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Democracia deliberativa de Habermas e Rawls

Democracia deliberativa de Habermas e Rawls

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Ambas as teorias analisadas assinalam a necessidade de superação do pluralismo político pelas vias da democracia, da legalidade e da discussão entre cidadãos livres e iguais num ambiente institucionalizado.

Resumo: O seguinte artigo possui a finalidade de estabelecer uma analogia entre a teoria democrática deliberativa de Jürgen Habermas e a de John Rawls destacando os pontos convergentes e divergentes entre os notáveis pensadores. A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica dedutiva tendo como base obras capitais de Rawls e Habermas, além de diversos textos de seus comentadores. O trabalho foi dividido em diversas partes. Na primeira delas, nomeada O que é Democracia, far-se-á uma breve introdução ao conceito de democracia, diferenciando a democracia direta da indireta e dissertando sobre alguns critérios assegurados por Robert Dahl que caracterizam o ambiente democrático. No segundo item, chamado Democracia deliberativa, dar-se-á um conceito inicial da categoria tomado da filosofia de Aristóteles. No tópico A democracia deliberativa de Jürgen Habermas, falar-se-á sobre o modo com que o referido pensador concebe a política deliberativa. Aí se enfatizarão os conceitos de esfera pública, democracia liberal, democracia republicana, bem como poder administrativo e poder político. O quinto item, Democracia deliberativa de John Rawls, estabelecerá um contraponto de algumas ideias habermasianas sobre a democracia deliberativa, principalmente no que tange às diferenciações entre a esfera pública habermasiana e a posição original de Rawls. Finalmente se conclui que as teses de democracia deliberativa de Rawls e Habermas não possuem apenas pontos divergentes, mas também convergentes, por exemplo, a ideia de decisão coletiva. Além disso, ambas as teorias assinalaram a necessidade de superação do pluralismo político pelas vias da democracia, da legalidade e da discussão entre cidadãos livres e iguais num ambiente institucionalizado.

Palavras- chave: Democracia deliberativa. Esfera pública. Posição original.


Introdução

No ano de 1995 o Journal Of Philosophy publicou uma série de artigos em que o filósofo alemão Jürgen Habermas e o estadunidense John Rawls debatiam o processo político democrático deliberativo. A partir destes textos foram criadas diversas analogias entre estes pensadores, ora creditando a verdade para Habermas, ora para Rawls. O trabalho que aqui se apresenta também tem o objetivo de enfatizar as divergências e convergências entre os dois filósofos citados, todavia não pretende dizer qual possui a verdade em suas assertivas, tampouco esgotar o tema ao longo de suas páginas. Para que fosse possível discorrer sobre o assunto foi utilizada pesquisa bibliográfica e raciocínio dedutivo. Foram realizadas leituras críticas de obras de John Rawls, Jurgen Habermas, bem como uma série de textos que comentam e simplificam as obras dos filósofos aqui estudados.  Ainda por razões metodológicas o artigo foi divido em diversas partes. Na primeira delas (O que é Democracia) se falará sobre as ideias iniciais que definiram a democracia dando atenção especial a concepção grega, se preocupando também em diferenciar a democracia direta da democracia indireta. A segunda parte (Democracia deliberativa) conceitua muito brevemente a democracia deliberativa segundo a filosofia política de Aristóteles. A terceira parte (A democracia deliberativa de Jürgen Habermas) dissertará sobre o modo como o filósofo alemão concebe a política deliberativa enfatizando os conceitos de esfera pública, democracia liberal, democracia republicana, bem como poder político e poder administrativo. A quarta parte (Democracia deliberativa de John Rawls) fará um contraponto de algumas ideias habermasianas dissertando sobre a teoria de democracia deliberativa de Ralws principalmente no que tange as diferenciações entre a esfera pública habermasiana e a sua ideia de posição original. Por término se concluirá que não apenas de divergências existem os modelos democráticos de Rawls e Habermas. Deixando de lado a questão de responder quem está certo e quem está errado, se notará que tanto os conceitos deliberativos de Habermas quanto de Rawls apontam para uma superação do pluralismo político e a busca por um consenso baseado na liberdade e igualdade entre os cidadãos mesmo que esta finalidade siga caminhos diversos.


