Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/43596
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis

O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis

Publicado em . Elaborado em .

Analisa-se a jurisprudência do STF quanto ao controle jurisdicional do processo legislativo, tendo como parâmetro os regimentos internos das Casas Legislativas.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por propósito empreender uma análise dos fundamentos e premissas da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em sede do controle jurisdicional do processo legislativo tendo como parâmetro os regimentos internos das Casas Legislativas.

Para atingir tal intento, a formulação da chamada “teoria dos atos interna corporis”, delineada pela jurisprudência da Corte Suprema desde a década de 1950, será objeto de estudo, a fim de que sejam apresentados os seus fundamentos básicos. Ademais, o hodierno entendimento pretoriano sobre o controle do processo legislativo será explorado, sob o viés prático, a partir de estudo de caso relativo ao julgamento da ADI nº 4.425/DF.

Uma vez realizada a sua delimitação metodológica, as premissas elementares da doutrina dos atos interna corporis e seus efeitos práticos no modelo do Estado Democrático de Direito estabelecido pela Constituição da República serão analisados sob duas perspectivas: o procedimentalismo capitaneado por Jürgen Habermas (em "Direito e democracia: entre facticidade e validade") e John Hart Ely (em "Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade") e a proposta de revalorização do Poder Legislativo capitaneada por Jeremy Waldron em suas obras “A dignidade da legislação” e “Law and Disagreement”.


1. A TEORIA DOS ATOS INTERNA CORPORIS E OS LIMITES DO CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO LEGISLATIVO SEGUNDO O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

1.1. Breve histórico sobre a admissibilidade do controle judicial dos atos parlamentares na doutrina pátria

De se mencionar que a questão atinente aos atos interna corporis e a (im)possibilidade de controle judicial dos ditos atos parlamentares permeia a história do direito constitucional brasileiro e da Suprema Corte.

A chamada doutrina dos atos interna corporis, tradição que remonta ao direito parlamentar inglês[1], constitui-se uma modalidade específica da doutrina das “questões políticas”, debatida no Supremo Tribunal Federal desde os primórdios da República brasileira no tocante aos limites do Judiciário para apreciar atos de natureza política emanados dos Poderes Executivo e Judiciário[2]

Ainda no início do século XX, diante do questionamento da regularidade da delegação legislativa veiculada no art. 2º da Lei nº 741, de 26 de dezembro de 1900[3], face à suposta violação ao regimento interno das Casas Legislativas, juristas da extirpe de Rui Barbosa, Afonso Celso de Assis Figueiredo (Visconde de Ouro Preto) e Amphilophio Botelho Freire de Carvalho “foram unânimes em afirmar a competência exclusiva do Poder Legislativo para verificar o acerto ou desacerto de seus próprios atos”[4].

Na oportunidade, concluiu o Visconde de Ouro Preto que eventual inobservância do regimento interno no procedimento de deliberação e aprovação de uma lei, não resulta na nulidade do ato normativo, uma vez que as disposições regimentais têm por propósito a regulação de assuntos internos das Casas Legislativas, in verbis:

O regimento interno dos dois ramos do Congresso regula a marcha dos respectivos trabalhos em cada uma das Câmaras. Sua inobservância, porém, por parte de alguma delas, na adoção de qualquer resolução legislativa, não tira a esta a força obrigatória, atento o disposto no art. 18, parágrafo único, alínea 4º, da Constituição Federal [...] A cada uma das Câmaras exclusivamente cabe entender e executar, como julgar acertado, a sua lei interna.[5]

A seu turno, Amphilophio Botelho Freire de Carvalho assevera que a contrariedade à regra regimental somente terá relevância quando houver violação à preceito ou garantia de índole constitucional.

Os regimentos das Casas Legislativas são leis internas, que só têm por objeto regular os serviços respectivos, no tocante a cada uma delas; e, desde que da transgressão daqueles não resulte violação de preceito ou garantia constitucional, não há como pôr em dúvida a força obrigatória das leis em cujo processo de elaboração se tenham verificado as transgressões.[6]

Rui Barbosa, ao tratar sobre o assunto, demonstra preocupação quanto à observância de um procedimento legislativo substancialmente democrático, concluindo, contudo, que a mera contrariedade às regras regimentais não macula o ato normativo gerado.

São atos sucessivos, que se concretizam materialmente: a deliberação, a sanção, a promulgação, a publicação. A Justiça tem de conhecer-lhes da existência, para conhecer da existência da lei. Mas não exerce, a tal respeito, a menor função discricionária. A Constituição traçou, nos arts. 36 a 40, as regras de elaboração legislativa impostas aos três fatores, de cuja cooperação depende a formação legítima das leis. Se algumas dessas regras for materialmente conculcada, ou postergada, e dessa infração se conservar a prova autêntica nos próprios atos do Congresso ou do Governo, destinados a atestar a deliberação, a sanção, a promulgação, lei não há, porque sua elaboração não se consumou. Os tribunais, portanto, não podem aplicá-la.

Em uma palavra, toda contravenção material das formas constitucionais, autenticamente provada, no processo de elaboração legislativa, vicia e nulifica o ato do legislador. Não assim a simples violação de formas regimentais.[7] [grifou-se]

Em parecer lavrado no ano de 1923, ainda sob a égide da Constituição republicana de 1891, o Deputado Francisco Campos, na relatoria da Comissão de Constituição e Justiça na Câmara dos Deputados, ao tratar sobre a inviolabilidade dos parlamentares no exercício do mandato, sustentou a impossibilidade de o Poder Judiciário imiscuir-se no processo interna corporis de elaboração das leis, exceto nos casos de flagrante violação à disposição constitucional.

[...] interna corporis são todas as regras ou disposições interiores ao corpo legislativo, isto é, as prescrições destinadas a disciplinar o seu funcionamento, sejam elas instituídas no próprio regulamento interno ou na mesma Constituição. Ou, por outra, são aquelas regras de que o corpo legislativo é, a um só tempo, o destinatário e o juiz: o destinatário, porque o mandamento se dirige ao órgão ou á parte dele encarregada de dirigir o seu funcionamento, e o juiz, porque as questões referentes à sua observância são por ele próprio soberanamente resolvidas, de acordo com o processo estabelecido no seu próprio regimento.

[...]

[As matérias interna corporis], embora reguladas em leis ou na Constituição, já se acham confiadas à competência de outro Poder, e não se pode admitir, dado o princípio da separação dos Poderes, duas competências atribuídas a Poderes distintos sobre o mesmo objeto [logo] todas as questões relativas ao funcionamento das Assembleias Legislativas hão de ser, forçosamente, por elas próprias resolvidas, antes de tomadas as suas deliberações. À Câmara, pois, desde que lhe cabe deliberar, há de caber, necessariamente, a competência indispensável para verificar a regularidade do processo de suas deliberações.

[...]

Uma vez decidida pela Câmara uma dessas questões que lhe são interiores, se se facultasse ao Poder Judiciário abrir nova sindicância sobre a matéria, para rever a decisão, seria reduzir a nada a competência constitucional da Câmara, submetendo-a ao controle do Judiciário, que seria o único juiz da regularidade do processo legislativo, em contravenção ao princípio da autonomia e da separação dos Poderes.[8] [grifou-se]

Sob os auspícios da Constituição de 1946, Themístocles Brandão Cavalcanti, na obra “Do Controle de Constitucionalidade”, procura delimitar a abrangência das questões interna corporis a partir das limitações impostas pelo texto constitucional ao Poder Legislativo, uma vez que quando “o legislador ordinário tem a sua ação disciplinada e limitada por uma norma constitucional, perde a questão o seu caráter político e deixa de constituir interna corporis, para definir-se a competência judiciária”[9].

Para o jurista, é mister traçar uma distinção entre a imunidade que incide sobre o exercício do poder político do Congresso e o dever de obediência jurídica às formalidades procedimentais estabelecidas na Constituição que, consequentemente, implica em limitação à atividade legislativa. Destarte, “desde que uma disciplina constitucional limita a competência de um Poder, na escolha dos meios ou da forma de proceder, deixa a questão de ser política, para subordinar-se ao exame judicial”, de modo que, “a competência nunca é absoluta, o arbítrio não se cobre com a competência, que encontra limites no próprio poder concedido e na forma regulada pelo Estatuto Fundamental”[10].

Portanto, para Themístocles Cavalcanti, questões intestinas do Poder Legislativo que não encontrem expressa regulação constitucional estão infensas ao controle judicial, tais como “contagem dos votos, os debates e discussões havidas no curso da elaboração”[11] do ato normativo. 

Já na vigência da Constituição Federal de 1967, em sua clássica obra "Do Processo Legislativo", cuja primeira edição circulou em 1968, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em consonância com as conclusões de Themístocles Brandão, pontua:

Questão que não pode ser posta de lado é a relativa ao controle jurisdicional da observância do processo legislativo.

Em primeiro lugar – lembre-se – cabe a propósito dele o controle de constitucionalidade. A violação de preceito constitucional, mesmo de caráter estritamente formal, importa em inconstitucionalidade e, portanto, seguindo a doutrina clássica, em nulidade do ato violador.

Por outro lado, no Direito pátrio, nenhuma lesão de direito individual pode ser subtraída à apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, da Constituição). Apreciando eventual lesão, pode evidentemente chegar o Judiciário a apreciar a validade do ato normativo, e esta depende da observância dos preceitos constitucionais referentes à sua elaboração.

