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PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA: EVOLUINDO OS MECANISMOS DE DEFESA

PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA: EVOLUINDO OS MECANISMOS DE DEFESA

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Aborda a defesa de prerrogativas da advocacia. O sistema de comissões de prerrogativas é importante, todavia insuficiente. É preciso avançar para um sistema repressivo, via Ação Civil Pública, nos casos de violação reiterada por uma mesma autoridade.

PRERROGATIVAS DA ADVOCACIA: evoluindo os mecanismos de defesa. 

1. NOTAS INTRODUTÓRIAS

            Neste período eleitoral da Ordem dos Advogados no ano de 2015, algumas das palavras e expressões mais utilizadas foram “defesa de prerrogativas”, “comissão de prerrogativas”, e respectivas variações. A ideia de defesa de prerrogativas acabou aparecendo como o grande mote de campanha.

            O presente texto é um brevíssimo apanhado sobre a necessidade de avanços na questão da defesa de prerrogativas, em especial defendendo que a Ordem dos Advogados passe a atuar de forma efetivamente repressiva contra os perpetradores de violações. Por vezes há focos de reiterada e rotineira violação por uma mesma autoridade. Outras vezes há violações de seríssima gravidade — v.g. a decretação de prisão de advogados no estrito cumprimento da profissão, a criminalização do advogado parecerista, etc — que não podem ficar apenas na atuação paliativa ou mediadora das Comissões de Prerrogativas. Devem ser respondidas até mesmo com uma ação civil pública contra a respectiva autoridade.

            Nesta perspectiva vamos buscar analisar a necessidade de atuação efetivamente repressiva da OAB contra os perpetradores destas violências diárias, e a conjugação com o implemento da continuada formação dos advogados sobre o tema das prerrogativas e sua defesa.

2. PRERROGATIVAS SÃO DIREITOS?

            Afinal de contas, o que são prerrogativas? São direitos dos advogados? Será que a noção da defesa de um direito violado corresponde à verdade? Ou será apenas uma meia-verdade? De fato, é preciso um esclarecimento que pode parecer amargo. As prerrogativas não são um “direito”; elas também têm uma parcela de “direitos” mas não são “só-direitos”. Trazem consigo uma carga fortíssima de “deveres”. Para usarmos duas expressões já popularizadas, a prerrogativa é um “direito-dever” ou “direito-que-obriga”.[1]

            Vamos além. A ideia de “prerrogativa” na advocacia não é um “interesse individual”, de um advogado ou advogada. A noção de prerrogativa tem um sentido maior. Há um fim-público inerente! O fim público que subjaz nas prerrogativas pode ser, por exemplo, a garantia do direito de defesa. Tome-se o exemplo do acesso aos autos de um processo. Se fosse possível a interposição de subterfúgios e obstáculos, o advogado poderia ser prejudicado na plena defesa de seu cliente. Neste sentido, com razão Gisela Gondin Ramos:

“Conforme já aduzimos em comentários anteriores, são características fundamentais da advocacia a independência e ainviolabilidade, garantias básicas da sua indispensabilidade à realização da justiça. Para que estas características ultrapassem os limites da intenção constitucional, e se transformem em realidade prática, o Estatuto relaciona os direitos dos advogados, as suas prerrogativas profissionais.”[2]

            A “prerrogativa de acesso aos autos” não significa um Direito-daquele-advogado, ou daquele-cliente específico. É um interesse público, lastreado na noção de ampla defesa.

            Este é apenas um exemplo que demonstra que “aquele-advogado” violado na sua prerrogativa, além de ter uma “parcela de direito” de ser respeitado, também tem uma enorme parcela do “dever de se fazer respeitar”![3] A prerrogativa é, assim, também um dever do profissional:

“E a melhor maneira de se verificar a natureza dos direitos outorgados pelo Estatuto ao advogado é exatamente examinar as condições em que o mesmo pode ser exercido pelo profissional. Se se tratasse de um direito propriamente dito, pura e simplesmente, o seu exercício ficaria ao exclusivo critério do titular, ao contrário do que ocorre no caso do advogado. Este, como elemento indispensável à realização da justiça não tem a possibilidade de escolher se vai ou não exercer sua prerrogativa, uma vez que, numa situação prática de desrespeito a qualquer destas, ele tem verdadeira obrigação de se insurgir. É, pois, inquestionável DEVER!! Não pode o advogado, por exemplo, ao lhe ser vedado o acesso aos autos judiciais, simplesmente aceitar a restrição. E não lhe é facultado o conformismo porque a sua responsabilidade para com a defesa do direito que lhe foi confiado pelo cliente está acima da sua própria autonomia.”[4]

            Não pode o advogado violado em suas prerrogativas ficar esperando apenas o socorro externo. Deve também ser proativo na defesa.