O que é Democracia

A origem etimológica da palavra democracia provém do grego antigo demos ou povo, mais kratos ou poder, de modo que o seu significado literal é poder do povo ou poder popular. A expressão é contrária a aristokratia, ou seja, ao poder regido por uma aristocracia. Configura um regime de governo caracterizado pela participação popular igualitária na criação das leis, bem como no desenvolvimento das mesmas no interior da sociedade. É o poder de governar por meio do sufrágio universal em oposição ao sufrágio restrito.

É sabido que apesar da origem grega da palavra democracia a concepção desta forma de governo entre os gregos em muito difere da nossa atual ideia de democracia. Em Atenas, a polis considerada o berço da democracia no mundo ocidental, as mulheres não tinham direitos políticos, pois estes eram conferidos apenas aos homens e aos filhos de pais e mães nascidos em Atenas, bem como os maiores de 21 anos. Ao ser restrita a apenas uma parcela da população, a democracia ateniense violava o próprio sentido da palavra.

Com o desenvolver da história a democracia renovou suas feições de modo que se tornou mais complexo definir o que seja, mas são notáveis algumas características desde os seus primórdios, tais como a liberdade e o respeito pela vontade das maiorias que tem o poder de decisão. A democracia também passou a assumir diversas formas, tais como a democracia direta e a democracia indireta.

Por democracia direta, como fora a democracia ateniense se pode compreender aquela em que os cidadãos participam diretamente do processo de criação das leis, do desenvolvimento do governo e demais questões de foro público. Nesta forma de democracia – a mais primitiva – o povo não delega o seu poder de tomar decisões a outrem. Japiassú e Marcondes[1] definem a democracia direta como aquela em que o poder é exercido pelo povo sem intermediário. Haveria ainda a democracia indireta ou representativa quando o povo delega o seu poder de tomar a decisão a um grupo de membros, e a democracia autoritária em que este poder é conferido a apenas uma pessoa por tempo determinado ou de modo vitalício.  Certamente para os padrões atuais brasileiros, a democracia autoritária não seria considerada uma forma genuína de democracia, porém esta forma de governo existe em alguns países que se autointitulam democráticos.

A democracia é sem dúvida, a forma política de governo que mais confere autonomia ao povo de modo a impedir a instalação da ditadura, da oligarquia, do governo absolutista. Robert A. Dahl[2] observa que no complexo de ideias que envolvem a democracia é necessário a obediência de certos critérios a um processo democrático quais sejam a participação efetiva, a igualdade de voto, o entendimento esclarecido, o controle do programa de planejamento, e inclusão de adultos. A participação efetiva é a oportunidade de dar a conhecer aos outros qual a sua opinião acerca da política a ser adotada, a igualdade de voto, como assinala o próprio nome diz que não basta haver a participação efetiva, é necessário que no momento de tomada de decisão os votos sejam contabilizados com igual peso. Por entendimento esclarecido, se quer dizer que dentro dos limites razoáveis cada membro tem o direito de conhecer a matéria que será votada, as alternativas políticas mais relevantes e as implicações das mesmas. O controle do planejamento do programa seria a capacidade de cada membro de decidir as pautas que serão postas em discussão e isso faz com que os critérios anteriores jamais sejam finalizados, pois a cada discussão novas pautas e novos projetos surgem para serem aprovados ou vetados pela coletividade. O último critério proposto por Dahl é a inclusão de adultos. Quer dizer que todos os adultos residentes de forma permanente devem ter o direito de cidadania garantido observando-se os critérios anteriores de processo democrático.

Os critérios propostos por Dahl são necessários á medida que se um deles for violado não haverá a igualdade política sem a qual não é possível que se estabeleça a democracia efetivamente. A exemplo disso, podemos notar que caso um membro do grupo tenha maior poder de tomar decisão e que seu voto pese além do votos dos demais, sua opinião irá provavelmente prevalecer sobre as demais, o que fere os critérios de participação efetiva e igualdade de voto.