E pode até o Judiciário descer à apreciação do respeito às normas regimentais, segundo entende, por exemplo, a Corte Constitucional italiana. Esta, conforme relata Biscaretti de Ruffia, julgou-se competente para apreciar os atos interna corporis das Câmaras quando concernentes à formação das leis. Aqui, porém, é forçoso restringir. Se a observância dos preceitos constitucionais é rigorosa, absoluta, a dos regimentos não o é. A violação regimental, por isso, é suscetível de convalidação, expressa ou implícita. Destarte, no caso das normas regimentais, o Judiciário só pode verificar se a violação desta impediu a manifestação da vontade da Câmara. Nesse caso, então, deverá reconhecer a invalidade das regras assim editadas.[12] [grifou-se]

Em sentido diverso às posições anteriormente expostas, Hely Lopes Meirelles, no contexto da vigência da Constituição Federal de 1988, considera que os atos interna corporis referem-se às “questões ou assuntos que entendem direta e imediatamente com a economia interna da corporação legislativa, com seus privilégios e com a formação ideológica da lei, que, por sua própria natureza, são reservados a exclusiva apreciação e deliberação do Plenário da Câmara”[13]. Nesse sentido, apresenta como exemplos: os atos de escolha da Mesa Diretora, o procedimento de cassação de mandatos e concessão de licença e os de utilização de suas prerrogativas institucionais (elaboração de regimento interno, organização das comissões e dos serviços auxiliares)[14].

A contrariedade do pensamento de Meirelles em relação aos posicionamentos doutrinários outrora mencionados reside em sua conclusão a respeito da possibilidade de controle jurisdicional de ato legislativo em razão do descumprimento de norma regimental, in verbis:

O que a Justiça não pode é substituir a deliberação da Câmara por um pronunciamento judicial sobre o que é da exclusiva competência discricionária do Plenário, da Mesa ou da Presidência. Mas pode confrontar sempre o ato praticado com as prescrições constitucionais, legais ou regimentais que estabeleçam condições, forma ou rito para seu cometimento.

[...]

O processo legislativo, tendo, atualmente, contorno constitucional de observância obrigatória em todas as Câmaras (arts. 59-69) e normas regimentais próprias de cada corporação, tornou-se passível de controle judicial para resguardo da legalidade de sua tramitação e legitimidade da elaboração da lei. Claro está que o Judiciário não pode adentrar o mérito das deliberações da Mesa, das Comissões ou do Plenário, nem deve perquirir as opções políticas que conduziriam à aprovação ou rejeição dos projetos, proposições ou vetos, mas pode e deve – quando se argui lesão de direito individual – verificar se o processo legislativo foi atendido em sua plenitude, inclusive na tramitação regimental. Deparando infringência à Constituição, à lei ou ao Regimento, compete ao Judiciário anular a deliberação ilegal do Legislativo, para que outra se produza em forma legal.[15] [grifou-se]

Apresentado um breve panorama a respeito dos mais representativos entendimentos doutrinários manifestados sobre a égide das diversas Constituições republicanas, é mister analisar no próximo tópico o desenvolvimento da compreensão jurisprudencial da matéria pelo Supremo Tribunal Federal.

1.2. Os constructos e fundamentos teóricos do hodierno entendimento pretoriano a respeito dos atos interna corporis

O Supremo Tribunal Federal, já sob a égide da Constituição Federal promulgada em 1988, paulatinamente, foi consolidando o entendimento no sentido da impossibilidade de consideração das normas regimentais como parâmetro de controle de constitucionalidade do processo legislativo.

Para a Corte Suprema, os problemas advindos da observância das normas regimentais deveriam ser solucionados no âmbito do próprio Poder Legislativo, porquanto tratar-se-iam de matéria interna corporis. Nesse sentido, o Judiciário só estaria legitimado a averiguar o cumprimento das disposições procedimentais de índole constitucional, ou seja, apenas e tão somente quando houver desrespeito às normas do processo legislativo contidas, de modo expresso, na Constituição Federal[16].

A identificação e delimitação metodológica da chamada “teoria dos atos interna corporis” se faz possível a partir da casuística da produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal no contexto das situações em que se admite o controle preventivo de constitucionalidade por desrespeito ao devido processo legislativo, sendo a impugnação instrumentalizada pela via do mandado de segurança[17].

Aponta Leonardo Augusto de Andrade Barbosa que a premissa geral da chamada “teoria dos atos interna corporis” foi fixada a partir do julgamento do MS nº 1.423/DF, em 1951, segundo a qual “se os argumentos articulados para impugnar ato exarado no exercício de uma atribuição legítima do Legislativo dizem respeito apenas a ‘aspectos de conveniência, oportunidade ou acerto’, não cabe ao Judiciário apreciar a questão”[18]. Contudo, no referido julgado, não foi examinada, de forma direta, as consequências jurídicas da violação de normas regimentais[19].

Por sua vez, na década de 1980, foi sendo firmado pelo Supremo Tribunal Federal o entendimento a respeito de que a interpretação de normas regimentais é atividade interna corporis[20].

De acordo com a construção pretoriana, é o mandado de segurança o instrumento adequado para a impugnação do trâmite do processo legislativo, “tendo em vista o direito líquido e certo que toca a cada parlamentar de participar de um procedimento de elaboração normativa marcado pela lisura e observância das normas que o disciplinam”[21]. Com efeito, conforme célebre formulação do próprio STF[22], são os parlamentares que detêm legitimidade ativa para o ajuizamento do mandamus, dada a qualidade de detentores de direito público subjetivo ao devido processo legislativo[23].


2. ESTUDO DE CASO: O JULGAMENTO DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 4.425/DF

Por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.425/DF, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) buscou a declaração de inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 62, promulgada em 09 de dezembro de 2009, que implicou na inserção dos §§9º ao 12 no art. 100 da Constituição Federal e do art. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Dentre as alegações formuladas, a dita Confederação pleiteou o reconhecimento de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009 por não ter sido observado rito previsto no art. 60, §2º, da Constituição da República, que exige a discussão e votação de proposta de emenda constitucional, em cada Casa Legislativa, em dois turnos. No caso, houve claro desrespeito à regra instituída no art. 362 do Regimento Interno do Senado Federal[24] que preconiza um interstício mínimo de cinco dias entre cada turno de votação.

Com efeito, na oportunidade de tramitação da Proposta de Emenda nº 12-A/2006 no Senado Federal, a votação em dois diferentes turnos deu-se mediante a realização de duas sessões realizadas no mesmo dia 02 de dezembro de 2009, com menos de uma hora de intervalo entre ambas. A observância do interstício mínimo de cinco dias foi afastada a partir da aprovação de requerimento[25] de dispensa da regra regimental com fundamento no art. 412, III, do Regimento Interno do Senado Federal[26].

Em parecer subscrito por Roberto Monteiro Gurgel Santos e Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se[27] pelo acolhimento da alegação de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009, uma vez que, in verbis:

[...] quando as duas votações de emenda constitucional são realizadas no mesmo dia, o que se verifica não é simples ofensa a preceito regimental, mas verdadeira fraude à Constituição: cumpre-se aparentemente a sua letra, mas ofende-se ao seu espírito, já que a ausência de qualquer lapso temporal entre cada turno frustra completamente o objetivo de viabilizar uma maior reflexão e debate pelos parlamentares, antes da decisão definitiva sobre um tema tão relevante.

Para o Ministério Público, a previsão de votação em dois turnos contida no §2º do art. 62 da Carta Magna tem por clara finalidade assegurar uma profunda discussão e meditação dos parlamentares para alteração do texto constitucional, sendo pertinente a existência de um razoável intervalo entre os turnos.

Valendo da proposta de Jürgen Habermas, destaca o parquet que o interstício entre os turnos de votação trata-se de um expediente que serve à ideia de democracia deliberativa, que “parte da premissa que a democracia não se esgota no respeito à regra da maioria, mas se assenta na busca, através do diálogo, de respostas adequadas e justas para os problemas sociais”.

Prosseguindo no julgamento, o Relator, Ministro Carlos Ayres Britto, sensibiliza-se com o argumento da inconstitucionalidade formal da EC nº 62 por compreender que a votação da Proposta de Emenda nº 12-A/2006 deu-se de forma meramente simbólica.

O artifício de abrir e encerrar, nu’a mesma noite, sucessivas sessões deliberativas não atende à exigência constitucional da realização de uma segunda rodada de discussão e votação, precedida de razoável intervalo até para a serenização de ânimos eventualmente exacerbados, ao lado de amadurecimento das ideias. Segundo turno que, não se limitando a uma nova e imediata votação, implica a necessidade de um tão renovado quanto amplo debate da proposta de emenda à Constituição, volto a dizer. O que demanda o encarecido espaçamento temporal, ora maior, ora menor, mas nunca num mesmo dia, ou no curso de uma única noite e, pior ainda, de mecânicos sessenta minutos.

[...]

Seja como for, a pretensa segunda rodada de discussão e votação da emenda sub judice implicou um tipo de arremedo procedimental que não tem como escapar à pecha de fraude à vontade objetiva da Constituição.

Não obstante os argumentos delineados no voto do Relator Ayres Britto, os Ministros que o sucederam na análise da ADI nº 4.425/DF afastaram a ocorrência de inconstitucionalidade formal da EC nº 62 por entenderem, em síntese, não haver afronta direta ao §2º do art. 60 da Constituição de cujo o texto não se depreende a existência de um lapso temporal entre os dois turnos de votação[28].

Em seu voto, o Ministro Luiz Fux defende a tese de que a inexistência de expressa menção a necessidade de interstício mínimo entre os turnos constitui “silêncio eloquente” da Constituição da República que, em outros pontos do texto fundamental, notadamente nos artigos 29[29] e 32[30], faz expressa alusão ao lapso temporal mínimo de dez dias entre os turnos de votação de lei orgânica dos Municípios e do Distrito Federal.