            Infelizmente, esse lado azedo — da prerrogativa como dever — pouco se expõe.

            Importante canal de esclarecimento sobre o tema é o sítio eletrônico mantido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (http://www.prerrogativas.org.br/), onde encontramos inúmeros textos, sugestões de petições e pareceres a respeito de defesas contra violações.

            A ideia de “defesa de prerrogativa”, porém, necessita ser objeto de evolução a cada dia. Tentaremos contribuir com algumas observações no tópico seguinte.

2.1. A IDEIA DE “DEFESA” DE PRERROGATIVAS: “COMISSÕES” SÃO ESSENCIAIS, MAS NÃO EXAUREM A QUESTÃO.

            A ideia de defesa de prerrogativas se acha muito comumente encrustada na instituição de uma “Comissão”. Não se pode duvidar: é fundamental a atuação das “Comissões de Prerrogativas”. De fato o trabalho abnegado de seus membros é excepcional em termos de presteza. Portanto, não estamos aqui falando de pessoas, muito menos reduzindo (em nenhum milímetro) a relevância destas Comissões e seus membros.

            Sendo assim, então, por qual razão se escreve o presente texto? A resposta é simplória. Tão singela que vamos usar de uma analogia, fora da advocacia, até para fugirmos ao máximo das paixões sobre o tema. Vamos usar o paradigma do combate à dengue. Primeiro, o combate à dengue necessita atender aos doentes portadores da moléstia. Segundo, precisa atuar na prevenção pela educação, para que os próprios focos da doença sejam erradicados ou, pelo menos, reduzidos ao máximo os riscos de novas contaminações. Terceiro, precisa atacar os causadores recalcitrantes de focos da doença.[5]

            Voltando à defesa de prerrogativas vemos em muitos locais que a atuação da OAB ocorre apenas na primeira fase, atendendo o doente infectado ou, no caso, o advogado violado em suas prerrogativas. Esta é a função da comissão de prerrogativas, uma função importantíssima, mas não é a única. Nem resolve o problema se operada sozinha. É preciso avançar. E muito. Precisa caminhar para a fase de educação e para a fase de ataque contra os focos de violações.

2.2. A FUNÇÃO “EDUCATIVA”: O ADVOGADO COMO PARTÍCIPE DA DEFESA DE PRERROGATIVAS.

            É necessária a segunda função: a educativa. Muitos estagiários (sim estagiários também têm prerrogativas) e advogados acabam por desconhecer ou esquecer o rol de prerrogativas que possuem e, pior, acabam também esquecendo que eles próprios podem buscar a solução imediata (em casos mais singelos, especialmente). A primeira linha de frente na defesa das prerrogativas são os próprios advogados envolvidos. Retomo a questão do “acesso aos autos” de um processo. Imagine-se que a negativa tenha ocorrido por ato de um serventuário. Antes de ligar para a “Comissão” o próprio advogado pode buscar o respeito da prerrogativa junto ao Juiz da respectiva Vara ou Juiz Diretor do Fórum se for o caso.

            Outra questão que merece ser debatida. Quando a violação ocorre perante outro colega advogado na condição de ex adverso. Qual a postura esperada do outro advogado que presencia a violação “contra um colega de profissão”? Façamos apenas uma conjetura a título de mera ilustração:

Em audiência o Juiz indefere perguntas, não querendo consignar o recurso de agravo (ou protesto, no caso da Justiça do Trabalho), e quando interpelado pelo advogado ameaça-o de prisão.

            Reiterando: é simplesmente um cenário fictício para fins de argumentação. Teremos aí uma violação “contra um advogado”, mas presenciada por outro (o ex adverso). O colega que assiste à violação de prerrogativas “de outro”, e se omite no dever de solidariedade — com o fito de angariar a simpatia da autoridade violadora — de certo estará contribuindo para a violação.

            Eis a função da constante formação sobre o tema das prerrogativas. Devemos todos estar preparados para, numa situação destas, sabermos como agir. Com parcimônia — para não atrairmos prejuízo ao nosso cliente —, com lhaneza e urbanidade, devemos buscar junto à hipotética autoridade o resguardo do respeito à prerrogativa profissional. Pois se trata de  uma prerrogativa não do outro colega mas da advocacia ou mais precisamente, atende a um fim público maior.

