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Modificações na Parte Geral do novo CCB.

Das pessoas e dos bens

Modificações na Parte Geral do novo CCB. Das pessoas e dos bens

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Introdução

O constitucionalismo e a codificação surgiram no Estado liberal, aquele como delimitador do Estado e do poder político (Estado mínimo, que não intervém no campo econômico, nem se preocupa com a justiça social), este como meio de assegurar o mais amplo espaço possível à autonomia privada (baseando-se portanto no patrimonialismo e no individualismo jurídico), do que resultou, em nome dessa igualdade e dessa liberdade formal, uma exagerada exploração do mais fraco pelo mais forte, que veio a exigir uma mudança da qual resultou um novo modelo de Estado, dito Estado Social, que passa a intervir nos campos econômico e social, a fim de limitar o poder econômico de forma a assegurar a tutela do mais fraco, preocupando-se com a justiça social, sendo que tal mudança, ocorrida no plano constitucional, não foi acompanhada de uma mudança das codificações civis, que continuaram engessadas na tutela dos valores do passado.

Nesse mesmo sentido é que se pode perceber que os Códigos, focados nos valores do Estado liberal, têm a propriedade como valor mais importante, tutelando-se os outros valores (família, sucessões, obrigações) a partir da perspectiva patrimonialista, o que é incompatível com os valores prevalentes na sociedade moderna (fundados na dignidade da pessoa humana), donde resulta a necessidade de repersonalização, restaurando-se a primazia da pessoa humana nas relações civis, como condição para a compatibilidade do direito civil com os princípios fundamentais constitucionalmente previstos. À esse respeito, veja-se os sempre abalizados ensinamentos de Paulo Luis Netto Lôbo [1], in verbis:

"A patrimonialização das relações civis, que persiste nos códigos, é incompatível com os valores fundados na dignidade da pessoa humana, adotado pelas constituições modernas, inclusive pela brasileira (artigo 1º, III). A repersonalização reencontra a trajetória da longa história da emancipação humana, no sentido de repor a pessoa humana como centro do direito civil, passando o patrimônio ao papel de coadjuvante, nem sempre necessário".

Diante dessa perspectiva é que se pode afirmar que o Código Civil Brasileiro de 1916, cujo projeto fora elaborado no final do século XIX, fortemente arraigado no individualismo e no patrimonialismo peculiares ao Estado Liberal (isso para não falar no formalismo, na desigualdade entre homens e mulheres,... ), no correr do século XX se transformou em legislação ultrapassada, em descompasso com a realidade e com os principais valores constitucionalmente consagrados.

Ou seja, enquanto se tinha uma Carta Política consagradora do Estado Social [2], o Código Civil (CCB) permanecia como emanação dos princípios do Estado Liberal, necessitando claramente ser substituído por uma nova legislação, mas consentânea com os principais postulados da ordem jurídica atual.

Foram feitas várias tentativas para a formulação de um NCC (Novo Código Civil), desde 1941, até que em 1975 foi entregue o Projeto 634, feito por uma Comissão coordenada por Miguel Reale, tendo sido a tramitação desse projeto suspensa à espera da nova Constituição, e só tendo sido definitivamente aprovado em 10.01.2002.

Consoante os dizeres do Presidente da Comissão, o novel diploma tentou ao máximo preservar a estrutura do CC de 1916, aproveitando-se boa parte dos artigos, forma de disposição da maioria das matérias, etc. Nesse sentido, veja-se a lição de Miguel Reale [3], in verbis:

"Como já se disse, foi fixado o critério de preservar, sempre que possível, as disposições do código atual, porquanto de certa forma cada texto legal representa um patrimônio de pesquisa, de estudos, de pronunciamentos de um universo de juristas. Há, por conseguinte, todo um saber jurídico acumulado ao longo do tempo, que aconselha a manutenção do válido e eficaz, ainda que em novos termos..."

De outra banda, o novo CC, em regra, só positivou matérias que já se encontravam solidificadas, por influência da Constituição Federal, da jurisprudência e da doutrina (igualdade entre homem e mulher, explicitação do princípio da boa-fé, assunção de débito...). Daí que várias "novidades", como "barriga de aluguel", casamento entre homossexuais, entre outros, que ainda não se encontram completamente sedimentados na sociedade, não foram tratados.

Além de estar repleto de normas de conteúdo semântico mais impreciso, que não fixam todas as diretrizes e possibilidades de regramento da conduta, deixando ao juiz, no caso concreto, averiguar o preenchimento ou não de certos requisitos, e só então decidir.

No presente estudo, pretende-se por em análise a Parte Geral desse novel texto legal, pondo-se em contraste as suas inovações com relação ao texto do CC de 1916, procurando extrair o sentido das novas disposições, sendo para tanto imprescindível não se perder de vista a necessidade de se interpretar o texto do NCC a partir da Constituição Federal (onde inclusive estão positivados os princípios fundamentais do direito civil).

Para tanto, dada a amplitude da matéria, pretende-se bipartir o trabalho, cabendo nesse primeiro a análise dos Livros concernentes às "Pessoas" e "Bens", deixando-se os "Atos Jurídicos" para um segundo momento.

Como premissa, o reconhecimento de que uma análise que esgote cada uma das inovações em profundidade foge ao objetivo de que aqui se ocupa (só em livro ou monografia poder-se-ia abraçar tal desafio, por demais abrangente para um artigo), bem como que a mera menção a essas inovações muito pouco acresce ao operador do direito, pelo que se pretende, de forma objetiva e sucinta, passar-se por essas inovações, extraindo-se o sentido para cada uma delas mais escorreito, numa análise sistemática do sistema jurídico pátrio, sem jamais se perder de vista a cientificidade indispensável a todo estudo jurídico, ao mesmo tempo em que se reconhece a impossibilidade de contrastar o objeto estudado (novas regras positivadas no NCC) com todas as teorias que lhes pretendem explicar.


Princípios que influenciaram o novo CC

Importante nesse trabalho, ter-se por principais vetores interpretativos os mais importantes princípios seguidos pelo NCC, quais sejam:

- Eticidade: preocupação com a boa-fé, com a conduta correta, esperada pelas pessoas de uma dada sociedade, numa dada época. Deve ser averiguada no caso concreto, segundo os padrões éticos (juízo de valor referente à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal) vigentes. Tentativa de superar o excessivo formalismo do CC de 1916. Ex: art. 422.

- Socialidade: deixa-se de lado o apego ao individualismo do CC de 1916, e passa-se a ter em mira o interesse da sociedade. Daí princípios como o da função social da propriedade (que não é mais absoluta, mas deve produzir, criar empregos, pagar impostos, respeitar o meio-ambiente) e da função social do contrato. Ex: art. 421.

- Operabilidade: o centro das atenções passa a ser o direito em sua concreção, e não enquanto abstrato, daí a presença de tantas regras de "preceito indeterminado", deixado o seu preenchimento ao trabalho do juiz, no caso concreto; além de se ter maior preocupação com a linguagem, tentando-se evitar expressões que pudessem causar dúvidas, e primando-se pela precisão lingüística, a fim de facilitar a aplicação do direito. Ex: art. 575, parágrafo único; e o fim da dúvida entre prescrição e decadência.


Noções preliminares: suporte fáctico e fato jurídico

A respeito do suporte fáctico, importante trazer-se à baila os ensinamentos de Pontes de Miranda [4], in verbis:

"O suporte fáctico (Tatbestand) da norma jurídica, isto é, aquêle fato, ou grupo de fatos que o compõe, e sôbre o qual a regra jurídica incide, pode ser da mais variada natureza".

Certamente, boa parte dos equívocos interpretativos oriundos do debate acerca de novas disposições normativas, origina-se da pouca importância e atenção dedicados aos contornos jurídicos desses respectivos institutos por parte dos operadores do direito, ávidos em encontrar direitos (portanto, efeitos do fato jurídico), independentemente da análise e compreensão do suporte fáctico abstrato da norma em foco, e do seu conseqüente fato jurídico.

