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Breves anotações sobre o procedimento de privatização da Açominas

Breves anotações sobre o procedimento de privatização da Açominas

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Introdução 

O presente artigo originou-se a partir de um recurso de apelação em uma Ação Civil Pública impetrada pelo Ministério Público Federal em Minas Gerais contra o procedimento de privatização da empresa Aço Minas Gerais S.A.(AÇOMINAS). Segundo o Parquet federal, o referido procedimento foi totalmente irregular por ferir vários ditames constitucionais. No entanto, a Douta Juíza Federal não acatou as razões do órgão ministerial, interpondo este apelação para o Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Para a melhor compreensão de todos os problemas envolvidos em tal privatização, dividiremos este artigo em seis grandes partes. Na primeira, iremos analisar a questão do desrespeito ao princípio da legalidade no referido procedimento. A seguir, analisaremos a teoria da natureza das coisas, que hoje já admitida por nossos Tribunais Superiores (STJ e STF). Em um terceiro momento, teceremos alguns comentários em relação ao princípio da moralidade administrativa e em que momento a União Federal e seus agentes desviaram-se deste princípio constitucional. A seguir, trataremos do princípio da supremacia do interesse público em relação à privatização da empresa mineira. Por fim, nos dois últimos capítulos, examinaremos o princípio da proporcionalidade e sua relação com o tema que estamos a tratar e a teoria do fato consumado do STJ, teoria esta que deve lançar uma "pá de cal" sobre o problema, sem examinar a racionalidade e a Justiça do procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A.

No entanto, antes de ferirmos a questão do princípio da legalidade, importante se faz desenvolvermos uma idéia de grande importância para a plena compreensão do problema que passaremos a discutir, qual seja, a noção de paradigma, cunhada por THOMAS KUHN, em obra hoje clássica(KUHN:1997). Este filósofo da Ciência perquiriu os meios pelos quais a ciência evolui, chegando à conclusão de que as evoluções científicas são, na verdade, fruto de grandes rupturas, às quais ele denominou de revoluções. Estas, rompem com o paradigma anterior, começando do zero, com um novo paradigma que satisfaça as novas exigências científicas. Paradigmas, para este autor, são um conjunto de crenças compartilhadas por determinada comunidade científica, conceitos e pre-compreensões que permitem o desenvolvimento da ciência e, em última instância, a própria comunicação em sociedade. Segundo CARVALHO NETTO(CARVALHO NETTO:1996), esta noção apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensões e visões de mundo, consubstanciados no pano-de-fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de nós mesmos e do mundo. Por outro lado, também, continua o autor, padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos perídos de tempo e em contextos determinados.

Tendo em vista todo o exposto, podemos perceber hoje a existência de três paradigmas constitucionais: o paradigma do Estado de Direito; o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado Democrático de Direito. É bem verdade que a recuperação histórica que aqui esboçaremos é apenas parcial, pois a história é incomensuravelmente mais rica do que qualquer esquema de interpretação que se possa lançar, sendo, portanto, impossível o desenvolvimento de uma ciência histórica sob os cânones das ciências empíricas(VEYNE: 1998). Assim, faremos uma recuperação apenas parcial da história, com o intuito claro de entendermos um pouco melhor as irregularidades cometidas no procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A.

O primeiro paradigma constitucional de Estado surge em decorrência de lutas sangrentas contra o Antigo Regime e o Absolutismo Monárquico. É o Estado de Direito. Caracterizado pelas máximas do liberalismo econômico, seus defensores entendiam que o Estado tinha sido criado para a realização da felicidade humana, sendo esta alcançada se a sociedade fosse deixada livre para que pudesse se desenvolver. Acreditava-se que apenas através do egoísmo humano poder-se-ia alcançar a felicidade e riqueza para todos(RIALS:1988). É dessa época o surgimento dos primeiros direitos: igualdade, liberdade e propriedade. Desde logo, é bom que se diga que tais direitos eram garantidos apenas formalmente, ou seja, a igualdade era na lei, a propriedade era apenas para poucos e a liberdade era entendida como a possibilidade de se fazer tudo aquilo que a lei não proibisse. O Estado devia apenas assegurar estes direitos e dar aos cidadãos segurança para que a sociedade se desenvolvesse. Como se vê, este modelo não poderia vingar, como de fato, em pouco tempo, foi contestado.