            Sejamos também francos: parece que as faculdades de Direito não se apegam muito às disciplinas deontológicas. E nos estágios de advocacia — que por Lei precisam aprimorar conhecimentos sobre Ética e Prerrogativas — raramente o tema é tangenciado. Eis o que prescreve a Lei 8906/94:

Art. 9º Para inscrição como estagiário é necessário:

I - preencher os requisitos mencionados nos incisos I, III, V, VI e VII do art. 8º;

II - ter sido admitido em estágio profissional de advocacia.

§ 1º O estágio profissional de advocacia, com duração de dois anos, realizado nos últimos anos do curso jurídico, pode ser mantido pelas respectivas instituições de ensino superior pelos Conselhos da OAB, ou por setores, órgãos jurídicos e escritórios de advocacia credenciados pela OAB, sendo obrigatório o estudo deste Estatuto e do Código de Ética e Disciplina.

            Mais perigoso ainda, em inúmeras Seccionais e Subseções sequer existem cursos, seminários ou palestras sobre o tema das prerrogativas (e também dos deveres éticos, é bom lembrar) dos advogados e estagiários. Ficam exclusivamente na esperança do socorro pelas Comissões. As prerrogativas correm o risco de virar, assim, um discurso messiânico.

2.3. O COMBATE AO “FOCO” DE VIOLAÇÕES REITERADAS OU GRAVES

            Por fim, a questão do combate ao foco de violações. Não é raro que as Comissões de Prerrogativas recebam reclamações a respeito de autoridades que reiteradamente geram violações. Vamos usar adiante as expressões “violações menos grave” ou “mais grave” apenas para efeito de argumentação, pois todas as violações devem ser combatidas. Apenas desejamos reconhecer que algumas hipóteses são capazes de causar maior violência pessoal ao advogado ou mesmo à advocacia.

            Ainda que estejamos diante de violações de “pequena gravidade”, sua eventual reiteração não pode ser tolerada. Uma mesma autoridade, depois de seguidamente visitada pela Comissão de Prerrogativas, ou depois de recorrentes ofícios às corregedorias, não se pode manter praticando os atos de violência, e nada ocorrer como reprimenda efetiva.

            Há ainda situações de violações que vamos considerar “mais graves”: por exemplo, a decretação de prisão do advogado apenas por estar defendendo o cliente em audiência, ou o fato de ser movida uma ação criminal contra o advogado que emitiu um parecer jurídico (o chamado crime de hermenêutica), ou a convocação do advogado para “depor” contra o próprio ex-cliente “sob pena de desobediência”. E coisas do gênero.

            Se a atuação de defesa de prerrogativas for restringida apenas à fase das “comissões” isso se converteria num contínuo “enxugar gelo”. A atividade da Comissão — diante das reiterações de violações — não demonstra caráter pedagógico ao ofensor. Por isso caberia à OAB (especialmente às Seccionais) a tomada de medidas de ataque ao foco do desrespeito. E não estamos falando de simplórios ofícios às Corregedorias ou ao CNJ/CNMP apenas. Há casos de tamanha gravidade, ou de tamanho índice de reiteração por uma mesma autoridade, que não haveria alternativa senão o manejo de Ação Civil Pública em desfavor daquela autoridade.

            Para quem não se recorda, a OAB tem legitimidade ativa para a propositura de Ação Civil Pública  na forma do Art. 54, XIV da Lei 8906/94:

Art. 54 [...]

XIV - ajuizar ação direta de inconstitucionalidade de normas legais e atos normativos, ação civil pública, mandado de segurança coletivo, mandado de injunção e demais ações cuja legitimação lhe seja outorgada por lei;

            Inclusive o STJ já referendou a questão via RESP 1.351.760-PE. Inclusive, no caso, estamos diante de um interesse direto da advocacia, no que a titularidade se reforça ainda mais:

RECURSO ESPECIAL Nº 1.351.760 - PE (2012/0229361-3)

RELATOR : MINISTRO HUMBERTO MARTINS

RECORRENTE : ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - SECCIONAL DE PERNAMBUCO

ADVOGADO : PAULO HENRIQUE LIMEIRA GORDIANO E OUTRO(S)

RECORRIDO : CARREFOUR COMÉRCIO E INDÚSTRIA LTDA E OUTRO ADVOGADO : PATRICIA LOBO DA ROSA BORGES E OUTRO(S)

