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A importância da boa-fé como norma de conduta e instrumento de harmonização entre as partes na relação de consumo

A importância da boa-fé como norma de conduta e instrumento de harmonização entre as partes na relação de consumo

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RESUMO

O presente trabalho tem por finalidade salientar a necessidade da ampla observância do princípio da boa-fé e da análise imparcial da conduta dos integrantes das relações de consumo, para a eficaz aplicação das regras do código de defesa do consumidor e, desta forma, alcançar integralmente os objetivos sociais de harmonização e equidade dos integrantes das relações consumerista. Através de uma análise crítica de diversas situações na jurisprudência e no cotidiano consumerista, buscar-se-á demonstrar situações onde a exegese rígida e a parcialidade na análise de situações levadas a apreciação do judiciário podem transformar a proteção outorgada pelas disposições do CDC de um direito, em privilégio, ou seja, em um instrumento de favorecimento de uma do legislador quando da elaboração da parte da relação de consumo em detrimento da outra, em total descompasso com as diretrizes e ideais lei 8078/90.

Palavras-chave: Boa-fé, harmonia, transparência, lealdade.


INTRODUÇÃO

Indiscutivelmente, a elaboração da lei 8078/90 foi um marco na legislação brasileira. Apesar dos esforços realizados em prol da tutela dos interesses do consumidor, observados desde as Ordenações Filipinas no período colonial, passando pelo Código Comercial de 1850, da Lei 1521/50 dos crimes contra a economia popular, assim como da Lei Delegada nº 4 /1962 sobre a intervenção no domínio econômico, configurou-se de fato o CDC como instrumento inovador, eficaz na proteção dos interesses dos consumidores graças ao caráter abrangente das suas disposições, bem como através uma linguagem clara e objetiva.

A adoção do princípio da boa-fé como mandamento das relações de consumo é de especial relevância, observando este como dever de conduta das partes nos negócios jurídicos de consumo, uma vez que preenche a grande lacuna deixada pelo legislador quando da elaboração do Código Civil de 1916 que não contemplou a boa-fé como regra geral das relações de Direito Civil.

Na busca da proteção dos consumidores o legislador reconheceu expressamente a hipossuficiência e a vulnerabilidade destes. Criou ainda uma política nacional para as relações de consumo, no intuito de proteger a saúde, segurança, dignidade e proteção do interesse econômico dos consumidores, bem como a transparência e a harmonização dos interesses das partes da relação de consumo.

O presente trabalho pretende, portanto, através de análise da doutrina e, principalmente, da jurisprudência analisar a efetiva aplicação do princípio da boa-fé como meio de harmonia e transparência entre as partes da relação de consumo, analisando os direitos e, principalmente, os deveres de honestidade, lealdade, probidade impostos por este princípio aos fornecedores e aos consumidores.

Inicia-se o primeiro capítulo com uma breve definição de relação de consumo e com análise da atuação do princípio boa-fé frente às relações de consumo, sua função de limitação dos direitos subjetivos dos consumidores e dos fornecedores bem como caráter objetivo frente às relações consumeristas.

O segundo capítulo tratará, inicialmente, da definição das partes da relação de consumo para fins da efetiva aplicação das normas do CDC. Far-se-á ainda análise dos direitos e deveres de conduta de cada uma das partes frente aos ditames boa-fé objetiva e os demais princípios da política nacional das relações de consumo.

O terceiro capítulo discorrerá sobre a aplicação da boa-fé objetiva como princípio da política nacional das relações de consumo, como instrumento de harmonização e equidades das relações consumerista.. Através da análise de casos da jurisprudência se buscará analisar o alcance das normas do CDC frente à efetiva boa-fé das partes nas contendas jurídicas de consumo. Promover-se-á a avaliação de situações como a do confronto da boa-fé do fornecedor com a do consumidor e da possibilidade do abuso deste no uso de suas prerrogativas legais frente às disposições protecionistas da lei 8078/90. Por fim será promovida uma análise da possibilidade da inversão do ônus probatório frente a verossimilhança das alegações e boa-fé das partes nas relações de consumo


1 – RELAÇÃO DE CONSUMO: CONCEITO E ANÁLISE SOB O PRISMA DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

1.1 A definição de relação de consumo de acordo com o CDC

Os artigos 2º e 3º [1] da Lei nº 8.078/90 delimitam, num primeiro momento, o âmbito de incidência da tutela legal apenas e tão-somente às denominadas relações de consumo. Desta forma, torna-se relevante inicialmente à busca da definição do âmbito de atuação do CDC quanto as relações consumeristas.

Definem-se relações de consumo como aquelas que ocorrem entre dois entes, o consumidor (individual ou coletivo), sendo este necessariamente o destinatário final e um fornecedor de produtos e serviços. Tal relação visa a satisfação das necessidades ou desejos dos consumidores, consubstanciando-se num vínculo jurídico entre as partes, gerador de obrigações tais como de cooperação probidade, lealdade, boa-fé e, principalmente por parte do fornecedor, o zelo à saúde, segurança do consumidor frente aos produtos e serviços prestados, bem como da efetiva e eficaz prevenção e reparação de todo e qualquer dano patrimonial ou moral sofrido pelo consumidor em decorrência desta relação jurídica.

Na busca de visualizar mais claramente a relação de consumo e seus elementos, podemos conceituar as relações de consumo como uma relação jurídica instrumental, que obriga consumidor e fornecedor, tendo, por objeto, produtos ou serviços adquiridos ou utilizados pelo consumidor na qualidade de destinatário final.

Desta conceituação podemos depreender os elementos de uma relação de consumo, quais sejam: os sujeitos, consumidor e fornecedor; o objeto, produtos ou serviços prestados pelo fornecedor; o vínculo obrigacional, a efetiva vontade do consumidor em adquirir produto ou serviço junto ao fornecedor que se dispõe a tal prestação; E o elemento teleológico [2] contido na expressão destinatário final, vinculando assim, para fins da incidência do CDC, somente a obrigação instituída com a finalidade de retirada do produto ou serviço do mercado, isto é, com a ocorrência da relação de consumo passa a existir o intuito precípuo por parte do primeiro de desfrutar daqueles como destinatário

1.2. O princípio da boa-fé ante as relações consumeristas

O princípio da boa-fé foi expressamente recepcionado pelo CDC em seu artigo 4º que diz:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

(...)

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Com a inclusão expressa do princípio da boa-fé na legislação consumerista, buscou-se preencher a lacuna existente no direito pátrio, que a despeito da secular sistematização existente em países de relevante cultura jurídica como a Alemanha (BGB, art. 242), Portugal (arts. 227,239 e 762), Itália, França entre outros, não contemplou este princípio durante a realização do Código Civil vigente datado da mesma época [3]. Entretanto, conforme refere o professor Francisco José Soller de Mattos:

Ante a importância do regramento das condutas nas relações obrigacionais, verifica-se o fenômeno de que, mesmo em face da não existência, no Código Civil, de artigo de teor próximo ao § 242 do BGB, o princípio em tela mantém vigência imperativa, dando o norte ético pra todos os partícipes do vínculo jurídico, estabelecendo um elo de cooperação em face do objetivo comum avençado. [4]

Vê-se assim que, mesmo ante a negligência do legislador na recepção do princípio, a necessidade de parâmetros para a conduta dos homens frente ao direito e aos negócios jurídicos, levou a imposição, por parte da doutrina e jurisprudência, mesmo que de forma tácita, das diretrizes do referido princípio frente às disposições que norteavam as regras do Direito Civil. Desta forma, constata-se a grande relevância que a contemplação deste princípio pela legislação consumerista.

A boa-fé pode ser observada sob dois prismas: o subjetivo (guten glauben), constituindo num estado psicológico, de consciência do agente de estar agindo de acordo e sob o amparo da lei ou ainda sem ofendê-la e o objetivo (treu ud glauben) que é verificado através de dados externos ao íntimo do agente, apresentando-se, nas palavras de Clóves Couto e Silva apud Paulo Sanseverino [5]:"como um modelo ideal de conduta, que se exige de todos os integrantes da relação obrigacional (devedor e credor) na busca do correto adimplemento da obrigação, que é sua finalidade". Tendo em vista seu caráter a ausência de subjetivismos na responsabilização civil no CDC, pode-se salientar que, nas relações de consumo, existe a concentração de atenções sobre a presença da boa-fé objetiva.

A atuação da boa-fé objetiva nas relações de consumo bem como nas relações obrigacionais nas mais diversas áreas do direito, vêm servindo como um meio de valoração do comportamento dos figurantes (credor/devedor, fornecedor/consumidor) exercendo, conforme preleciona Paulo Sanseverino,

(...)múltiplas funções, desde a fase anterior a formação do vínculo, passando pela sua execução, até a fase posterior ao adimplemento da obrigação: interpretação das regras pactuadas(função interpretativa), criação de novas normas de conduta(função integrativa) e limitação dos direitos subjetivo(função de controle contra o abuso de direito). Além disso, sua função interpretativa, a boa-fé auxilia no processo de interpretação das cláusulas contratuais estipuladas no pacto. [6]

A função de limitação dos direitos subjetivos tem relevante importância, tanto em relação à boa-fé subjetiva como, e, principalmente, em relação à boa-fé objetiva, sendo um instrumento de interpretação de regras estipuladas no CDC e nos contratos pertinentes a relações por ele regidas, partindo de um modelo ideal de conduta, baseado no que se exige de todos os integrantes de uma relação contratual, qual seja o dever precípuo de honestidade na sua conduta, lealdade e probidade. A boa-fé objetiva tem, principalmente pela sua capacidade de limitação do Direito subjetivo, possibilitando frear os impulsos de má-fé na interpretação do alcance das normas legais pertinentes a relações de consumo.

Pode-se afirmar que a boa-fé objetiva exerce, nas relações de consumo, três funções primordiais: Como fonte de deveres especiais, exercendo uma função criadora de novos deveres entre as partes de uma relação de consumo, sendo chamados deveres anexos. Uma segunda função é a de concreção e interpretação dos contratos de consumo, função essencialmente interpretativa onde, a partir dos parâmetros de boa-fé objetiva, devem ser analisados todos os contratos de cunho consumerista. A terceira, e mais importante função, é a de limitação do exercício dos direitos subjetivos nas relações de consumo. Ela atua então como agente inibidor de condutas ou cláusulas abusivas, em especial por parte dos fornecedores, embora seja o objetivo do legislador, na adoção da boa-fé como a base das relações de consumo, que esta atue igualmente como limitadora das condutas e pretensões escusas de alguns consumidores, atingindo assim a harmonia e a transparência [7] nas relações de consumo.


2 – CONCEITUAÇÃO DOS AGENTES DA RELAÇÃO DE CONSUMO E A DELIMITAÇÃO DOS SEUS DIREITOS E DEVERES

2.1.Consumidor

2.1.1 Definição

A definição de consumidor, para fins da aplicação das normas da lei 8078/90, encontra-se expressa em seu artigo 2º que dispõe:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Inicialmente, pode-se depreender do artigo acima exposto que a definição de consumidor proposta pelo legislador consumerista possui um sentido estrito, objetivando tutelar somente o consumidor final, isto é, aquele que faz uso do bem ou serviço, com fins de fruição imediata ou de utilização permanente e pessoal, e sobre o qual incidem mais intensamente os efeitos sociais e econômicos inerentes à relação de consumo.

Tendo em vista o conceito estrito de consumidor adotado pelo legislador, Marcelo Gomes [8] salienta a diferença, de suma relevância para a caracterização de consumidor para fins de aplicação da lei 8078/90, existente entre consumo e insumo (este não protegido pelo CDC), sendo determinante para tanto definir o objetivo com que o consumidor adquiriu o produto.

Diz-se que um determinado consumidor adquiriu um insumo, quando obtém adquire um produto com fins de utilizá-lo dentro de uma cadeia produtiva, isto é, quando adquirido para confecção de outro produto ou serviço objetivando de lucro. Como exemplo de insumo tem-se o exemplo do mecânico que, com o intuito de consertar um automóvel de um cliente, adquire as peças em loja especializada. Neste caso, apesar de haver uma relação de consumo em sentido lato (a efetiva compra de uma mercadoria), não há incidência da lei 8078/90, pois, conforme a definição estrita adotada pelo art. 2º do CDC, a lei protege somente o consumidor final de uma relação jurídica de consumo. O consumo, protegido pelo CDC, se dá portanto nos demais casos das relações de consumo onde o consumidor adquire um bem ou serviço com o intuito de usufruir direta ou indiretamente [9]

Ainda tratando-se da definição proposta pelo legislador de que o consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire produto ou serviço como destinatário final, Paulo Sanseverino salienta que:

A nota característica dessa definição está em definir uma pessoa (física ou jurídica) como destinatária final de um produto ou serviço para que possa ser enquadrada como consumidor.

Em vez de partir de um conceito de atos de consumo, como faz Jean Calais-Auloy, ou de uma concepção objetiva de consumidor também ligada ao momento econômico do ato de consumo, na linha de Thierry Bourgoignie, o legislador brasileiro optou por um conceito objetivo polarizado pela finalidade almejada pelo consumidor no ato de consumo (destinação final do produto ou serviço). A condição de destinatário final de um bem ou serviço constitui a principal limitação estabelecida pelo legislador para a fixação do conceito de consumidor e, conseqüentemente, para a própria incidência do CDC com lei especial. [10]

Segundo classificação apresentada por Claudia Lima Marques [11], existem duas correntes para a classificação dos consumidores: a finalista e a maximilista. Partindo da premissa que o código busca proteger a hipossuficiência e a vulnerabilidade dos consumidores, entende os partidários da corrente finalista que a proteção do CDC só deve atingir aqueles que efetivamente adquirem um produto com o intuito de uso próprio ou de sua família, sendo necessariamente destinatário final de uma cadeia produtiva, sob pena de, em generalizando e concedendo maior abrangência na aplicação dos dispositivos consumeristas, poderia haver a diminuição da eficiência do mesmo. Argumenta-se ainda que, em aumentando a aplicabilidade do conceito de consumidor, estaria a lei 8078/90 deixando de tutelar a hipossuficiência e vulnerabilidade de uma determinada parcela da sociedade (os consumidores), passando a tratar das relações comerciais em geral, que por conseguinte já são tuteladas pela lei 556/1850, o Código Comercial, e pelo próprio Código Civil.