Devido a inúmeras críticas e lutas sociais, principalmente após o surgimento do operariado e do sucesso da Revolução Russa, o modelo liberal foi substituído pelo Estado de Bem-Estar Social, caracterizado, principalmente, pelo surgimento de novos direitos, ditos sociais, tais como saúde, educação, trabalho etc. Se antes o Estado deveria ficar inerte, agora ele é chamado a atuar, já que as pessoas não são iguais na realidade. Os direitos garantidos anteriormente, denominados por BOBBIO(BOBBIO:1992) de direitos de primeira geração, foram reformulados por essa nova série de direitos, denominados pelo italiano de direitos de segunda geração. Agora, igualdade é também material, devendo o Estado intervir quando haja uma grande desigualdade entre as partes; liberdade, é fazer tudo o que a lei permite, já que o Estado deve intervir na sociedade e só pode fazê-lo através de lei; a propriedade agora deve realizar sua função social. Este paradigma funcionou muito bem até meados da década de 1970, quando, com as crises do petróleo, percebeu-se que o modelo era bastante frágil. E, por uma simples razão: tinha ele falhado na sua pretensão maior, que era a de formar cidadãos; este paradigma, segundo seus críticos, formou, no máximo, clientes do Estado, já que este dava tudo e, quem nunca teve alguma coisa, quando passa a usufruir de algo, mesmo que de péssima qualidade, achava um grande avanço e não pedia melhorias. Assim, o Estado Social ofereceu saúde, educação etc., mas de péssima qualidade. E não se pense que esta crítica tenha sido feita apenas aos países de Terceiro Mundo, pois até mesmo na Europa ela foi recorrente.

Tendo em vista tudo isso, começou-se a desenvolver um novo paradigma, o do Estado Democrático de Direito, restando ainda inacabado. Para este novo modelo, todos os direitos anteriores só servem enquanto um meio para se alcançar mais direitos e de melhor qualidade. Em outras palavras, todos os direitos são vistos em um sentido caráter procedimental, não sendo fins em si mesmos. Surgem, a partir de 1970, novos direitos, ditos de terceira geração ou difusos, exatamente porque não pertencem mais a apenas um indivíduo, mas a uma coletividade indeterminada de pessoas, às vezes mesmo, dizendo respeito ao mundo inteiro. Assim, são os direitos relacionados com a ecologia, consumidor, patrimônio histórico e cultural, direitos da mulher, a uma administração pública moralizada e correta, que faça bom uso do dinheiro dos cidadãos etc. Além disso, uma característica central deste paradigma é a necessidade de fundamentação de todos os atos estatais, para que se possa controlar, democraticamente, os governantes de determinado país. E uma reformulação do que seja o público. Se sob a égide dos dois paradigmas anteriores, público era considerado apenas o estatal, para o paradigma do Estado Democrático de Direito, público é bem mais amplo, englobando a sociedade civil organizada, já que muitas vezes o estatal é privado, de acesso de poucos.

É nesse paradigma que surge a Ação Civil Pública, como instrumento processual hábil a controlar os atos lesivos aos direitos difusos ou de terceira geração e, dentre estes, o uso do dinheiro público por parte do Estado. Assim, se o Estado usa de maneira irresponsável suas verbas, causando prejuízos ao erário público, seja por não respeitar os procedimentos legais em um processo de privatização, originando uma subvalorização de seus bens, seja ao favorecer uma empresa em processo de licitação, devem seus agentes ser responsabilizados penal, civil e administrativamente, para que toda uma coletividade não reste lesada, em decorrência da ação inescrupulosa de alguns poucos.

Ora, o caso que a seguir vamos analisar adequa-se muito bem ao já exposto. O Estado, através de seus agentes, cometeu diversas ilegalidades e inconstitucionalidades, quando da realização da privatização da empresa Aço Minas Gerais S.A. A seguir, analisaremos algumas dessas irregularidades, dentre as quais o descumprimento dos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade administrativa, da proporcionalidade, da supremacia do interesse público, etc.


1. Do Desrespeito ao Princípio da Legalidade

O Estado Democrático de Direito se alicerça, do ponto de vista orgânico, sobre o primado da legalidade e da divisão de poderes. Legalidade que fornece a medida de contenção e, no viés social, de programação do Estado, controlável pela sociedade e, em particular, pelo Judiciário. Divisão de poderes que conforma um certo sentido de lagalidade, distribuindo tarefas e funções entre os órgãos estatais de soberania.

Ao que aqui nos interessa houve desrespeito aos princípios por ter o Executivo, contra qualquer autorização constitucional, se excedido em seu poder regulamentar no disciplinamento dos passos de concretização da privatização da AÇOMINAS.

Sem intentar ressuscitar a polêmica não resolvida satisfatoriamente da reserva legal para efeito de transferência do controle acionário de empresa estatal no certo paralelismo do art. 37, XIX da Constituição Federal, que lançaria no limbo da ilicitude o Decreto n. 426/92 que incluiu, per se, a Aço Minas Gerais S.A. no Programa Nacional de Privatização, impende reconhecer a ilegalidade do Decreto n. 724/93 que, por sua graça e imperium, inovou na ordem jurídica, ao elastecer o rol de modalidades de pagamento, exaustivamente previsto em lei, designadamente no art. 16 da Lei n. 8.031/90. Por facilidade, cotejemos ambos os enunciados:

          "Art. 16 – Para o pagamento das alienações previstas no Programa Nacional de Desestatização, poderão ser adotadas as seguintes formas operacionais:

I – as instituições financeiras privadas, credoras das empresas depositantes de ações junto ao Fundo Nacional de Desestatização, poderão financiar a venda das ações ou dos bens das empresas submetidas à privatização, mediante a utilização, no todo ou em parte, daqueles créditos;

II – os detentores de títulos da dívida interna vencidos, emitidos pelo alienante das ações ou dos bens e que contenham cláusula de coobrigação de pagamento por parte do Tesouro Nacional poderão utilizá-los como forma de quitação de aquisição, caso sejam adquirentes das referidas ações ou bens;

III – mediante transferência de titularidade dos depósitos e outros valores retidos junto ao Banco Central do Brasil, em decorrência do Plano de Estabilização Econômica.