Realizados todos os elementos previstos abstratamente na norma (suporte fáctico suficiente), ocorre a incidência, juridicizando aquele(s) fato(s), surgindo daí o fato jurídico, este sim, uno. A esse respeito, assim se pronunciou Pontes de Miranda [5], in verbis:

"Fato jurídico é, pois, o fato ou complexo de fatos sôbre o qual incidiu a regra jurídica; portanto, o fato de que dimana, agora, ou mais tarde, talvez condicionalmente, ou talvez não dimane, eficácia jurídica. Não importa se é singular, ou complexo, desde que, conceptualmente, tenha unidade". (grifamos).

Tomando-se por base os princípios da Teoria Geral do Direito, percebe-se que só após haver incidência (e conseqüentemente juridicização), a partir do momento em que se realizam todos os elementos previstos abstratamente pela norma, é que se pode falar em fato jurídico (fato juridicizado pela incidência da norma sobre o seu suporte fáctico suficiente), e só o fato jurídico produz efeitos jurídicos. Em socorro dessa afirmação científica de grande relevo prático, importante trazer à baila os ensinamentos de Marcos Bernardes de Mello [6], in verbis:

"eficácia jurídica são os efeitos que se irradiam dos fatos jurídicos, e somente fatos jurídicos produzem efeitos jurídicos. Nem a lei, nem os fatos por ela previstos (suporte fáctico), podem gerar eficácia jurídica, isoladamente". (grifamos).

E quando se está diante da análise de um "direito subjetivo", está-se diante de um efeito do fato jurídico. Portanto, só com a incidência se produz o fato jurídico, e só dele decorrem os direitos.

À esse respeito, mais uma vez traz-se à lume a lição doutrinária [7]:

"Os direitos, as pretensões, as ações, as exceções, como os deveres, as obrigações, as posições passivas nas ações e nas exceções, são eficácia dos fatos jurídicos. Todos êles se passam no plano da eficácia; e é aí que se pode pôr a questão concreta de existirem, ou não existirem, ou de haver possibilidade, ou não, de encobrimento da eficácia, por alguma exceção. Ganha a ciência em separar, com precisão, o mundo fáctico, em que se compõem os suportes fácticos, e o mundo jurídico, em que somente entra o que está carimbado (digamos assim) pela incidência da regra jurídica. No mundo jurídico, penetram fatos (dito jurídicos): êles é que são o conteúdo dêsse mundo. Não importa se o fato é humano, ou não, outrossim, se é lícito, ou ilícito. Ser fato jurídico é existir no mundo jurídico. Juridicizar-se é começar de existir juridicamente; isto é, dentro dêsse mundo. Dentro dele, há o plano da existência, o plano da validade e o plano da eficácia. Quando os juristas raciocinam como se houvesse o mundo fáctico e o mundo dos efeitos jurídicos, saltam por sobre dois planos, que vêm antes: o da existência e o da validade. Assim, é incorreto enunciar-se que todo efeito jurídico tem causa em algum suporte fáctico: com essa linguagem, elide-se a incidência de regra jurídica no suporte fáctico suficiente, que determina a entrada dêsse no mundo jurídico, como fato jurídico, e elide-se a verificação de ter sido deficiente, ou não, a entrada. Entre o suporte fáctico (a) e a eficácia (e) está a regra jurídica (b), a incidência dessa regra (c) e nada menos que o fato jurídico (d), de que essa eficácia se irradia." (grifos nossos).

Essas noções suso transcritas (suporte fáctico, fato jurídico, eficácia jurídica), apresentam-se indispensáveis para uma perfeita compreensão das novas regras introduzidas pelo NCC. De fato, só se pode discutir qual o direito se já se está diante de suporte fáctico suficiente (aquele onde todos os seus elementos essenciais, abstratamente previstos, se realizaram), que produz o seu respectivo fato jurídico, este sim fonte da eficácia (direitos, deveres, pretensões,... ).

De outra banda, e sem aprofundar a discussão (que não é o objetivo desse trabalho, que apenas usa a teoria como forma de se descrever o objeto do estudo - as novas normas do NCC), tem guarida esclarecer que o sentido dessas novas regras não deve ser o fruto da vontade individual (interpretação pelo sujeito cognoscente), pelo que não se segue a teoria da semiótica (ou realismo linguístico); mas sim o sentido socialmente vivido e aceito, já posto no mundo dos pensamentos, revelado pela comunidade jurídica, cabendo ao intérprete apenas precisá-lo. Nesse sentido, vale a pena trazer-se à baila, em longa mais precisa lição, os ensinamentos de Adriano Soares [8]:

"A norma jurídica que incide infalivelmente é a norma que ganhou em densidade simbólica, como fato do mundo social, no seu subconjunto, o mundo do pensamento. O pensamento aqui é visto como algo comunicável e vivido de modo público, como processo social, que vai além de uma idéia privada do sujeito cognoscente. Frege estabeleceu uma distinção entre idéias privadas (Vorstllungen) e pensamentos, que são realidades abstratas habitantes de um terceiro domínio platônico. Teria se baseado nos seguintes pontos: (a) um pensamento, isto é, aquilo que alguém pensa, é verdadeiro ou falso independentemente de alguém pensá-lo; (b) duas pessoas podem ter o mesmo pensamento; e (c) os pensamentos podem ser comunicados. Em seu uso mais fundamental, fregiano, o pensamento significa proposição (Satz). Um pensamento é uma "figuração lógica dos fatos", isto é, uma figuração idealmente abstrata, cuja única forma pictorial é sua forma lógica e cuja representação prescinde de qualquer meio específico. Esse terceiro domínio platônico fregiano é justamente o mundo do pensamento, que não é o meu ou o seu mundo, mas o nosso mundo formado pela relação eu-tu. E o segundo Wittgenstein veio a negar, nesse particular, o solipsismo da linguagem, vale dizer, a possibilidade de uma linguagem privada, como sustentada pelo primeiro Wittgenstein. Afinal de contas, a linguagem deseja ser comunicada, e não prescinde da alteridade. É pelo outro que me descubro como eu na vivência do discurso. É nesse sentido que podemos, então, compreender o papel do simbólico como representação social de algo que está aí. O direito, como instituição social, não se esgota no simbólico de suas normas instituintes, mas está nele entrelaçado para cumprir o seu papel no jogo de linguagem social. Aqui, é de todo importante uma reflexão sobre o pensamento de Castoriadis, para onde remetemos o leitor interessado, dada as limitações desse nosso estudo. Como bem demonstra ele, "uma organização dada da economia, um sistema de direito, um poder instituído, uma religião existem socialmente como sistemas simbólicos sancionado. Eles consistem em ligar a símbolos (significantes) significados (representações, ordens, injunções ou incitações para fazer ou não fazer, conseqüências, - significações no sentido amplo do termo) e fazê-los valer como tais, ou seja a tornar esta ligação mais ou menos forçosa para a sociedade ou grupo considerado".

O simbólico (a norma), de conseguinte, é objetivação conceptual que qualifica o fáctico, através da causalidade da incidência; e, cumprindo a sua função de processo de adaptação social, adquire forma de objetivação social pelos múltiplos processos de aplicação pelos seus destinatários, ou, na sua inobservância, pelos órgãos legitimados. É pela incidência, no mundo do pensamento, que se dá a objetivação conceptual, simbólica, do processo de jurisdicização; é pela aplicação da norma jurídica que incidiu, que se dá a sua objetivação social na concretude da vida. Como diz Lourival Vilanova "A norma, que é uma objetivação conceptual, passando para o campo dos fatos adquire a forma de objetivação social. Adquire algo de coisidade do social, no sentido durkheimiano. (...) O fato jurídico, pois, é uma concreção que se dá num ponto do tempo e num ponto do espaço. Mas o fato é jurídico porque alguma norma sobre ele incidiu, ligando-lhe efeitos (pela relação de causalidade normativa)...