Com efeito, não cuidou o constituinte de desde logo aludir a um interstício, de modo a explicitar um espaço de tempo que servisse de parâmetro objetivo para o exame do grau de solidez da vontade política de reformar a Constituição. Poderia tê-lo feito, evidentemente, mas não o fez. Mais do que isso: não só poderia fazê-lo como de fato o fez de modo expresso, categórico e inequívoco com relação a duas outras hipóteses de processos legislativos especiais, e que guardam estrita sintonia com a hipótese agora examinada.

[...]

Este cotejo entre as normas da própria Constituição de 1988 revela dois aspectos de inegável repercussão para a solução do presente caso. Em primeiro lugar, percebe-se que o constituinte atribuiu sentidos diversos às expressões “dois turnos” e “interstício mínimo”, afastando uma possível relação de continência necessária entre aquela e esta. Em outras palavras, não é possível que se interprete a expressão “dois turnos”, mesmo sob o ângulo lógico ou teleológico, de modo a conter também implicitamente a referência a um interregno temporal mínimo entre as duas deliberações, pois ambas as expressões foram previstas de forma expressa quando pretendeu o constituinte originário a conjugação dos dois institutos no processo legislativo.

[...]

Ora, simplesmente não há qualquer indeterminação na definição do sentido e do alcance de tal cláusula, que somente exige a realização de duas etapas de discussão e de votação de proposta de Emenda à Constituição. E, do ponto de vista objetivo, tal exigência foi de fato satisfeita na aprovação da EC nº 62/09 no Senado Federal, ainda que realizados os dois turnos de modo sucessivo no mesmo dia, porquanto, a rigor, o único controle que se faria possível de ser realizado judicialmente diz respeito à hipótese de proclamarem-se duas supostas votações e debates realizados em um mesmo e único momento incindível no tempo, quando então, por absoluta impossibilidade prática, os dois turnos exigidos constitucionalmente se transmudariam em um único turno – inválido e inconstitucional, reconheça-se. Mas não é disso que se trata, como visto.

[...]

[O] cotejo entre as normas da Constituição de 1988 tornam claro que o silêncio do texto constitucional, no que concerne ao art. 60, § 2º, é um silêncio verdadeiramente eloquente, que não permite a aproximação, ainda que parcial, com o regime de interstício instituído em local diverso pelo mesmo constituinte.

Ora, se o constituinte previu não somente em uma, mas em duas regras constitucionais de processo legislativo o interstício mínimo, seria equivocado, concessa venia, reputar que esse mesmo constituinte, por mero lapso, teria simplesmente se esquecido de imprimir, apesar de querê-lo, disciplina similar justamente ao processo de reforma da Constituição Federal, muito mais impactante e relevante sob o ângulo jurídico-político para o Estado brasileiro como um todo do que os casos previstos nos arts. 29 e 32 do texto constitucional.

A dissensão aberta pelo Ministro Luiz Fux foi, respectivamente, acatada pelos Ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski, restando vencidos os Ministros Ayres Britto (Relator), Marco Aurélio, Celso de Mello e Joaquim Barbosa (Presidente).

De se notar que a “teoria dos atos interna corporis” foi lançada expressamente nas manifestações dos Ministros Teori Zavascki[31], Rosa Weber[32] e Dias Toffoli[33], para justificar, como um autêntico argumento de autoridade, a insindicabilidade jurisdicional do desrespeito pelo Poder Legislativo das normas regimentais.

A seu turno, é mister ressaltar que, não obstante o argumento da configuração de “silêncio eloquente” na redação do §2º do art. 60 da CF e, assim, da inexistência de afronta direta à Constituição, os Ministros que pugnaram pela não ocorrência de inconstitucionalidade formal da EC nº 62 buscaram, de certa forma, justificar a higidez do procedimento de aprovação da emenda em razão da “profunda discussão e meditação” da reforma constitucional em questão. É o que se depreende dos votos dos Ministros Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, sucessivamente:

Ora, em um processo legislativo longo e aberto como este, iniciado em 2006 e findo em 2009, pautado não por uma, mas por quatro audiências públicas realizada com a participação da sociedade civil, parece não haver espaço, sob o ângulo material, para a tese de inocorrência de debate parlamentar suficientemente refletido para a aprovação da EC nº 62/09, de modo que não cabe falar em vício formal nem mesmo sob a suposta vertente teleológica de interpretação do art. 60, §2º, da Constituição.

[...]

[P]arece-me, na linha do que foi sustentado pelos votos que me antecederam nesta data, que a ratio essendi foi atendida pelo largo debate ocorrido no Congresso Nacional sobre o tema, ao longo dos três anos de tramitação da PEC, com inclusive quatro audiências públicas promovidas.

[...]

Com efeito, na situação presente, não há margem para se firmar a precocidade de aprovação da norma, ou mesmo a ausência de amadurecimento da questão. Ora, é de conhecimento notório de todos a ampla discussão no âmbito do Congresso Nacional a respeito da PEC dos precatórios, a envolver não apenas os parlamentares, mas também integrantes dos Governos Federal, Estaduais, Distrital e Municipais. Afinal, tratou-se de proposta de emenda que tramitou no Senado Federal por três anos e foi objeto de aprovação duas vezes nessa mesma Casa Legislativa. Não há razão, portanto, para se afirmar que sua aprovação teria ocorrido sem a devida reflexão ou amadurecimento por parte dos parlamentares.

[...]

Ademais, como já foi mencionado pelos Ministros que me precederam, sobretudo pela Ministra Rosa Weber e também pelo Ministro Luiz Fux, esta emenda foi aprovada por uma amplíssima maioria; portanto, não carece de legitimidade. No primeiro turno, ela foi contemplada com trezentos e vinte e oito votos afirmativos e, no segundo turno, com trezentos e vinte e nove votos afirmativos também - e isso após uma longa discussão que incluiu inclusive audiências públicas, como já salientado.

A contrario sensu, é autorizado concluir que os mesmos magistrados convergem sobre a necessidade de observância à dimensão substancial do processo de mudança da Constituição, de modo a ser insuficiente o mero cumprimento do procedimento formal extraído das disposições constitucionais, exigindo-se que a deliberação tomada seja fruto de intenso debate travado em arena de equânime igualdade entre os atores políticos participantes.

Dentre os votos que concluíram para inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009, destacam-se os argumentos despendidos pelos Ministros Marco Aurélio e Joaquim Barbosa. O primeiro, de forma acurada, pontuou a importância do papel da Corte Suprema em assegurar a dimensão substancialmente democrática do processo legislativo, ainda mais em contexto de alteração da Lei Fundamental da nação. Tal compreensão, na ótica do Ministro Marco Aurélio, deve orientar o intérprete da Constituição quando análise dos dispositivos concernentes ao procedimento de discussão e deliberação das emendas constitucionais, sob pena de ser conferida extrema valorização à “forma pela forma em detrimento do conteúdo da norma”.

A interpretação teleológica do disposto no parágrafo 2º do artigo 60 da Carta Federal exclui, seja qual for o interesse momentâneo, a queima de etapas, ao prever que a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambas, e em cada qual duplamente, três quintos dos votos dos respectivos membros.

O preceito não agasalha o açodamento, ou seja, não agasalha simplesmente a forma pela forma.

Ter-se dupla votação contempla espaço razoável para a necessária reflexão, o que se pretende alterar o documento básico da República, a Constituição Federal. No caso, não houve esse espaço, por isso ou por aquilo – e, assim, vamos contando, como costumo ressaltar, a história do Brasil. Resolveu-se que, no Senado, a votação seria imediata quanto ao segundo turno. Potencializou-se, como disse, a forma pela forma em detrimento do conteúdo na norma.

A própria Casa interpretou bem o texto constitucional, no que editou o Regimento prevendo o interregno entre uma votação e outra e ele não foi respeitado.

Não estou invertendo as coisas, a ordem natural das coisas, interpretando a Constitucional Federal à luz do Regimento Interno. Não, o que estou apontando é que o Regimento Interno do Senado da República – e o Senado não é uma terra sem lei –, ao prever o intervalo de cinco dias, homenageou o texto constitucional.

Após tecer tais considerações, o Ministro Marco Aurélio rebateu a tese segundo a qual haveria um silencio eloquente da Constituição de 1988 a respeito da necessidade de interstício entre os turnos de votação de emenda constitucional. Entende o magistrado que a interpretação dada pelos Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli seria inaceitável não só em termos de interpretação teleológica do §2º, art. 60, como também por razões de interpretação sistemática do texto constitucional, porquanto seria um contrassenso insuperável defender a obrigatoriedade de observância de interstício mínimo para alteração de lei orgânica municipal e do Distrito Federal e não o fazê-lo em relação à Lei Fundamental do país: a própria Constituição. De acordo com o Ministro, entender desse modo, seria advogar que, no Brasil, existem maiores dificuldades procedimentais para se reformar o diploma fundamental de um Município do que para alterar a Constituição da República.

Em complemento a tal fundamentação, o Ministro Joaquim Barbosa busca em seu voto realçar a importância do papel da Corte Suprema na preservação da efetiva participação das minorias parlamentares no processo de reforma constitucional. Partindo de tal premissa, o Supremo Tribunal Federal estaria ignorando sua função contramajoritária ao chancelar a não observância do interstício mínimo de cinco dias previsto no art. 352 do Regimento Interno do Senado Federal por “deliberação unânime das lideranças partidárias”.

Pergunta-se se não competiria ao Senado definir o que são turnos, para fins de aplicação do art. 60, § 2º da Constituição. A resposta é positiva, e o Judiciário não pode definir originariamente se turnos compreendem semanas, dias, meses ou qualquer outra medida de tempo.

Porém, compete ao Supremo Tribunal Federal garantir que a definição dos “turnos” assegure a cada um dos Congressistas e dos cidadãos brasileiros que o processo legislativo possa ser entendido e debatido.