Parágrafo único. A utilização das formas operacionais mencionadas neste artigo será aprovada com base nos procedimentos previstos nos arts. 5º e 21 desta lei(Lei 8.031/90)."

"Art. 1º. O art. 16 da Lei nº 8.031, de 12 de abril de 1990, assegura aos titulares de créditos e títulos o direito de utilizá-los na aquisição de bens privatizáveis, não limitando as formas operacionais, as formas de pagamento e os bens, inclusive creditórios, que poderão ser aceitos em permuta daqueles bens(Lei 8.250/91)."

O art. 1º da Lei n. 8.250/91 padece da clareza requisitada a todo texto legal, máxime àquele de pretensão interpretativa. Seria, inclusive como já admitido em doutrina e jurisprudência de países europeus, de ser reconhecida a sua invalidade técnico-jurídica em razão disso. Sem embargo, fazendo-se certa concessão ao ilógico e à atecnia, não há de se vislumbrar no citado dispositivo senão uma dimensão prática, instrumental, às modalidades de pagamento previstas no art. 16 da Lei n. 8.031/90, ali não inovando ou incluindo outras espécies não previstas. De modo que aos titulares de créditos e títulos(digam-se: instituições financeiras privadas, credoras das empresas depositantes de ações junto ao FND – art. 16,I; detentores de títulos de dívida interna vencidos, emitidos pelo alienante com cláusula de coobrigação por parte do Tesouro Nacional – art. 16, II; e titulares de depósitos e outros valores retidos junto ao Bacen, por força do chamado Plano Collor – art. 16, III) continua a se assegurar a utilização de bens privatizáveis, de seus títulos e créditos, não limitando agora as formas operacionais(v.g., por meio físico ou escritural, por endosso ou cessão de crédito), as formas de pagamento(se à vista ou prazo, conquanto que vencidos) e os bens, inclusive creditórios(contrato, cártulas, notas, cédulas de crédito, etc). A mera disposição não criou outro tipo de pagamento, mas apenas "operacionalizou", ou a tanto desejou, as modalidades antes previstas.

No entanto, o art. 45 do Decreto n. 724/93, aí sim, por graça e imperium, ampliou o que a lei restringia. Assim:

          "Art. 45. No pagamento do preço de aquisição dos bens referidos no art. 4º, por autorização da comissão diretora:

I – a instituição financeira privada, credora de sociedade depositante de ações no Fundo Nacional de Desestatização poderá financiar a venda de ações do capital social ou de elementos do ativo patrimonial da sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização, mediante utilização no todo ou em parte, do respectivo crédito;

II – o credor por título emitido em moeda nacional pelo alienante das ações do capital social de sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização, ou de bens, que, garantido pelo Tesouro Nacional, desde que vencido e exigível poderá utilizar, total ou parcialmente, o respectivo crédito;

III – o adquirente de participação societária ou de elementos do ativo patrimonial de sociedade incluída no Programa Nacional de Desestatização poderá, no todo ou em parte:

a. utilizar o certificado de privatização, observado o disposto na Lei nº 8.018, de 11 de abril de 1990;

b. adotar outras formas de pagamento definidas em resolução da comissão diretora, inclusive a assunção do controlador; e

c. o titular dos direitos a que se refere o art. 1º da Lei nº 8.250, de 24.10.1991, poderá utilizá-los total ou parcialmente."

O Executivo utilizou-se do argumento de que os arts. 6º, XIV e 28 da Lei n. 8.031/90 atribuiria a ele e à Comissão Diretora competência regulamentar. Certo, a competência regulamentar, não autônoma, subordinada ou simplesmente executiva; jamais originária, independente e inovadora como fez o malsinado Decreto.

Outro ponto problemático no procedimento de privatização da Aço Minas Gerais S.A. diz respeito à admissão de títulos da dívida pública como moeda de pagamento pelas ações da empresa, títulos estes que têm valor muito inferior ao valor pelo qual serão aceitos por ocasião da venda. Na decisão de primeiro grau, a Douta Juíza se manifestou no sentido de que "o credor da dívida pública da União tem o direito de livre dispor de seu crédito, isto é, pode até mesmo destruir os papéis que incorporam seu crédito. Pode também negociá-los a valor inferior ao de face, é direito seu. A compra e venda de títulos públicos no mercado é negócio jurídico estranho à União Federal, pois para ela a obrigação é de adimplir seus débitos, pagando o que se obrigou a pagar". Com todo respeito à Magistrada, entendemos que ela incorreu em equívoco, tendo em vista que a União Federal, quando realiza negócios jurídicos normalmente o faz em nome de terceiros(todo o povo brasileiro) e não como mero particular. Assim, a compra e venda de títulos públicos no mercado não é negócio estranho à União, já que ela defende ou deve defender o interesse do país, devendo adimplir sim seus débitos, mas tendo sempre em vista o interesse público, como corolário do paradigma do Estado Democrático de Direito, insculpido no art. 1º, da Constituição da República. Além do mais, a União, ao admitir títulos da dívida pública como moeda de pagamento pelas ações da empresa, com um valor bem inferior ao valor pelo qual serão aceitos por ocasião da venda, feriu a exigência de atenção à "natureza das coisas".