Em contrapartida, a corrente maximilista, graças a sua visão ampliada do conceito de consumidor presente no art. 2º do CDC, entende o mesmo como um código das relações de consumo em geral, devendo ser aplicado de forma uniforme a toda a sociedade que participa de uma relação consumerista. Passam a concentrar assim atenção da ordem jurídica no ato de adquirir o produto e não no sujeito ativo da relação de consumo (o consumidor), fazendo do produto o núcleo sobre o qual incidirão as normas consumeristas. Observada as duas correntes concluir-se que a corrente finalista possui uma estrutura mais adequada ao pensamento desenvolvido pela doutrina nacional aplicada as relações de consumo.

Depreende-se ainda na análise do conceito de consumidor proposto pelo legislador consumerista, que, além das pessoas físicas, também as pessoas jurídicas podem ser sujeito ativo para fins de aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor, isto é, estão aptas a participar das relações de consumo

na condição de consumidores, dispondo, por conseguinte, de todas as prerrogativas pertinentes à proteção do mesmo. Conforme preleciona Tupinambá do Nascimento [12], havendo a constituição e regulamentação da pessoa jurídica, bem como a real independência da sua personalidade perante a de seus membros, pode encontrar-se na posição de destinatário final numa relação consumidor/fornecedor, obtendo serviços ou produtos, como por exemplo a aquisição de utensílios para escritório, ou ainda de mão-de-obra autônoma para a reparação de equipamentos.

Ainda nos artigos 17 e 29 do CDC, tem-se uma extensão do conceito de consumidor, nos chamados consumidores por equiparação. O primeiro artigo preceitua que "Para os efeitos desta Seção, equipara-se aos consumidores todas as vítimas do evento". Segundo entendimento de Marcelo Gomes [13] os fundamentos deste artigo constituem o princípio da reparação integral dos danos sofridos pelos consumidores e a proteção daquele que realmente venha a utilizar o produto ou serviço, ou ainda daquele que é atingido pelo defeito incorporado na sua utilização por outrem, ressaltando-se assim que, faticamente, o defeito ou vício do produto pode trazer uma repercussão danosa que vá além da pessoa que a adquiriu [14].

Incluem-se ainda na qualidade de consumidores por equiparação os terceiros estranhos a relação de consumo, que ao sofrer qualquer tipo de dano originário desta, passam a gozar da ampla proteção do CDC como se consumidores fossem, para fins de ressarcimento de danos materiais e morais, dispondo de todas prerrogativas de inversão do ônus probatório e a aplicação da presunção de culpa do fornecedor ou prestador de serviço.

Marcelo Gomes [15] preleciona que:

Caso de extrema relevância, também abarcado pelo artigo 17, é o do terceiro, que nada tendo que o ligue à relação de consumo, ou seja nem adquire o bem nem utiliza, sofre um dano provocado por produto defeituoso (...) Seria o caso de uma pessoa atropelada por um carro que apresentou defeito em seus freios recém-trocados, não vindo a conseguir frear e impedir o acidente. Esse terceiro é tido como vítima do defeito de um produto, e, pelo artigo 17, considerado um consumidor, sendo protegido pela legislação."

Por fim, dispõe o artigo 29 do CDC que "para os fins deste Capítulo e do seguinte, equipara-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas." Pelas "práticas comerciais previstas" pode-se compreender como: a oferta, a publicidade, as cláusulas gerais dos contratos, as práticas comerciais abusivas, cobrança de dívidas e contratos de adesão, bancos de dados e cadastro de consumidores. Para esta equiparação, basta portanto somente que a pessoa esteja exposta às práticas citadas anteriormente, pois como salienta Antonio de Vasconcelos:

a redação (expostas às práticas) atual facilita enormemente o ataque preventivo a tais comportamentos. Uma vez que se prove que, mais cedo ou mais tarde os consumidores sofreriam a exposição, aí está materializada a necessidade da cautela. [16]

Cabe ainda salientar que, não há óbice que as equiparações previstas nos artigos 17 e 29 [17], do Código, abranjam as pessoas jurídicas e a coletividade de pessoas.

2.1.2 Direitos e deveres:

Entendem-se como direitos dos consumidores todas as disposições protetivas da Lei 8078/90, visto que toda estrutura do CDC girou em torno da efetiva proteção da hipossuficiência e vulnerabilidade dos consumidores frente as relações de consumo. Trata, contudo, no capítulo III, artigo 6º especificamente dos direitos básicos do consumidor, quais sejam:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

I - a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;

II - a educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações;

III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem;

IV - a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços;

V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas;

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos;

VII - o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados;

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

IX - (Vetado);

X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.

Depreende-se do artigo acima citado, então, que os direitos básicos fundamentais do consumidor referem-se à saúde e segurança, direito a informação, à proteção contra práticas comerciais desleais e abusivas, a especial proteção nos contratos de consumo; E com grande relevância, à concreta reparação dos danos sofridos por estes decorrentes de produtos ou serviços, o direito a defesa judicial proporcional a sua condição sócio-cultural e o direito a eficiência do serviço público. Tratam os demais capítulos e sessões de especificar os meios e instrumentos de proteção dos direitos fundamentais elencados no artigo 6º [18]. Como é possível observar, a lei 8078/90 trata precipuamente dos meios de defesa do consumidor considerado vulnerável e hipossuficiente frente ao mercado de consumo.

Para tanto, o legislador idealizou através do disposto no artigo 4º do CDC, uma política nacional das relações de consumo [19], que visa mitigar essa vulnerabilidade e hipossuficiência através da transparência [20] e harmonização dos

interesses dos participantes das relações de consumo com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Depreende-se daí, que o legislador idealizou a proteção do consumidor por meio de uma política das relações de consumo, isto é, através de toda uma sistemática que proporciona a eqüidade, a transparência e principalmente a harmonia dos integrantes de uma relação consumerista. Pode-se então dizer que, embora o código tenha sido criado para a defesa do consumidor, não se pode analisar as questões oriundas da relação entre consumidor e fornecedor de forma unilateral, como se os consumidores fossem sujeitos apenas de direitos, pois apesar da notória vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo permanece o caráter bilateral, obrigando ambas as partes. Desta forma conclui Marcelo Gomes que:

(...) é dever tanto do consumidor quanto do fornecedor atuarem de boa-fé em relação à parte contrária, ou seja, pautarem seus comportamentos pela correção e lealdade. Que negociem e busquem cada um melhor vantagem, mas sem utilizar-se de artifícios escusos para induzir a parte contrária em erro. [21]

Surgem daí obrigações de conduta dos consumidores, o dever de cooperação destes através de suas atitudes e comportamentos pautados nos ditames da boa-fé, do respeito e bom senso. É, portanto, dever do consumidor nas suas relações de mercado agir com lealdade, dignidade e transparência, nunca tentando se prevalecer das prerrogativas que possui enquanto parte hipossuficiente.

Além do dever de primar pela boa-fé, é possível ainda se destacar outros deveres de conduta do consumidor, os quais emanam de uma análise sistemática e abrangente do CDC, tendo sempre em vista as práticas e funções do mercado

de consumo, de modo a estabelecer um certo equilíbrio e coerência, quais sejam o dever de inteligência, dever de pesquisa, dever de educação para o consumo e de conhecimento do que está contratando, bem como do dever de ação. Pode-se dizer assim que, embora seja certo que o consumidor é a parte hipossuficiente da relação de consumo, tal qualidade não o incapacita ou funciona como impeditivo para que ele utilize todo o seu discernimento e bom senso frente a uma situação concreta.

Entende-se por dever de inteligência a capacidade de reflexão que o consumidor deve necessariamente exercitar diante dos negócios jurídicos de consumo, analisando principalmente seus prós e contras, refletindo em especial sobre suas condições pessoais e financeiras para efetiva concretização do negócio de consumo. Já o dever de pesquisa é um desdobramento da necessidade de inteligência e consiste na busca por parte do consumidor, diante da concorrência do mercado, de produto e preço que mais se adaptam a sua realidade, buscando o melhor custo/benefício na compra.

Por dever de educação para o consumo entende-se que o consumidor tem o dever de conhecer aquilo que está contratando, isto é, deve estar preparado e consciente do bem ou serviço que está na iminência de adquirir, para que desta forma, possa obter o melhor resultado, sempre tendo em vista o seu bem estar pessoal e alheio. Não obstante todos os instrumentos de proteção que a Lei lhe oferece quando tolhidos seus direitos, é preciso que o próprio consumidor procure, de todas as formas ao seu alcance, contribuir para a eficácia e melhor aproveitamento do produto ou serviço, não apenas culpando o fornecedor pela ineficiência do que se adquiriu [22], numa clara utilização errônea de suas prerrogativas de parte hipossuficiente, mas também contribuindo, na medida de sua capacidade, para a perfeita sincronia entre o que se espera do produto, ou serviço, e os resultados obtidos com a sua utilização.

Por dever de ação entende-se como uma síntese dos demais deveres acima relacionados. Consiste na responsabilidade do consumidor de não ser passivo,

submisso diante do fornecedor, devendo agir de todas as formas ao seu alcance para se proteger, bem como para contribuir com o próprio mercado de consumo, de modo a garantir práticas mais justas. A ação por parte do consumidor pode se dar, por exemplo, através da efetiva pesquisa de preços juntos a várias lojas, na exigência de esclarecimento a respeito de detalhes de produto ou serviço a serem contratados, no efetivo exercício da prerrogativa de conhecimento de forma pormenorizada, clara e objetiva das cláusulas pertinentes a contratos, bem como se o produto ou serviço contratado corresponde à sua pretensão inicial no negócio jurídico de consumo.

Obviamente que os deveres aqui expostos devem ser observados pelos consumidores sempre de acordo com a capacidade do consumidor de assimilá-los, pois, não há que se atribuir determinadas responsabilidades, ou deveres, a alguém que não está em condições de responder por eles. Assim, as exigências destes deveres estão sempre vinculadas a uma ponderação das características individuais de cada um, bem como dos aspectos que o cercam enquanto integrante de determinado grupo e camada social. O dever agir do consumidor deve-se sempre ter em vista as condições de discernimento que lhe permite o ambiente em que vive e o contexto em que está inserido, a fim de se respeitar os limites de cada consumidor.

2.2. Fornecedor

2.2.1 Conceito

Tratou também o legislador consumerista de conceituar expressamente a figura do fornecedor para fins de aplicação do CDC. Prevê então:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Nota-se que, no intuito de promover a máxima proteção ao consumidor, o conceito de fornecedor apresenta-se abrangente. Através do elenco das diversas atividades econômicas de provisão do mercado [23], nota-se a clara adoção de critério objetivo e predominantemente econômico feita pelo legislador consumerista.

Este ao especificar, na definição de fornecedor, o exercício da atividade, o código profissionalizou este conceito. Isso significa que, para a caracterização da qualidade de fornecedor, é necessário o exercício profissional habitual. Assim sendo, se alguém eventualmente, vender uma motocicleta a um terceiro e este vier a apresentar algum tipo de defeito, o comprador não poderá invocar, contra esse vendedor, as normas do CDC, pois a relação de consumo não se materializou, devido à ausência de um fornecedor previsto na forma da lei.

Importante também salientar que a qualificação de fornecedor prescinde de lucro, pois conforme assevera Marcelo Gomes:

a atuação no mercado capitalista, em regra, dá-se com o intuito de lucro, imediato ou não. Assim, mesmo quando a empresa fornece seus produtos gratuitamente, ou sob amostra grátis, caracteriza-se como se tivesse cobrado pelos produtos. [24]

Em relação ao tipo, podemos classificar os fornecedores em três espécies: o real, que é aquele que fabrica, constrói efetuando todas as atividades da cadeia produtiva de um determinado bem de consumo; O aparente, que é aquele que assume perante o consumidor o papel de fornecedor real, mesmo sem de fato sê-lo, inclusive assumindo toda responsabilidade sobre eventuais danos e prejuízos oriundos do produto [25]; e por fim temos o fornecedor presumido que é aquele que assume esta posição em razão da importação de um determinado serviço ou ainda no caso de ser impossível a identificação do fornecedor real, incluindo-se nesta espécie os importadores, os comerciantes e varejistas.

Cabe por fim ressaltar que, o art. 3º do CDC ao referir-se à pessoa jurídica de direito público, dirige-se a todos serviços prestados por empresas públicas, bem como por seus concessionários e permissionários nos mais diversos ramos da prestação de serviço, como por exemplo no fornecimento de energia elétrica e o transporte coletivo prestado mediante tarifa ou preço público fator este que caracteriza a relação de consumo e consolida sua característica de fornecedor (auferidor de lucro).