Cabe à Suprema Corte apontar se uma dada definição de “turno” viola expectativas constitucionais legítimas.

A propósito, lembro a sábia observação do Justice Stone na mais famosa nota de rodapé da história da jurisdição constitucional norteamericana: atenção especialíssima deve ser conferida às alegações de inconstitucionalidade em desfavor de grupos insulares e discretos, pois eles não têm acesso pleno ao processo político democrático[34].

A votação apressada do projeto de emenda tolheu a capacidade individual de cada congressista, das minorias políticas representantes e de cada um dos cidadãos representados de compreender e de influenciar, no momento oportuno, a discussão de tema tão grave. Talvez essa falta de oportunidade para boa compreensão do tema tenha resultado no placar final de votação, que não registrou contrariedade à proposta.

Em suma, delineados os argumentos, sagrou-se vencedora a divergência inaugurada pelo Ministro Luiz Fux a respeito da insindicabilidade judicial de eventual descumprimento de interstício mínimo entre os turnos de votação de projeto de emenda constitucional fixado por Regimento Interno das Casas Legislativas, na esteira da famigerada “teoria dos atos interna corporis”.

Com efeito, restou assim formatado o trecho da ementa da ADI nº 4.425/DF no tocante a questão de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009:

1. A Constituição Federal de 1988 não fixou um intervalo temporal mínimo entre os dois turnos de votação para fins de aprovação de emendas à Constituição (CF, art. 62, §2º), de sorte que inexiste parâmetro objetivo que oriente o exame judicial do grau de solidez da vontade política de reformar a Lei Maior. A interferência judicial no âmago do processo político, verdadeiro locus da atuação típica dos agentes do Poder Legislativo, tem de gozar de lastro forte e categórico no que prevê o texto da Constituição Federal. Inexistência de ofensa formal à Constituição brasileira[35].


3. A PERSPECTIVA PROCEDIMENTALISTA: O DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO COMO PROCEDIMENTO DE DEMOCRACIA DELIBERATIVA

Diante das situações concretas apresentadas no tópico anterior, é de se questionar: dado o papel contramajoritário da Suprema Corte e a finalidade da jurisdição constitucional em assegurar a higidez do “jogo democrático”[36], a rejeição da alegação de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009 pelo STF no julgamento da ADI nº4.425/DF consiste em uma postura de autocontenção ou em grave omissão quanto a um dever de correção procedimental?

Partido da análise da compreensão da Suprema Corte a respeito dos limites do controle jurisdicional do processo legislativo, é possível depreender a inadequabilidade de tais posições face ao paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, culminando em uma situação de total insegurança jurídica decorrente da ausência de parâmetros normativos, o que conduz a um exercício cada vez mais arbitrário do poder político por restritos segmentos da sociedade[37].

Na avaliação de Marcelo Cattoni, a “privatização” do processo legislativo com a chancela do STF fica evidenciada diante da restrição de legitimidade para ajuizamento de mandado de segurança aos parlamentares. Afinal, ao conferir a titularidade de impugnação do processo legislativo apenas aos parlamentares, estar-se-á possibilitando que o exercício do direito público subjetivo seja utilizado como instrumento de barganha diante da conjuntura do jogo político-partidário no âmbito das Casas Legislativas.

[C]olocada, nesses termos, pelo Supremo Tribunal, a questão acerca da irregularidade e da inconstitucionalidade da tramitação de um projeto de lei ou de uma proposta de emenda constitucional acabaria sendo reduzida a um interesse particular e exclusivo dos deputados e senadores, enquanto “condições para exercício de sua [sic] atividade parlamentar”, e jamais referida à produção da lei como afeta à cidadania em geral.

[...]

No Brasil, essas posições assumidas pelo Supremo Tribunal Federal, competente para controlar a constitucionalidade da atuação (e da não-atuação) dos órgãos de cúpula do Estado, revelada por um entendimento jurisprudencial inadequado ao paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, têm levado, de uma perspectiva não somente normativa, mas também objetiva, ao surgimento de verdadeiras ilhas corporativas de discricionariedade, o que estará resultando numa quase total ausência de parâmetros normativos, abrindo espaço, dessa forma, para um exercício cada vez mais arbitrário do poder político.[38] (grifo no original)

Como exposto por José Alcione Bernardes Júnior e Leonardo Augusto de Andrade Barbosa, o sistema jurídico-constitucional conformado pela Carta Cidadã de 1988 “consagra não a supremacia do Parlamento, mas, sim, a supremacia da Constituição, em cujo bojo se aloja o princípio fundamental do devido processo legal”[39]. Portanto, não se pode compreender a atuação do Poder Legislativo em matéria de produção de atos normativos como algo supremo, indene de controle institucionalizado diante de eventuais discricionariedades e até mesmo arbitrariedades cometidas sob o manto do “jogo político”.

A garantia de uma esfera jurídica privativa do parlamento não serve mais à afirmação da soberania do Poder Legislativo, cuja atividade encontra-se vinculada à Constituição. O espaço de discricionariedade que remanesce reservado às legislaturas atende não à hierarquização dos poderes estatais, mas ao equilíbrio entre eles. A independência do espaço no qual se institucionaliza a formação da vontade política, por sua vez, não é uma mera garantia institucional do Congresso, mas uma garantia do próprio regime democrático. Dessa forma, a crítica à doutrina dos atos interna corporis não se confunde com um tipo de questionamento da independência do Poder Legislativo ou, ainda, com a defesa de sua submissão ao Judiciário, que funcionaria como um suposto “poder neutro” ou “moderador”. Pelo contrário, essa crítica procura identificar as condições nas quais se afirma a independência da legislatura, ou seja, seus limites constitucionais.[40]

O constante alargamento da noção do que seja matéria interna corporis obscurece, com esteio nos constructos procedimentalistas de Jürgen Habermas, a compreensão das normas regimentais como materialização das condições procedimentais assecuratórias de um jogo argumentativo, em que seja garantida a participação de todos os envolvidos no processo decisório[41], o que caracteriza o Estado Democrático de Direito.

Ao manter a hodierna linha de pensamento, o STF, por via indireta, não assume seu papel no Estado Democrático de Direito na qualidade de Corte Constitucional e salvaguarda do princípio democrático. Ademais, ao se limitar a exercer a jurisdição nas situações de literal e direto desrespeito às normas procedimentais inseridas no texto constitucional, confere ao arbítrio da maioria a definição do substancial procedimento legislativo a ser observado, contemplando, inclusive, sob o pálio do recurso denominado “acordo de lideranças”, eventuais excepcionalidades que constituem flagrante supressão do direito das minorias parlamentares.

Anote-se que tal panorama poderá contribuir para a derrocada do núcleo essencial do princípio democrático, porquanto estar-se-á legitimando uma espécie de ditadura da maioria ao suprimir a garantia da minoria em ver devidamente observadas as regras regimentais e as finalidades decorrentes da Constituição concernente à identificação do processo legislativo com a ideia de democracia deliberativa.

Com efeito, evidencia-se a suma importância de uma regulação imparcial e racional dos regimentos e das práticas procedimentais adotadas pelas Casas Legislativas para que cumpram sua finalidade constitucional de disciplinar o processo de produção normativa, garantindo as condições comunicacionais e negociais necessárias para o debate público mais democrático possível[42].

É o processo legislativo o núcleo central do regime constitucional no Estado Democrático de Direito, tendo por propósito básico promover a integração da sociedade. Logo, o Direito não deve limitar-se a mera “densificação de princípios sociais universais na pluralidade das eticidades substantivas das organizações políticas concretas”[43], devendo fazê-lo de tal modo que “os destinatários de suas normas possam reconhecer-se como coautores das mesmas”[44]. E tal possibilidade de reconhecimento é garantida pela observância do procedimento de formação normativa cujas balizas são estabelecidas e estruturadas pela Constituição. Com efeito, “somente as condições processuais para a gênese democrática das leis assegura a legitimidade do Direito”[45]. Daí a imprescindibilidade da atuação dos tribunais constitucionais para garantir a observância pelo Poder Legislativo dos pressupostos comunicativos e as condições procedimentais do processo de legislação democrático. Trata-se, na formulação de John Hart Ely, do papel do Poder Judiciário de desobstrução dos canais de mudança política e desbloqueio dos impasses democráticos, in verbis:

A linha de decisão judicial constitucional que aqui recomendo é análoga ao que seria, nos assuntos econômicos, uma orientação ‘antitruste’, entendida como oposta a uma orientação ‘reguladora’ – em vez de ditar resultados substantivos, ela intervém apenas quando o ‘mercado’, neste caso o mercado político, está funcionando mal de modo sistêmico. (Também é cabível uma analogia com um árbitro de futebol: o juiz deve intervir somente quando um time obtém uma vantagem injusta, não quando o time ‘errado’ faz gol.) Não é justo dizer que o governo está ‘funcionando mal’ só porque às vezes ele gera resultados com os quais discordamos, por mais forte que seja nossa discordância (e afirmar que ele obtém resultados de que ‘o povo’ discorda – ou de que discordaria, ‘se compreendesse’ – na maioria das vezes é pouco mais que uma projeção delirante). Numa democracia representativa, as determinações de valor devem ser feitas pelos representantes eleitos; e, se a maioria realmente desaprová-los, poderá destituí-los através do voto. O mau funcionamento ocorre quando o processo não merece nossa confiança, quando (1) os incluídos estão obstruindo os canais da mudança política para assegurar que continuem sendo incluídos e os excluídos permaneçam onde estão, ou (2) quando, embora a ninguém se neguem explicitamente a voz e o voto, os representantes ligados à maioria efetiva sistematicamente põem em desvantagem alguma minoria, devido à mera hostilidade ou à recusa preconceituosa, em reconhecer uma comunhão de interesses – e, portanto, negam a essa minoria a proteção que o sistema representativo fornece a outros grupos.