2. A Teoria da Natureza das Coisas(Natur der Sache)

Por mais que se tente recorrer a um princípio de lealdade a que se veria vinculada a União na obrigação de pagar o valor nominal e encargos de seus débitos, incorporados nos títulos dados em pagamento da AÇOMINAS, não se pode obnubilar a "natureza das coisas"(Natur der Sache). Ocorrem-nos as lições de KARL LARENZ, secundado por RADBRUCH, KAUFFMANN, MÜLLER, HENKEL, ZIPPELLIUS, ENGISCH, MAIHOFFER e até BOBBIO, que propugnam o desenvolvimento do Direito superador da lei por recurso do juiz à realidade do existencial, que "transcende a mera factualidade e que penetra na esfera do que é suscetível de sentido e de valor"(LARENZ:1997). Sua exigência deriva da justiça de tratar igualmente aquilo que é igual e desigualmente aquilo que é desigual tanto no tráfego jurídico-negocial como em relação à responsabilidade jurídico-civil e jurídico-penal. Daí por que, o exemplo é do ex-professor da Universidade de Munique, "da natureza da coisa ‘dinheiro’ resulta, para a dívida pecuniária, que esta não pode simplesmente equiparar-se a mera obrigação real normal. O devedor de dinheiro está obrigado a proporcionar um valor em dinheiro nominal expresso em cifras, não à entrega de uma determinada mercadoria"(LARENZ:1997). Esse exemplo, por paradoxal, nos remete à "realidade da coisa" chamada mercado. Os "títulos podres", admitidos como moeda de pagamento da privatização, circulavam no mercado por um valor significativamente abaixo de sua expressão facial. Eram chamados de "podres" exatamente por isso e, pelo fato de, em seus vencimentos, ou sofrerem calotes ou serem rolados, jamais quitados, à exceção talvez dos títulos da dívida agrária. Não há que se falar aqui em lealdade ou obrigação ética de a União honrá-los, pois a engenharia da dívida pública, por um lado, se alimenta e, bem ou mal, dá sustentação à política econômica por esse mecanismo; e pelo mesmo mecanismo, por outro lado, especuladores do mercado compram, trocam e vendem os títulos representativos dessas dívidas, mas não há expectativa de virem a receber o valor de face, senão de ganharem com a valorização ou desvalorização relativa desse valor de face de um para outro mês e, às vezes, de um para outro dia, ou até no mesmo dia. Ao interromper esse ciclo, a União proporcionou um enriquecimento sem causa do investidor-especulador em detrimento dos cofres públicos. Em lugar de lealdade, houve transferência de riqueza pública, comum, para o patrimônio privado, em troca de uma redução virtual da dívida interna. Em lugar da "realidade das coisas" do mercado, ainda que sob uma "lógica" complicada, um artifício de sangria do Tesouro Nacional, a face perversa da "privatização do público".

Pode parecer, à primeira vista, que a realidade das coisas estaria no pagamento pontual e integral do título de crédito. Mas isso não se sustenta após uma análise mais detida. O mercado é auto-programável; suas leis muito mais que regulativas, são constitutivas de sua realidade. Essa dinâmica auto-gerativa só pode ser alterada por força exógena e lícita, se houver uma sólida argumentação em seu favor que delucide a exigência imperiosa de preservação do próprio mercado. Jamais sem uma pauta de ponderação de interesses bem formada; nunca, com a "expropriação" de um bem público em prol de reduzidíssima parcela de já privilegiadas pessoas.

É em situações como essa que GUSTAV BOEHMER reconhece a criação judicial do Direito em correção à atitude presunçosa do legislador que intenta moldar o mundo a seus caprichos e não conforme à natureza das coisas(BOEHMER:1952). E que também fez LARENZ valer-se da máxima horaciana "naturam expellas furca tamen usque recurret" para ver o efeito corretivo da jurisprudência dos tribunais ali "onde a regulação legal falseie de modo grosseiro a natureza das coisas"(LARENZ:1997).

E, de fato, a Jurisprudência alemã tem atuado nesse sentido, destacadamente o Tribunal Constitucional Federal(BverfGe 3, 427; 12, 251; 26, 257). Assim também o nosso Supremo Tribunal Federal(HC nº 77.444-RJ, Rel. Min. Néri da Silveira, 28 de abril de 1999) e Superior Tribunal de Justiça(RESP 153155/SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ de 16/03/98, p. 167; RESP 12507/RS, Rel. Min. Athos Carneiro, DJ de 01/02/93, p. 465; RESP 17073/MG, Rel. Min. Claúdio Santos, DJ de 23/11/92, p. 21883).