O realismo jurídico, seja de que vertente for, limita o fenômeno jurídico ao ato de autoridade (administrativa, judicial ou de outra espécie). Grosso modo, apenas seria direito o que as autoridades dizem que é, no ato de aplicação da norma. Essa amputação do mundo fora dos tribunais e das repartições públicas do fenômeno jurídico é um reducionismo injustificado, que retira do direito a sua função de processo de adaptação social. Observemos esses fatos cotidianos: um adolescente apanha um ônibus, dá ao cobrador um passe-estudantil, passa pela roleta e segue viagem até sua escola; um jovem bebe um refrigerante e paga o valor devido ao garçom; uma mulher, em seu veículo, pára quando o sinal fica vermelho e segue seu percurso com a luz verde; um homem encontra no chão uma barra de ouro e a apanha; uma loja de calçados anuncia uma promoção, pelos jornais, na venda de um determinado modelo de sapato. Todos esses fatos são conhecidos nossos, vividos por uma infinidade de pessoas. E eles ocorrem com naturalidade, sem muitos percalços, porque todos nós, como sujeitos situados numa realidade histórica, em tempo e espaço delimitados, participamos de uma mesma realidade simbólica, um tesouro comum de pensamentos (Frege). Se a mulher pára o carro quando o sinal está vermelho, atende à norma jurídica que determina ser essa a conduta devida; se o ultrapassa, sua conduta é ilícita. Há uma significação social, meta-individual, no comportamento dessa mulher: pouco importa saibamos que tenha ocorrido, ou que tenha sido na calada da noite. A significação é objetiva, e adjetiva esse fato como jurídico pela causalidade da incidência normativa. Se houve testemunhas, se o radar eletrônico fotografou o veículo no momento do descumprimento da norma, isso é outra questão: é matéria afeta à aplicação autoritativa da norma. Mas toda vez que essa mulher parar diante de um sinal vermelho, ela estará aplicando a norma que incidiu: ela estará cumprindo a norma."


Mudanças: Livro I: Pessoa Natural e Jurídica, Domicílio

A primeira mudança digna de nota vem logo no art. 2º, que diz "a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida". Cristalina a redundância desse enunciado lingüístico, que foi motivado pela preocupação do legislador em evitar, até mesmo no plano puramente lingüístico, regras que pudessem conduzir a alguma desigualdade entre homens e mulheres.

Explica-se: como o anterior art. 4º do CC de 1916 dizia "a personalidade civil do homem começa do nascimento com vida", apesar de ser óbvio que homem aí se refere ao gênero, o legislador tentou usar uma expressão que identificasse o gênero humano diferente da palavra "homem", e para isso terminou usando a terminologia "pessoa", que do ponto de vista científico é um conceito já do mundo jurídico, sendo conseqüência da incidência da norma sobre o seu suporte fáctico suficiente, portanto, não servindo com perfeição para traduzir o sentido que se quer, qual seja, o de ser nascido vivo de mulher. Ou seja, na tentativa de purificação lingüística acabou-se ofendendo a ciência do direito (além da própria lógica, e sem contar na grave violação à língua portuguesa, pela menção "a personalidade da pessoa"), o que não impede que se dê a essa norma o seu exato sentido: ao fato biológico de um ser nascer com vida de uma mulher, a ordem jurídica atribui como conseqüência dotar esse ser de personalidade, qualificando-o juridicamente para poder ser sujeito de direito, para poder participar de situações e relações jurídicas, sendo titular de direitos e deveres na ordem civil.

-Capacidade:

Subdivide-se esta em capacidade de direito e de exercício, sendo aquela a medida jurídica da personalidade (aptidão genérica para ser titular de direitos e deveres na ordem civil), e esta a possibilidade de exercer os seus direitos pessoalmente.

A ordem jurídica, considerando que certas pessoas, em face da idade ou do estado de saúde mental, não têm perfeitas condições para exercer os seus direitos e deveres, de se conduzir pessoalmente em sociedade, impõe a estas pessoas uma exceção legal, limitando a possibilidade destas atuarem na vida civil, seja transferindo a outra pessoa (dito representante) o poder de agir em nome do absolutamente incapaz, seja exigindo que outra pessoa (dito assistente) auxilie o relativamente incapaz em certos atos que pratique.

Quanto aos absolutamente incapazes, as principais alterações introduzidas foram:

-No art. 3º, II, substituiu-se a expressão loucos de todo o gênero (criticada pela medicina, dada a sua abrangência e imprecisão) constante do CC de 1916 por "os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil". Quer dizer: pessoa com enfermidade ou doença mental devidamente comprovada + sem discernimento » absolutamente incapaz;

-tirou-se o enunciado "os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade" (sendo evidente que os surdos-mudos foram retirados como causa genérica, o que não significa que não possam vir a ser enquadrados em alguma das situações previstas);

-Acrescentou-se, no art. 3º, III, entre os absolutamente incapazes "os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade" (pessoa que não pode exprimir a vontade + causa temporária » abs incapaz). Se a doença for permanente, incide o art. 3º, II, se a pessoa pode exprimir a vontade, mas sem o pleno discernimento, tratar-se-á de incapacidade relativa.

-Por fim, quanto aos absolutamente incapazes, retirou-se do seu rol os ausentes (o que era um erro evidente, e muito criticado, posto que não se buscava proteger a pessoa desaparecida, mas sim o seu patrimônio).

Quanto aos relativamente incapazes:

-No art. 4º, I, diminuiu-se de 21 para 18 anos a maioridade civil;

-acrescentou-se, no art. 4º, II, "os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido"(Suporte Fáctico: ser ébrio habitual, ou viciado em tóxico, ou deficiente mental, em qualquer dos casos com discernimento comprovadamente reduzido » incapacidade relativa. Se alguma dessas causas for doença de nível patológico que anule o discernimento, enquadra-se na incapacidade absoluta);

-no art. 4º, III, acrescentou-se "os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo";

-quanto aos pródigos (àqueles que vilipendiam exacerbadamente o seu próprio patrimônio), foram mantidos no art. 4º, IV, aumentando-se contudo a legitimidade para pleitear a sua decretação, que antes era só do cônjuge, ascendente ou descendente, e agora cabe a qualquer parente ou MP; o que significa um certo retrocesso nesse ponto, pois amplia a visão patrimonialista no tocante a legitimidade. Ressalve-se que fica mantida, por força do novel art. 1782, que a incapacidade relativa dos pródigos só se refere aos atos de gestão patrimonial;

-retirou-se do seu rol os silvícolas, que passam a ter sua capacidade regida exclusivamente pela legislação especial.

Aqui, importante ressaltar que os silvícolas são regidos pela Lei 6001, que os considera absolutamente incapazes, de forma que seus atos só valem se tutelados pela Funai. Para sua capacidade, o índio precisa está adaptado a vida em sociedade, o que se prova pelos seguintes requisitos:

a)21 anos

b)conhecimento da língua portuguesa

c)habilitação para o exercício de atividade útil à comunidade nacional

d)razoável conhecimento dos usos e costumes da comunidade nacional;

Sendo de se destacar que, mesmo preenchidos esses requisitos, a capacidade tem de ser requerida pelo interessado (não é automática), e se dá por ato judicial (sentença direta, ou homologação de ato da Funai).

No tocante à proteção aos incapazes:

-O novo cc não repetiu a proibição do art. 8º do cc de 1916, Instituto da Restituição, que era a possibilidade do menor lesado em seus direitos (ato prejudicial) pleitear a anulação do que pagou, mesmo que tivesse praticado um ato válido, sem vício (praticado de acordo com a lei). Contudo não há sentido em se dizer que o instituto voltou a ter aplicação, devendo ser mantida a sua vedação, por força dos princípios.

-No art. 119, foi inserida a possibilidade de anulação (fora das previstas no 171) de negócio jurídico se: SF: conflito de interesse entre menor e representante + era ou devia ser do conhecimento do terceiro » anulação do negócio. Esses elementos, para serem provados no caso concreto, dependem da concreção judicial, mas é claro que a desproporção entre as prestações (que traz prejuízo ao menor) faz presumir o conflito e o conhecimento do terceiro. Ou seja, não é indispensável o prejuízo econômico, já que o conflito de interesses pode ter outra causa (menor tinha apego sentimental a certo bem herdado; certa empresa da família era muito lucrativa e o representante vendeu ao invés de vender outra menos lucrativa, etc.), mas este é útil instrumento de caracterização desses elementos. Por último, vale observar que o instituto em comento tem semelhança com a lesão (art. 157), pelo que se torna possível invocar, analogicamente, o § 2º do art. 157, para permitir a manutenção do negócio jurídico desde que ocorra suplementação da prestação ou redução do proveito pelo beneficiado (princípio da conservação, que será melhor estudado em outro artigo ainda em fase de elaboração).

