio da proibição do retrocesso - princípio constitucional implícito – ao se comparar o art. 1790 do CC com as leis anteriores que tratavam da sucessão do companheiro – leis 8971/94 e 9278/96. Ora, a lei 8971/94 era expressa em conceder preferência sucessória ao companheiro sobrevivente em detrimento dos colaterais (art. 2º III), o que não ocorre com a atual disciplina do CC, como já visto (art. 1790 III do CC). Da mesma forma a lei 9278/96 disciplinava o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente (art. 7º, parágrafo único), o que não acontece com o art. 1831 do CC, ao menos expressamente.

De se atentar que prevalece, hoje, no direito constitucional, o princípio do não-retrocesso, segundo o qual as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser destruídas, anuladas ou combalidas (ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social. Revista Interesse Público. 4:41. 1999).

Desta forma, ante a inconstitucionalidade do art. 1790 do CC, o regramento da sucessão do cônjuge (art. 1829 e seg. do CC) deve ser aplicado ao companheiro supérstite.

Sendo inconstitucional a disciplina diferenciada que o art. 1790 dá ao companheiro, a ele deve ser aplicado o mesmo regime jurídico do cônjuge sobrevivente, fazendo-se a equiparação que, como visto, é imposta pela CF (ANTONINI, Mauro. Código Civil Comentado. Manole. p. 1780).

Sob a mesma fundamentação, deve-se admitir o direito real de habitação ao companheiro, a despeito de não estar previsto expressamente no art. 1831 do CC (benefício concedido tão somente ao cônjuge). Assim, o regramento do art. 1831 do CC deve ser estendido ao companheiro.

Em sentido semelhante (embora aplicando a Lei 9278/96) previa a jurisprudência do STJ:

Direito real de habitação. Aplicação ao companheiro sobrevivente. Ausência de disciplina no Código Civil. Silêncio não eloquente. Princípio da especialidade. Vigência do art. 7° da Lei n. 9.278/96. Precedente: REsp n. 1.220.838/PR, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/06/2012, DJe 27/06/2012. O instituto do direito real de habitação possui por escopo garantir o direito fundamental à moradia constitucionalmente protegido (art. 6º, caput, da CRFB). Observância, ademais, ao postulado da dignidade da pessoa humana (art. art. 1º, III, da CRFB). A disciplina geral promovida pelo Código Civil acerca do regime sucessório dos companheiros não revogou as disposições constantes da Lei 9.278/96 nas questões em que verificada a compatibilidade. A legislação especial, ao conferir direito real de habitação ao companheiro sobrevivente, subsiste diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal direito àqueles que convivem em união estável. Prevalência do princípio da especialidade. (STJ. REsp 1156744/MG, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 18/10/2012)

Também deve-se contemplar o companheiro, a despeito de não estar incluído expressamente no art. 1845 do CC, como herdeiro necessário. Basta a exegese acima mencionada para entendermos que o companheiro é herdeiro necessário, tal qual o cônjuge, sob pena de inconstitucionalidade. Afora isso, mesmo uma interpretação sistemática e teleológica do próprio CC é capaz de elevar o companheiro à categoria de herdeiro necessário. O art. 1850 do CC diz que para exclusão dos colaterais, basta que o de cujus disponha do seu patrimônio sem os contemplar. Não disse a lei que, para exclusão do companheiro, basta o de cujus dispor do seu patrimônio sem os contemplar. Assim, o CC implicitamente reconheceu o companheiro como herdeiro necessário.


Autor

  • Cleber Couto

    Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

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Informações sobre o texto

artigo revisto, atualizado e ampliado com base no RE 646721

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber. Sucessão do companheiro: (in)constitucionalidade do tratamento sucessório diferente entre cônjuges e companheiros. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4440, 28 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42034. Acesso em: 26 abr. 2024.