Dados os critérios para a construção de um processo democrático resta dizer que a democracia possui vantagens em relação a outras formas de governo que também são apontadas por Robert A. Dahl[3]. Ele menciona: evita a tirania, garante direitos essenciais, liberdade geral, autodeterminação, autonomia moral, desenvolvimento humano, proteção dos interesses pessoais essenciais, igualdade política, a busca pela paz, a prosperidade. Verdadeiramente, da maneira como está exposta a democracia na obra de Dahl e se a realidade fosse condizente com tudo isso, estaríamos vivenciando um paraíso democrático em que as mais relevantes tomadas de decisão seriam provenientes da coletividade consciente e participativa. Contudo, é sabido que no que concerne a democracia há especial discrepância entre a teoria e a prática de tal modo que não há no mundo um só país que não se autointitule democrático por mais que seja de conhecimento público e notório a vedação aos critérios do processo que leva a efetiva democracia e seu exercício. Atualmente as democracias são indiretas e é criticável se os representantes realmente atendem aos anseios da população o que dá azo a uma crise de representatividade, consequentemente uma crise de democracia.

Neste quadro de crise dos institutos democráticos, estão sendo pensadas alternativas ao modo vigente de democracia tanto em teoria quanto na prática. É a chamada democracia deliberativa que tem como principais expoentes os filósofos John Rawls e Jürgen Habermas que mais a frente serão discutidos.

Democracia deliberativa

Segundo Aristóteles[4] a democracia deliberativa se funda na prudência. É por meio dela que é possível estabelecer um diálogo racional entre cidadãos e a partir disso deliberar em sua decisão coletiva. O filósofo de Estagira não diferencia bruscamente prudência de razão prática ou ação política, mas reconhece que se diferem em sua essência, pois enquanto a razão prática (ou prudência) se dirige ao agir individual, a ação política se orienta em direção a sociedade. A democracia deliberativa seria portanto, uma forma de governo que direciona as ações do homem para a sua finalidade que é a de alcançar a felicidade. Esta finalidade não deve se dar de outra maneira a não ser buscando o bem comum a todos os membros da sociedade, “(...) as constituições cujo objetivo é o bem comum são corretamente estruturadas, enquanto aquelas que visam apenas ao bem dos próprios governantes são todas defeituosas[5]”.

Contemporaneamente a questão de democracia deliberativa é resgatada pelo americano John Rawls e o alemão Jürgen Habermas com as diferenciações que estudaremos, porém ainda são válidas as bases conceituais lançadas por Aristóteles.

Democracia deliberativa de Jürgen Habermas

O Professor José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins[6] inicia a introdução de um de seus estudos sobre a democracia na filosofia de Habermas afirmando que era contemporânea a ciência inspirada no iluminismo dita as regras independentemente de conceitos éticos, de modo que se é possível comprovar uma teoria pelo método científico, esta teoria deve automaticamente ser considerada como a correta, válida, universal. Esta ciência, este modo de pensar se constrói com base na razão instrumental que leva á homogeneização dos indivíduos adequando todos ao seu modelo de pensamento e eliminando as eventuais diferenças que inevitavelmente existem entre os indivíduos. Martins assevera que há um uso abusivo da razão instrumental cujo ápice mais recente foi o nazismo alemão simbolizado pelo campo de Auschwitz onde uma parcela da população por seu desencaixe aos padrões estabelecidos foram privados de seus direitos políticos e sumariamente eliminados pelo Estado instituído.

É com o objetivo de discutir o uso da razão instrumental, propor a razão dialógica e sobretudo superar o pluralismo político que o filósofo alemão reformula a teoria deliberativa da democracia que tem a pretensão de fechar as lacunas deixadas por outras formas de democracia não- discursiva. Em A Inclusão do Outro[7] Habermas apresenta o conceito de política deliberativa.  Esta política deliberativa é alicerçada com base nas condições de comunicação durante o processo de tomada de decisão, o processo deliberativo. À democracia deliberativa, Habermas contrapõe outros dois modelos, a democracia liberal e a democracia republicana sob a ótica das ideias de “cidadão do Estado” e “direito”[8]. O que diferenciaria estas formas de democracia seria a compreensão do papel do processo democrático. Na democracia liberal o papel do processo democrático é programar o Estado para atender aos interesses sociais. Desta maneira a política deveria ser interpretada como entidade que tem a função de por meio do aparelho estatal impor os interesses sociais. Há pois, uma função mediadora que visa perpetuar interesses sociais se utilizando da administração pública.