Quanto a cessação da incapacidade (art. 5º):

-Diminuiu-se a idade mínima, que antes era aos vinte e um, e agora aos dezoito anos;

-Acrescentou-se, no art. 5º, V, "os que tenham relação de emprego, com economia própria, e mais de 16 anos" (tem-se de provar a capacidade de subsistência, e não a simples carteira assinada).

Questão interessante que se pode levantar seria se a diminuição do limite da maioridade civil afetaria automaticamente outras áreas; se significaria, por exemplo, a imediata diminuição da idade para fins de benefícios previdenciários ?

Penso que não, com efeito, o instituto é protetivo da pessoa, e a sua repercussão em outras áreas, quando há lei que expressamente se refere a limite de idade diverso, depende de mudança legislativa específica nessa área. Nesse mesmo sentido o Enunciado nº 03 do Conselho da Justiça Federal: "– Art. 5º: a redução do limite etário para a definição da capacidade civil aos 18 anos não altera o disposto no art. 16, I, da Lei n. 8.213/91, que regula específica situação de dependência econômica para fins previdenciários e outras situações similares de proteção, previstas em legislação especial."

E no que diz respeito ao art. 5º, V, importante ressaltar a pertinente opinião de Sílvio Venosa [9], in verbis:

"A simples relação de emprego ou estabelecimento próprio, portanto, não será suficiente para o status, pois estaria a permitir fraudes. Discutível e apurável será no caso concreto a existência de economia própria, isto é, recursos próprios de sobrevivência e manutenção. Esse status poderá gerar dúvidas a terceiros e poderá ser necessária sentença judicial que declare a maioridade do interessado nesse caso. É de se recordar que, se o menor, nessa situação, desejar praticar atos da vida civil que exijam a comprovação documental da maioridade, a sentença declaratória será essencial, segundo nos parece. A simples relação de emprego, por si só, não comprova a maioridade perante o universo negocial, como a própria lei demonstra".


Fim da Personalidade

Acrescentou-se, no art. 7º, a morte presumida sem decretação de ausência se for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida; ou se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for encontrado até 2 (dois) anos após o término da guerra (após esgotadas as buscas). Tal disposição normativa traz ao bojo do direito codificado o cerne da disciplina relativa a antiga ação de justificação de morte, sendo importante passo rumo a perfeita caracterização da morte em situações onde existe forte probabilidade dela ter ocorrido.

A morte com ausência, prevista no art. 6º, in fine, é novidade mais importante ainda, pois rompe com a antiga sistemática (o ausente era considerado absolutamente incapaz), além de deslocar o instituto da ausência para a Parte Geral (já que se refere ao fim da personalidade), retirando-o do direito de família.

A disciplina da ausência não sofreu alteração de monta com relação ao direito anterior (além da mudança do local onde é tratada), ressalvando-se apenas que a diminuição dos prazos para sua decretação, apesar de aparentemente ser novidade no nosso sistema jurídico, de fato não o é, uma vez que o Código de Processo Civil já traz normas prevendo os prazos mais curtos ora reproduzido no novel diploma Civil.

Feitos esses esclarecimentos, apenas para não deixar sem tratamento matéria antes não afeta à Parte Geral, passa-se a analisar, sucintamente, os principais aspectos do instituto, que se divide em três fases: curadoria do ausente, sucessão provisória e sucessão definitiva.

Na curadoria do ausente, a preocupação maior é com o patrimônio deste. O suporte fáctico vem assim descrito: Desaparecendo qualquer pessoa do seu domicílio + sem que haja notícia sua + sem deixar representante ou procurador para administrar seus bens + havendo requerimento de qualquer interessado ou do MP » juiz :arrecadará os bens do ausente + nomeará curador para administrá-los. O curador deve ser o cônjuge (se não estiver separado), companheiro, pais ou descendentes, nessa ordem. Feita a arrecadação, empossado o curador, juiz manda publicar, por um ano, de dois em dois meses, edital convocando o ausente. Um ano após a publicação do último, pode qualquer interessado requerer a abertura da sucessão provisória.

Nesta, abre-se o inventário e dá-se a partilha dos bens, mas com certas restrições. Com efeito, a sentença só produz efeitos 6 meses depois de ser publicada pela imprensa; os bens são partilhados, mas os herdeiros têm de prestar garantia para serem empossados nos bens, exceto os descendentes e os cônjuges; é vedada a venda de bens imóveis, exceto em caso desapropriação, para evitar ruína, ou para comprar títulos da dívida pública, se convier; e só metade das rendas pertencem aos herdeiros (que devem comprar imóveis e títulos da dívida pública, além de prestar contas anualmente), exceto cônjuge, companheiro, ascendente e descendente.

Por fim, 10 anos após passado em julgado a sentença que decreta a abertura da sucessão provisória, ou então cinco anos da última notícia dele, se tiver mais de 80 anos, dá-se a sucessão definitiva, cujas conseqüências podem ser assim resumidas: cessam os óbices, e se o ausente voltar pega as coisas que existirem e no estado em que se encontrem (se com o produto da venda foram comprados títulos ou outros imóveis, dá-se a sub-rogação real,se não o ausente receberá o preço que os herdeiros receberam). Quanto ao cônjuge: após a sucessão, presume-se a morte, e esta cessa o casamento, ao contrário do direito anterior, onde a ausência não rompia o vínculo matrimonial.


Direitos da Personalidade

À época da elaboração do Código Civil de 1916, ainda havia dúvidas quanto a existência dos direitos da personalidade, dúvida esta desde há muito solucionada na doutrina e jurisprudência, que os consagraram francamente, assim como o fez o texto constitucional de 1988. Outrossim, é o Código Civil o primeiro diploma a consagrar um Capítulo inteiro a disciplina normativa de tais direitos.

Miguel Reale [10] assim se expressou sobre a introdução desse capítulo: "Merece encômios essa providência de incluir disposições sobre os direitos da personalidade, uma vez que a pessoa é o valor-fonte de todos os valores jurídicos."

Dito isso, passa-se a análise do assunto.

Tendo em vista que a personalidade jurídica é inerente a todo ser humano nascido com vida, a ela estão atrelados direitos subjetivos (direitos da personalidade) hábeis a defender o que lhe é próprio: integridade física, integridade moral e integridade intelectual. Tais direitos não passíveis de apreciação econômica imediata, já nascem com a pessoa, sendo inerentes a toda pessoa natural (seu sentido econômico é totalmente secundário, e só aparece em caso de transgressão, quando se apresenta uma reparação pecuniária indenizatória, substitutiva), e constituem-se numa verdadeira e indispensável forma de dar efetividade ao princípio constitucional fundamental da dignidade da pessoa humana.

Vêm do fato jurídico do nascimento com vida, personalidade, sendo direitos subjetivos, exigíveis pelo titular contra o sujeito passivo universal, quer dizer, cabe a todos respeitar esses direitos (não violá-los).

Têm por características, entre outras, serem: inatos (originários, se adquirem ao nascer, independentemente de qualquer ato de vontade); absolutos (oponíveis erga omnes); inalienáveis (impassíveis de transmissão, à título gratuito ou oneroso); imprescritíveis (não se perdem pelo seu não uso, independentemente do tempo); irrenunciáveis (o titular não pode deles abdicar); e vitalícios (perduram por toda a vida, alguns até mesmo para depois da morte).

Tais direitos podem, em caráter excepcional, sofrerem restrições, desde que estas não sejam permanentes nem gerais, devendo-se para tanto se utilizar do princípio da razoabilidade, em cada caso concreto.

Exemplificadamente, pode-se resumi-los, tal qual a doutrina de Paulo Lôbo [11], em direito à: vida (aí incluída a discussão quanto a aborto e autanásia); liberdade; intimidade (fatos, situações e acontecimentos que a pessoa deseja manter sob seu domínio exclusivo, ex. dados e documentos); vida privada (ambiente familiar e cuja lesão resvala nos outros membros do grupo); honra (respeito, boa fama); imagem (retrato, efígie); direito moral de autor; sigilo; direito à identificação pessoal (aí incluída a proteção ao nome da pessoa); e direito à integridade física e psíquica.