É em face dessa doutrina que se defende a irregularidade da venda da AÇOMINAS por terem sido admitidas formas de pagamento que contrariam o mercado, seu regular funcionamento, importando a mais prejuízo ao Erário Público. Nesse caldo de ilicitude estão submersos o Decreto n. 724/94 e mesmo o art. 2º da Lei n. 8.018/90.


3. Da Inobservância do Princípio da Moralidade Administrativa

A Constituição de 1988 inegavelmente trouxe diversos avanços em seu texto, naquele amplo movimento de redemocratização do país. E um destes avanços, que tem paulatinamente sido descoberto pela doutrina e jurisprudência, está contido logo em seu primeiro artigo, quando declara que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. Em decorrência disso, vários princípios foram acolhidos, expressa ou implicitamente, por nosso Texto Fundamental. Além daqueles princípios clássicos da igualdade, liberdade, legalidade etc., inovou o constituinte, sob a influência do paradigma do Estado Democrático de Direito, ao incorporar o princípio da moralidade administrativa, insculpido no art. 37 caput da Constituição.

No entanto, desrespeitou-o a União, no caso em que estamos analisando, ao aceitar títulos como moeda de pagamento pelas ações da empresa, títulos estes que teriam um valor bem inferior ao valor que seriam aceitos na ocasião da venda. Em outras palavras, a União desde o início já sabia que levaria prejuízo na transação, pois aceitaria um título com um certo valor na ocasião da venda das ações da empresa e, futuramente, este mesmo título alcançaria um valor bastante inferior àquele aceito inicialmente. É como se em um negócio privado, por exemplo, um vendedor aceitasse um cheque que, no dia da compra valia R$10.000,00(dez mil reais), já sabendo que no dia em que descontasse valeria apenas metade de seu valor do dia da compra. Se no âmbito privado este fato resulta tão estapafúrdio e ilógico, sendo mesmo bastante difícil acreditar que alguém aceitaria realizar tal negócio, na esfera pública este fato alcança dimensões inacreditáveis, pois aqui o lesado não é apenas a União, mas o país inteiro que está vendo seu patrimônio ser vendido por um preço muito aquém do seu valor de mercado. Fere, destarte, o princípio da moralidade administrativa que significa, em poucas palavras, que o administrador deve zelar pela coisa pública, tendo em vista os valores morais de determinada sociedade. Desta forma, o administrador público não deve ser apenas um administrador, mas um bom administrador, agindo de maneira íntegra, correta, visando sempre ao interesse da coletividade. Neste ponto, é interessante o magistério de MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO:

          "Em resumo, sempre que em matéria administrativa se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras de boa administração, os princípios de justiça e de eqüidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralidade administrativa."(DI PIETRO:1998)

Pode-se argumentar que o princípio da moralidade administrativa envolve conceitos indeterminados, incertos, que podem trazer prejuízo à segurança do Direito. Este argumento, contudo, não se sustenta. Como ensina DWORKIN(DWORKIN:1997), o ordenamento jurídico não é composto apenas de regras, mas de princípios, estes muito mais importantes que as primeiras, por serem eles que dão o embasamento para o surgimento de regras. E mais, esses princípios têm força jurídica, no sentido de que vinculam todos os sujeitos que se submetem ao ordenamento jurídico. Se é verdade que possuem uma estrutura diferente daquela das regras, também é verdade que são muito mais indeterminados do que aquelas. Mas isso não inviabiliza a aplicação dos princípios no caso concreto. Muito pelo contrário. DWORKIN defende que o juiz deve ter um papel criador, no sentido de que é ele que diz o direito. Não há problema na indeterminação relativa dos princípios, já que o juiz, quando decide um caso concreto, analisa-o, interpreta-o e retira do meio social em que vive e do próprio sistema jurídico a significação correta de determinado princípio. E mais, sempre vai existir uma certa tensão entre o princípio da segurança do Direito e o da justiça das decisões, já que a característica central dos princípios é sempre pressupor e conviver com seus opostos(DWORKIN:1997). Vem-nos ainda à mente os ensinamentos de MÜLLER(MÜLLER:1996), segundo o qual o texto legal e, com mais razão, o constitucional, é sempre indeterminado. A norma jurídica só é extraída após a concretização desta, trabalho que significa a interpretação não apenas do programa da norma(texto jurídico), mas também do campo normativo(situações fáticas que circundam o texto normativo). Após esta interpretação, retira-se uma norma para o caso("norme d’espèce) e, conseqüentemente uma decisão com força vinculante(MÜLLER:1996). Portanto, como vemos o Direito convive com indeterminações, o que não inviabiliza a sua aplicação, exatamente por estar intimamente vinculado ao caso concreto.

Assim, no caso concreto que estamos analisando, fácil é ver que a União desrespeitou o princípio da moralidade administrativa, ao aceitar títulos que teriam um valor inferior ao valor pago no dia do certame. Não é preciso ser nenhum gênio para perceber que a União(rectius, seus "mandatários")aceitou, deliberadamente, ser lesada na transação econômica que realizou.