É óbvio que nossos representantes eleitos são as últimas pessoas a quem devemos confiar a identificação de qualquer uma dessas situações. Os juízes nomeados, no entanto, estão relativamente à margem do sistema governamental e só indiretamente precisam preocupar-se com a permanência no cargo. Isso não lhes dá um canal de acesso especial aos valores genuínos do povo norte-americano: na verdade, pelo contrário, praticamente assegura que não terão esse acesso. No entanto, isso também lhes dá condições de avaliar objetivamente – embora ninguém possa dizer que a avaliação não estará cheia de decisões discricionárias tomadas no calor do momento – qualquer reclamação no sentido de que, quer por bloquear os canais de mudança, quer por atuar como cúmplices de uma tirania da maioria, nossos representantes eleitos na verdade não estão representando os interesses daqueles que, pelas normas do sistema, deveriam estar[46]. [grifou-se]

No tocante às eventuais críticas quanto a uma pretensa invasão do Judiciário na esfera de autonomia dos demais Poderes, pondera Jürgen Habermas:

[A] constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais os cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida (o que significa: mais corretas por serem equitativas). Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito. Partindo dessa compreensão democrática, é possível encontrar um sentido para as competências do tribunal constitucional, que corresponde à intenção da divisão de poderes no interior do Estado de direito: o tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos. O esquema clássico da separação e da interdependência entre os poderes do Estado não corresponde mais a essa intenção, uma vez que a função dos direitos fundamentais não pode mais apoiar-se nas concepções sociais embutidas no paradigma do direito liberal, portanto não pode limitar-se a proteger os cidadãos naturalmente autônomos contra os excessos do aparelho estatal. A autonomia privada também é ameaçada através de posições de poder econômicas e sociais e dependente, por sua vez, do modo e da medida em que os cidadãos podem efetivamente assumir os direitos de participação e de comunicação de cidadãos do Estado. Por isso, o tribunal constitucional precisa examinar os conteúdos de normas controvertidas especialmente no contexto de pressupostos comunicativos e condições procedimentais do processo de legislação democrático. Tal compreensão procedimentalista da constituição imprime uma virada teórico-democrática ao problema de legitimidade do controle jurisdicional da constituição[47]. [grifou-se]  

Desponta, assim, o fundamental papel do Supremo Tribunal Federal enquanto bastião dos interesses contramajoritários, fazendo evocar sua função de guardião da Constituição e, desse modo, avançar na compreensão de complementariedade da democracia e constitucionalismo, criando condições para a observância de um procedimento de formação de leis efetivamente democrático e participativo.

De frisar, numa palavra, que, no processo constitucional, não se trata de justificar a validade das normas jurídicas legislativas, mas, sim, de averiguar a constitucionalidade e regularidade do processo legislativo, aplicando a Constituição. Há aqui uma diferença inafastável do modo e da finalidade dos processos constitucional legislativo e jurisdicional constitucional, numa reinterpretação constitucionalmente adequada ao princípio da separação dos poderes[48].

Por conseguinte, na esteira dos constructos procedimentalistas, seria necessária a revisão dos pressupostos teóricos que sustentam a jurisprudência atual do Supremo sobre o assunto. Ao relegar a problemática concernente à observância das normas regimentais ao âmbito dos atos interna corporis, a Corte nega o status constitucional de tais disposições normativas, ignorando que as normas que fixam o procedimento de formação legislativa constituem comandos normativos densificadores de princípios de ordem constitucional, em especial, o princípio democrático.

O judiciário, enquanto controle contramajoritário, exerce um papel fundamental para a própria configuração da democracia em contraposição a uma ditadura da maioria. No entanto, os riscos são extremamente significativos se a norma e valor são assumidos como termos indistintos. Um determinado Tribunal pode também se assumir como o responsável direto pela implementação dos valores concretos dessa comunidade e, a esse título, assumir o papel não somente de legislativo, mas de constituinte permanente, sem ter sido eleito por ninguém. O resgate da perspectiva deontológica que informa o enfoque da questão de um autor como Ronald Doworkin e o olhar daqueles que os norte-americanos denominariam mais genericamente de democratas, é aqui imprescindível e essencial para que se possa evitar a privatização da própria Constituição, passível de ser considerada propriedade daqueles que deveriam guardar precisamente o seu caráter público, ou seja, garantir que ela operasse como a regência de uma associação de homens livres e iguais, que vivem sob a égide das leis que fizeram para si próprios. [49]

A partir da formulação procedimentalista apresentada no presente tópico, a inatividade traduz uma opção ideológica da Suprema Corte condescendente com a “privatização” do processo legislativo e o domínio dos negócios políticos pela maioria circunstancial e, dessa forma, mesmo quando provocado, ao ignorar a lesão ao princípio democrático, deixa de conferir supremacia à Constituição.


4. O CONTRAPONTO NECESSÁRIO: A REVALORIZAÇÃO DO PODER LEGISLATIVO

Com esteio no estudo de caso apresentado no presente artigo e a proposta procedimentalista de fundamentação da legitimidade da jurisdição para a sindicabilidade do processo legislativo em casos de violação de normas regimentais densificadoras de diretrizes constitucionais, oportuno se faz apresentar uma perspectiva de valorização da autonomia funcional do Poder Legislativo.

Tal viés implica, de certa forma, na limitação da colonização do Direito sobre a Política, conferindo deferência à lógica e dinâmica do jogo político. Ademais, é preciso evidenciar que a tendência de enaltecimento do protagonismo do Poder Judiciário após a Constituição de 1988 (por meio do neoconstitucionalismo e outros quetais[50]) implica, de maneira direta, na consideração da atividade política como algo indigno e indecoroso e, assim, em aversão ao Poder Legislativo. Em passagem clássica, Jeremy Waldron evidencia a existência de tal preconceito, in verbis:

As pessoas convenceram-se de que há algo indecoroso em um sistema no qual uma legislatura eleita, dominada por partidos políticos e tomando suas decisões com base no governo da maioria, tem a palavra final em questões de direito e princípios. Parece que tal fórum é considerado indigno das questões mais graves e mais sérias dos direitos humanos que uma sociedade moderna enfrenta. O pensamento parece ser que os tribunais, com suas perucas e cerimônias, seus volumes encadernados em couro e seu relativo isolamento ante a política partidária, sejam um local mais adequado para solucionar questões desse caráter.[51]

Em sua obra “Law and Disagreement”, Waldron defende a ideia da necessidade de se estabelecer uma estrutura institucional que promova o agir coletivo para, dessa forma, viabilizar que a sociedade resolva sobre questões controversas (desacordos morais). Tal é o desafio a ser enfrentado, e as democracias liberais modernas, de certa maneira, foram bem sucedidas ao eleger o Parlamento como o lócus para dirimir os desacordos sobre princípios. Os desacordos morais e demais questões de princípios sensíveis são enfrentadas tendo por pressuposto o que Waldron denominou de “circunstâncias políticas”, compostas pelo binômio desacordo e necessidade de ação conjunta[52].

Nesse viés, o pensador neozelandês, para enfrentar a atual indisposição face ao Poder Legislativo, evidencia a inafastabilidade dos desacordos morais e a necessidade do estabelecimento de um procedimento político decisório para resolução dos conflitos[53] sem desconsiderar a ideia de dissenso permanente. Com efeito, enaltece o critério da decisão majoritária como o mais adequado e democrático até então desenvolvido, em contraposição à alternativa de se conferir a autoridade decisória à “racionalidade argumentativa” de um pequeno grupo de juízes[54].

Waldron pretende consagrar a legislação como fonte digna do direito, e, assim, procura dar resposta à crítica comum que se tem feito à legislação majoritária (aprovada segundo a regra da maioria) que a acusa de ser arbitrária, uma mera soma de números, uma pura determinação estatística. Em geral, essa crítica é feita pelos defensores do judicial review que, para tanto, buscam denegrir a imagem da legislação ou do próprio Poder Legislativo. Seria péssimo, segundo a visão desses críticos, que questões tão relevantes para a vida da comunidade sejam decididas meramente por meio da contagem de cabeças. Por esse argumento querem excluir do parlamento a deliberação sobre princípios (direitos fundamentais).

Waldron inicia sua resposta com a afirmação de o método de tomada de decisão segunda a regra da maioria é tão antigo quanto a democracia ateniense e, mais, ele é aplicado pelas próprias cortes ao decidirem questões envolvendo direitos fundamentais. Ele cita, então, inúmeras decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos cujo placar final foi de cinco votos contra quatro. Se houver qualquer arbitrariedade em uma decisão majoritária legislativa, ela deve estar presente também nas decisões da Suprema Corte, de modo a viciar quase todo o direito constitucional norte-americano. Ele enfatiza, portanto, que a diferença entre a legislação e a decisão da Corte é de representação, não de método decisório.

Mas a principal defesa que se pode fazer da regra da maioria contra as críticas fundadas na arbitrariedade vale para as decisões das cortes, assim como para as dos parlamentos: o consentimento de que fala Locke não é físico ou de qualquer outro tipo, mas moral e relacionado à autorização para o agir coletivo de uma comunidade e à legitimidade dessa ação.

Desse modo, Waldron interpreta Locke de modo que a homenagear o procedimento. Isso quer dizer que a decisão segundo a regra da maioria não diz nada sobre a sua correção, senão apenas que a decisão, se adotada pela maioria, será legítima em relação `s questões para as quais o consentimento é relevante. O respeito a uma decisão majoritária não está relacionado a nenhuma reivindicação de maior sabedoria das multidões, como querem os críticos, mas a sua legitimidade.[55] [grifou-se]

Sobre a “física do consentimento”, Waldron apresenta severas críticas às teorias deliberativistas que enfatizam a “conversação e a unanimidade como valores processuais-chaves”[56], olvidando a persistência do dissenso, cujo impasse somente poderá ser solvido mediante o critério decisório da maioria.