Quanto a disciplina específica do Código, nos arts. 13-14, tenta-se impedir os atos de disposição do próprio corpo, salvo às hipóteses especificadas nas Leis 9434 e 10211, que permitem transplante entre vivos desde que não cause forte risco à vida ou mutilação inaceitável, sendo vedado, em qualquer caso, o comércio de órgãos. Ou seja, pode desde que: não importe diminuição permanente da integridade física + não contrarie os bons costumes. Pode desde que sejam órgãos duplos (rins), ou se regenerem (fígado), etc.

Questão interessante nesse ponto diz respeito a transexualidade: condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com o sexo oposto. Segundo Rodolfo Pamplona e Pablo Stolze [12] é possível fazer a cirurgia de mudança de sexo, desde que : especialistas provem a sua necessidade + não haja risco para o paciente + autorização judicial (direito à dignidade, felicidade, compõem o SF).

Por fim, registre-se que também abrange (a integridade física) o direito ao corpo morto: art 14 e Lei 10211 (que acabou com a presunção de doação, agora precisa de autorização do cônjuge ou parente. Devendo-se observar que essa autorização só deve ser exigida em caso de omissão da pessoa falecida, seja por testamento ou qualquer instrumento hábil).

No art. 15 exige-se a necessidade de prévia autorização do paciente em caso de tratamento médico ou intervenção cirúrgica que ponham em risco a vida da pessoa, ressalvando-se que a necessidade de concordância não abrange os casos de urgência.

A tutela ao nome vem especificada nos arts. 16-19, e se faz, segundo Paulo Nader [13]: "a tutela deste direito da personalidade se faz impedindo o uso do nome e pseudônimo por outras pessoas, garantindo o seu uso pelo titular do direito e permitindo a sua modificação nos casos previstos em lei". De outra banda, a utilização do nome de alguém em propaganda comercial requer a sua autorização prévia; assim como a lei veda a sua utilização em publicações ou representações, capazes de provocar o desprezo social.

No art. 20 procura-se afirmar forma específica de proteção à honra e imagem da pessoa, sendo importante ressaltar que a lei não proíbe o uso da imagem, tanto que não condiciona a sua utilização inocente à prévia utilização. O que a lei visa é coibir o abuso, o uso indevido que provoque constrangimento, que normalmente vem representado pela ofensa à honra, mas não necessariamente, como aliás já vinha decidindo (antes do novo Código Civil), o STF, como se percebe no RE 215-984/RJ, Rel. Min. Carlos Velloso (DJU 28.02.2002):

"Para a reparação do dano moral não se exige a ocorrência de ofensa à reputação do indivíduo. O que acontece é que de regra, a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constragimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constragimetno. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X."

Outra questão interessante diz respeito ao confronto de certos direitos da personalidade (especialmente imagem e honra), com a liberdade de informação. Certamente não se pode ter uma visão absolutista (no sentido de sem limitação) a esses direitos da personalidade, de modo que o direito de informar, verdadeira pedra basilar do Estado Democrático de Direito, não pode ser aniquilado por uma interpretação extensiva, que defenda a impossibilidade de informar sobre determinados assuntos porque isso poderia ofender a honra de alguém (denúncias de corrupção, por exemplo). Ou seja, no confronto entre essas duas ordens opostas de direitos, deve-se buscar a limitação ao direito de informar na própria CF, por meio da: garantia de direito de resposta proporcional ao agravo; vedação ao anonimato; e indenização do dano material e moral decorrente da sua violação (que deve ser analisada em cada caso concreto, segundo um critério de razoabilidade, vedando-se os abusos, estes sim devem gerar indenização, mas permitindo-se o direito geral de informar).

Por fim, acrescente-se que o art. 12 traz uma forma específica de tutela, sendo de se acrescer que o seu parágrafo único, ao dizer quem tem legitimidade para pleitear em nome do morto, não fala em companheiro (provavelmente um esquecimento, já que essa expressão fora esquecida, só sendo colocada no projeto já pronto), termo que deve se entender incluído no citado artigo, o mesmo se dizendo quanto ao parágrafo único do art. 20.


Pessoa Jurídica

No art. 41 inseriu-se as autarquias e demais entidades entre as pessoas jurídicas de direito público interno.

Primeiramente cabe responder a indagação de qual a justificativa para um Código Civil (ramo por excelência do direito privado, onde as relações jurídicas travadas se dão entre sujeitos que não têm supremacia um em face do outro) trazer a classificação das pessoas jurídicas de direito público (onde o Estado participa de relações jurídicas utilizando-se do seu poder de império, da sua supremacia); sendo tal resposta formulada a partir da constatação de que a Parte Geral do CC se destina a todos os ramos do direito, emprestando os seu conceitos a todas as relações jurídicas, mesmo que de ramos outros que não o direito civil, o que inclusive dá uniformidade e sistematização ao sistema jurídico pátrio; além do que inexiste um Código de Direito Público, ou mesmo de direito administrativo, pelo que se faz útil a existência dessa classificação, ainda que num Código Civil, sob pena de inexistir essa norma geral.

Quanto ao conteúdo dessa inovação, o conceito de autarquia nos é dado pelo Dec-lei 200, que assim dispõe:

"serviço autônomo, criado por lei, com personalidade jurídica, patrimônio e receitas próprios, para executar atividades típicas da Administração Pública, que requeiram, para seu melhor funcionamento, gestão administrativa e financeira descentralizada".

No tocante as demais entidades, são elas as fundações públicas criadas por lei e as agências reguladoras, que consistem, na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello [14], em "autarquias, qualificadas como autarquias sob regime especial, ultimamente criadas com a finalidade de disciplinar e controlar certas atividades".

Quanto a responsabilidade das pessoas jurídicas, foi inserido o art. 43, que acrescenta disposição sobre a responsabilidade objetiva do Estado, seguindo assim a diretriz constitucionalmente estabelecida.

Nos arts. 44, I e II, c/c 53 e 981, fez-se a perfeita distinção entre sociedade e associação.

De fato, no CC de 1916 não existiam regras cuidando dessa diferença, cabendo a doutrina tal mister; agora, o próprio NCC traz a perfeita distinção dessas espécies de pessoas jurídicas, destinando à associação a vontade humana de várias pessoas que se unem para alcançar objetivos não econômicos, enquanto à sociedade a vontade humana de várias pessoas que se unem para alcançar objetivos econômicos, ou seja, lucro a ser por elas repartido. Tal distinção, feita à luz do princípio da operabilidade, põe fim a qualquer tipo de dúvida porventura antes existente.

Acrescente-se ainda, apesar de sua disciplina vir tratada no Livro Direito de Empresa, mas por ser desdobramento dos conceitos aqui abordados, que houve a substituição das expressões sociedades civil e comercial (constantes do CC de 1916), por sociedade simples e empresária, esta destinada às sociedades que visam lucro mediante o exercício de atividade econômica direcionada à produção e/ou circulação de bens ou serviços, enquanto aquela compreendendo as sociedades que não pratiquem atividade empresarial (prática de atividades mais ligadas ao intelecto, como as sociedades de advogados).

Destaque-se também a mudança advinda da nova redação do art. 47, relativo ao poder de agir em nome da pessoa jurídica.

O antigo art. 17 do CC de 1916 fazia menção expressa a representação da pessoa jurídica por aquele que seus estatutos indicassem, ou caso não houvesse tal indicação, por seus diretores. Portanto, havia expressa determinação relativa à representação da pessoa jurídica, quer dizer, alguém agia em nome dela, uma outra pessoa (natural) exercia direitos em nome da pessoa jurídica. Comentando acerca desse dispositivo, no que se refere a essas pessoas designadas nos estatutos para atuarem pela pessoa jurídica, Pontes de Miranda faz a pertinente observação científica de que estas pessoas (a quem denomina órgão) não representam a pessoa jurídica, posto não agirem em nome de outra pessoa, mas sim serem a forma da própria pessoa jurídica se expressar (manifestar vontade). Veja-se a lição Ponteana [15], inverbis:

"Os órgão exprimem vontade, ou exprimem conhecimento, ou sentimento; os órgãos que exprimem vontade são os que dirigem, ou resolvem, internamente, ou praticam atos jurídicos stricto sensu e negócio jurídicos; os atos-fatos jurídicos podem ser praticados por outros, conforme os estatutos.