2.2.2 Direitos e deveres:

Como já foi ressaltado, o objetivo precípuo do CDC é a efetiva proteção do consumidor, através de normas que visam suprir a hipossuficiência do mesmo frente aos fornecedores portadores indiscutivelmente de melhores condições financeiras e técnicas de impor suas vontades e conveniências nos relações jurídicas de consumo. Para atingir tal objetivo, o legislador consumerista dispôs ao longo de toda a lei 8078/90 os direitos dos consumidores e conseqüentes deveres de conduta dos fornecedores para com estes. Ao mencionar, por exemplo, que é direito básico do consumidor a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas impostas no fornecimento de produtos e serviços, o legislador está impondo o dever do fornecedor de praticar uma publicidade baseada na transparência, clareza e respeito na oferta e na troca de informações sobre os produtos lançados no mercado de consumo. O fornecedor tem portanto o principal dever de agir de com transparência, clareza, probidade e

lealdade nas relações de consumo, atuando sempre dentro dos ditames da lei e da boa-fé objetiva, trabalhando na busca do desenvolvimento de sua atividade dentro dos parâmetros traçados pelo legislador para a política nacional das relações de consumo.

O principal dever imposto pelo código de defesa do consumidor ao fornecedor consiste, portanto, no dever agir com honestidade e respeito na relação com o consumidor. O Código regula normas de conduta do fornecedor, [26]impondo deveres a este para que sua superioridade econômica não venha a desequilibrar as relações de consumo. Impõe, então, deveres de conduta a serem aplicados no cotidiano consumerista, tendo por base sempre a boa-fé objetiva imposta pelo legislador para reger a política nacional das relações de consumo.

O fato de o legislador regrar praticamente toda a conduta do fornecedor, relacionando e impondo inúmeros deveres a este nas relações de consumo, não significa que o legislador buscou impedir o fluxo de negociações no mercado ou diminuir o poder econômico deste ou, conforme explica Marcelo Gomes, combater o dolus bonus pois:

O dolus bonus compreende a astúcia, a sagacidade do agente de mercado valorizando seu produto e conquistando seus clientes. O dolus bonus é socialmente admitido, sendo estimulado, correspondendo ao próprio desejo de ganho, necessário à economia capitalista (...) o que se combate é o dolus malus o ganho obtido por meio de um ato ilícito, socialmente repugnável, no qual o agente não conquista seus clientes por mérito de sua atividade, mas sim por induzi-los em erro. [27]

Ainda que o código de defesa do consumidor possa parecer, em certo aspecto, uma regulamentação apenas dos direitos dos consumidores e dos respectivos deveres dos fornecedores nas relações de consumo, constam também

no ordenamento dispositivos em sentido contrário, no intuito de gerar deveres de conduta por parte dos consumidores. Através da instituição no artigo 4º do CDC da política nacional das relações de consumo, o legislador consumerista teve o escopo de promover a harmonização e a equidade dos negócios jurídicos de consumo. Tal política tem como alicerce a boa-fé objetiva [28] das partes na relação de consumo, os deveres de transparência, lealdade, probidade tanto do fornecedor como do consumidor. Por tratarem-se as relações de consumo de uma relação bilateral, as duas partes, são indistintamente obrigadas, observando os ditames da boa-fé, adotar condutas pautadas na correção e lealdade nos exercícios de seus direitos.

Isso indica que, da mesma forma como o fornecedor deve interagir nas relações de consumo baseado na boa-fé, é direito deste que a outra parte, o consumidor, atue de igual forma. Tem esse ainda a prerrogativa da aplicação das normas constantes no CDC, seja feita de forma a promover, de fato, a harmonia, a transparência e a equidade nas relações de consumo, e não unicamente como forma de proteger apenas o consumidor. É direito do fornecedor para a efetiva inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º do CDC [29], a verossimilhança das alegações dos consumidores seja analisada por parte dos operadores do direito de forma criteriosa e objetiva, evitando assim que pretensões descabidas e infundadas por parte de consumidores desprovidos de boa-fé possam vir a onerar indevidamente os fornecedores, indo de encontro com os ideais da política nacional das relações de consumo de igualdade entre consumidores e fornecedores.


3 - A APLICAÇÃO LEGISLATIVA E JURISPRUDENCIAL DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ FRENTE AOS DISPOSITIVOS DO CDC E A POLÍTICA NACIONAL DAS RELAÇÕES DE CONSUMO

3.1 A boa-fé como princípio da política nacional de consumo

Promulgado em 1990, o CDC tem como objetivo principal efetivar a proteção dos consumidores, buscando dar oportunidades a estes, reconhecidamente vulneráveis e hipossuficientes, a fim de que enfrente em condições de igualdade o fornecedor nas contendas consumeristas. Trata-se portanto de uma legislação que busca corrigir as desigualdades existentes dentro do mercado de consumo através do fornecimento aos consumidores de "armas" processuais e de direito material como, por exemplo, a inversão do ônus da prova e a presunção da culpa do fornecedor nos acidentes de consumo.

O legislador, porém, não se restringiu à tarefa de fortalecer a posição do consumidor hipossuficiente na relação de consumo. Pensando mais amplamente, criou, no artigo 4.º do referido diploma legal [30], uma política nacional para reger as relações de consumo. Esta política tem por objetivo, além de atender as necessidades dos consumidores como, não apenas ao que se refere ao respeito a sua dignidade, saúde, segurança e a proteção de seus interesses econômicos, mas promover a transparência e harmonia nas relações de consumo. Conforme prevê no inciso III do artigo acima referido, a legislação consumerista tem também o objetivo da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo buscando compatibilizar a proteção do consumidor hipossuficiente com o desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios em que se funda a ordem econômica, baseando-se sempre no princípio da boa-fé e no equilíbrio das relações entre consumidores e fornecedores.

A expressa adoção do princípio da boa-fé como elemento de base das relações de consumo assume grande relevo, servindo, no CDC, de parâmetro para o exercício dos direitos ali previstos, sempre tendo em mira a correção e lealdade tanto do fornecedor como também do próprio consumidor.

Nesse sentido, a adoção da teoria da responsabilidade objetiva (teoria da culpa presumida) para reger a responsabilidade por defeitos e vícios dos produtos e serviços prestados nas relações de consumo, prevista nos artigos 12 e 18 do CDC [31] possui grande relevância. Ela imputa, mesmo que de maneira presumida, integralidade da culpa ao fornecedor independentemente da boa-fé deste na produção, na venda e na distribuição do produto ou serviço. Desta forma, ao fornecedor resta tão somente para ilidir sua presunção de culpa, busca a caracterização da ocorrência de uma das causas de exclusão de responsabilidade previstas pelo legislador consumerista nos artigos 12 §3.º, I, II, III e 14, §3.º I, II. Tendo em vista, portanto, a presunção legal de culpa e a taxatividade das causas de exclusão da responsabilidade do fornecedor, qualquer ação ou mesmo a omissão de boa-fé do comerciante, do pequeno prestador de serviço (pedreiro por exemplo), do dono de uma microempresa familiar ou até mesmo do grande fabricante ou comerciante não pode ser levada em conta, quando o consumidor, diante de um acidente de consumo, fizer valer de suas prerrogativas legais, provocando a atividade jurisdicional, que normalmente utiliza-se de uma interpretação rígida e protecionista dos dispositivos do CDC.

Torna-se válido questionar, então, até que ponto o princípio da boa-fé, adotado expressamente pelo legislador consumerista no artigo 4.º, atua dentro de uma relação de consumo, não como um princípio de proteção direcionado exclusivamente ao consumidor (a exemplo da vulnerabilidade e da hipossuficiência), mas sim como um princípio básico do sistema de direito privado recepcionado; E como não poderia deixar de ser, expressamente pelo CDC, como um princípio norteador da conduta proba e consonante com os ditames dos bons costumes sociais. Conforme salienta Menezes Cordeiro apud Paulo Sanseverino [32] a boa-fé deve atuar:

como princípio informador do teor geral da colaboração intersubjetiva que reina na nossa disciplina, aplica-se sem qualquer dúvida a todos os comportamentos que tenham lugar a responsabilidade civil, esclarecendo as normas e situações implicadas.

Vê-se, portanto, que a boa-fé é primordialmente um princípio geral do Direito que deve, adequando-se a qualquer norma jurídica específica, superar as especificidades legislativas. Ele é, nas palavras de Carlos Maximiliano apud Auta Nemézio [33], um dos "macroprincípios que embasa todo o ordenamento jurídico a ponto de constituir em diretivas idéias de hermenêutica, assim como antecedentes científicos da ordem jurídica", exercendo sua influência na própria formação dos institutos jurídicos, atuando indistintamente nas mais diversas áreas abrangidas pelo direito, sendo ponto de partida para as relações jurídicas que regem desde o direito do trabalho, passando pelo direito administrativo, civil, penal, entre outros, sendo portanto universal dentro do mundo do Direito. Questiona-se, portanto, qual será o grau de aplicabilidade do princípio da boa-fé no direito do consumidor, para a efetiva busca a harmonização dos interesses dos participantes (incluindo aí o da efetiva atuação do fornecedor de boa-fé) das relações de consumo.

Diversos são os casos em que podemos questionar a efetiva aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas relações de consumo. Analisando-se a lei 8078/90 vislumbra-se que em todos os capítulos, mesmo que em alguns de forma implícita, temos menções sobre a responsabilidade civil objetiva do fornecedor e da necessidade da atuação consubstanciada na boa-fé objetiva por parte deste nas relações de consumo. É por exemplo, o caso do art. 4.º e art 51 [34] explicitamente, entre outros de referidos implicitamente [35]. Porém, como já se deveria esperar tendo em vista o espírito do legislador consumerista, ao consumidor não foi feita nenhuma ressalva expressa da necessidade da uma conduta leal, honesta, consciente do exercício de seus direitos. No entanto devemos ressaltar que, quando o legislador no artigo 4.º propôs que:

A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores (...) bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, (...) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores

Em que se demonstra à necessidade da boa-fé objetiva nos tramites das relações de consumo e não apenas em situações específicas ou a uma das partes da relação. Conforme ressalta Paulo Sanseverino [36],

O princípio da boa-fé objetiva, que é uma estrada de duas mãos no vínculo que une fornecedor e consumidor, apresenta uma relevância especial. Em muitos casos, a forte proteção concedida pelo microssistema do CDC tem servido de escudo para consumidores que, agindo de forma desleal, contrariamente aos ditames da boa-fé, busquem indenizações de prejuízo para cuja produção tiveram decisiva colaboração.

Tal afirmativa do eminente desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul revela uma situação bastante comum, embora pouco discutida atualmente nas lides referentes às relações de consumo. Podemos iniciar perquirindo como seria a conduta ideal dos juristas quando, durante a análise de uma lide consumerista, deparar-se com situações onde, por exemplo, as duas partes atuam imbuídas de boa-fé, bem como nas situações em que na análise do caso em concreto constata-se pretensões e atitudes confrontantes com os ditames deste princípio por uma das partes. Estas são questões relevantes pois, toda conduta do fornecedor, assim como do consumidor, deve ser analisada à luz do princípio da boa-fé, devendo também se utilizar às disposições do CDC e, principalmente, as dos artigos 4.º e 6.º no intuito de proteger igualmente o fornecedor de boa-fé nas relações de consumo.

3.2 O Confronto da boa-fé do consumidor e do fornecedor nas relações jurídicas de consumo

Cabe ressaltar que, embora o CDC traga elencados inúmeros dispositivos que determinam expressamente o dever do fornecedor de zelar pelo bem estar, pela saúde e segurança dos consumidores, de atuar com boa-fé no campo contratual, na publicidade entre outros. Percebe-se a ocorrência de casos em que o evento danoso resultante de uma relação de consumo pode ocorrer sem a efetiva negligência, imprudência ou imperícia do fornecedor, ou mesmo de uma atitude dolosa, imbuída de má-fé, com o intuito de lesar ou aproveitar-se da ignorância, hipossuficiência, vulnerabilidade ou da confiança do consumidor.

Encontra-se como exemplo corriqueiro, a seguinte situação: Um consumidor contratou um prestador de serviços de construção civil para reforma de sua residência. Em acordo com o consumidor, o prestador de serviço trata a dimensão da reforma, do preço da mão de obra, e a quantidade do material de construção a ser empregado na obra. Na busca de um serviço de qualidade, o consumidor pagou um preço ligeiramente acima do mercado, na condição de que o prestador de serviço utilize o material de construção da melhor qualidade, não economizando na utilização para a perfeição e durabilidade da obra a ser realizado. Parte então o contratado a procura do material de construção, buscando, como contratado, o melhor material de construção existente no mercado. Inicia-se a obra com conclusão e entrega a contento do contratante dentro do prazo estipulado. Após três meses o proprietário do imóvel reformado percebe que a parede rebocada pelo empreiteiro começa a apresentar focos de umidade, começando logo após a esfarelar-se. O contratante da reforma procura então o prestador de serviço pedindo explicações sobre o porquê do acontecido, já desconfiando da idoneidade do contratado quanto à compra do material de boa qualidade. Este, surpreso, vai até a casa do consumidor e verifica, de fato, que a parede rebocada estava deteriorando-se. Indagado pelo contratante sobre a qualidade do material usado na obra o prestador de serviço apresenta as notas fiscais que demonstram a compra do material de primeira qualidade que efetivamente foi utilizado na obra, não compreendendo como aquilo estava acontecendo pois era experiente no ramo e tinha certeza que havia empregado o melhor material bem como as técnicas apropriadas para a reforma. Constata-se posteriormente, através de investigação que a umidade e o esfacelamento do reboco ocorreu devido a impregnação da parede do imóvel por sal, pois anteriormente à compra do imóvel pelo consumidor/contratante, e sem o conhecimento deste, o imóvel ao lado, com qual a parede que apresentou problemas faz divisa, era utilizado como depósito de sal, vindo daí toda a salinidade que veio a provocar o defeito no serviço realizado pelo empreiteiro.

