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Mulheres em desvantagem?

Questões de gênero para além do óbvio

Mulheres em desvantagem? Questões de gênero para além do óbvio

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O art. 40 da Constituição Federal, que trata do regime de previdência dos servidores titulares de cargos efetivos, registra distinção na aposentadoria de homens e mulheres. A questão que se põe é se tal distinção faz sentido nos dias de hoje.

Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Eis o que reza a Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso I.

Nada obstante, o art. 40 da Constituição Federal, que trata do regime de previdência dos servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, registra distinção na aposentadoria de homens e mulheres. A questão que se põe é se tal distinção é arbitrária ou se, ao contrário, ela realiza o princípio da igualdade, o qual, na clássica lição de Rui Barbosa, não consiste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam.

A distinção estabelecida pelo legislador constituinte originário se apoia, segundo se diz, na diferença salarial entre homens e mulheres. Ou na “dupla jornada” das mulheres.

Pois bem.

O argumento da diferença salarial entre homens e mulheres não se sustenta em se tratando de servidor público, na medida em que a remuneração ou subsídio dessa espécie de agente público é fixada por lei (Constituição Federal, art. 37, inciso X).

Restaria, portanto, o argumento pertinente à “dupla jornada” das mulheres. A propósito, ressalte-se que o universo dos servidores públicos apresenta características próprias, distantes das dos trabalhadores em geral. Renda e escolaridade são significativamente mais altos e, nesse contexto, embora não haja pesquisas específicas, é difícil imaginar uma mulher – titular de cargo efetivo – que esteja disposta a assumir sozinha as tarefas do lar.

Ademais, a realidade social de hoje nem de longe lembra a de 1988, haja vista as profundas transformações por que vem passando a sociedade brasileira. Basta dizer que, na década de 1980, a média de filhos por mulher era 4,4. Em 2013, esse número já havia caído para 1,59. Na contramão, a diferença no tempo de contribuição e idade para aposentadoria, de cinco anos, não muda desde 1988.

Tecnicamente, ainda que se aposentasse com a mesma idade do homem, a mulher ainda estaria em vantagem. Isso porque a expectativa de vida do homem é 71 anos e a da mulher é 79 anos.

Exatamente por isso, nos Estados Unidos e na Europa, não há diferença na aposentadoria de homens e mulheres (salvo raras exceções).

A situação atual consagra injustiça previdenciária grave. Suponha-se que dois candidatos de 25 anos, um homem e uma mulher, obtenham aprovação no mesmo concurso público e, em seguida, tomem posse e entrem em exercício. O homem contribuirá por 35 anos e aposentar-se-á aos 60 anos de idade, fazendo jus a proventos por, estatisticamente, 11 anos. A mulher contribuirá por 30 anos e aposentar-se-á aos 55 anos de idade, recebendo o mesmíssimo benefício por, estatisticamente, 24 anos. Ou seja, 13 anos a mais!

Do homem se exigem 35 anos de contribuição para que faça ele jus a 11 anos de benefício. No caso da mulher, são 30 anos de contribuição para 24 anos de benefício. O quadro social, hoje, não respalda tamanha discrepância.

Um dos pilares do regime de que trata o art. 40 da Constituição Federal é o equilíbrio financeiro e atuarial. Para manter o equilíbrio do sistema (ou o desequilíbrio do sistema nos patamares atuais), o tempo de contribuição para homens e mulheres deveria situar-se entre 30 e 35 anos (por hipótese, 32,5 anos). De igual modo, a idade deveria localizar-se entre 55 e 60 anos (por hipótese, 57,5 anos). A conclusão irrefutável é que o homem está subsidiando a aposentadoria da mulher quando trabalha em torno de 2,5 anos a mais para que a mulher o faça em torno de 2,5 anos a menos.

Note-se que, se a distinção estabelecida pelo legislador constituinte originário tem por fundamento a “dupla jornada” das mulheres, o homem, que subsidia a aposentadoria da mulher, tem justo título para deixar de dividir os afazeres domésticos, o que constitui verdadeiro desserviço à causa da igualdade de gêneros. Afinal, como pode a mulher reivindicar legitimamente uma divisão igualitária das tarefas domésticas se ela se aposenta antes exatamente por se sujeitar a uma “dupla jornada”?


Autor

  • Michel Martins de Morais

    Consultor Jurídico Substituto do TCDF, órgão em que é titular do cargo efetivo de Auditor de Controle Externo. Advogado. Instrutor. Doutorando em Direito pela Universidad de Buenos Aires (UBA). Mestre em Finanças pela London Business School (LBS). Especialista em Direito Administrativo Aplicado pela Fortium. Bacharel em Direito pela UnB. Engenheiro Eletricista pela UFPE. Autor de "Reforma da previdência: o RPPS da União à luz da EC nº 103/19" e "The effects of investment regulations on pension fund performance in Brazil", ambos publicados pela Editora Dialética.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MORAIS, Michel Martins de. Mulheres em desvantagem? Questões de gênero para além do óbvio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4548, 14 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/45023. Acesso em: 18 abr. 2024.