Com este único e mesmo ato, a União conseguiu ainda ferir os princípios da supremacia do interesse público e da proporcionalidade.


4. O Princípio da Supremacia do Interesse Público e
a Privatização da Aço Minas Gerais S.A.

A União, através de seus agentes, conseguiu ainda, no procedimento de venda das ações da empresa Açominas, ferir o princípio da supremacia do interesse público, ao aceitar como moeda de pagamento títulos da dívida pública que alcançariam um valor bem inferior após o dia da realização do leilão. De fato, prejudicou toda a Nação Brasileira, ao não valorizar patrimônio que não pertence a ela(União Federal), mas sim aos cidadãos brasileiros.

Ressalte-se, com CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO(MELLO:1998), que o princípio da supremacia do interesse público é princípio geral de Direito inerente a qualquer sociedade. É a própria condição de sua existência. Assim, não se radica em dispositivo específico algum da Constituição, ainda que inúmeros deles aludam ou impliquem manifestações concretas deste princípio, como, por exemplo, aqueles relativos à função social da propriedade, da defesa do consumidor ou do meio ambiente(art. 170, III, V e VI, da Constituição da República), ou em tantos outros. Afinal, o princípio em causa é um pressuposto lógico do convívio social. Portanto, não poderia a União ter aceitado títulos podres como moeda de pagamento no leilão da Aço Minas Gerais S.A., exatamente pelo fato destes alcançarem valor inferior quando fossem descontados, ferindo destarte o princípio da supremacia do interesse público, já que não é do interesse da sociedade brasileira ver seu patrimônio ser vendido por um preço muito inferior ao do mercado.


5. Da Desobediência ao
Princípio da Proporcionalidade

Por fim, a União desrespeitou o princípio da proporcionalidade, pois aceitou títulos da dívida pública como moeda para o pagamento das ações da Açominas. Para alguns, este princípio é decorrente do princípio da legalidade, para outros do devido processo legal(sendo mesmo nos Estados Unidos chamado de princípio da razoabilidade ou do devido processo legal substantivo) (CASTRO:1989), o certo é que se originou na Alemanha, devido aos trabalhos dos Juízes do Tribunal Constitucional Federal(BverfGe 7, 377; 7, 198; 27, 71). Como assevera CANOTILHO(CANOTILHO:1998), esse princípio pode ser utilizado em dois sentidos. Em um sentido amplo, significa a proibição do excesso e diz respeito à limitação do Poder Executivo, estando, para alguns, intimamente conexionado com os direitos fundamentais. Em um sentido restrito, é entendido como princípio da justa medida, ou seja, meios e fim são colocados em equação mediante um "juízo de ponderação", com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se de pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

E onde se encontra dito princípio na Constituição da República? Sem dúvida, é um princípio implícito, extraído do artigo 1º do Texto Fundamental, quando declara que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito. De fato, nesse paradigma, em que há a revalorização da figura do cidadão, concedendo-se novos direitos a ele e permitindo-se, cada vez mais, que participe das arenas públicas, com o intuito de criar consensos, para que as decisões estatais sejam realmente públicas(daí o princípio da publicidade expressamente previsto em nossa Constituição), qualquer ato estatal deve ser comparado em seus meios e fins. Se a Administração tomou certa medida desproporcional(no sentido de mais gravosa para o cidadão)em relação aos fins que desejaria alcançar, tal medida é inconstitucional, por ferir o princípio da proporcionalidade. Ora, foi exatamente isso o que aconteceu. A União, ao aceitar títulos como moeda de pagamento das ações da Açominas, que alcançariam um valor inferior após a venda destas ações, feriu o princípio da proporcionalidade, pois poderia ter alcançado o mesmo objetivo(venda das ações da Açominas)através de outro meio menos gravoso para a sociedade como um todo. Se, por exemplo, não tivesse aceitado como forma de pagamento tais títulos, ter-se-ia conseguido vender as ações, talvez até por um preço superior ao arrecadado e diminuído ainda mais a dívida pública, seja interna ou externa, já que era este o objetivo da venda das ações da empresa.


6. A Teoria do Fato Consumado do STJ e a
Privatização da Aço Minas Gerais S.A.

O Superior Tribunal de Justiça(STJ) tem acolhido, há algum tempo, a teoria do fato consumado. Segundo o Egrégio Tribunal, em algumas situações, devido ao transcurso de tempo considerável, não seria mais possível desconstituírem-se situações jurídicas, pois haveria graves inconvenientes de ordem prática, não só para o beneficiado, como para terceiros. Assim, tendo-se consumado o fato, não seria mais possível voltar ao status quo ante, mesmo que eivado de vícios jurídicos. Vejamos algumas decisões que esclarecem melhor esta doutrina:

"EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL - PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA TELEBRÁS - FATO CONSUMADO - RESULTADO POSITIVO - CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES - DESPROVIMENTO.

          I - A ocorrência, com resultado positivo, do leilão de privatização do sistema TELEBRÁS, constitui fato consumado que se afigura inconveniente, na espécie, revolver.