Portanto, nas situações como a do exemplo acima, onde o prestador de serviço de boa-fé, mesmo agindo completamente sem culpa, deparar-se com uma situação onde o consumidor está igualmente de boa-fé, não tendo contribuído para o acidente de consumo ou defeito do produto ou serviço, o dever de indenizar/reparar está previsto pelo artigo 20 do CDC [37]. Devido a responsabilidade objetiva [38] do fornecedor nas relações de consumo, todo e qualquer risco decorrente destas deve ser integralmente imputado ao fornecedor/prestador de serviços em decorrência da teoria do risco de empreendimento. Sobre o fato da imputação da responsabilidade do fornecedor/prestador de serviços de indenizar os prejuízos mesmo diante da sua efetiva ausência de culpa e a teoria da responsabilidade por risco de empreendimento explica Sergio Cavalieri Filho [39] que:

Todo aquele que se disponha a exercer alguma atividade no mercado de consumo tem o dever de responder pelos eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independentemente de culpa. Este dever é inerente ao dever de obediência às normas técnicas e de segurança, bem como aos critérios de lealdade, quer perante os bens e serviços ofertados, quer perante os destinatários dessas ofertas. A responsabilidade decorre do simples fato de dispor-se alguém a realizar atividade de produzir, estocar, distribuir e comercializar produtos ou executar determinados serviços. O fornecedor passa a ser o garante dos produtos e serviços que oferece no mercado de consumo, respondendo pela qualidade e segurança dos mesmos (...) O consumidor não pode assumir os riscos das relações de consumo, não pode arcar sozinho com os prejuízos decorrentes dos acidentes de consumo, ou ficar sem indenização (grifo nosso). Tal como ocorre na responsabilidade do Estado, os riscos devem ser socializados, repartidos entre todos, já que os benefícios são também para todos. E cabe ao fornecedor, através dos mecanismos de preço, proceder a essa repartição de custos sociais dos danos. É a justiça distributiva (grifo nosso), que reparte eqüitativamente os riscos inerentes à sociedade de consumo entre todos, através dos mecanismos de preços, repita-se, e dos seguros sociais, evitando, assim, despejar esses enormes riscos nos ombros do consumidor individual." (grifo nosso)

Portanto vimos que, através da adoção da teoria da culpa presumida baseada no risco do empreendimento, o legislador consumerista optou por imputar todos os prejuízos advindos de uma relação de consumo à parte mais forte, portadora do capital e da iniciativa do comércio, independentemente de culpa, até mesmo os advindos de fatos que comprovadamente não decorreram por dolo ou má-fé do fornecedor nem tão pouco do consumidor.

Observando acórdão n.º 70001519225, julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, verificamos a efetiva aplicação da teoria da responsabilidade objetiva, consubstanciada na teoria do risco do empreendimento, no caso em que uma instituição bancária, mesmo laborando de boa-fé, abriu uma conta bancária de um cliente com o numero de CPF de outra pessoa, estranha ao contrato bancário, vindo esta a sofrer abalo no seu crédito decorrente de um cheque emitido sem fundos pelo titular da conta, que por não ter seu número de CPF vinculado a conta, continuou a gozar irrestritivamente de crédito na praça [40]. Por este fato, o terceiro lesado intentou ação de indenização em face do banco sendo esta deferida tendo com fundamento a teoria do risco do empreendimento.

Considerando, portanto, a busca do lucro na atividade comercial, o legislador impôs a responsabilização integral (objetiva mitigada [41]) por defeitos e acidentes de consumo. Baseado no risco do empreendimento, qualquer dano causado em decorrência de defeito ou vício do produto ou serviço é imputado ao

fornecedor, pois, no entendimento do legislador, seria injusto que o consumidor arcasse com o prejuízo de uma atividade que visa efetivamente somente o lucro de uma das partes, no caso o fornecedor, que tem incontestavelmente maiores condições de suportar os prejuízos oriundos das relações comerciais.

3.3 A Interpretação legislativa e jurisprudencial da boa-fé dos integrantes das relações de consumo

Antes de análise de algumas situações jurisprudenciais que tratam da questão da busca, muitas vezes descriteriosa, de indenizações relativas a relações de consumo, cabe, mesmo que de forma superficial, lembrar a situação da indenização do dano moral, prevista expressamente pela carta constitucional de 1988.

Tal paralelo, entre a indenização pelo dano moral prevista pela CF/88 e pelo acidente de consumo da lei 8078/90, faz sentido partindo da análise de inúmeras situações nas relações de consumo onde se pode observar que alguns consumidores, fazendo-se valer de suas prerrogativas legais do CDC, suscitam danos e defeitos que muitas vezes sequer existem, ou se existem são ínfimos perto da indenização pretendida, ou casos onde consumidores buscam, por exemplo, através da inversão do ônus probatório previsto no Art, 6.º, VIII, vantagens e prerrogativas descabidas numa clara pretensão de se locupletar em prejuízo do fornecedor de boa-fé, utilizando assim seu direito em desconformidade com a função social que o ordenamento lhe conferiu.

Estas atitudes por parte de alguns consumidores, portanto, remetem a chamada "industria do dano moral" surgida com o advento da constituição de 1988 que trouxe expressamente normatizado o dever de indenizar pelo dano moral. Baseado nas disposições constitucionais do artigo 5.º, X, da lei maior [42]

conjugado com o artigo 159 do Código Civil [43], a responsabilidade civil por dano moral e sua conseqüente indenização, tornou-se uma verdadeira febre, sendo que a todo o momento e em cada situação controvertida do cotidiano do cidadão comum, era buscado o enquadramento de um dano moral e sua respectiva indenização. Todo comportamento suspeito era enquadrado como sendo dano moral, e muitas pessoas, amparadas nos aspectos protetivos das disposições constitucionais, buscavam indenizações altíssimas, verdadeiras fortunas, que, muitas vezes, guardavam muito pouca relação entre o dano e a indenização pretendida e até mesmo em alguns casos onde a indenização pleiteada era deferida sem efetivamente comprovar-se o fato gerador do direito. Bastava-se pleitear judicialmente para "arriscar", como num verdadeiro jogo de azar, a ganhar ou não uma indenização.

Inicialmente, pela subjetividade e o caráter protecionista das disposições que tratavam do tema, muitos tribunais entenderam devidas indenizações que somavam quantias espantosas, numa nítida atitude protecionista do cidadão "abalado moralmente". Porém, muitos casos configuraram-se, de fato, simplesmente em um enriquecimento sem causa do autor da demanda de dano moral e, consecutivamente em empobrecimento sem causa do réu. Após alguns anos e vários casos onde foram constatadas estas situações abusivas, os tribunais passaram a notar que a análise da boa-fé do autor e da possibilidade do abuso de direito por parte deste, estavam sendo observadas sobre uma ótica bastante superficial, principalmente em relação a arbitração do quantum indenizatório devido pelo réu, isto é, na real proporção entre o dano efetivamente surgido e o quanto devido em reparação.

A quase banalização do dano moral, no decorrer do tempo e após inúmeras ações controvertidas, levou os Tribunais e a jurisprudência a posicionarem-se de

uma forma mais rígida e um pouco menos protecionista em relação a este assunto, constatando-se isso através da análise mais pormenorizada do caso em concreto por parte dos magistrados, buscando sempre analisar a conduta do autor da ação, sendo esta o fator determinante para o deferimento das ações de danos morais bem como para a estipulação do quantum a ser pago pelo réu ao definir-se o efetivo dano causado ao autor.

Busca-se através do comentário acima, traçar um paralelo da conduta dos autores daquelas ações com as oriundas das relações de consumo e suscitar a possibilidade do abuso das prerrogativas e direitos concedidos pelo CDC por parte de alguns consumidores que buscam indevidamente usar o código como escudo, em real descompasso com os ditames da boa-fé e da vontade do legislador. Marcelo Gomes [44] ao discorrer sobre a possibilidade do abuso de prerrogativas por parte do consumidor salienta que é dever tanto do consumidor quanto do fornecedor atuar de boa-fé em relação à parte contrária, ou seja, seus comportamentos devem estar pautados pela correção e lealdade. Podem estes buscar cada um a melhor vantagem para si, mas sem utilizarem, contudo, de artifícios escusos apoiados na lei, visando o seu beneficiamento em detrimento ao prejuízo da outra parte de boa-fé, agindo, desta forma, em total desconformidade com a função social que o ordenamento jurídico lhes conferiu.

Quanto à possibilidade de mau uso por parte dos consumidores de suas prerrogativas e da necessidade de coibir esta prática, valorizando assim a boa-fé da parte contrária na relação de consumo, podemos citar os questionamentos feitos por alunos universitários a professora universitária e assessora jurídica do TJ-MT Débora Caldas no caderno jurídico [45] que dizem:

É inegável o benefício trazido pelo CDC ao consumidor. Porém, isso trouxe, também, a chamada \ "indústria da indenização\", um passaporte para a riqueza de pessoas que simulam situações que supostamente trariam danos, mesmo não provados, ante a inversão do ônus da prova. O que fazer para equilibrar isso? (Frank Robson) Resposta: O Código Brasileiro de Defesa do Consumidor, com vigência desde 11 de março de 1991, veio legislar uma garantia constitucional do artigo 5.º, XXXII e um preceito de ordem econômica do artigo 170, V. Dessa forma, pode-se afirmar que a defesa do consumidor se origina sempre da constituição e visa um reequilíbrio das relações entre fornecedores e consumidores. Embora o artigo 1.º da lei consumerista traga, expressamente, que o referido código destina-se à defesa e proteção do consumidor, o legislador objetivou, em verdade, proteger as relações de consumo, inclusive possibilitando a punição do consumidor quando este agir de má-fé. O que ocorre, na maioria das vezes, é que o consumidor é a parte mais fraca, assim, protege-se a ele. O equilíbrio entre os benefícios trazidos pela Lei n. 8.078/90 e o mau uso que dela pode ser feito por consumidores desonestos, caberá aos próprios aplicadores do Direito, no sentido de coibir tais práticas negativas, punindo, de forma severa, uma vez constatada a má-fé da parte em juízo.(grifo nosso)

Apesar do avanço representado pelo advento do CDC, por muitas vezes observamos a locupletação do consumidor em detrimento dos fornecedores, por força de medidas como a inversão do ônus da prova (art. 6.º) e da responsabilidade objetiva dos fornecedores (arts. 12 e 14). Parece-me que a Lei n. 8.078/90, colimando proteger o consumidor, extrapolou sua finalidade, deixando, por vezes, o empresário à mercê da famigerada \"indústria do dano moral\". Há uma certa exacerbação nos preceitos da norma comentada? Como contornar e repudiar essa situação? (Daniel Campos, acadêmico de Direito da Universidade Federal do Amazonas e estagiário de Aufiero e Advogados Associados).

Resposta: Não diria que houve uma exacerbação do legislador ao aprovar o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor nos moldes que o temos, uma vez que resultou ele de aprofundado estudo por parte de renomados doutrinadores, como Ada Pellegrini Grinover, Daniel Roberto Fink, José Geraldo Brito Filomeno, Nelson Nery Júnior, Zelmo Denari, Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, Kazuo Watanabe, entre outros. Em verdade, ocorreu sim uma mudança radical na maneira normativa da responsabilidade civil, saindo da subjetividade como regra e voltando-se para a objetividade. Essa mutação estruturou-se sobre a constatação da vulnerabilidade do consumidor em sentido amplo, ou seja, pelo simples fato de estar na condição de consumidor. Assim, visando proteger a parte débil na relação consumerista, optou o CDC pela modalidade da responsabilidade civil objetiva, bem como, em algumas situações, pela culpa presumida ou responsabilidade objetiva imprópria, em que ocorre a inversão do ônus da prova. Essa inversão será possível desde que constatada a hipossuficiência do consumidor e a verossimilhança de suas alegações. Neste ponto, é importante frisar que hipossuficiência difere de vulnerabilidade, pois, enquanto esta é característica de todos os consumidores, pelo simples fato de encontrarem-se em situação de consumo, conforme mencionado acima, aquela somente configura-se quando comprovada a fraqueza subjetiva do consumidor, seja ela econômica, técnica ou intelectual. Em relação à \"indústria do dano moral\", resultante de inúmeras ações com pedido de indenização com fundamento no abalo moral, têm sido as mesmas analisadas com maior cautela pelos juízos e tribunais nacionais, pois, inegável a banalização em torno do que seja dano moral. Mas, é preciso lembrar que essas ações não decorrem somente das relações consumeristas, tendo como fundamento qualquer violação que ocasione dano moral, independentemente do preceito legal infringido. Para finalizar, ressalto que não devemos vislumbrar o CDC por suas patologias, tampouco crer ser ele um instituto perfeito, mas, sim, buscar uma aplicação eficaz de suas normas e, cotidianamente, primar por reprimir o mau uso de seus dispositivos.(grifo nosso).

Constatam-se ainda muitas situações descabidas que chegam a análise do Judiciário, inclusive em suas instâncias superiores, influindo sobremaneira no inchaço e na morosidade do serviço jurisdicional brasileiro. Isso pode ser observado a partir da análise realizada a seguir de dois acórdãos.

O primeiro julgado trata-se de apelação interposta junto ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro [46] onde um consumidor alega que, com intenção de promover uma festa adquiriu dezenas de garrafas de refrigerante, sendo que, quando foi abrir a 40.ª notou um corpo estranho no interior do vasilhame. Tratava-se, na verdade, de um mínimo pedaço de material de vedação das "chapinhas" das garrafas. Diante do acontecido, o consumidor buscou ampla indenização junto a empresa fabricante dos refrigerantes que, agindo de boa-fé e consoante as regras do CDC entendeu ser responsável pelo vício do produto dispondo-se, em atenção ao disposto no artigo 18 e seus parágrafos, a efetuar de pronto a troca do produto. Não satisfeito, o consumidor, que se julgou "abalado moralmente", buscou o judiciário pretendendo uma vultuosa indenização por dano moral e material. Obviamente, o terceiro grupo de Câmaras cíveis do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro acolheu por maioria os embargos infringentes interpostos pelo réu, reconhecendo sua responsabilidade pelo vício do produto nos termos do art. 18 do CDC, mas indeferindo a pretensão do autor que, nitidamente buscava exercer suas prerrogativas de consumidor com fins diversos dos pretendidos pelo legislador consumerista.