Os modernos proponentes da democracia deliberativa enfatizam a conversação e a unanimidade como valores processuais-chave. Idealmente, dizem, “a deliberação almeja chegar a um consenso racionalmente motivado – encontrar razões que sejam persuasivas para todos os que estão comprometidos a agir com base nos resultados de uma avaliação livre e arrazoada das possibilidades pelos iguais” [Joshua Cohen] Ora, tal objetivo é certamente importante em termos da lógica da deliberação. Argumentar de boa-fé é apresentar razões que (pensamos) o outro deve aceitar. O fato de duas ou mais pessoas persistirem no argumento significa que consideram seriamente a possibilidade de, no fim, as mesmas considerações convencerem a todos. (Do contrário, para que se incomodar?) Contudo, aceitar o consenso como o telos interno da deliberação não é a mesma coisa que insistir nele como resultado político adequado. É aí que os teóricos deliberativos erram. Eles supõem que a dissensão ou discordância é necessariamente um sinal do caráter incompleto ou politicamente insatisfatório da deliberação. Sua abordagem sugere que deve haver algo errado na política da deliberação se a razão falha, se o consenso nos foge e se não há nada a fazer além de contar cabeças. Na verdade, alguns até sugeriram que só podemos ter certeza de que um processo é deliberativo se o seu resultado for unânime.

[...]

Em uma posição como essa, a necessidade de votar deve parecer uma admissão de fracasso, ditada talvez por prazos, detalhes práticos, pela ignorância ou pelo preconceito invencíveis de algumas ou de todas as partes.

Assim, é tentador para os teóricos da democracia deliberativa tentar marginalizar a votação e os processos (como a decisão majoritária) que a votação implica nas suas descrições da deliberação.[57] [grifou-se]

Diante de tais premissas, vale questionar: seria legítimo conferir ao Poder Judiciário a última palavra quanto à definição da materialidade constitucional das normas regimentais que tratem diretamente do processo legislativo e, assim, considera-las parâmetro de controle de constitucionalidade?

Posta a questão de tal forma, está a se aventar a possibilidade de o Poder Judiciário, por critério de “racionalidade jurídico-argumentativa”, sindicar a apreciação e a observância do Parlamento a respeito das regras procedimentais editadas pela própria Casa Legislativa em caráter de exclusividade.

Enfim, a resposta a tal indagação perpassa sobre a análise da natureza (jurídica?) do Regimento Interno.

Segundo parte considerável dos juristas que se debruçaram sobre o assunto, as normas regimentais integram o ordenamento jurídico e “enquanto regras de direito positivo dotadas de previsão constitucional, são normas cogentes, de observação obrigatória[58] por todos os seus destinatários”[59].

A natureza dos regimentos das assembleias políticas está longe de ser pacífica. Seja ela qual for, se as próprias assembleias podem modificar as normas regimentais quando lhes aprouver, não poderão dispensar-se de as cumprir enquanto estiverem em vigor. Quando o Parlamento vota uma lei, ou uma resolução, o objecto da deliberação é o projecto ou a proposta e não o regimento; essa deliberação tem de se fazer nos termos que este prescreve e não pode revestir o sentido de modificação tácita ou implícita das suas regras. O princípio que aqui se projecta para além do princípio hierárquico é sempre o de que o órgão que pode modificar a lei sob que vive deve, pelo menos, fazê-lo específica e directamente. Doutro modo, frustrar-se-ia a missão ordenadora do Direito e comprometer-se-ia a própria idéia de institucionalização jurídica do poder.[60]

Partindo da análise de Jorge Miranda, constata-se que a atribuição de juridicidade e cogência incondicional e ampla ao Regimento Interno é calcada no pressuposto da institucionalização jurídica do poder e, consequentemente, na onipotência do Judiciário para apreciar, inclusive, as “circunstâncias políticas” (na expressão de Jeremy Waldron), posto que, em última instância, a “constitucionalização” total do Estado fundamentaria a legitimidade da apreciação jurisdicional.

O fato é que a defesa da parametricidade do Regimento Interno[61] implica na supressão da autonomia do Poder Legislativo diante das vicissitudes e peculiaridades das circunstâncias políticas que envolvem o processo de criação normativa, entregando ao Poder Judiciário, guiado por critérios de racionalidade jurídica, a palavra final sobre a adequabilidade substancial da ação legislativa face ao regimento.

Há que se conferir a devida apreciação e qualificação à suposta “inobservância” pontual das normas regimentais, porquanto a condução procedimental propriamente dita está submetida aos mesmos pressupostos da materialidade da função legiferante: respeito aos limites estabelecidos na Constituição e a decisão majoritária como critério democrático por excelência. Não é dado atribuir à inobservância do Regimento Interno os mesmos efeitos de violação à Constituição e, também, ignorar a diferença entre uma minoria “vencida” e uma minoria “sufocada”.

A inobservância pontual de uma regra regimental (que não seja reprodução do texto constitucional) a partir de um consenso formado no seio da Casa Legislativa tendente a viabilizar a tramitação de determinado projeto de lei não enseja, necessariamente, um desrespeito à Constituição.

É exatamente nesse ponto que reside a crítica à postura de conferir legitimidade ao Poder Judiciário para atribuir a “materialidade constitucional” à determinadas normas regimentais. De se notar que, nesse contexto, existe uma superposição de Poderes e não uma relação harmônica ou de check and balances, afinal, ainda que haja consenso (o que envolve a minoria), a manifestação política estaria sendo substituída pela apreciação jurídica de um pequeno número de juízes.

Destaca-se, por oportuno, as palavras de Dieter Grimm, in verbis:

Disso sofre a separação entre direito e política, pois a aplicação do direito torna-se forçosamente o seu próprio criador de normas. A tarefa política da decisão programadora passa para as instâncias que devem tomar decisões programadas e que somente para tanto estão legitimadas a aparelhadas. Isso não tinge apenas a vinculação legal da administração. Onde faltam critérios legais que determinem a conduta dos destinatários da norma de forma suficiente, a jurisdição também não pode fiscalizar se os destinatários se comportaram legalmente ou não. Porém, se ela aceitar sua missão de fiscalização, ela não vai mais utilizar critérios preestabelecidos, mas impor suas próprias noções de exatidão. Dessa maneira, ela se transforma, em escala intensificada, em poder político que, ele mesmo, assume funções de legislação. Então, a decisão política migra para onde ela não tem que ser responsabilizada politicamente, enquanto que à responsabilidade política não corresponde mais nenhuma possibilidade decisória. Nesse ponto, no nível da aplicação do direito paira a ameaça de uma nova mistura das esferas funcionais de direito e política, para a qual ainda não são visíveis soluções convincentes nos dias de hoje.[62] [grifou-se]

Afinal, nesse sentido, ficaria ao alvedrio do Judiciário a seleção e definição de quais normas regimentais seriam alçadas à condição de parâmetro de controle, tendo por critério a “densificação” das condições procedimentais de natureza constitucional, o que implicaria na retirada de autonomia do Parlamento em realizar, de modo direto, a interpretação da Constituição, visto que a última palavra a respeito da materialidade constitucional de determinada norma regimental seria dada por magistrados.

Nesse viés, vale lançar mão de instigante observação feita pelo Deputado na Constituinte de 1987-1988 e ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal, o jurista Nelson Azevedo Jobim: “só existe Regimento Interno onde não existe consenso” (informação verbal)[63]. De fato, considerando o regimento como “ordenamento interno” e dinâmico por excelência, diante de eventual consenso no sentido de se afastar um regra regimental, não haveria, necessariamente ofensa à Constituição.

O estudo de caso apresentado neste trabalho exemplifica o que ora se expõe: no curso da tramitação da Proposta de Emenda à Constituição nº 12-A/2006, em dezembro de 2009, a regra contida no art. 362 do Regimento Interno do Senado Federal, que prevê a observância de um interstício mínimo de cinco dias entre os turnos de votação de projeto de emenda constitucional, foi afastada mediante o voto da unanimidade dos parlamentares presentes na sessão e em conformidade com o disposto no art. 412, III, do mesmo regimento. Levada a questão ao STF, restou decidido ser vedado ao Poder Judiciário imiscuir-se na questão, posto que, por não ser a regra do art. 362 do RISF reprodução de norma constitucional, a decisão pelo seu afastamento seria matéria interna corporis.

A guisa de conclusão, ainda que com base em outros pressupostos, cumpre estabelecer a concordância com a conclusão do STF a respeito da insindicabilidade da decisão interna corporis, de modo que a contrariedade às regras regimentais somente autorizaria a atuação do Poder Judiciário quando houver violação à preceito ou garantia de índole constitucional.


CONCLUSÃO

A partir da análise acurada dos votos apresentados pelos Ministros do STF no julgamento da ADI nº 4.425/DF, em que foi afastada a alegação de inconstitucionalidade formal da EC nº 62/2009 por não observância de interstício mínimo entre os dois turnos de votação, conforme previsto no art. 352 do Regimento Interno do Senado Federal, foi possível constatar as premissas e fundamentos da chamada teoria dos atos interna corporis atualmente adotada pela Corte Suprema. Segundo tal entendimento, é inviável conferir às normas regimentais o caráter de parametricidade para fins de controle de constitucionalidade do processo legislativo. Com efeito, o Judiciário só estaria legitimado a averiguar o cumprimento das disposições procedimentais de índole constitucional, ou seja, apenas e tão somente quando houver desrespeito às normas do processo legislativo contidas, de modo expresso, na Constituição Federal.