Quanto à natureza do órgão, é de afastar-se (a) que seja representante, e a teoria que o sustentou invocava o direito romano que nunca disso cogitou, nem tinha a nossa concepção da representação. (b) Órgão é órgão, não é representante voluntário, nem legal: a cebe, como o braço, a mão, a boca, ou os ouvidos humanos; o ato e a receptividade são da personalidade do membro do órgão, ou do membro único, não aparece, não se leva em conta, o que não ocorreria se de representação se tratasse; o órgão atua e repessoa jurídica...."

Na seara processual, o festejado Ovídio A. Batista da Silva [16] já comungava desse pensamento Ponteano, como se pode atestar pela transcrição do seguinte trecho de sua obra, in litteris:

"Os órgãos das pessoas jurídicas – diz PONTES DE MIRANDA (Comentários..., 1973, t. 1, p. 318) – são partes de seu ser, portanto não o representam. A lei constitutiva da pessoa jurídica em causa, seja ela de direito público ou de direito privado, dirá quem a deve presentar, torná-la presente (não representá-la) em juízo. O conceito de representação pressupõe a existência de duas pessoas diferentes, a representada e aquela que a representa. Isto não ocorre quando a pessoa jurídica comparece em juiz, através de seus administradores."

Destarte, quando o atual artigo 47 do NCC se refere à obrigatoriedade dos atos expressos pelos administradores da pessoa jurídica, sem fazer referência a representação, tal qual no Código anterior, caminha na linha da cientificamente mais correta "presentação", tal qual defende Pontes de Miranda, ainda que não no reconheça de modo explícito.

No Art. 52, determinou-se que se aplica às pessoas jurídicas a proteção dos direitos da personalidade, naquilo que couber. Dessa forma, os direitos ao nome, imagem, etc., por serem compatíveis com a pessoa jurídica, merecem de proteção legal igual àquela conferida as pessoas naturais, enquanto que direitos como a proteção da integridade física, por serem incompatíveis, obviamente não se projetam nas relações jurídicas das quais fazem parte os entes morais.

De outra banda, nos novos arts. 54–60, foi inserida toda uma disciplina relativa as associações, contendo regras acerca dos elementos mínimos que deve conter os estatutos, exclusão de associados, competência privativa da assembléia, etc, disciplinamento este inexistente no Codex anterior.

Relativamente as fundações (patrimônio que por ato de vontade do instituidor, seja tal ato inter vivos ou causa mortis, fica destinado ao atendimento de certa finalidade lícita que não visa lucro, e de acordo com os requisitos legais), houve algumas mudanças dignas de nota.

No art. 62, parágrafo único, inseriu-se dispositivo especificando quais finalidades podem ter as fundações – religiosos, morais, culturais ou de assistência –, o que vem a tentar impedir a proliferação desmedida de fundações muitas vezes sem propósitos merecedores de amparo da ordem jurídica. Questão interessante que pode surgir diz respeito as entidades de fins de proteção ao meio-ambiente, educacionais ou científicos; estariam elas vedadas de se constituir sobre a forma fundacional ?

A resposta a tal pseudo indagação depende da compreensão do thelos a que visa a presente regra. Ora, sendo a fundação ente importante ao desempenho de atividades sem fim econômico (portanto, que a priori não despertam o interesse privado em nosso sistema Capitalista) que o Estado não consegue satisfazer sozinho, de forma a que a ordem jurídica sempre encorajou as pessoas (físicas ou jurídicas) a destinarem parcela do seu patrimônio para o desempenho dessas atividades, a interpretação restritiva que venha a vedar a criação de novos entes que visem alcançar importantes objetivos sociais (como fomento à ciência, educação ou proteção do meio-ambiente), vai de encontro a finalidade dessa regra, que almeja reforçar apenas a necessidade de que toda fundação tenha finalidade socialmente útil, sendo proibida a persecução de fim econômico.

No art. 63, estabeleceu-se que se os bens destinados forem insuficientes para constituir a fundação, passarão estes desde logo para outra fundação de fim igual ou semelhante (a menos que haja disposição expressa do instituidor em sentido contrário), quando pelo Código anterior, diante da mesma situação, os bens destinados convertiam-se em títulos da dívida pública e ficavam aguardando valorização até serem suficientes para constituir uma fundação. Obviamente, tal disposição mostrava-se pouco efetiva (socialmente eficaz), tendo muito mais eficácia a nova regra.

Por seu turno, no art. 65, parágrafo único, ao tratar da fase da elaboração dos estatutos da fundação, determinou-se que se o instituidor não estabelecer prazo, àquele encarregado da sua elaboração terá 180 dias para fazê-lo, e não o fazendo, ou extrapolando o prazo fixado pelo instituidor, caberá ao Ministério Público tal incumbência.

O art. 66, § 1º explicita a competência do Ministério Público Federal para agir como fiscal da lei relativamente as Fundações domiciliadas no Distrito Federal e Territórios.

Ainda sobre as fundações, cabe destacar o novel art. 68, que altera o prazo para minoria anular mudança no estatuto, que antes era de 01 (um) ano e agora passou para 10 dias, sedimentando o prazo já previsto no art. 1203, parágrafo único do Código de Processo Civil, prazo este que já vinha sendo utilizado, por se tratar de legislação do mesmo nível e mais nova.

Outrossim, indubitavelmente a alteração da maior repercussão prática quanto as pessoas jurídicas adveio da positivação da Teoria da "desconsideração da personalidade jurídica", ou disregard theory, ou disregard of the legal entity, oriunda do sistema jurídico da common law, e que visa quebrar o dogma absoluto da diferenciação patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus membros.

Para uma melhor compreensão do assunto, vale a pena trazer-se à tona as lições de Alexandre Ferreira de Assumpção Alves [17], in litteris:

"A autonomia patrimonial e outras prerrogativas conferidas pelo direito positivo às pessoas jurídicas (nacionalidade, domicílio, nome, etc.) foram sendo deturpadas. Em várias situações alguns sócios, através da fraude ou do abuso do direito por intermédio da pessoa jurídica, invocavam a separação de patrimônios preconizada pela lei para conseguir a isenção de responsabilidade pelos atos ilícitos praticados, desvirtuando os objetivos que determinaram o reconhecimento da personalidade dos entes coletivos. Como outros institutos clássicos, a pessoa jurídica precisava ser ajustada à realidade social, sobretudo após a segunda metade do século XX, onde a visão liberalista e não-intervencionista do Estado foi profundamente modificada em prol dos ditames da valorização do trabalho, da produção e da justiça social.

A desconsideração da personalidade jurídica, teoria surgida no século XIX a partir da análise dos aspectos negativos da pessoa jurídica, ao contrário do que se imagina, não tem intenção nihilista ou aniquiladora do instituto; ao contrário, busca aprimorar a pessoa jurídica, tornando-a flexível em casos onde a autonomia patrimonial e a personalidade encobrem e incentivam abusos."

Primeiramente, a legislação consumerista, em seu art. 28, foi quem positivou a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, no âmbito do direito civil (a legislação trabalhista e tributária já tinham preceitos que muitos defendiam se referir a despersonalização). Entretanto, faltava uma norma geral, capaz de alcançar todas as relações jurídicas, e não apenas adstrita as relações de consumo, o que só veio com o NCC.

O conteúdo dessa desconsideração pode ser assim entendido:

"A teoria da desconsideração autoriza o magistrado a ignorar a autonomia patrimonial da pessoa jurídica sempre que ocorra um uso abusivo ou fraudulento de sua autonomia, e responsabilizar diretamente o culpado, preservando a sociedade e os outros sócios. A desconsideração será aplicada apenas nos casos em que a autonomia patrimonial foi um instrumento propulsor da fraude; para as demais relações jurídicas, continuará a sociedade apta a exercer direitos e contrair obrigações." (18)

Com efeito, o art. 50 do NCC determina:

"Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."

No suporte fáctico da referida norma percebe-se que havendo desvio de finalidade ou confusão patrimonial, que causem abuso da personalidade (abuso de direito), haverá a incidência da citada regra, cuja conseqüência (preceito), será a extensão dos efeitos de certas relações jurídicas aos bens particulares dos administradores ou sócios desta.