Tal atitude do consumidor demonstra como é necessário que se imponha limites às pretensões dos consumidores, pois em muitos assim como o acima

exposto, o defeito ou vício no produto efetivamente existiu, devendo efetivamente responsabilizar integralmente o fabricante por ele. Contudo faz-se necessário interpretar também a boa-fé das partes numa relação de consumo, pois os dispositivos do CDC visam proteger o consumidor, proporcionando-lhe condições de igualdade para com o fornecedor e não um meio de trazer vantagens e prerrogativas descabidas ao consumidor que venham a onerar indevidamente o fornecedor de boa-fé.

Outras situações bastante comuns nas lides consumeristas são as ações cautelares de discussão sobre valores de dividas e juros cobrados. Novamente podemos vislumbrar casos onde consumidores abusando de seu direito buscam a proteção da lei para auferir vantagens e comodidades descabidas. Podemos citar a respeito o acórdão da 4.ª câmara do TJ de Pernambuco:

AÇÃO CAUTELAR. DEVEDOR. CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO NOS ÓRGÃOS PROTETIVOS DE CRÉDITO. DISCUSSÃO DO DÉBITO EM JUÍZO. NÃO COMPROVAÇÃO. AGRAVO PROVIDO. Se, de um lado, tem-se admitido o ajuizamento de ações cautelares, pelo devedor, com o escopo de retirar seu nome do banco de dados de órgãos protetivos ao crédito, como a SERASA, SPC/CDL, CADIN e similares, de outro, para que as mesmas prosperem, faz-se mister que a discussão do respectivo débito esteja sendo objeto de procedimento judicial regularmente instaurado com essa finalidade e com a indicação do credor para figurar no pólo passivo da relação processual. Ora, existindo dívidas, como de fato há, sem que os devedores tenham sequer consignado os valores não questionados, lícitas se afiguraram tanto a inclusão dos nomes dos agravados nos arquivos da agravante (grifo nosso) como também a adoção de todas as medidas daí decorrentes, máxime quando, por conta da liminar hostilizada, foram excluídas as anotações de diversos protestos, cheques emitidos sem a devida provisão de fundos, além de outras pendências bancárias. À unanimidade de votos, deu-se provimento ao agravo, para reformar a decisão agravada. [47]

No exemplo descrito, podemos notar mais uma vez a força que o CDC dá ao consumidor que, através de simples alegação de má-fé na cobrança de dívida por parte do fornecedor teve liminarmente, mesmo sem produzir prova contumaz

de seu direito, seu nome retirado dos cadastros de inadimplentes. Através de uma interpretação restritiva dos dispositivos pertinentes à questão da cobrança de dívidas, o fornecedor teve tolhido seu efetivo direito de cobrar de pronto o cliente ou efetuar o registro de sua inadimplência. Percebe-se como justo que se concedam instrumentos ao consumidor para que este possa defender-se de cobranças indevidas ou extremamente onerosas por parte do fornecedor, parte indiscutivelmente mais forte e que, muitas vezes, utiliza-se da vulnerabilidade do consumidor para impor condições e juros inaceitáveis e claramente abusivos.

Observa-se, em contra partida, na análise dos fatos em concreto, que, nem sempre, podemos dizer que o fornecedor está agindo de má-fé na cobrança de seus créditos, bem como o consumidor, como no acórdão supracitado, nem sempre busca o amparo das normas do CDC no intuito de valer seu direito mas sim com a pretensão de ganhar tempo, tirar seu nome devidamente registrado do cadastro de inadimplente, reduzir indevidamente juros ou simplesmente não pagar, mesmo que momentaneamente sua dívida.

No acórdão podemos notar que o consumidor, na busca de reaver seu crédito na praça, perdido por sua irresponsabilidade e inadimplência, e continuar sem pagar a dívida integralmente (até mesmo da parte não controversa da mesma) buscou o amparo protecionista do CDC. Tendo atingido seu intuito através da medida liminar, o consumidor não se preocupou em intentar a ação principal, na qual teria que provar de fato seu direito ou, ao menos, teria que convencer o juiz do juízo de verossimilhança de sua alegação para a inversão do ônus probatório, o que, no caso em questão possivelmente não conseguiria. Desta forma o consumidor buscou e efetivamente conseguiu, ganhar tempo prejudicando assim o fornecedor de boa-fé que não pode receber seu crédito, nem mesmo a parte não controversa da dívida. O deferimento do agravo interposto pelo fornecedor foi, portanto, um meio de reverter o uso abusivo das disposições legais do CDC e meio de fazer prevalecer o direito do fornecedor de, não se provando sua culpa, poder efetuar a cobrança de seus créditos junto ao consumidor.

Sobre a possibilidade de o consumidor utilizar-se de suas prerrogativas em detrimento do fornecedor de boa-fé Marcelo Gomes afirma também que [48]:

(...) a proteção da legislação é um direito, e não um privilégio. (...) o código de proteção e defesa do consumidor e a legislação sobre o consumo não satanizam o fornecedor e enaltecem o consumidor em um altar. Seu intuito é equilibrar a relação de consumo. Interroga-se se o consumidor valendo-se da proteção que a lei lhe confere em razão de sua vulnerabilidade, poderá abusar de seu direito. A afirmativa é plausível e lógica". (Grifo nosso)

Podemos então afirmar que está abusando de seu direito, o consumidor que ao utilizar o CDC de maneira contrária a sua função social, desvia-se assim dos padrões de lealdade e correção de conduta e criando uma falsa aparência de direito, trazendo assim um prejuízo a outra parte de boa-fé.

Em casos rotineiros das relações de consumo é possível observar, por exemplo, situações de abuso por parte do consumidor de suas prerrogativas legais nos casos de venda de produtos via telefone. O artigo 49 do CDC [49] estabelece que o consumidor que efetuar a compra de um produto por telefone poderá desistir do produto no prazo de 7 dias, a contar da data do efetivo recebimento da mercadoria. Com isso, a lei busca dar oportunidade ao o consumidor de verificar se aquilo que lhe foi anunciado e quis comprar está em consonância com o que recebeu. Suponha-se que determinado consumidor, por má índole, peça um produto por telefone e logo em seguida desista do contrato de compra e venda, realizando tal procedimento reiteradas vezes de forma contínua. Não há dúvida de que o consumidor está abusando de um direito que lhe foi concedido, sendo permitido ao fornecedor de boa-fé negar-lhe o reenvio do produto, sem que o consumidor possa alegar descumprimento da oferta.

Tal atitude do consumidor pode ensejar, consoante a afirmação de Marcelo Gomes, [50] até mesmo em indenização por parte do consumidor por perdas e danos

sofridos pelo fornecedor de boa-fé nestes tipos de relações de consumo viciadas por pretensões escusas do consumidor. Conforme explica Guilherme Neto [51]

Podemos dizer que o CDC exorcizou de vez o espírito ligado à análise do aspecto intencional, de critério exclusivamente subjetivo (...) mas não se afastou dos principais critérios de constatação do abuso do direito (desvio da finalidade social e econômica) pois o sistematizou, conjugando-os com seus princípios fundamentais, criando o subsistema do abuso do direito com função de prevenir contradições e propiciar maior segurança jurídica.

Outro exemplo onde se podem constatar o abuso de direito por parte do consumidor e a oneração do fornecedor de boa-fé seria o caso do consumidor que adquire um aparelho de TV que dá uma garantia de, por exemplo, cinco anos. Decorridos quatro anos da compra, observam que, a medida que o aparelho fica ligado passa a apresentar problema no tubo de imagem, com uma leve distorção nas cores, que aumenta à proporção do tempo que fica ligado.

Ciente de seu direito de garantia e conhecedor dos termos relativos a vício do produto ou serviços do artigo 18 do CDC [52] bem como da presunção de culpa imposta ao fabricante do aparelho o consumidor (art. 12 Caput, aplicável aos vícios de produto e serviço), com o intuito de receber um aparelho quatro anos mais novo, já com novos recursos tecnológicos que o seu a época da compra não dispunha, passa a deixar o aparelho constantemente ligado funcionando durante

dias até que, após um forte cheiro de fio queimado e já praticamente sem nenhuma definição de imagem, para de funcionar. Somente então, munido de seu termo de garantia leva o aparelho à oficina autorizada pelo fabricante alegando que o aparelho parou de funcionar. Fatidicamente, a assistência técnica constata que o defeito, apesar de ter origem no tubo de imagem comprometeu a placa mãe do televisor, situação que poderia ser evitada se, quando do início do problema, o tivesse solucionado imediatamente.

Uma vez configurado o dano e existindo o nexo de causalidade, constata-se que a culpa do fabricante pelo defeito do produto é presumida tendo em vista a responsabilidade objetiva do fabricante imposta pelo legislador no CDC. O que resta agora ao fabricante é tão somente alegar as excludentes de responsabilidade elencadas no artigo 12 §3.º [53]. Faticamente percebe-se que nenhuma delas vai se enquadrar no exemplo em questão. Poderá o fabricante então se negar a efetuar a troca do aparelho, por entender que o sinistro se deu em decorrência de má-fé do consumidor ou no mínimo de negligência do mesmo diante do problema inicial do aparelho, de solução fácil e de baixo custo?

Tal situação certamente será levada pelo consumidor a apreciação do judiciário que, através da exegese dos artigos 12 (responsabilidade objetiva) e 18, ambos do código de defesa do consumidor irá, por fim, determinar que o fabricante, por não ter provado a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, efetue a troca do produto defeituoso, não considerando muitas vezes as peculiaridades e situações fáticas ocasionadas pela má-fé do consumidor.

Conclui-se que em muitos casos a exegese rígida dos dispositivos do CDC, sobretudo em relação à responsabilidade do fornecedor e da inversão do ônus

probatório, poderá levar ao rompimento do princípio da boa-fé e da transparência nas relações de consumo, vindo a onerar uma das partes suplantando os ideais de equidade dos integrantes das relações de consumo.

Paulo Sanseverino [54], buscando na jurisprudência situações de aplicação do princípio da boa-fé com intuito de afastar pretensões indenizatórias de consumidores que fizeram uso de seu direito assegurado pelo CDC com fins distintos dos previstos pelo legislador, em desconformidade com a função social que o ordenamento lhes conferiu, cita acórdão da 9.ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. O referido julgado trata de uma consumidora que, após pagar reiteradas vezes, com atraso as suas prestações, ingressou com ação indenizatória contra loja, pois esta não atualizou de maneira correta, nos cadastros de devedores inadimplentes a prestação que estaria de fato atrasada. Naturalmente, a demanda indenizatória foi julgada improcedente tendo a aplicação do princípio da boa-fé constituído um ponto de equilíbrio dentro das relações de consumo. [55]

Com relação a este caso a Des.ª e relatora Rejane Maria Dias de Castro Bins justificou seu voto de uma maneira bastante simples, tendo em vista a clareza com que entendeu a real pretensão da autora e a latente boa-fé do fornecedor no caso, e que desta forma não poderia ser recriminado e impelido a pagar a indenização pretendida pela consumidora/autora, assim proferindo seu voto:

De rigor, houve, portanto, ilicitude no cadastramento da prestação em tela, porque já quitada. Todavia, a inadimplência permanecia e era reiterada, de modo que não posso entender configurado o dano em virtude daquele ato, mas sim do incumprimento contratual repetido. Não se me afigura possível conceder indenização a quem estava inadimplente, pelo fato de não ter havido alteração do dado do cadastramento. Ao invés de estampar a prestação de junho de 1995. estamparia a de novembro, dezembro, e assim por diante. Repudia o direito o enriquecimento sem causa. E ordem de indenizar, no caso assim se configuraria. (grifo nosso) Não posso ver o nexo causal e eventual prejuízo tido pela apelada, por estar com o nome cadastrado no SPC, como decorrente de ação de apelante, porque foram os atrasos iterativos que a levaram a essa situação. [56]

Por fim, podemos citar a apelação civil que trata do caso de um cliente que intentou ação contra uma instituição bancária por dano moral, baseado no fato da requerida ter devolvido equivocadamente um cheque do autor por insuficiência de fundos. De fato, houve o erro do prestador de serviços ao devolver o cheque, pois o correntista tinha saldo disponível na época da apresentação do título. Contudo, o acontecido se deu dezesseis anos antes do ajuizamento da ação por parte do consumidor. Conforme argüi o desembargador e relator do julgado João Pedro Freire em seu voto:

considerando-se o grande lapso temporal vivido desde então, tem-se que o autor venha sofrendo (?) este dano há precisamente 16 anos, sem demonstrar qualquer prejuízo, tanto como o dano propriamente dito como abalo na esfera de seu patrimônio (...) O Que Parece Estranho, para dizer o mínimo, no presente caso, é que o autor pretende indenização por dano moral de um fato transcorrido quatorze anos atrás, tempo este que se manteve silente. Se, realmente algum dano tivesse ocorrido, teria ele buscado imediatamente resolver o problema junto ao banco. Porém, nada fez. Não há notícia de que tenha recorrido ao judiciário, o que demonstra, claramente, que não houve o propalado dano que quer ver-se indenizado." [57]

Novamente vislumbramos um caso onde a prerrogativa do direito do usuário/consumidor é usada em contraponto aos ditames da boa-fé objetiva, na

clara busca de vantagem descabida, valendo-se de sua condição de consumidor, parte considerada por lei vulnerável e hipossuficiente, mas que neste caso irá, através do uso de seu direito de forma inidônea, causar uma lesão ao fornecedor/prestador de serviços, rompendo assim de maneira negativa o equilíbrio nas relações de consumo objetivo proposto pelo legislador quando da idealização da lei 8078/90 em seu artigo 4.º, III. Também nesta situação, constata-se que a análise do caso em concreto trouxe à tona uma situação completamente diferente da prevista pelo legislador quando da feitura do CDC. Este buscou, através de dispositivos protetivos, promover o equilíbrio nas relações de consumo, sempre consubstanciado na boa-fé dos participantes desta relação. Certamente os dispositivos de proteção do consumidor foram criados para tutelar uma eventual quebra positiva [58] da igualdade entre consumidor e fornecedor. Contudo, em vários casos, pode-se observar que essa quebra da igualdade proposta pelo legislador, através de medidas protecionistas poderá levar, quando usada de forma contrária a sua função social, ou seja, em descompasso à lealdade, à sinceridade e à honestidade no agir, a um desequilibro na relação de consumo, fazendo com que à parte economicamente favorecida e opressora de outrora, possa também ocupar o posto de vítima do abuso de direito por parte do consumidor.