EMENTA PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. CONSELHO SECCIONAL. PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO URBANÍSTICO, CULTURAL E HISTÓRICO. LIMITAÇÃO POR PERTINÊNCIA TEMÁTICA. INCABÍVEL. LEITURA SISTEMÁTICA DO ART. 54, XIV, COM O ART. 44, I, DA LEI 8.906/94. DEFESA DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DO ESTADO DE DIREITO E DA JUSTIÇA SOCIAL. 1. Cuida-se de recurso especial interposto contra acórdão que manteve a sentença que extinguiu, sem apreciação do mérito, uma ação civil pública ajuizada pelo conselho seccional da Ordem dos Advogados do Brasil em prol da proteção do patrimônio urbanístico, cultural e histórico local; a recorrente alega violação dos arts. 44, 45, § 2º, 54, XIV, e 59, todos da Lei n. 8.906/94. 2. Os conselhos seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil podem ajuizar as ações previstas – inclusive as ações civis públicas – no art. 54, XIV, em relação aos temas que afetem a sua esfera local, restringidos territorialmente pelo art. 45, § 2º, da Lei n. 8.906/84. 3. A legitimidade ativa – fixada no art. 54, XIV, da Lei n. 8.906/94 – para propositura de ações civis públicas por parte da Ordem dos Advogados do Brasil, seja pelo Conselho Federal, seja pelos conselhos seccionais, deve ser lida de forma abrangente, em razão das finalidades outorgadas pelo legislador à entidade – que possui caráter peculiar no mundo jurídico – por meio do art. 44, I, da mesma norma; não é possível limitar a atuação da OAB em razão de pertinência temática, uma vez que a ela corresponde a defesa, inclusive judicial, da Constituição Federal, do Estado de Direito e da justiça social, o que, inexoravelmente, inclui todos os direitos coletivos e difusos. Recurso especial provido.

            Cabe até mesmo dizer: a reiteração nas violações de prerrogativas, ou uma violação de maior gravidade, podem, em tese acarretar inclusive a perda de cargo público, nos casos em que evidenciado um desvio de comportamento capaz de ser considerado “improbidade”, ou abuso de autoridade.

            Isto que denominados de terceira fase de defesa de prerrogativas, calha esclarecer, traria também relevante conteúdo pedagógico, pois a simples possibilidade de responder a uma Ação desta natureza refrearia o ímpeto dos violadores — recorrentes ou futuros.

3. CONCLUSÕES

            Postas as considerações acima, concluímos:

  1. É louvável e necessária a ideia de Comissões de Prerrogativas, para a defesa contra violações que ocorrem no dia-a-dia;
  2. A ideia de Comissões de Prerrogativas, todavia, não exaure o problema e não encerra todas as soluções possíveis e necessárias;
  3. A advocacia não se pode manter apenas “na defensiva” quanto às violações de prerrogativas;
  4. A atuação via Comissões pode não ter a necessária eficácia pedagógica quanto aos perpetradores das violações. E este sentimento de impunidade é um fermento para os violadores de direitos alheios continuarem agindo contra a advocacia;
  5. É necessário o implemento de mecanismos de formação continuada sobre o tema das prerrogativas, especialmente desenvolvendo nos próprios advogados sua condição de primeiros partícipes (e não meros coadjuvantes) na defesa das prerrogativas;
  6. Por outro lado, é essencial que a OAB atue de forma repressiva, ingressando inclusive com Ações Civis Públicas contra os perpetradores de violações, notadamente os casos de reiteração de violação por uma mesma autoridade ou de violações mais graves.

            Portanto, Advogados e Advogadas, é preciso exigir que a defesa de prerrogativas seja plena, onde ainda assim já não o for. Teçamos loas às Comissões de Prerrogativas; mas vamos sugerir avanços, para que tenhamos o pleno respeito a este feixe de “direitos-deveres”.


[1] “Os direitos conferidos aos Advogados, antes de serem privilégios, são uma responsabilidade.” Cf. RAMOS, Gisela Gondin. Estatuto da Advocacia – Comentários e Jurisprudência Selecionada. 5.ed. Rio de Janeiro: Forense. 2009, p. 76;

[2] RAMOS, 2009, p. 75

[3] RAMOS, 2009, p. 76

[4] RAMOS, 2009, p. 76

[5] Esta ordem de atuação é meramente ilustrativa.


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