O desvio de finalidade acontece quando o administrador (ou sócio), pratica atos que contrariam os fins da pessoa jurídica, visando com isso alcançar objetivos apenas para ele vantajosos (e.g. um empréstimo bancário cujos recursos captados não são totalmente utilizados na produção, sendo uma parte repartida entre os diretores na forma de bônus); enquanto a confusão patrimonial pode ser entendida como a sociedade que existe apenas formalmente, posto que na realidade é formada por apenas uma pessoa, detentora de quase todo o seu capital social. A exegese mais consentânea com esse dispositivo, deve ser a de que, em ambos os casos (desvio de finalidade ou confusão patrimonial), só se dá a incidência da norma caso haja abuso da personalidade (abuso de direito), caracterizado pela prática de ato irregular (o administrador praticou um ato contrário a própria pessoa jurídica, visando beneficiar a si ou a terceiros).

No tocante a legitimidade para requerê-la, cabe à parte interessada (credor, sócio prejudicado, etc) ou ao Ministério Público, caso lhe caiba intervir no feito.

Ademais, com relação ao preceito, a redação merece uma crítica, por ter se referido a "os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica", o que dá a entender que a responsabilidade seria subsidiária, quando o correto, segundo o sentido da teoria da desconsideração, já amadurecido em sede doutrinária e jurisprudencial (ainda que de forma restrita a certas áreas do direito), é entender que os efeitos de certas relações jurídicas sejam primeiramente buscados no patrimônio do diretor que praticou o ato irregular, e não apenas em caráter subsidiário; até porque a teoria visa proteger a própria pessoa jurídica, aperfeiçoando-a, e não apenas dar maiores garantias aos credores, tanto é assim que a personalidade deve ser desconsiderada até mesmo em casos onde a pessoa jurídica tem bens suficientes para cobrir certo débito, podendo requerê-lo, por exemplo, um sócio não investido em poderes de presentação.


DOMICÍLIO

Pontes de Miranda [19] assim definia domicílio:

"é o espaço em que a pessoa exerce os atos de sua vida de relação, como centro da sua atividade no mundo jurídico, para onde se lhe dirige o que lhe interessa, ou a outrem interessa, e de onde a pessoa dirige a outrem o que tem interêsse de dirigir.....

O domicílio é fato jurídico, não é simples acontecimento do mundo fáctico. Há suporte fáctico, em que um dos elementos é o haver centro (ou haver centros) das relações sociais, não só jurídicas, da pessoa, - suporte fáctico, que o direito recebe como fato jurídico".

Portanto, residência constitui o elemento mais comum para o domicílio, sendo os artigos que dela tratam exemplificativos das situações que normalmente ocorrem, sem, contudo, ser ela o elemento básico para a caracterização de domicílio, conceito mais amplo, como com muita agudeza percebeu o gênio de Pontes.

Tais observações, especialmente a caracterização do suporte fáctico do domicílio como o centro das relações sociais da pessoa, traduziam o sentido da expressão lingüística "centros das ocupações habituais", constante do Código Beviláqua. Outrosssim, o NCC, nesse ponto, faz mudança digna de nota ao trocar essa expressão por lugar de exercício da profissão (art. 72 do NCC), quanto as relações jurídicas advindas da atividade profissional.

Tal alteração baseou-se na crítica que fazia parte da doutrina relativamente ao enunciado "centro das ocupações habituais". O culto Ministro Moreira Alves [20], elaborador do Projeto do NCC, em sua Parte Geral, assim dispôs sobre o tema:

"Com referência ao domicílio, houve uma falha do Código Civil. Todos aqueles que estudam o domicílio civil sabem que este tem dois conceitos: o conceito geral, de que é a residência com a intenção de permanência e aquele outro apregoando que também é domicílio o centro de atividades habituais – o que mereceu a crítica sarcástica de um dos grandes civilistas deste País, Eduardo Espínola, o qual afirmou que também seria domicílio do bêbado aquele botequim em que todas as tardes se embebedasse. Criou-se, então, a figura do domicílio profissional, quase que como um pendant com relação ao domicílio das agências ou filiais das pessoas jurídicas, ou seja, um domicílio apenas para as relações decorrentes da profissão."

Primeiramente, perceba-se a contraposição de duas teorias, ainda sob a ótica do CC de 1916: uma defendendo a existência de dois tipos de domicílio, a residência com ânimo definitivo, e o centro de atividades habituais; outra, Ponteana, defendendo ser o domicílio o centro das relações sociais da pessoa, das quais a residência seria o exemplo mais comum. À esse respeito, veja-se a lição de Pontes:

"Se A reside em Petrópolis e tem o seu escritório no Rio de Janeiro, para onde se dirigem todas as declarações de vontade, ou comunicações de vontade, de conhecimento, ou de sentimento, que tenham de ser recebidas por ele, e de onde as dirige, pré-excluindo-se qualquer constituição de domicílio no lugar da residência, domicílio de A é o lugar em que tem o escritório, e não o lugar em que tem residência".

Agora, com a substituição da expressão centro de atividades habituais por lugar de exercício da profissão, duas são as soluções interpretativas: uma defender que se tornou mais nítida a diferenciação entre o domicílio oriundo da residência com ânimo definitivo, e um outro domicílio, dito profissional, abarcando apenas as relações jurídicas relativas à profissão; outra defender que se deve interpretar a nova expressão como se exercício de profissão tivesse o sentido de centro das atividades da pessoa (profissão deveria ser interpretada em sentido amplo, abarcando qualquer atividade que a pessoa pratique, e não apenas o trabalho remunerado).

Literalmente, a primeira parece ser mais correta, ainda mais quando conta com a adesão expressa do elaborador do Projeto.

Contudo, segundo ela, qual seria o domicílio do aposentado (que não exerce mais a sua profissão), que tendo uma casa em Barra de São Miguel, onde ele dorme todas as noites e toma um banho de mar todas manhãs, passasse os seus dias em Maceió, na casa de uma filha sua, sendo este o local de onde ele expede a maioria das suas manifestações de vontade e toma conhecimento das que lhe são dirigidas ? Caso ele fosse demandado em uma ação segundo a regra geral do domicílio do réu, deveria ser demandado em Maceió ou Barra de São Miguel ?

Ora, ele não reside em Maceió, afinal de contas o conceito de residência exige habitat continuado, e não mera estadia durante o dia; por outro lado, apesar de possuir residência na Barra de São Miguel (onde ele não estabeleceu laços mais profundos, não tendo intenção de lá exercer a plenitude de suas relações jurídicas), todas as suas manifestações de vontade e conhecimento são praticadas em Maceió (ex: é lá onde ele recebe a sua aposentadoria, joga bingo todas as tardes, participa do Clube da melhor idade, faz suas compras, etc.).

Caso prevalecesse a tese literal, ou ele seria uma pessoa sem domicílio (já que na Barra ele tem residência sem intenção de permanecer, e em Maceió ele não tem residência), ou, o que é mais correto diante do princípio de que todos têm um domicílio, dever-se-ia aplicar a regra de considerar o lugar da sua residência o seu domicílio, sendo vedado demandar-se em Maceió.

Tal solução não se coaduna com a finalidade do domicílio (fixar um ponto territorial para fazer-lhe lugar das relações jurídicas do indivíduo), assim como contraria o princípio de que a pessoa deve ter por domicílio o lugar que quiser, pois a maioria das relações jurídicas do aposentado são deliberadamente praticadas em Maceió.

Com esse exemplo quer-se aclarar a correção da tese de que o conceito de lugar de exercício da profissão deve ter acepção ampla, e não restrita as relações profissionais, de modo a não alterar o anterior sentido de domicílio existente no CC de 1916, mais consentâneo à função desse instituto e cientificamente mais correto.


BENS

A primeira mudança digna de menção refere-se ao art. 44, II do CC de 1916, que inseria entre os imóveis por determinação legal as apólices da dívida pública gravadas com a cláusula de inalienabilidade, dispositivo este que não foi repetido no NCC, pelo que passou este tipo de bem a ser considerado móvel. Acertada a mudança, já que não havia sentido imobilizar apenas este tipo de título de crédito, o que aliás dificultava a sua venda, diminuindo o seu valor, o que contrariava o seu próprio objetivo.