Este em realidade deve fazer uso de suas prerrogativas legais em conformidade com os ditames do princípio da boa-fé, adotado pelo legislador consumerista que atua como freio dos fenômenos sociais repreensíveis.

3.4.A boa-fé e a inversão do ônus probatório no CDC

A possibilidade da inversão do ônus da prova está expressamente prevista no art. 6.º, III, que diz:

São direitos básicos do consumidor:

(...)

VIII – A facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, no processo civil, quando, a critério do juiz for verossímil a alegação ou quando ele for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Trata-se, portanto, de mais uma inovação trazida pelo legislador consumerista ao direito positivo brasileiro que, optando pela proteção do consumidor, pôs de lado a regra motriz ordinária do ônus probatório no direito civil brasileiro prevista no inc. I do art. 333 do CPC [59] segundo o qual o ônus da prova incumbe ao autor quanto ao fato constitutivo de seu direito. Ao levar em conta que o acesso à justiça tem sido um dos principais obstáculos para a efetiva realização do direito, o legislador consumerista buscou adaptar alguns pontos do processo civil à realidade das relações de consumo, retirando um dos principais obstáculos à efetivação de seus direitos que é a produção da prova. Desta forma, diferentemente das regras gerais do direito processual civil, onde a incumbência da prova é de quem alega o direito, devendo este apresentar a efetiva existência do fato gerador de seu direito, independendo ser autor ou réu, nas relações de consumo essa condição se inverte em favor do consumidor, preenchidos os requisitos legais de hipossuficiência e verossimilhança das alegações a serem analisadas pelo juiz.

Paulo Sanseverino, a respeito da inversão do ônus probatório nas demandas relativas a relações de consumo comenta que,

Como, nas demandas que tenham por base o CDC, o objetivo básico é a proteção ao consumidor, procura-se facilitar a sua atuação em juízo. Apesar disso, o consumidor não fica dispensado de produzir provas em juízo. Pelo contrário, a regra continua a mesma, ou seja, o consumidor, como autor da ação de indenização, deverá comprovar os fatos constitutivos do seu direito. (grifo nosso) [60]

O fornecedor, por sua vez, como réu da ação de reparação de danos, deverá demonstrar os fatos impeditivos (culpa exclusiva do consumidor, o fato exclusivo de terceiro, a força maior e o caso fortuito), modificativos (por exemplo culpa concorrente) e extintivos (a prescrição prevista pelos art. 26 e 27 do CDC [61]) do direito do consumidor, bem como aqueles cujo ônus probatório lhe for atribuído pela lei ou pelo juiz.

A inversão do ônus da prova prevista pelo legislador como instrumento de proteção do consumidor pode se dar no CDC de duas maneiras. Primeiramente, pode decorrer expressamente de texto legal, como no caso dos artigos 12 e 14 seus respectivos §3..º, incisos é chamada de inversão Ope legis. A inversão do ônus probatório ainda pode se dar por determinação do juiz no curso de uma demanda consumerista, é a chamada inversão Ope judici, prevista no artigo 6.º, VIII do CDC.

Como já foi dito, a inversão ope legis decorre da lei, sendo aplicada nos casos nela previstos, independentemente da vontade do julgador. Já a inversão ope judici atua na esfera da discricionariedade do juiz, dependendo ainda, contudo, do preenchimento de pressupostos para sua aplicação, quais sejam a vulnerabilidade das alegações do consumidor e a hipossuficiência do mesmo.

A hipossuficiência conforme preceitua Paulo Sanseverino:

(...) é um conceito próprio do CDC, relaciona-se à vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo. Não é uma definição meramente econômica, conforme parte da doutrina tentou inicialmente cunhar (...) trata-se de um conceito jurídico, derivando do desequilíbrio concreto em determinada relação de consumo. Num caso em específico, a desigualdade entre o consumidor e o fornecedor é tão manifesta que, aplicadas as regras processuais normais, teria o autor remotas chances de comprovar os fatos constitutivos de seu direito. [62]

A verossimilhança, de acordo com Rogério de Oliveira Souza [63], refere-se à situação processual em que se encontra a alegação formulada pelo consumidor como fundamento de seu direito, que se revela aparentemente verdadeira, a depender apenas da inexistência ou do insucesso da contraprova a ser produzida pelo réu. A verossimilhança é averiguada no estado do processo, isto é, no momento em que o consumidor pede a inversão do ônus da prova em seu favor, sob o fundamento de que sua alegação se apresenta como aparentemente verdadeira. A verossimilhança é, portanto, a impressão que a alegação forma no juízo cognitivo do julgador, relacionando-se a um juízo de probabilidade deste em face aos elementos juntados ao processo que possam levar o julgador a crer que as alegações da parte têm concreta possibilidade de serem verdadeiras.

A respeito da verificação da verossimilhança das alegações e da efetiva hiposufissiência dos consumidores por parte do juiz para a efetiva e correta aplicação da inversão do ônus probatório comenta Sanseverino:

Evidentemente, que devendo a decisão do juiz ser motivada, mesmo na hipótese de hipossuficiência, as alegações do consumidor devem ser dotadas de um mínimo de razoabilidade, pois não se pode perder de vista a finalidade da inversão do ônus da prova que é restabelecer o princípio da igualdade dentro da relação processual, quando isso for necessário e razoável. A motivação do provimento judicial que inverte o ônus da prova é imposição constitucional, sob pena de nulidade, indicando-se ainda que sucintamente, as razões concretas da medida judicial. [64] (grifo nosso)

Tratando também ainda da questão de verificação da hipossuficiência e da verossimilhança das alegações dos consumidores que pleiteiam a inversão do ônus da prova, o juiz de Direito Rogério de Oliveira Souza [65] indaga, pertinentemente, sobre as hipóteses de inversão quando a alegação, apesar de verossímil, advém de um consumidor afortunado ou quando o consumidor de fato hipossuficiente deduz alegação despida de qualquer verossimilhança: Pergunta-se então se nesses casos deve prevalecer a inversão do ônus da prova? Ou seja, a partícula constante do dispositivo legal (art. 6.º, VIII, do CDC) deve ser interpretada como é? É lícito transferir para o réu o ônus de provar fato contrário alegado pelo consumidor mais favorecido financeiramente, assumindo todo os encargos patrimoniais e processuais daí decorrentes? Ou então, deve o réu despender esforços em face do consumidor hipossuficiente, para provar que sua alegação é absurda?

Em relação à primeira indagação, o autor acima citado defende que o art. 4.º, I, do CDC estatui que um dos princípios reitores da política nacional das relações de consumo é o "reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo". Logo, se o consumidor por suas condições intrínsecas (sociais, econômicas e jurídicas), não se apresenta como vulnerável, não há de receber o beneplácito legislativo da comodidade probatória.

Observa-se como exemplo desta situação, o caso de um profissional liberal, um advogado ou um engenheiro que contrata o serviço de um pedreiro que diante do desemprego e da crise no setor de construção busca o sustento da família realizando pequenos serviços e reparos. Este é contratado a fim de realizar a impermeabilização da laje de sua residência. Terminado o serviço, o contratante/consumidor nota que o teto da sua residência continua úmido e com infiltrações e, alegando vício na prestação, intenta ação com objetivo de compelir o pedreiro a indenizá-lo por conta de todo o material gasto na obra e que ainda devolva o dinheiro pago pelo serviço mal feito. Neste caso, diante do confronto

de um prestador de serviço limitado técnico e economicamente e de um consumidor nitidamente portador de uma condição intelectual e sócio-econômica superior a do prestador de serviço, seria justo que se opere a inversão do ônus da prova? Não se estaria, desta forma, agindo em desencontro aos princípios da igualdade e do equilíbrio nas relações entre os consumidores e fornecedores? Certamente, a ponderação do juiz no momento do deferimento ou não da inversão do ônus da prova deve levar em conta situações como esta pois, no exemplo em questão a inversão do ônus da prova tornaria muito árdua a tarefa do prestador de serviço de provar que não agiu com culpa ocorrendo novamente uma quebra na igualdade nas relações de consumo, só que agora de uma maneira inversa, causando uma desarmonização da relação de consumo com uma oneração excessiva de uma das partes.

Outro exemplo corriqueiro nos tribunais abordado por Rogério Souza [66] que comenta o caso do consumidor, usuário de cartão de crédito, sem condições de quitar a integralidade da fatura, passa a pagar apenas o mínimo exigido, sem deixar, no entanto, de continuar a se servir do instrumento de crédito. Ao cabo de algum tempo, constata ser impossível pagar sequer o mínimo, ingressando em juízo com pedido de verificação da conta apresentada pela administradora, deduzindo a alegação de juros extorsivos, prática de anatocismo etc. Seu débito inclui não apenas os encargos (juros, multas, etc.) como, também o valor das próprias compras adquiridas no período. A alegação de não dever a totalidade do que lhe é cobrado carece de verossimilhança, a depender de prova técnica especializada. Transferir para o réu o encargo de demonstrar o acerto de suas contas é reconhecer um tributo a inadimplência. O consumidor serviu-se do crédito facilitado, ciente das taxas de juros e encargos, bem como continuou a adquirir mercadorias para seu próprio consumo, e, incapaz de honrar seu compromisso, vem a juízo questionar os valores cobrados e aceitos por longo período de tempo. Sua condição é de hipossuficiente, na maioria dos casos, é

real; no entanto, sua alegação é desprovida de verossimilhança, apreendida em estado do processo, insuficiente para transferir ao réu o encargo probatório. É possível, inclusive, que se verifique a prática de anatocismo; Contudo, carente o consumidor de elementos suficientes que possibilitem o reconhecimento, ab initio, do direito a inversão. Há casos inclusive em que o consumidor se arvora na alegação de que nada deve em razão de já haver efetuado o pagamento de valores excessivos por longos anos, considerando os juros extorsivos e ilegais bem como o anatocismo.

Ainda em relação aos pressupostos para a aplicação da inversão prevista no art. 6.º, VIII e da necessidade da fundamentação desta decisão, Paulo Sanseverino [67] cita acórdão do TJ-RS onde a corte entendeu inaplicável a inversão fundada apenas na hipossuficiência do consumidor e em face das peculiaridades do caso em concreto [68]. Segundo o acórdão a inversão requer uma alegação com o mínimo de verossimilhança inclusive porque, por disposição constitucional, toda decisão judicial tem que ser fundamentada, não bastando como no caso uma mera referência a norma legal que a autoriza. Vê-se claramente neste caso que no juízo a quo a falta de verossimilhança da alegação foi suprimida tendo em vista a hipossuficiência do consumidor. Numa atitude protetiva, o juízo de primeira instância ignorou a completa falta do mínimo de veracidade da alegação do fornecedor. Situações como esta, merecem especial

atenção, uma vez que, podem vir a causar danos a fornecedores e prestadores de serviço de boa-fé que, diante de qualquer alegação dos consumidores, sem o mínimo de verossimilhança, passam a ter gastos com honorários advocatícios e com produção de provas técnicas. Ainda como exemplo da falta de verossimilhança da alegação dos consumidores frente ao pedido de inversão do ônus da prova cita-se o acórdão da 2.ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP onde um consumidor buscava indenização alegando dano no motor de seu carro oriundo de erro do frentista, que abasteceu com combustível errado [69].

Tal situação é possível acontecer, contudo, deve resguardar-se o julgador de um mínimo juízo de verossimilhança da alegação da parte contrária, pois do contrário, a todo o momento teremos alegações de prejuízos, de defeitos em produtos, como por exemplo, o caso da consumidora que, por não saber manusear, e tão pouco entender o manual de instruções de notória simplicidade de um eletrodoméstico adquirido, o julgou defeituoso, buscando o judiciário para ressarcir-se dos pretensos prejuízos e solicitando a inversão do ônus da prova [70]. Diante dos fatos, argumentou o desembargador Franciulli Netto em seu voto no referido acórdão que:

Não há verossimilhança nas alegações das apelantes e segundo as regras ordinárias de experiência, nada está a justificar a inversão do ônus da prova, nos termos do artigo 6.º, inciso VIII, do código de defesa do consumidor. De mesma sorte não socorre as recorrentes a melhor exegese do artigo 12 e parágrafos do mesmo diploma legal que não consagra a responsabilidade objetiva do fornecedor. Às apelantes cabia o ônus da prova da existência do defeito e das informações inadequadas ou insuficientes sobre a utilização do produto. Não lograram prova nem uma nem outra coisa.