          II - Circunstâncias supervenientes, decorrentes de crise mundial no mercado financeiro, demonstram a conveniência e oportunidade da manutenção do certame.

          III - Impugnação recursal que não elide as razões da decisão agravada.

          IV - Recurso a que se nega provimento." (AGP 980/SP; Agravo Regimental na Petição; Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro; DJ de 30/11/98, p. 39.)

          "EMENTA: ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CURSO PROFISSIONALIZANTE. CONCLUSÃO DO ESTÁGIO. ENSINO SUPERIOR. MATRÍCULA. FATO CONSUMADO, EM DECORRÊNCIA DE LIMINAR CONCEDIDA. SITUAÇÃO FÁTICA JÁ CONSOLIDADA. CIRCUNSTÂNCIAS ESPECIAIS. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL

          I - Se, na hipótese, a aluna, por força de decisão favorável do juízo monocrático, tendo concluído o estágio, já vem há muito tempo freqüentando as aulas do curso superior, faltando apenas dois semestres para concluí-lo, tem-se consolidada uma situação fática cuja desconstituição seria de todo desaconselhada, sobretudo se considerada a inexistência de prejuízos a terceiros.

          II - Não como regra geral, mas em circunstâncias especiais e em respeito à segurança das relações jurídicas, a jurisprudência predominante desta Egrégio Corte, em casos semelhantes, tem admitido preservar a situação já consolidada e irreversível, sem que dela resulte prejuízo a terceiros.

          III - Recurso provido. Decisão unânime." (Resp. 34548/RS; Rel. Min. Demócrito Reinaldo; DJ de 28/06/93, p. 12868.)

          "EMENTA: ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. ESTUDANTE. TRANSFERÊNCIA. SITUAÇÃO FÁTICA CONSOLIDADA POR DECISÃO JUDICIAL. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS.

          (...)

          4. Segurança concedida há mais de 02(dois) anos, determinando a transferência pleiteada, sem nunca ter sido a mesma cassada e que, pelo decorrer normal do tempo, a impetrante já deve ter concluído o curso. Ocorrência da teoria do fato consumado, aplicável ao caso em apreço.

          5. Não podem os jurisdicionados sofrer com as decisões colocadas à apreciação do Poder Judiciário, em se tratando de situação fática consolidada pelo lapso temporal, face à morosidade dos trâmites processuais.

          6. Em se reformando a r. sentença concessiva e o v. acórdão recorrido, neste momento, estar-se-ia corroborando para o retrocesso na educação dos educandos, "in casu", um acadêmico que foi transferido sob a proteção do Poder Judiciário e que já deve ter terminado seu curso. Em assim acontecendo, não teria o impetrante, com a reforma da decisão, o acesso à reta final do seu curso. Pior, estaria perdendo anos de sua vida freqüentando um curso que nada lhe valia no âmbito universitário e profissional, posto que cessada tal freqüência. Ao mais, ressalte-se que a mantença da decisão "a quo" não resultaria qualquer prejuízo a terceiros, o que é de bom alvitre.

          7. Cabe ao juiz analisar e julgar a lide conforme os acontecimentos passados e futuros. Não deve ele ficar adstrito aos fatos técnicos constantes dos autos, e sim aos fatos sociais que possam advir de sua decisão.

          8. Precedentes desta Casa Julgadora.

          9. Recurso especial improvido, em face da situação fática consolidada". (Resp. 153033/RN; Rel. Min. Demócrito Reinaldo; Relator para o acórdão Min. José Delgado; DJ de 22/03/99, p. 62.)

O primeiro problema que devemos ressaltar é que o STJ, com a teoria do fato consumado, lançou uma pá de cal sobre casos que, aparentemente semelhantes, de fato são bem distintos. Assim, esta teoria acolhida pelo Egrégio Tribunal tem-se constituído em uma espécie de "passe de mágica" para resolver questões jurídicas com um fundo político complexo. Destarte, o STJ, ao utilizar-se desta doutrina, algumas vezes foge do seu dever de bem decidir tendo por base os princípios do direito, como uma forma de não criar atritos com o Poder Executivo. Não se está aqui querendo dizer que o fato consumado seja ruim tout court. Apenas que deve ser usado com eqüidade, diferenciando-se o que deve ser diferenciado. E passamos ao segundo problema desta doutrina, mais especificamente o que diz respeito à questão hermenêutica.