Tal postura recebe severas críticas fundamentadas nos constructos procedimentalistas extraídos das obras de Jürgen Habermas (em "Direito e democracia: entre facticidade e validade") e John Hart Ely (em "Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade"), porquanto, ao desenvolver a chamada “teoria dos atos interna corporis” e restringir a legitimidade aos parlamentares para a propositura de medidas judiciais de controle da higidez do rito de produção normativa, o STF acaba por desjudicializar e privatizar o processo legislativo, o que representa uma postura nociva face ao modelo do Estado Democrático de Direito formatado na Constituição da República.

Nesse ensejo, busca-se compreender as normas regimentais como materialização das condições procedimentais assecuratórias de um jogo argumentativo, em que seja garantida a participação de todos os envolvidos no processo decisório e, assim, legitimar a atuação da Jurisdição Constitucional a partir da consideração do Regimento Interno como parâmetro de controle do processo legislativo.

Questiona-se, portanto, a legitimidade do Poder Judiciário para dar a última palavra quanto à definição da materialidade constitucional das normas regimentais que tratem diretamente do processo legislativo e, assim, considera-las parâmetro de controle de constitucionalidade.

A defesa da parametricidade do Regimento Interno implica na supressão da autonomia do Poder Legislativo diante das vicissitudes e peculiaridades das circunstâncias políticas que envolvem o processo de criação normativa, entregando ao Judiciário, guiado por critérios de racionalidade jurídica, a palavra final sobre a adequabilidade substancial da ação legislativa face ao regimento.

Com efeito, ficaria ao alvedrio do Judiciário a seleção e definição de quais normas regimentais seriam alçadas à condição de parâmetro de controle, tendo por critério a “densificação” das condições procedimentais de natureza constitucional, o que implicaria na retirada de autonomia do Parlamento em realizar, de modo direto, a interpretação da Constituição, visto que a última palavra a respeito da materialidade constitucional de determinada norma regimental seria dada por magistrados.

Por conseguinte, ainda que com base em outros pressupostos, cumpre estabelecer a concordância com a conclusão do STF a respeito da insindicabilidade da decisão interna corporis, de modo que a contrariedade às regras regimentais somente autorizaria a atuação do Poder Judiciário quando houver violação à preceito ou garantia de índole constitucional.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Processo Legislativo e Democracia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

BERNARDES JÚNIOR, José Alcione. O controle jurisdicional do processo legislativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Em busca de um conceito fugidio – o ativismo judicial. In: FELLET, André et al (orgs). As novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Podium, 2011, p. 387-402.

BRASIL. A Constituição e o Supremo. Brasília: Secretaria de Documentação do STF, 2010.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.425/DF. Relator para o acórdão: FUX, Luiz. Publicado no DJe de 19/12/2013.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Mandado de Segurança n.32.033/DF. Relator: MENDES, Gilmar. Publicado no DJe de 18/02/2014.

CAMPOS, Francisco Luís da Silva. Direito Constitucional, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1956.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2008.

CARVALHO, Cristiano Viveiros de. Controle judicial e processo legislativo: a observância dos regimentos internos das casas legislativas como garantia do Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002.

CARVALHO NETTO, Menelick de. A sanção no procedimento legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992.

CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006.

CATTONI, Marcelo. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013.

CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Do controle de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966.

ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução: Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Tradução: Lúcia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volumes 1 e 2. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012.

KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Direitos humanos, direito constitucional e neopragmatismo. São Paulo: Almedina, 2011.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003.

MIRANDA. Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

QUEIROZ FILHO, Gilvan Correia de. O controle judicial dos atos do Poder Legislativo: atos políticos e interna corporis. Brasília: Brasília Jurídica, 2001.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial. São Paulo: Saraiva, 2010.

RIBEIRO, Guilherme Wagner. Princípios constitucionais do direito parlamentar. Cadernos da Escola do Legislativo, Belo Horizonte, v. 7, n. 12, jan./jun. 2004.

RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2003.

VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo Institucional, Democracia e Estado de Direito: o debate entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional sobre a interpretação da Constituição. 2013. 203f. Tese (doutorado) - Faculdade de Direito da USP. Universidade de São Paulo, São Paulo.

WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2004.


Notas

[1] De acordo com Derly Barreto e Silva Filho, sustentado em Ignacio Torres Muro, os chamados internal proceedings fundamentam-se na ideia de soberania parlamentar conquistada na Inglaterra no século XVII e na regra insculpida no art. 9º do Bill of Rights, de 13/02/1689, segundo a qual, “a liberdade de palavra e os debates ou processos parlamentares não devem ser submetidos à acusação ou à apreciação em nenhum tribunal ou em qualquer lugar que não seja o próprio Parlamento”. Assim, em casos de conflitos, os Tribunais ingleses sempre relutaram em invadir o terreno “político” do Parlamento. Elucidando o fato, aduz Silva Filho: “pelo fato de os juízes terem sido, no século XVII, criaturas da Coroa, que deles se valia para suas persecuções (inclusive de parlamentares), o Parlamento, vitorioso, pugnando por suas prerrogativas em face do Executivo, estabeleceu radical proibição de os tribunais julgarem seus atos. Assim, ao lado da inviolabilidade parlamentar, prescreveu-se a regra segundo a qual ficava vedado ao Poder Judiciário apreciar os processos parlamentares” (SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 96-97). 

[2] Em sede do Habeas Corpus nº 300, julgado em 23/04/1892, o STF negou-se a analisar a constitucionalidade da decretação de estado de sítio, porquanto, “antes do juízo político do Congresso, não pode o Poder Judicial apreciar o uso que fez o Presidente da República” da atribuição constitucional de decretar o estado de sítio, “e que, também, não é da índole do Supremo Tribunal Federal envolver-se nas funções políticas do Poder Executivo ou Legislativo”. No julgamento da Apelação Cível nº 216, em 20/01/1897, a Corte Suprema, ao analisar a constitucionalidade do Decreto Legislativo nº 310/1895, que concedera anistia a todos os envolvidos em movimentos revolucionários ocorridos até 23/08/1895, mas restringia alguns efeitos para os oficiais militares, “não houvera infração de direitos adquiridos dos mencionados oficiais”, uma vez que “a anistia seria uma medida essencialmente política”. Nesse sentido: RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Tomo I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 61-86.

[3] “Art. 2º É o Governo autorizado: (...) X. A regular o funccionamento das companhias de seguros, tanto de vida como maritimos e terrestres, que funccionam ou venham a funccionar no territorio da Republica, sujeitando todas, quer nacionaes, quer estrangeiras, ás obrigações prescriptas pelo decreto n. 2158, de 1 de novembro do 1895, creando uma repartição de Superintendencia de seguros, immediatamente subordinada ao Ministerio da Fazenda, repartição que será mantida pelas quotas que serão fixadas no respectivo regulamento e pagas pelas diversas companhias que funccionarem ou vierem a funccionar no Brazil. Paragrapho unico. O regulamento expedido na parte referente ao seguro de vida será sujeito á approvação do Congresso”.

[4] SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares pelo Poder Judiciário. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 85.

[5] apud SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares..., p. 85.

[6] apud SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares..., p. 85.

[7] apud SILVA FILHO, Derly Barreto e. Controle dos atos parlamentares..., p. 86.

[8] CAMPOS, Francisco Luís da Silva. Direito Constitucional, vol. II. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1956, p. 119-124.

[9] CAVALCANTI, Themístocles Brandão. Do controle de constitucionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 1966, p. 191.

[10] Idem, p. 192.

[11] Idem, p. 195.

[12] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do processo legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 253-254.

[13] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 683.

[14] Idem, ibidem.

[15] Idem, p. 682-683.

[16] Cf. BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. Processo Legislativo e Democracia. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 162-163.

[17] “1. Não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de sua final aprovação ou não” [grifou-se]. (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Mandado de Segurança n.32.033/DF. Relator: MENDES, Gilmar. Publicado no DJe de 18/02/2014).

[18] Idem, ibidem.

[19] Cf. BARBOSA, ob. cit., p. 162.

[20] Nesse sentido, destacam-se os seguintes julgados: MS nº 20.247/DF (Relator Min. Moreira Alves, DJ 21/11/1980), MS nº 20.464/DF (Relator Min. Soares Muñoz, DJ 07/12/1984) e MS nº 20.471/DF (Relator Min. Francisco Rezek, DJ 22/02/1985).

[21] BERNARDES JÚNIOR, José Alcione. O controle jurisdicional do processo legislativo. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 102.

[22] O leading case de tal concepção trata-se do MS nº 20.257/DF, de relatoria do Ministro Moreira Alves. No julgamento do MS nº 21.303-AgR/DF (Relator Min. Octavio Gallotti, DJ 02/08/1991), o STF julgou improcedente mandado de segurança impetrado por “cidadão brasileiro, contra ato de Comissão da Câmara dos Deputados tendente a possibilitar a adoção da pena de morte, mediante consulta plebiscitária” em razão da “falta de legitimidade ativa do Requerente, por falta de ameaça concreta a direito individual, particularizado em sua pessoa”.

[23] “O parlamentar tem legitimidade ativa para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de leis e emendas constitucionais que não se compatibilizam com o processo legislativo constitucional. Legitimidade ativa do parlamentar, apenas” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão no Mandado de Segurança n. 24.642/DF. Relator: VELLOSO, Carlos. Publicado no DJ de 18/06/2004, p. 45).

[24] Art. 362. O interstício entre o primeiro e o segundo turno será de, no mínimo, cinco dias úteis.

[25] Trata-se do Requerimento nº 1.600, de 2009.