A propósito, vem a calhar a douta lição:

Como sem dúvida, a exigência do defeito é fato constitutivo do direito do consumidor (cabendo-lhe, portanto a prova consoante o artigo 333, I, do CPC), pois não há responsabilidade civil do fornecedor no sistema do sistema do código do consumidor, sem a existência do defeito juridicamente relevante (art. 12, Caput) e, por sua vez, a inexistência do defeito é fato impeditivo do direito do autor/consumidor (cabendo ao fornecedor o ônus da sua comprovação, nos termos do artigo 331, II, do CPC), e por esta razão foi expressamente previsto pelo Código do Consumidor como eximente da responsabilidade do fornecedor que deverá prová-lo em nada se afasta do regime de distribuição do ônus da prova do código de processo civil. Argumenta-se, todavia, que a prova de existência do defeito poderia se tornar em exigência demasiado difícil ou insuportavelmente custosa ao consumidor, inviabilizando sua pretensão em alguns casos especiais, ao nosso ver mais incomuns. Tal argumento, contudo, pode se mostrar de ordem menos jurídica do que política, não tem força suficiente para alterar indiscriminadamente o regime do artigo 333 do código de processo civil, procurando-se atribuir ao inciso II do §3.º do artigo 12 significado que não possui. Ademais, a solução para estes casos especiosos esta justamente neste artigo 6.º que confere ao juiz a possibilidade de, como visto, a seu critério em situações que justifiquem, ante a verossimilhança da afirmação do consumidor ou constatada a sua hipossuficiência, inverter o ônus probandi, facilitando a defesa de seus direitos. (c.f..Arrua Alvim e outros, in ´Código do Consumidor Comentado´, Ed RT, 2.ª ed, 2.ª tir., ps70/71)


CONCLUSÃO

Observando-se através da análise da legislação e da jurisprudência, o teor da lei 8078/90, que regulamenta as relações de consumo, tornou-se efetivamente um marco na legislação pátria e um exemplo a ser observado pelo direito internacional. O reconhecimento da hipossuficiência e da vulnerabilidade dos consumidores frente ao poderio econômico e tecnológico dos fornecedores demonstra o caráter eminentemente social do CDC. Através da imputação da responsabilidade objetiva ao fornecedor, consubstanciada na teoria da culpa presumida, o legislador, efetivamente fez com que o cidadão comum, tivesse como se impor diante do fornecedor podendo afastar, por exemplo cláusulas lesivas, juros distorcidos e de práticas lesivas em geral. Através da possibilidade da inversão do ônus da prova em favor do consumidor hiposuficiente, o legislador consumerista minorou, em muito, as dificuldades de acesso dos consumidores à justiça, o que se configurava como uma das principais dificuldades para a efetiva realização de seus direitos.

A instituição de uma política nacional para as relações de consumo constitui mérito ainda maior para o legislador. Através desta, buscou-se, conforme disposto no artigo 4º do CDC, o atendimento das necessidades dos consumidores, a proteção de seus interesses econômicos e a melhoria de sua qualidade de vida. Inovou ainda, com a adoção expressa da boa-fé, como princípio fundamental das relações entre consumidores e fornecedores, através de uma quebra positiva da igualdade entre os integrantes das relações de consumo, do tratamento desigual aos nitidamente desiguais, buscando equilibrar e harmonizar as relações consumeristas, sem contudo obstruir o desenvolvimento econômico e tecnológico, princípios fundamentais da ordem econômica segundo disposição constitucional.

Contudo, analisando as diversas situações do cotidiano consumerista e de vários casos da jurisprudência pátria, percebe-se que o uso das normas do CDC por alguns consumidores e a aplicação destas por parte dos operadores do direito, em alguns casos, não consideram o princípio da boa-fé, nem a função social pretendida pelo legislador nos dispositivos do código.

Nota-se então que, apesar de o CDC ter sido criado para a "defesa do consumidor", não é correto analisar a questão das relações de consumo de uma forma unilateral, entendendo como se os consumidores fossem sujeitos apenas de direitos. Na análise de situações controvertidas, oriundas de relações de consumo, é válido lembrar o dever do julgador de nunca se afastar do princípio de que, embora as relações tenham se tornado de consumo, elas não deixam de ser bilaterais devendo sempre ser encaradas sob esta ótica.

Na busca da efetiva harmonização das relações de consumo deve-se, então, promover sempre uma análise efetiva da conduta das duas partes da relação consumerista, sob pena de, em promovendo-se uma análise unilateral, parcial, tornarmos as normas do CDC, um instrumento de injustiça e abuso de direito. Constatou-se, através de diversos casos da jurisprudência, que muitos consumidores, agindo de forma desleal para com fornecedor, usam suas prerrogativas legais como instrumento de favorecimento próprio, em detrimento do fornecedor de boa-fé. Agindo desta forma, utilizam-se do código e de sua presunção de vulnerabilidade e hipossuficiêcia como escudo, contrariando os ditames da boa-fé, valendo-se de prerrogativas como, por exemplo, à inversão do ônus da prova para o pleito de vultuosas indenizações sob as quais, através da análise criteriosa dos fatos, não tem nenhum direito. Conclui-se então que a interpretação das regras do código de defesa do consumidor deve ser, já em primeira instância, analisadas de forma mais crítica e menos protecionista. Os aplicadores do direito devem ser mais criteriosos na análise da verossimilhança dos fatos alegados pelos consumidores, assim como para a possibilidade destes estarem agindo em descompasso com o princípio da boa-fé e os ideais de harmonia e equilíbrio das relações de consumo, imaginados pelo legislador.

É importante ressaltar que a política nacional das relações de consumo busca promover a harmonia e a equidade das mesmas, e não favorecer indiscriminadamente qualquer das partes. Ela busca dar instrumentos efetivos para que o consumidor, nitidamente com menor influência e poder de decisão nas relações consumeristas, possa relacionar-se em condições de igualdade para com o fornecedor. Contudo, cabe ainda destacar que a proteção da legislação não pode se caracterizar como um privilégio desmedido, e que a boa-fé objetiva do consumidor hipossuficiente também deve ser ponderada quando na análise de uma contenda consumerista, pois não se pode negar que, assim como existem fornecedores que buscam se prevalecer da diferença econômica, da falta de cultura e discernimento da parte contrária, também pode existir consumidores imbuídos de má-fé, com deslealdade no trato da relação com o fornecedor, procurando tirar vantagens inidôneas ou, mesmo, ilícitas desta posição de pretensa desvantagem, nem sempre verificada nas situações de fato.

Para a efetiva concretização da inovadora proposta do legislador consumerista da criação de uma lei para a proteção do consumidor, através de uma política nacional de harmonização, transparência e equidade nas relações de consumo, faz-se mister uma posição íntegra e responsável, compatível com a boa-fé, à lealdade e a probidade por parte dos dois integrantes da relação de consumo.

Não é admissível, portanto, estabelecer parâmetros rígidos de que o consumidor é sempre oprimido e manipulado pelo poder econômico do fornecedor e que este, em busca lucro, sempre busca prevalecer-se da hipossuficiência dos consumidores. A proteção do consumidor deve então ser promovida, efetivamente, através da instrumentalização da política nacional das relações de consumo, da análise das situações fáticas do cotidiano consumerista levando em conta a lei mas, sobretudo, a boa-fé objetiva das partes frente a seus direitos e deveres, evitando assim que, a exegese rígida dos dispositivos legais do CDC frente as situações do dia a dia possam vir a ocasionar equívocos e prejuízos a qualquer das partes integrantes da relação consumerista.

Tendo em vista a clareza e a objetividade das normas do código de defesa do consumidor, conclui-se que, para a efetiva aplicação do princípio da boa-fé, da harmonia e da transparência nas relações de consumo, não se faz necessário nenhum tipo de alteração legislativa, mas uma mudança de postura na interpretação das disposições legais, bem como no exame cuidadoso e imparcial dos fatos conflituosos havidos entre fornecedores e consumidores. Não se propõe a redução de direitos e deveres, mas sim a preservação dos mesmos, para ambas as partes da relação de consumo, bem como uma aplicação de forma a proteger o consumidor, e, sobre tudo, que esta proteção seja efetivada levando em conta os princípios erigidos pelo legislador para reger a política nacional das relações de consumo.

Indiscutivelmente, as normas do CDC devem ser aplicadas com rigor para punir os desrespeito e as más condutas das partes nas relações de consumo. Esta rigidez deve, inclusive, ser observada igualmente no tocante as condutas dos consumidores, que, como se viu em diversos casos narrados no presente trabalho podem também agir em afronta aos ditames da boa-fé, vindo a comprometer a harmonia e a equidade das relações de consumo.


NOTAS

01. Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

02. A teleologia pode ser definida como doutrina a cerca das causas finais, a tese que explica uma causa primordial preestabelecida de todos os fenômenos e a tendência deles para o fim necessário. Juridicamente, Von Ihering criticando o abstracionismo dos conceitos jurídicos e o emprego de métodos dedutivos- silogísticos, buscava salientar o caráter finalístico das normas jurídicas. Desta forma a norma deve ser interpretada levando em conta seus objetivos, não devendo ser encarada como um fim em si mesma mas como um meio a serviço de uma finalidade, norteando a interpretação de uma norma jurídica com o fulcro de atingir o fim pretendido pelo ordenamento jurídico no caso em concreto. Especificamente, nas relações de consumo o elemento teleológico, vem inserto na expressão destinatário final, a qual quer significar que, para a configuração de uma relação de consumo, fornecedor e consumidor devem-se obrigar com a finalidade de retirada do produto ou serviço do mercado. Tem relevância a verificação do elemento teleológico, tendo em vista que a finalidade das normas de proteção do código tem por objetivo proteger especificamente os consumidores que adquirem produtos ou serviços para seu uso próprio, sendo que se a aquisição do produto for motivada com intuito de exercício de atividade lucrativa e não de fruição do adquirente, não poderá se considerar o adquirente como destinatário final para fins de aplicação das normas do CDC.

03. Buscando suprir a omissão do legislador do início do século passado, que não adotou o princípio da boa-fé no código civil de 1916, a lei 10.406/2002, o novo código civil, que entrará em vigor em 10/01/2003 adotou expressamente, em seu artigo 422, o princípio da boa-fé quando diz "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé". Assim a boa-fé, se consolidifica como regra de conduta das partes nas relações jurídicas de direito privado em geral.

04. MATTOS, Francisco José Soller de. O princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor. In: Jus Navigandi, n. 44, 1996. Disponível em: < jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=709">http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=709 > Acesso em 02/12/2002.

05. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade Civil no Código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor.2002. p.54

06. Id. Ibid., p.59

07. A transparência também foi elegida pelo legislador, no caput do art.4º, como princípio fundamental da política nacional das relações de consumo. Juntamente com o princípio da boa-fé a transparência tem grande relevância nos contratos e negócios jurídicos consumeristas. A conjunção do referido princípio com o da boa-fé objetiva propulsiona um duplo controle dos contratos e negócios regidos pelo CDC: Um controle formal, previstos por exemplo nos artigos 46, 52 e 54, consubstanciado no dever de transparência da regras, cláusula e características do produto ou serviço negociados, não vinculando assim o consumidor a qualquer cláusula contratual, por exemplo, que padeça do grave vício de informação. A outra forma de controle se dará por meio do controle do conteúdo, da substância, do negócio jurídico, agindo aqui principalmente o princípio da boa-fé objetiva, controlando a justiça das cláusulas, dos contratos e as posições tomadas pelas partes diante do seu direito. A Transparência atua portanto como um viés do princípio maior da boa-fé objetiva, pois conforme afirma o professor Francisco José Soller de Mattos em seu artigo O princípio da boa-fé no código de defesa do consumidor, muito embora o caput do art. 4º do CDC consagre a autonomia do "princípio da transparência", não há como se negar que este nada mais é do que uma das mil faces da boa-fé, que é tão abrangente, deixa escapar o seu sentido para uma situação aberta, indutora de uma nova postura no ambiente contratual.

08. GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor. 2001. p.120

09. Sob forma indireta o consumo pode ocorrer no caso, por exemplo, do pai que adquire junto ao comércio um brinquedo para seu filho. Neste caso, o produto adquirido não teve como destinatário final o adquirente, mas sim um ente de sua família, não vindo o produto a integrar nenhum tipo de cadeia produtiva, servindo a um também a um destinatário final, igualmente hipossuficiente e vulnerável, carecedor por conseguinte da proteção advinda das normas do CDC.

10. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. 2002. p. 204

11. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 2002. p. 254.

12. NASCIMENTO, Tupinanba M. C. Do. Comentários ao código de defesa do consumidor. 1991. p. 22

13. Id. Ibid., p.125

14 O referido autor, p.125, cita o exemplo de um pai que compra um sabonete para seu filho e este, ao utilizá-lo, tem uma enorme alergia na pele devido a um componente não especificado na fórmula do produto.

15. Ob. Cit., p. 125

16. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 2001.p 228

17. CDC - Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.

18. Trata, por exemplo, o Capítulo IV, seção I dos meios de proteção à saúde e segurança, a seção III da responsabilidade do fornecedor por vício do produto e do serviço, o capítulo V das praticas comerciais, a oferta de produtos e a publicidade tratando as normas de conduta do fornecedor nestes casos, o capítulo VI, seção I da proteção contratual trazendo disposições gerais a serem observadas nos contratos de consumo, na seção II define o quais tipos de cláusulas podem ser considerados abusivos.

19. Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.