A concepção de democracia republicana diferentemente da liberal não coincide a política com a função mediadora. A política seria o que Habermas[9] chama de medium. Neste medium:

Os integrantes de comunidades solidárias surgidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações preexistentes de reconhecimento múto, transformando-as de forma voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e iguais.

Se na concepção liberal da política e da democracia há como fontes de integração social uma instância reguladora do poder estatal, e um instancia reguladora descentralizada do mercado, a concepção republicana possui além destas, a solidariedade, que por sua vez pode ser entendida como estabelecimento da vontade política que terá a finalidade de estabelecer o consenso mútuo por meio do uso da comunicação.

Como bem enfatiza o Professor Jorge Adriano Lubenow[10] do Departamento de Filosofia da UFPI o modelo de democracia republicana tal como analisado por Habermas dá primazia a reflexão e conscientização dos atores sociais livres e iguais, conscientização esta que servirá para construir para formar a opinião, a vontade e a solidariedade social.  A política não se subordina aos procedimentos mercadológicos, mas sim às estruturas de comunicação pública praticadas num espaço público.

Das divergências entre a democracia liberal e a republicana surgem outras diferenciações. A primeira delas é a concepção de cidadão do Estado. Para a democracia liberal os cidadãos do Estado são aqueles que podem gozar de direitos individuais em face ao Estado e em face aos demais cidadãos.[11] Há uma espécie de pacto em que estes cidadãos contam com a defesa estatal sob a condição de estarem dispostos a defenderem – nos limites impostos pelo Estado – os interesses próprios, sendo que isto geralmente se refere a se defender de manifestações do Estado que excedam aquelas previstas em lei. Para o modelo republicano o cidadão do Estado tem como direitos de comunicação e participação direitos positivos, contrariamente ao liberal que toma estes direitos como subjetivos ou negativos. Além disso, em face a coação externa, os direitos positivos do cidadão não são garantidores de liberdade, mas tão somente nos casos em que há uma práxis comum que por sua vez tornaria estes cidadãos livres e iguais. Neste sentido, conforme afirmação de Habermas a política teria apenas a função de controlar o poder do Estado, pois ao exercerem seus direitos e liberdades os cidadãos se antecipariam á própria política estatal.

As análises de democracia liberal e republicana também revelam outro ponto polêmico, o conceito de direito:

Em uma concepção liberal, o sentido da ordem jurídica consiste em que ela possa dar em cada caso individual quais são os direitos cabíveis a quais indivíduos; em uma concepção republicana esses direitos subjetivos se devem a uma ordem jurídica objetiva, que possibilite e garanta a integridade de um convívio equitativo, autônomo e fundamentado sobre o respeito mútuo. [12]

A concepção de direito liberal é construída tendo como base os direitos subjetivos, enquanto que na concepção de direito republicana se dá primazia ao teor objetivo, positivo destes mesmos direitos.

A terceira questão analisada por Habermas na discussão entre os dois modelos de democracia é sobre a natureza do processo político. A concepção liberal entende que a política é uma luta que tem a finalidade de conquistar o poder administrativo. Aí a formação da vontade se dá pela concorrência estratégica entre os agentes políticos agindo para a tomada de poder. As tomadas de decisões por parte de eleitores tem o mesmo teor da estrutura de mercado. Há um modelo estratégico para a conquista do voto e um modelo semelhante para a conquista do poder após a eleição. No plano da democracia republicana a formação da vontade e da opinião política não está subordinada a estrutura do mercado, mas as estruturas de uma comunicação pública em esfera pública em que o paradigma não está no mercado, mas na interlocução entre os cidadãos. Neste contexto surge uma diferenciação entre o poder comunicativo e o poder administrativo. O poder comunicativo se origina da comunicação política na forma de opiniões majoritárias, enquanto o poder administrativo provém do aparelho estatal.