Por sua vez, o art. 81, I, traz um novo tipo de imóvel, qual seja a edificação que, mesmo separada do solo, pode ser removida de um lugar para outro sem perder a sua unidade. Inclui-se aqui aquelas casas pré-fabricadas, que mesmo podendo se deslocar (o que constitui móvel por natureza) de um lugar para outro não deixam de ser imóveis.

De outra banda, no art. 83, I, acrescentou-se entre os bens móveis por determinação legal as energias que tiverem valor econômico (energia elétrica, eólica, etc.), ao mesmo passo em que se retirou a menção expressa aos direitos de autor como bem móvel dessa categoria, constante do art. 48, III, do texto revogado. Essa última supressão se coaduna com a disciplina dos direitos autorais posta em prática pela legislação extravagante, no caso a Lei nº 9610/98, que continua regendo a matéria, dividindo os direitos autorais em duas categorias, a primeira os direitos morais de autor, com a natureza de direitos da personalidade (ex: manter inédita a obra e impedir mudança do texto por terceiro), e a outra a dos direitos patrimoniais do autor, esta sim bem móvel, inclusive por expressa determinação do art. 3º da citada lei. Em suma, a mencionada supressão não traz mudança significativa, apenas deixa ainda mais clara a disciplina do direito autoral pela legislação especial.

Já no art. 87, que trata dos bens divisíveis, o NCC, seguindo diretriz já pacífica na doutrina, inseriu menção expressa à diminuição do valor ou do uso a que se destina o bem como critério para fixar a indivisibilidade. Quer dizer, enquanto o CC de 1916 só dispunha sobre diminuição na substância do bem, como critério para considerar divisível ou indivisível este, o NCC se refere a diminuição na substância, no valor econômico ou prejuízo no uso a que ele se destina, incorporando assim a lição de há muito encampada na doutrina pátria.

À respeitos dos bens, a alteração mais expressiva refere-se ao art. 93, que traz a novel classe dos bens acessórios chamados de "pertença".

No antigo Código tinha-se os imóveis por acessão intelectual, ou como estatuído no art. 43, III, do Código Civil, "tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento ou comodidade". Imóveis por acessão intelectual eram os bens móveis, de propriedade do mesmo indivíduo proprietário do bem imóvel onde são colocados, tendo por finalidade servir ao próprio bem imóvel e não ao seu proprietário. Tais bens podiam ser caracterizados por tratores colocados em uma fazenda para o cultivo da terra, aparelhos de ar condicionado, animais, persianas. A imobilização dos bens referidos no art. 43, III, do Código Civil podia ser desfeita a qualquer momento, nos termos do determinado no art. 45 do mesmo Diploma legal. Agora, o novo Código fala em pertença (arts. 93 e 94), incluídos entre os bens acessórios (distintos do bem principal).

Pontes de Miranda [21] assim definia referidos bens:

"o que não é parte integrante da coisa, mas se destina a servir ao fim, econômico ou técnico, de outra coisa, inserindo-se em relação específica, que corresponda a esse serviço (relação de pertinencialidade), - salvo se a transitoriedade do serviço, ou o uso do tráfico pré-exclui, ou exclui, a relação específica, - chama-se pertença.... A pertença não é parte integrante da coisa, nem essencial, nem não essencial".

Portanto, deixaram de existir os imóveis por acessão intelctual, sendo agora tratados como pertenças. A grande diferença é que, não sendo imóvel (na modalidade acessão intelectual, como no antigo código) a pertença (coisa pertencente na terminologia Ponteana) não segue o destino do bem principal, salvo disposição em contrário da lei, das partes ou das circunstâncias do caso. Dessa forma, se na compra e venda de uma fazenda, estando silentes as partes, nada se dispuser sobre o destino dos bens móveis que servem aos fins do imóvel, deve-se entender que estes não foram objeto da negociação, ao contrário do que dispunha o direito anterior, onde se fazia necessária a expressa determinação dos contratantes para se ter essa disposição, se não eles deviam ser entendidos como vendidos.

Por derradeiro, o art. 95 inova ao trazer a possibilidade de negociação com frutos e produtos ainda ligados ao bem principal, ou seja, bens que a rigor são imóveis, podem ser negociados como móveis, o que positiva a teoria dos móveis por antecipação legal.

Cabe ainda uma palavra para dizer que o bem de família voluntário passou agora a ser disciplinado no Direito de Família, saindo da Parte Geral.


Conclusão

Como já anteriormente afirmado, fugiu ao objetivo desse estudo uma análise pormenorizada, fulcrada no método dialético, contrapondo todas as teorias explicativas de cada um dos institutos postos em tela, o que não impediu a utilização de método científico hábil a extrair o sentido a meu ver (sempre buscando esclarecer o sentido de cada norma revelado pelo legislador) mais escorreito para cada um dos dispositivos analisados, ainda que de forma sucinta, muito mais preocupada com a colocação do sentido extraído do que com os caminhos percorridos para a esse sentido se chegar.

Ciente disso, pretendeu-se aqui oferecer uma noção geral dos novos enunciados lingüísticos postos em vigor pelo novo Código Civil, seguidos de rápidas linhas acerca da sua exegese, à luz dos postulados metodológicos indicados na introdução, pelo menos quanto aos seus mais importantes dispositivos relativos aos Livros das "Pessoas" e "Bens", inseridos na Parte Geral; desde já colocando-nos à disposição para eventuais críticas.


Notas

01. LÔBO, Paulo Luiz Netto, Constitucionalização do Direito Civil, in Revista de Informação Legislativa, nº 141, Brasília: Senado Federal, jan/março 1999, p. 103.

02. Que busca atingir a igualdade material, como nos adverte Bonavides: "Pelo princípio da igualdade material entende-se, segundo Pernthaler, que o Estado se obriga mediante intervenções de retificação na ordem social a remover as mais profundas e pertubadoras injustiças sociais.". in BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp 343 s.

03. REALE, Miguel. Capítulo I, in FERREIRA, Aparecido Hernani (coord) O Novo Código Civil – discutido por juristas brasileiros, Campinas: Bookseller, 2003, p. 30.

04. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, 4ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1974, Tomo I, p. 19.

05. Ob. cit., p. 77.

06. MELLO, Marcos Bernardes de, Teoria do Fato Jurídico (Plano da Existência), 7ª ed., São Paulo: Saraiva, 1995, p. 145.

07. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, 3ª ed., Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, Tomo V, p. 10 s.

08. COSTA, Adriano Soares da, Incidência e Aplicação da Norma Jurídica: uma crítica ao realismo lingüístico de Paulo de Barros Carvalho, in www.mottaesoares.com.br, pp. 8 ss.

09. VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil – Parte Geral, 3ª ed., São Paulo: Atlas, 2003, p. 190.

10. Ob. Cit., p. 54.

11. LÔBO, Paulo Luiz Netto, Danos Morais e Direitos da Personalidade, in Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro: Ed. Patmos, nº 06, pp. 87ss, abril/junho de 2001.

12. PAMPLONA FILHO, Rodolfo e GAGLIANO, Pablo Stolze, Novo Curso de Direito Civil – Parte Geral, São Paulo: Saraiva, 2002, volume 1, p. 168.

13. NADER, Paulo, Curso de Direito Civil – Parte Geral, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 215.

14. MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo, 12ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000, p. 201.

15. Ob. cit., Tomo I, p. 286.

16. SILVA, Ovídio A. Batista da, Curso de Processo Civil, 5ª ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, Vol. 1, p. 244.

17. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção, A desconsideração da personalidade jurídica e o direito do consumidor: Um estudo de direito civil constituciona,. In TEPEDINO, Gustavo (coord.), Problemas de Direito Civil Constitucional, Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 246.

18. ALVES, Alexandre Ferreira de Assumpção, ob. Cit., p. 263.

19. Ob. cit., Tomo I, pp. 248-251.

20. MOREIRA ALVES, José Carlos, in Revista do Conselho da Justiça Federal, nº 9.

21. Ob. cit., Tomo II, p. 113s.


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MELO, Angelo Braga Netto Rodrigues de. Modificações na Parte Geral do novo CCB. Das pessoas e dos bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 144, 27 nov. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4518. Acesso em: 26 abr. 2024.