20. A transparência referida pode ser compreendida como o dever de conduta do fornecedor em informar ao consumidor sobre as características e riscos que seus produtos ou serviços apresentam. Conforme afirma Claudia Lima Marques (Contratos no Código de defesa do consumidor, 2002 p. 595), a transparência significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor mesmo na fase pré-processual, isto é, na fase negocial das relações de consumo.

21. Ob. Cit., p. 162

22. Nesse sentido, trata acórdão da 9.ª civil de direito privado do TJ SP no acórdão nº 63.507.4/0-00, analisado no próximo capítulo.

23. Refere-se as atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços, de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, elencadas no artigo 3º do CDC

24. GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor. 2001., p.144

25. É o típico exemplo de redes de supermercados que colocam seus nomes em produtos que efetivamente não fabricam.

26. Por exemplo, quando, no artigo 42, proíbe que o fornecedor na cobrança de dívidas exponha o consumidor inadimplente ao ridículo ou quando, no artigo 36, impõe que a publicidade deve ser veicula de tal forma que o consumidor, fácil e imediatamente a identifique como tal.

27. Ob. Cit., p. 160

28. Art. 4º, III - A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo (...) a transparência e harmonia das relações de consumo, (...) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

29. Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

30. Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)

I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

II - ação governamental no sentido de proteger efetivamente o consumidor:

a) por iniciativa direta;

b) por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas;

c) pela presença do Estado no mercado de consumo;

d) pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

V - incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo;

VI - coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores;

VII - racionalização e melhoria dos serviços públicos;

VIII - estudo constante das modificações do mercado de consumo.

31. Art. 12 - O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.

Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

32. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no Código de defesa do consumidor e a defesa do consumidor e a defesa do fornecedor.2002. p. 60

33. NEMEZIO, Auta França de Oliveira et alii. O Princípio da boa-fé e sua abrangência. Disponível em < http://www.bpdir.adv.Br/04_ar.htm > acesso em 29/11/02.

34. Artigo 4.º já citado.

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

II - subtraiam ao consumidor a opção de reembolso da quantia já paga, nos casos previstos neste código;

III - transfiram responsabilidades a terceiros;

IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade;

V - (Vetado);

VI - estabeleçam inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor;

VII - determinem a utilização compulsória de arbitragem;

VIII - imponham representante para concluir ou realizar outro negócio jurídico pelo consumidor;

IX - deixem ao fornecedor a opção de concluir ou não o contrato, embora obrigando o consumidor;

X - permitam ao fornecedor, direta ou indiretamente, variação do preço de maneira unilateral;

XI - autorizem o fornecedor a cancelar o contrato unilateralmente, sem que igual direito seja conferido ao consumidor;

XII - obriguem o consumidor a ressarcir os custos de cobrança de sua obrigação, sem que igual direito lhe seja conferido contra o fornecedor;

XIII - autorizem o fornecedor a modificar unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato, após sua celebração;

XIV - infrinjam ou possibilitem a violação de normas ambientais;

XV - estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor;

XVI - possibilitem a renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias.

§ 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vontade que:

I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence;

II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual;

III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso.

§ 2° A nulidade de uma cláusula contratual abusiva não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.

§ 3° (Vetado).

§ 4° É facultado a qualquer consumidor ou entidade que o represente requerer ao Ministério Público que ajuíze a competente ação para ser declarada a nulidade de cláusula contratual que contrarie o disposto neste código ou de qualquer forma não assegure o justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes.

35. A referência implícita pode ser encontrada, por exemplo nos artigo23, 28, 36, 39, 54 e 68 do CDC.

36. Op. cit., p. 62

37. Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

§ 1° A reexecução dos serviços poderá ser confiada a terceiros devidamente capacitados, por conta e risco do fornecedor.

§ 2° São impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.

38. A responsabilidade objetiva, isto é, a responsabilidade que prescinde do elemento culpa para a configuração do dever de indenizar por parte do fornecedor, foi adotada pelo expressamente pelo legislador consumerista para reger as relações de consumo e está prevista no artigo 12 do CDC quando esta diz que "O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por

defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem... "

39. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 2002, p. 350

40. Responsabilidade civil. Ação de danos morais e patrimoniais por abalo de crédito c/c determinação de baixa de registro negativo no SERASA. Cadastro de Pessoa Física equivocado. Negligência da instituição bancária. E defeituoso o serviço bancário que cadastra cliente com CPF pertencente a outro, estranho a relação negocial. Responsabilidade extracontratual. Teoria do risco do empreendimento. Responsabilidade decorrente do simples fato de dispor-se alguém a executar determinado serviço, do qual, como fornecedor, e o garante. O consumidor não pode assumir os riscos das relações de consumo. Doutrina e jurisprudência. Abalo de crédito assente. Dano moral configurado. Quantificação. Razoável fixar-se a indenização em valor equivalente a 50 salários mínimos, o que atende os objetivos punitivo/preparatório/pedagógico da indenização. Provimento parcial do apelo.

( Apelação Cível Nº 70001519255, nona câmara cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Ana lúcia Carvalho Pinto Vieira, julgado em 31/10/01)

41. Diz-se responsabilidade objetiva mitigada, pois, apesar de independer da prova de culpa do fornecedor, este pode afastar seu dever de indenizar, de acordo com o disposto no inciso 3.º dos artigos 12 e 14 do Código de defesa do Consumidor, se provar a culpa exclusiva do consumidor, a culpa de terceiro, a inexistência do defeito ou ainda que não colocou o produto no mercado.

42. CF/88 – Artigo 5.º, X, " São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente de sua violação."

43. Código civil Art. 159 "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.

A verificação da culpa e a avaliação da responsabilidade pelo disposto neste código regulam-se pelo disposto neste código, arts. 1.518 a 1532 e 1537 a 1553.

44. GOMES, Marcelo KoKKe. Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor.2001.p.162.

45. CALDAS, Débora. Caderno jurídico. dispnível em < http://www.alternet.com.br/canal/direito_fs.html >. Acesso em 17/11/2002.

46. Rio de Janeiro. 3.º Grupo de Câmaras Cíveis. AI 1994.005.177. Rel. Des. Ralph Lopes Pinheiro. Acórdão de 23-05-95

47. Pernambuco, 4.ª Câmara Civil. Agravo de Instrumento n.º 60459-1, Rel. Des. Jones Figueiredo, julgado em 30-11-00

48. Id.. Ibid., p. 162

49. CDC Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.

50. GOMES, Marcelo Kokke., Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor. 2001.., p. 163

51. FERNANDES NETO,Guilherme. O abuso do direito no Código de Defesa do Consumidor: Cláusulas, prática e publicidade abusivas. Brasília: Brasília Jurídica,1999. p. 66

52. Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com a indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas.

§ 1° Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

53. CDC. Art. 12, § 3° - "O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar:

I - que não colocou o produto no mercado;

II - que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste;

III - a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro."

54. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. 2002., p. 63

55. Em relação ao caso exposto nota-se que, mesmo sendo um fato de relativa clareza na constatação do abuso de direito da consumidora, que buscava a proteção do CDC para buscar uma indenização indevida pelo fornecedor de boa-fé com o nítido interesse de locupletar-se deste, em primeira instância a demanda da consumidora foi deferida, numa exegese restritiva das regras de proteção do consumidor, praticamente desprezando a regra do artigo 4.º do CDC que prega "III - a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;".

Necessitou-se, portanto, levar-se a questão a um tribunal superior para termos reconhecida a falta de verossimilhança na alegação da consumidora e a efetiva aplicação do princípio da boa-fé objetiva, demonstrando assim que, muitas vezes, o aplicador do direito quando diante de uma demanda originada em uma relação de consumo leva ao extremo a presunção de verossimilhança e hipossuficiência do consumidor, chegando até mesmo a sobrepor estas ao princípio da boa-fé também expressamente recepcionado pelo CDC no referido art. 4.ª e base de todas relações de direito privado.

56. Rio Grande do Sul,9.ª Câm. Cív. No AI 7000101428, Rel. Des.ª Rejane Maria Dias de Castro Bins, Acórdão de 22-9-99. p. 5

57. Rio Grande do Sul 6.ª Câm. Cív. No AI 7000481903, Rel. Des. João Pedro Freire, Acórdão de 06-12-00. p. 4

58. Uma quebra positiva, isto é, tratar-se desigualmente os desiguais nas relações de consumo, com intuito de atingir a igualdade de fato entre eles.

59. Art. 333 – O ônus da Prova incumbe:

I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor;

Parágrafo Único. È nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - Tornar excessivamente difícil a uma parte op exercício do direito.

60. Ob. cit., p.328

61. Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:

I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis;

II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis.

§ 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.

§ 2° Obstam a decadência:

I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca;

II - (Vetado).

III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.

§ 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria.

Parágrafo único. (Vetado).

62. Ob. cit., p. 332.

63. SOUZA, Rogério de Oliveira. Da inversão do ônus da prova. Doutrinas ADCOAS. 2000. p. 261.

64. Ob. Cit., p. 333

65. Id. Ibid., p. 262

66. SOUZA, Rogério de Oliveira. Da inversão do ônus da prova. 2000., p. 263.

67. SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. 2002., p. 334

68. Rio Grande do Sul, Tribunal de Justiça, 6.ª Câm. Cív., AI 5962441, Rel. Dês. Osvaldo Stefanello, Acódão de 18-3-1997, v.u.: " AÇÃO INDEZATÓRIOA. ÔNUS DE PROVAR. INVERSÃO POR HIPOSSUFICIÊNCIA DO AUTOR. NATUREZA DA RELAÇÃO DA QUAL DECORRE A OBRIGAÇÃO.CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A hipossuficiência, que junto com a verossimilhança da alegação, autoriza a inversão do ônus de provar( art. 6.º, VIII, do código de defesa do consumidor, lei n.8078/90, de 11 de setembro de 1990), está relacionada a aspectos técnicos ou científicos da atividade do fornecedor ou prestador de serviços. Tal não sendo a natureza da relação da qual decorre a obrigação, inaplicável a regra.DECISÃO JUDICIAL. FUNDAMENTAÇÃO. È de exigência, inclusive em nível constitucional – artigo 93, inciso IX, da constituição federal – que toda a decisão judicial seja fundamentada, mesmo que possa sê-lo de forma sucinta. Decisão judicial que trata e provê sobre inversão do ônus da prova há de ser fundamentada, não bastando referência à norma legal que a autoriza. Agravo de instrumento contra decisão que, em ação de indenização por dano moral, inverte o ônus da porá. Falta de fundamentação e inaplicabilidade da norma ao caso que leva ao provimento do recurso."

69. Revista de jurisprudência da IOB – 1998. jurisprudência n.º 3/ 14920

DEFESA DO CONSUMIDOR - PROVA - INVERSÃO - HIPOSSUFICIÊNCIA DO CONSUMIDOR E VEROSSIMILHANÇA DA ALEGAÇÃO - NÃO-CARACTERIZAÇÃO:

"Ação de indenização - Danos causados em motor de veículo por engano de combustível em seu abastecimento pelo frentista do posto – Pretendida a inversão do ônus da prova com base no Código de Defesa do Consumidor – Deslocamento da regra geral do Art. 333, I, do CPC a critério do juiz, o reconhecer, em sendo o caso, a vulnerabilidade do consumidor – Ausentes as hipóteses para tal inversão quais sejam as provas de hiposuficiência do consumidor e verossimilhança da alegação (Art. 6.º, VIII, do CDC) – Recurso improvido."(Ac um da2.ª C de direito Privado do TJ SP - AC 37.849.4/4 – Rel. Des. Linneu Carvalho – j. 16.06.98 – Apte.: Jorge Anjo de Carvalho; Apdo. :Auto Posto Jardim Alvinópolis Ltda. – DJ SP I 13.08.98 ementa oficial).

70. DEFESADO CONSUMIDOR - MULTIPORCESSADOR DE ALIMENTOS- DEFEITO DO APARELHO – INDENIZAÇÃO – ÔNUS DA PROVA. "consumidor – responsabilidade civil –indenização – multiprocessador de alimentos – informações inadequadas ou insuficientes sobra a utilização do produto – ônus da prova que toca ao consumidor – Funcionamento normal do aparelho e manual de fácil compreensão – Hipótese que não é de inversão do ônus probatório, por inverossímil a versão do consumidor e pelo que se infere das regras ordinárias de experiência – Ação julgada improcedente – Decisão mantida."(Ac un da 9.ª C de direito privado do TJ SP – AC 63.507.4/0-00 – Rel. Dês. Franciulli Netto – j. 10.08.99 – Aptes. Samia Mussa El Orra e outra; Apda: Mallory 0 DJ SP I 22.09.99, p. 34 – ementa oficial)


BIBLIOGRAFIA

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GOMES, Marcelo Kokke. Responsabilidade civil dano e defesa do consumidor. Belo Horizonte:Del Rey,2001.

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IOB. Revista de jurisprudência. n. 21. São Paulo. nov. 1998.

MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor.4.ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002

MATTOS, Francisco José Soller de. O princípio da boa-fé no Código de Defesa do Consumidor. In: Jus Navigandi, n. 44, 1996. Disponível em: < jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=709">http://jus.com.br/revista/doutrina/texto.asp?id=709 > Acesso em:02.dez.2002.

NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Aide, 1991.

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SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo: Saraiva, 2002.

SOUZA, Rogério de Oliveira. Da inversão do ônus da prova. Doutrinas ADCOAS. São Paulo: Esperança, n. 10, p.260-265, 2000.


Autor


Informações sobre o texto

Monografia apresentada à banca da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, como exigência parcial para obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação do professor mestre Francisco José Soller de Mattos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITTO, Marcos Roberto Socoowski. A importância da boa-fé como norma de conduta e instrumento de harmonização entre as partes na relação de consumo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 93, 4 out. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4271. Acesso em: 28 mar. 2024.