            A democracia deliberativa se constitui a partir de elementos da concepção liberal e da republicana reformulando conceitos em favor de um procedimento ideal para a deliberação e tomada de decisão[13]. No que tange a normatividade, o modelo de democracia deliberativa é intermediário, não sendo tão normativo quanto o modelo liberal e menos normativo que a concepção republicana. É notável também que os três modelos; liberal, republicano, deliberativo, possuem uma teoria discursiva da democracia. Segundo Habermas[14] na política os discursos de auto- entendimento mútuo são de extrema importância, pois por meio deles os cidadãos tomam consciência de sua posição na sociedade. Nesta discussão há também um valor de construção de identidade coletiva.

Verdadeiramente a política deliberativa só poderá existir no mundo fático quando se faz uso da pluralidade de formas de comunicação onde se constituirá uma vontade em comum, tanto pelo auto-entendimento mútuo de caráter ético quanto pela busca pelo equilíbrio entre os mais díspares interesses. O que se visa em tudo isso é chegar num acordo em que seja pesados a coerência jurídica, a finalidade específica, e o seu fundamento moral.

Todos os modelos de democracia tem uma forma de institucionalizar a opinião pública. Na política deliberativa esta institucionalização se dá pela comunicação em condições que permitam chegar a resultados racionais. Uma destas condições é a existência de uma esfera pública que será o palco para as discussões. Sua definição mais conhecida está na obra Direito e Democracia[15] onde a esfera pública (ou espaço público) é tida como um espaço irrestrito de comunicação e deliberação pública. Nesta esfera os elementos constitutivos não podem ser antecipados, restritos. Também não pode ter limites geográficos, pois não representa um local específico. Outro ponto interessante é a não exclusão ou inclusão de pautas a serem discutidas, ou seja, pelo menos a primeiro momento tudo é passível de ser comunicado, contudo ora ou outro a esfera pública sofre autoeliminação de modo a não permitir que sejam aceitas manifestações do tipo qualquer, que sejam nocivas a própria esfera pública.

A democracia deliberativa, ou política deliberativa extrai sua força legitimadora da estrutura discursiva de um processo deliberativo da formação da opinião e vontade pública.[16] Se espera que com as discussões acontecidas no âmbito da estrutura discursiva, ou seja, na esfera pública sejam produzidos resultados racionais.

É inegável que a concepção procedimentalista democrática deliberativa de Habermas está intrinsecamente relacionado a ideia de esfera pública, e justamente este será o ponto mais debatido entre Habermas e John Rawls como veremos adiante.

Democracia deliberativa de John Rawls

Enquanto a esfera pública de Habermas cria uma estrutura ilimitada de discussões, incluindo discursos religiosos, econômicos, filosóficos, políticos, a o modelo de discussão  idealizado por John Rawls restringe as discussões á política, deixando de lado questões morais, religiosas, metafísicas, etc. em prol de uma filosofia política autossustentável[17].  Contrariamente a Habermas, Rawls é um contratualista. Em seu livro Uma Teoria da Justiça [18]chega a definir sua tese como uma abstração maior da teoria formulada pelos contratualistas clássicos J. J Rousseau e John Locke.

Fabrício Ganen e Bernardo Zettel[19] relembram que segundo a teoria rawlsiana, as sociedades modernas se caracterizam pela existência de grandes doutrinas divergentes, porém razoáveis em que todos os cidadãos baseiam suas convicções filosóficas, religiosas, morais, etc. Quando existissem doutrinas desarrazoadas o sistema previamente estabelecimento deveria contê-las de modo a garantir que não atrapalhassem a unidade e a justiça na sociedade.