[26] Tal dispositivo, cuja redação foi estabelecida pela Resolução nº 35/2006, estabelece a possibilidade de prevalência de acordo de líderes sobre norma regimental desde que aprovado, mediante voto nominal, pela unanimidade dos Senadores presentes na sessão, resguardado o quórum mínimo de três quintos dos votos dos membros da Casa. “Art. 412. A legitimidade na elaboração de norma legal é assegurada pela observância rigorosa das disposições regimentais, mediante os seguintes princípios básicos: [...] III - impossibilidade de prevalência sobre norma regimental de acordo de lideranças ou decisão de Plenário, exceto quando tomada por unanimidade mediante voto nominal, resguardado o quorum mínimo de três quintos dos votos dos membros da Casa".

[27] A bem da verdade, a PGR, na manifestação apresentada nos autos da ADI nº 4.425/DF, datada de 30/09/2010, limitou-se a requerer a juntada do parecer ministerial constante da ADI nº 4.357/DF dada a similaridade dos argumentos delineados nas duas ações.

[28] Em aditamento de voto sobre a inconstitucionalidade formal, destacou o Ministro Dias Toffoli: “quando se exigem os dois turnos, isso não implica maturação, implica uma realidade material de se votar duas vezes. Simples assim. No caso específico, houve, em razão do que dispõe o regimento do Senado - o qual prevê o interstício -, a aprovação de requerimento dispensando o interstício pela unanimidade dos líderes. Eu não concebo, da leitura da Constituição, a ideia de que, quando se exigem os dois turnos, se exige uma maturação. Exige-se votação duas vezes, uma confirmação da votação. É o que houve, é o que basta, e não prevê prazo a Constituição, como destacou o voto divergente".

[29] “Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos”. [grifou-se]

[30] “Art. 32. O Distrito Federal, vedada sua divisão em Municípios, reger- se-á por lei orgânica, votada em dois turnos com interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços da Câmara Legislativa, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição”. [grifou-se]

[31] “O vício apontado - de que não decorreu o interstício de cinco dias entre a discussão e a aprovação em primeiro e segundo turnos -, não encontra respaldo na Constituição, que não prevê o referido interstício. Trata-se de exigência de natureza regimental situada em domínio interna corporis do Congresso”. [grifou-se]

[32] “Embora me cative a colocação, e toda a fundamentação, do eminente Relator, quando conclui violado o artigo 60, § 2º, da Constituição em sua substância – como já enfatizado, o preceito não fixa o interstício temporal entre os dois turnos, diversamente do que fazem os arts. 29 e 32, concernentes a Municípios e ao Distrito Federal-, parece-me, na linha do que foi sustentado pelos votos que me antecederam nesta data, que a ratio essendi foi atendida pelo largo debate ocorrido no Congresso Nacional sobre o tema, ao longo dos três anos de tramitação da PEC, com inclusive quatro audiências públicas promovidas. Não há falar, portanto, em violação do texto constitucional, em sua literalidade ou em sua essência, pelo fato de ter sido votada a Emenda na mesma noite, com uma hora apenas de intervalo, em regime de urgência, a pedido das lideranças dos partidos, em questão que classifico como interna corporis”. [grifou-se]

[33] “Vale salientar que a Corte, tradicionalmente, possui entendimento contrário à tese do controle jurisdicional dos atos do parlamento, quando envolvem discussão sobre a aplicação de normas regimentais de qualquer das Casas, afirmando tratar-se de problemática interna corporis”. [grifou-se]

[34] De acordo com Paulo Gustavo Gonet Branco, “a referência a minorias discretas e insulares alude a uma nota de rodapé (n. 4) no caso United States v. Carolene Products Co (304 U.S. 144, de 1938), em que se lançou o ethos da nova política de auto-contenção da Suprema Corte, sob o entendimento de que a jurisdição constitucional deve-se voltar primacialmente para resguardar as minorias com menor poder de defesa dos seus interesses e valores no jogo político habitual” (Em busca de um conceito fugidio – o ativismo judicial. In: FELLET, André et al (orgs). As novas Faces do Ativismo Judicial. Salvador: Podium, 2011, p. 387-402).

[35] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.425/DF. Relator para o acórdão: FUX, Luiz. Publicado no DJe de 19/12/2013.

[36] Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, vol. 1. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2012, p. 335: “a justificativa da existência do Estado não reside primariamente na proteção de direitos subjetivos iguais, e sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, dentro do qual civis livres e iguais se entendem sobre quais normas e fins estão no interesse comum de todos”.

[37] Cf. BARBOSA, ob. cit., p. 112-113.

[38] CATTONI, Marcelo. Devido Processo Legislativo. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 49-51.

[39] Cf. BERNARDES JÚNIOR, ob. cit., p. 115.

[40] Cf. BARBOSA, ob. cit., p. 161.

[41] Cf. HABERMAS, ob. cit., p. 159-163.

[42] Cf. HABERMAS, 2003a, p. 142.

[43] CATTONI, Marcelo. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1119.

[44] Idem, ibidem.

[45] HABERMAS, ob. cit., p. 326.

[46] ELY, John Hart. Democracia e Desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução: Juliana Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 136-137.    

[47] HABERMAS, ob. cit., p. 326.

[48] CATTONI, Marcelo. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al. Comentários..., p. 1121.

[49] CARVALHO NETTO, Menelick de. Prefácio. In: CATTONI, ob. cit., p. 31-32.

[50] Para crítica aos fundamentos do neoconstitucionalismo e da teoria dos direitos fundamentais, vide: KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. Direitos humanos, direito constitucional e neopragmatismo. São Paulo: Almedina, 2011, p. 195-214. “[A] tese da onipresença da Constituição é uma opção de exclusão, na medida em que enquadra o Poder Judiciário e, especialmente, o Tribunal Constitucional responsável pela última palavra em matéria de interpretação constitucional, no centro do Estado Democrático de Direito, excluindo, assim, o protagonismo do cidadão ou da comunidade política para quem se direciona a própria fundação da democracia [...] Onipresença da Constituição e onipotência judicial convertem-se em um mesmo tipo de ditadura do Judiciário que é diuturnamente reforçada pelo discurso elitista e excludente da racionalidade jurídica da ponderação” (p. 209-210).

[51] WALDRON, Jeremy. A dignidade da legislação. Tradução: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 5.

[52] WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2004, p. 102-103.

[53] Idem, p. 243.

[54] Idem, p. 53-54.

[55] VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo Institucional, Democracia e Estado de Direito: o debate entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional sobre a interpretação da Constituição. 2013. 203f. Tese (doutorado) - Faculdade de Direito da USP. Universidade de São Paulo, São Paulo, p. 139-140.

[56] WALDRON, Jeremy. A dignidade..., p. 184.

[57] Idem, p. 184-185.

[58] A respeito da vinculatividade normativa dos Regimentos Internos das Casas Legislativa, bem como de sua parametricidade para fins de controle de constitucionalidade, vide: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2008, p. 922-923; BARBOSA, ob. cit., p. 173-192; BERNARDES JÚNIOR, ob. cit., p. 110-111.

[59] BARBOSA, ob. cit., p. 174.

[60] MIRANDA. Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 486.

[61] Nesse sentido: BARBOSA, ob. cit., p. 191: “As normas regimentais são princípios e regras jurídicas de direito público, cuja observância por parte das Casas Legislativas é obrigatória e indisponível. Tais normas não estão sujeitas a modificações tácitas. A despeito de situarem-se no plano infraconstitucional, as normas regimentais referentes ao processo legislativo funcionam como parâmetros necessários para a aferição do cumprimento das disposições constitucionais acerca da produção válida de normas jurídicas. Por essa razão, sua violação pode levar à inconstitucionalidade do provimento legislativo resultante do processo viciado. Nessa hipótese, as normas regimentais funcionam como normas interpostas, uma vez que consubstanciam, por meio do exercício do poder autonormativo das Casas Legislativas, a delegação constitucional para estabelecer a medida necessária de deliberação capaz de justificar uma decisão nos discursos de justificação das normas".

[62] GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Tradução: Geraldo de Carvalho. Belo Horizonte, 2006, Del Rey, p. 19-20.

[63] Segundo o Prof. Dr. Sérgio Antônio Ferreira Victor durante aula ministrada no curso de pós-graduação strictu senso no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) no mês de outubro de 2014.


Autor

  • Victor Aguiar Jardim de Amorim

    Doutorando em Constituição, Direito e Estado pela UnB. Mestre em Direito Constitucional pelo IDP. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Licitações e Contratos Administrativos do IGD. Professor de pós-graduação do ILB, IDP, IGD, CERS e Polis Civitas. Por mais de 13 anos, atuou como Pregoeiro no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (2007-2010) e no Senado Federal (2013-2020). Foi Assessor Técnico da Comissão Especial de Modernização da Lei de Licitações, constituída pelo Ato do Presidente do Senado Federal nº 19/2013, responsável pela elaboração do PLS nº 559/2013 (2013-2016). Membro da Comissão Permanente de Minutas-Padrão de Editais de Licitação do Senado Federal (desde 2015). Membro do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA). Advogado e Consultor Jurídico. Autor das obras "Licitações e Contratos Administrativos: Teoria e Jurisprudência" (Editora do Senado Federal) e "Pregão Eletrônico: comentários ao Decreto Federal nº 10.024/2019" (Editora Fórum). Site: www.victoramorim.com

    Textos publicados pelo autor

    Fale com o autor


Informações sobre o texto

Artigo elaborado sob a supervisão do Prof. Dr. Gilmar Mendes, como requisito de avaliação parcial da disciplina “Jurisdição Constitucional” do programa de Mestrado em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Victor Aguiar Jardim de. O controle jurisdicional dos atos parlamentares: a (in)sindicabilidade da decisão interna corporis. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4549, 15 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/43596. Acesso em: 29 mar. 2024.