Mais modernamente, os principais autores de Direito Constitucional têm-se preocupado com o problema concernente à interpretação da Constituição. Em vista disso, surgiram novas teorias sobre a Hermenêutica Constitucional, que devem ser ampliadas para a Hermenêutica Jurídica como um todo. Estes autores começam por criticar os métodos tradicionais de interpretação das leis. Envolvidos em um movimento de crítica dos métodos científicos, como instrumentos seguros para se alcançar a verdade científica, eles não aceitam o fato de que métodos objetivos possam ser capazes de, por si sós, levarem a uma interpretação correta da norma jurídica. E isto pelo simples fato de que, quando se vai interpretar uma norma jurídica, seja ela qual for, deve-se levar em consideração o caso concreto que desencadeou o processo interpretativo da norma, pois a interpretação desta serve para a solução de um conflito concreto. É o que GÜNTHER denomina de discurso de aplicação. Em linhas gerais, este autor defende que existem dois tipos de discurso: o de justificação e o de aplicação. O primeiro é característico da lei. Em outras palavras, é um discurso geral, abstrato, obrigatório para todos. No entanto, ao lado deste, existe o discurso de aplicação, que se caracteriza por ser individual, concreto e obrigatório apenas para as partes, pelo fato de ser histórico e, como tal, irrepetível por excelência. Como se percebe, é o discurso típico da atividade jurisdicional. O que este autor está querendo dizer é que a atividade jurisdicional deve sempre levar em consideração o caso concreto, que, por definição, é único, histórico, irrepetível (OLIVEIRA:1998). Os juízes, em sua atividade de prestar jurisdição, devem interpretar o caso concreto, buscando sempre decidi-lo com base em princípios que, no dizer de ALEXY, são comandos normativos-axiológicos otimizáveis. O juiz, para ALEXY, deve fazer um trabalho de ponderação material destes comandos(princípios)(ALEXY:1997).

Tendo em vista todo o exposto, podemos entender o erro cometido pelo STJ ao aplicar a teoria do fato consumado. O Tribunal não interpretou os casos concretos, utilizando uma única interpretação para casos discrepantes, gerando assim enormes injustiças. Dessa forma, considerou corretamente que se tratava de fato consumado no caso de transferência de alunos de uma faculdade para outra em diversos pontos do país, quando estes tinham sido transferidos do seu emprego. E decidiu bem, por não enxergar neste fato nenhum prejuízo a terceiros e pelo fato dos estudantes estarem agindo de forma lícita, por terem conseguido liminares, mas, que, pela morosidade da Justiça, o tempo havia transcorrido e esta não havia dado ainda a decisão de mérito. No entanto, por falha de interpretação, estendeu esta doutrina a casos que se assentavam em irregularidades, causando sérios prejuízos à sociedade. Ora, é princípio clássico de que não pode haver fato consumado se este se assenta em uma ilegalidade, já que é um contra-senso o direito proteger aquilo que não é lícito.

No caso em que estamos analisando, após a realização do leilão, vendida a Açominas, toda a argumentação até aqui desenvolvida mereceria a pá de cal do fato consumado?

Entendemos que não. Aponta-se aqui um sério vício, insanável vício de ilegalidade do Decreto n. 724/93 que deu sustentação ao Edital n. A-3/93, de todo o consectário procedimento de licitação da Açominas, inclusive sua venda. E de violação de princípios constitucionais inafastáveis que maculam irretorquivelmente todo o agir administrativo até o seu desfecho.

Deixar que a teoria do fato consumado justifique e sane tais vícios, vale reconhecer que a ordem jurídica se apoiou no princípio da efetividade e não da constitucionalidade, na "força dos fatos" e não no padrão-legalidade(FERRAZ JR.:1995). Ou, como acentuou PIZZORUSSO (PIZZORUSSO:1984), que se buscou abrigo numa fonte "extra ordinem, em exercício derrogatório excepcional da Supremacia Constitucional(Verfassungsdurchbrechungen). Algo que rejubila arautos do voluntarismo autoritário, como CARL SCHMITT que via em situações como essa naturais "atos apócrifos de poder", que rompiam a constitucionalidade em um ou vários casos determinados como forma de acomodação do poder às malhas apertadas da legalidade(SCHMITT:1992).

É por tudo isso que a teoria do fato consumado não pode ser aplicada ao caso da venda da Açominas, por esta ter se baseado em diversas ilegalidades e inconstitucionalidades que macularam todo o procedimento de venda da empresa mineira, lesando, por conseqüência, a sociedade brasileira, que viu seu patrimônio ser vendido por um preço bastante inferior ao que poderia ser conseguido no mercado.


Conclusão

Após todo o exposto, a única conclusão possível é que houve sérias irregularidades no procedimento de venda das ações da Aço Minas Gerais S.A., dentre elas o desrespeito aos princípios constitucionais da legalidade, da moralidade administrativa, da supremacia do interesse público e da proporcionalidade, bem como a total desatenção em relação à natureza das coisas.

Assim, deve o Judiciário levar sua função jurisdicional a sério e anular todo o referido procedimento, já que viciado em seu cerne que nem se pode vislumbrar a possibilidade de aproveitamento de qualquer ato do certame licitatório. E nem pense o Judiciário em validar o processo de venda das ações da empresa mineira utilizando-se, para tanto, da teoria do fato consumado. Se assim agir, estará trocando o padrão constitucionalidade, típico do sistema jurídico, pelo padrão efetividade, típico do sistema político, fato inaceitável se quisermos cumprir a Constituição e fundar um verdadeiro Estado Democrático de Direito.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OMMATI, José Emílio Medauar. Breves anotações sobre o procedimento de privatização da Açominas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/445. Acesso em: 28 mar. 2024.