É sabido que a esfera pública deliberativa é o cerne da democracia deliberativa de Habermas. Em Rawls, entretanto, analogicamente esta esfera se transforma no que ele próprio chama de posição original. Se trata de um cenário hipotético em que ocorrerá o contrato social formado por cidadãos que gozem de igualdade e liberdade. É situação imaginária em que os cidadãos atendendo a determinados requisitos deliberarem sobre as pautas políticas.

Um dos requisitos para a posição original há o véu de ignorância que tem por fim não permitir que os deliberantes tenham mais conhecimento que o estritamente necessário tanto quanto em relação as partes quanto em relação a elas mesmas. Na posição original o conhecimento não deve ultrapassar ao necessário para que seja mantida a racionalidade das deliberações. Estando as pessoas numa posição de ignorância em que não sabem quais as vantagens que poderão obter tanto para elas quanto para outrem estariam aptas a deliberar. O véu da ignorância é então um ponto chave para a legitimação moral dos princípios da justiça que irão nortear o convívio social.

Na concepção deliberativa de Habermas se chega a um acordo por meio da comunicação em esfera pública, já para Rawls[20] o consenso seria obtido por meio da razão pública. Quando se fala em consenso estamos nos referindo a consenso sobreposto, ou seja, ao modo como as doutrinas divergentes razoáveis podem conquistar um acordo sobre a concepção política de justiça sem se ater a concepções morais, religiosas, e qualquer outra que não seja estritamente política.

A razão pública, por sua vez, é o que justifica o consenso. É um dos fundamentos para a ordem constitucional democrática que externa os valores políticos e morais que deverão nortear o governo democrático, a relação entre os cidadãos e o governo e ainda a relação dos cidadãos entre si. É um fator que irá limitar a escolha dos princípios de justiça e princípios constitucionais essenciais e também um dos três fundamentos da justiça como equidade, juntamente com o equilíbrio reflexivo e a posição original sob o véu de ignorância. O equilíbrio reflexivo justifica os princípios da justiça a partir de juízos morais convergentes da cultura pública de uma sociedade democrática [21].

Compreende a razão pública os elementos constitucionais essenciais, como as liberdades e direitos básicos, distribuição de recursos e deveres sociais. A partir desta delimitação Rawls retira do debate sobre democracia fundamentos que sejam baseados apenas numa determinada doutrina razoável. Enquanto que para a esfera pública deliberativa de Habermas é possível discutir-se a priori todos os assuntos e buscar comunicativamente soluções das mais diversas, a posição original de Rawls por meio da razão pública limita as soluções de maneira que somente valores políticos devem ser utilizados para resolver questões fundamentais, como por exemplo dizer quais são os que tem direito ao voto, quais manifestações religiosas podem ser toleradas, quem deve ser responsável por garantir a igualdade equitativa, quem não poderá ser responsabilizado juridicamente. São questões que especificam o objeto próprio da razão pública.

A teoria democrática deliberativa de John Rawls é fortemente influenciada pelo liberalismo sendo que sua obra é uma das mais debatidas atualmente no campo da filosofia política juntamente com a obra de Habermas. Sua filosofia política como um todo costuma ser denominada de liberalismo igualitário. É alvo de críticas, desdobramentos e aperfeiçoamentos.


Considerações finais

O debate sobre a democracia travado entre Habermas e Rawls é complexo e levanta inúmeras questões que se pormenorizadas se prolongariam por páginas e mais páginas, contudo ao se analisar os dois modelos de democracia deliberativa não se encontra apenas divergências. Ambas as teorias visam superar o pluralismo político e levar por meio das discussões e do uso da razão ao consenso, mesmo que para tanto adotem caminhos diferentes. De fato, tanto Rawls quanto Habermas fundam suas concepções em busca de um modelo que justifique o pluralismo, a imensurável quantidade de ideias religiosas, morais, e filosóficas que levam a conflitos e são não raro, inconciliáveis. Ambos procuraram fundamentar normativamente uma comunidade formada por cidadãos iguais e livres, mas também esclarecidos e subordinados ao sistema jurídico vigente.

Não cabe aqui dizer qual dos dois grandes pensadores está correto em suas assertivas, mas é possível vislumbrando os interesses de ambos e os pontos convergentes afirmar que a definição de democracia está sempre relacionada aos conceitos de cidadania e de decisão coletiva. Os filósofos Habermas e Rawls são uníssonos quanto ao entendimento da decisão coletiva: Uma decisão é coletiva quando é tomada em um modelo institucionalizado (a esfera pública em Habermas, a posição original em Rawls) por pessoas livres, iguais e sob condições adequadas para a argumentação pública.

A grande divergência entre Rawls e Habermas é em relação à instância em que os procedimentos democráticos serão justificados normativamente. Em Habermas, há uma radicalização da democracia influenciada em parte pelo marxismo, enquanto em Rawls há uma concepção de democracia relacionada ao liberalismo. Seja como for, pode-se perfeitamente concluir que as teorias democráticas deliberativas desses dois pensadores assinalaram a superação do pluralismo político e os eventuais conflitos que dele decorrem de maneira pacífica e pelas vias legais.


Referências

 

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_________________. Direito e democracia: entre validade e facticidade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, 2ª ed. V. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

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RAWLS, John. Justiça como equidade. Trad. Almiro Piseta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes.

___________. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Piseta, Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes.

SILVEIRA, Denis Coutinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. In: Filosofia Unisinos, V. II, 67. Pelotas: Unisinos, Jan/2009

 


Notas

[1] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. 4ªed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2006, p. 67

[2] DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Trad. Beatriz Sidou, 2ª ed. Editora da UnB, 2001, p. 54

[3] Ibidem, p. 57

[4] Ibidem p. 3

[5] ARISTÓTELES. Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. 3ªed., São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[6] MARTINS, José Eduardo Figueiredo de Andrade. Habermas, democracia, legitimidade e teoria discursiva do direito. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3326, 9 ago. 2012. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/22376>. Acesso em: 3 jul. 2015.

 

[7] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. 2ªed. São Paulo: Humanística, 2004, p. 277-278.

[8] Idem.

[9] Ibidem, p. 278

[10] LUBENOW, Jorge Adriano. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas. Modelo teórico e discursos críticos, In: Scielo, Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2010000100012&script=sci_arttext. Acesso em: 05/julho/2015.

[11] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. 2ªed. São Paulo: Humanística, 2004, p. 279

[12] Ibidem, p. 281

[13] LUBENOW, Jorge Adriano. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas. Modelo teórico e discursos críticos, In: Scielo, Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2010000100012&script=sci_arttext. Acesso em: 05/julho/2015.

[14] HABERMAS, Jurgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. 2ªed. São Paulo: Humanística, 2004, p. 285

[15] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia: entre validade e facticidade. Trad. Flávio Beno Siebeneichler, 2ª ed. V. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 230-232

[16] LUBENOW, Jorge Adriano. Esfera pública e democracia deliberativa em Habermas. Modelo teórico e discursos críticos, In: Scielo, Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-512X2010000100012&script=sci_arttext. Acesso em: 05/julho/2015.

[17] GANEN, Fabrício F; ZETTEL, Bernardo. John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista. In: Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/22657/john-rawls-e-jurgen-habermas-dois-projetos-deliberativos-para-uma-democracia-pluralista. Acesso em: 05/julho/2015

[18] RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. Trad. Almiro Piseta, Lenita M.R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 68

[19] GANEN, Fabrício F; ZETTEL, Bernardo. John Rawls e Jürgen Habermas: dois projetos deliberativos para uma democracia pluralista. In: Jus Navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/22657/john-rawls-e-jurgen-habermas-dois-projetos-deliberativos-para-uma-democracia-pluralista. Acesso em: 05/julho/2015

[20] RAWLS, John. Justiça como equidade. Trad. Almiro Piseta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes p. 174, 2001

[21] SILVEIRA, Denis Coutinho. O papel da razão pública na teoria da justiça de Rawls. In: Filosofia Unisinos, V. II, 67. Pelotas: Unisinos, Jan/2009, p. 65-79

 



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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NASCIMENTO, Diogo de Carvalho. Democracia deliberativa de Habermas e Rawls. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4466, 23 set. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42980. Acesso em: 29 mar. 2024.