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A apuração de falta grave pelo magistrado e a prescindibilidade do procedimento administrativo.

O equívoco da Súmula 533 do Superior Tribunal de Justiça

A apuração de falta grave pelo magistrado e a prescindibilidade do procedimento administrativo. O equívoco da Súmula 533 do Superior Tribunal de Justiça

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Para o reconhecimento da falta grave e aplicação da regressão de regime e perda dos dias remidos o procedimento é de competência exclusiva do juiz da execução penal.

A terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça editou, em 10/06/2015, a Súmula 533, redigida nos seguintes termos:

Para o reconhecimento da prática de falta disciplinar no âmbito da execução penal, é imprescindível a instauração de procedimento administrativo pelo diretor do estabelecimento prisional, assegurado o direito de defesa, a ser realizado por advogado constituído ou defensor público nomeado.

Da leitura abstrai-se que, havendo indícios de prática de falta no curso da execução penal, o diretor do estabelecimento prisional deverá promover a instauração de procedimento para a apuração do ocorrido, observando-se o devido processo legal, incluindo a defesa técnica a ser exercida por advogado ou defensor público.

Em um primeiro momento, afigura-se que a verbete sumular apenas reluz a determinação encartada no artigo 59 da Lei de Execução Penal1, qual seja, a obrigatoriedade de observância dos princípios e garantias constitucionais processuais para a aplicação de sanção disciplinar. Dito de outro modo, quer a normativa evitar qualquer conduta arbitrária e dessarrazoada na averiguação de indisciplina durante o cumprimento da pena. A toda falta disciplinar (leia-se prevista em lei ou regulamento) caberá uma sanção legal, mediante a adoção de procedimento próprio imbricado no due process of law.

Se utilizado apenas para as faltas tidas como leves e médias, ou graves, quando não ensejarem a regressão de regime, ou ainda a perda de dias remidos, não há qualquer equívoco no enunciado 533 do Superior Tribunal de Justiça, eis que de competência do diretor da unidade prisional, o qual não pode afastar-se do devido processo legal em sua função disciplinar.

A título de esclarecimento, somente são faltas de natureza grave as disciplinadas nos artigos 50, 51 e 52 da LEP2, as quais podem, após o devido processo legal, ensejar a regressão de regime e a perda dos dias eventualmente remidos. A prática de qualquer outro fato que não esteja expressamente previsto nos referidos dispositivos, diante do princípio da legalidade, não pode ser reconhecida como grave.

Nesse sentido é o julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo:

AGRAVO EM EXECUÇÃO – PERTURBAÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO – RECONHECIDA FALTA MÉDIA EM REGULAR PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO – IMPOSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DA FALTA DISCIPLINAR DE NATUREZA GRAVE – CONDUTA NÃO TIPIFICADA NA LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS – CLASSIFICAÇÃO COMO FALTA MÉDIA PELO REGIMENTO INTERNO PADRÃO DOS ESTABELECIMENTOS PRISIONAIS DO ESTADO DE SÃO PAULO – AGRAVO IMPROVIDO. (Relator(a): Nuevo Campos; Comarca: Marília; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Criminal; Data do julgamento: 03/12/2015; Data de registro: 10/12/2015)

Para o reconhecimento da falta grave e aplicação da regressão de regime e perda dos dias remidos o procedimento é de competência exclusiva do juiz da execução penal, o que não importa dizer que ele está adstrito a estas medidas; pode, a seu critério, aplicar outra medida corretiva, dentre aquelas fixadas na LEP.

Reconhece-se ao diretor da unidade a possibilidade do poder sancionador para as faltas graves, sendo vedada a aplicação das medidas que importem na inclusão no regime disciplinar diferenciado, conhecido como RDD, e alteração de regime, conforme preceitua o parágrafo único do artigo 48 e artigo 54, ambos da LEP3.

Não há qualquer contradição no ordenamento ao permitir que duas autoridades diferentes (uma administrativa e outra judicial) tenham competência para apreciar as faltas disciplinares de natureza grave. Cada qual, em seu âmbito de atuação, tem capacidade para apurar e julgar o fato, e, uma vez reconhecida a indisciplina, aplicar as respectivas sanções.

As instâncias judicial e administrativa são independentes, conforme entendimento solidificado em nossos Tribunais Superiores:

“As instâncias das esferas civil, penal e administrativa são autônomas e não interferem nos seus respectivos julgados, ressalvadas as hipóteses de absolvição por inexistência de fato ou de negativa de autoria.( AG.REG. NO RECURSO ORD. EM MANDADO DE SEGURANÇA 26.951 DISTRITO FEDERAL, Relator: RELATOR :MIN. LUIZ FUX , PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/11/2015)”

“É firme a jurisprudência desta Corte quanto à independência e autonomia das instâncias penal, civil e administrativa, razão pela qual o reconhecimento de transgressão disciplinar e a aplicação da punição respectiva não dependem do julgamento no âmbito criminal, nem obriga a Administração a aguardar o desfecho dos demais processos. Somente haverá repercussão, no processo administrativo, quando a instância penal manifestar-se pela inexistência material do fato ou pela negativa de sua autoria, não sendo o caso dos autos.( (RMS 45.182/MS, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/09/2015, DJe 05/10/2015)”

Logo, se há independência, esta afirmação espanca qualquer devaneio interpretativo ao admitir que o juiz da execução penal somente pode apurar a existência de falta disciplinar grave diante de prévio procedimento administrativo.

Ora, se nem para a apuração de infração penal, situação esta mais grave e que preocupa a sociedade de forma mais intensa que a indisciplina executiva, exige-se o procedimento administrativo, nominado como inquérito policial, qual a razão de exigi-lo para o juízo da execução penal?

Não se está a dizer que o juízo da execução penal poderá aplicar qualquer sanção sem que haja o devido processo legal, até mesmo em razão da impossibilidade de se motivar uma decisão com a ausência de elementos firmes de convicção. Defende-se com veemência a desnecessidade de qualquer procedimento anterior para a apuração de falta disciplinar pelo magistrado, o qual deve observar os princípios da ampla defesa e do contraditório, valendo-se dos meios necessários para a formação de sua convicção.

A interpretação mais adequada para o verbete reluz que somente o diretor da unidade é obrigado a instaurar o procedimento administrativo para a apuração de faltas disciplinares quando a sanção for de sua competência. Para as demandas do juízo da execução, não há vínculo ou obrigação a um procedimento administrativo, basta que, no âmbito judicial, seja observado o devido processo legal.

Afinal, a apuração de falta no âmbito do cumprimento de pena teria sorte diversa daquela lançada ao inquérito policial?

Pensar de modo contrário, isto é, que o procedimento encartado no artigo 194 e seguintes da LEP exige a prévia instância administrativa, é ferir violentamente as disposições encartadas na Carta Magna, em especial o artigo 5º, XXXV4, que traz em seu leito o princípio da inafastabilidade da jurisdição.

Ao exegeta cabe a análise não só da norma, mas também dos atos que dizem interpretá-la, e seu olhar deve estar pautado sobremaneira na Constituição Federal e nos princípios basilares do ordenamento jurídico.

Bem-vinda a Súmula do Superior Tribunal de Justiça, por reavivar que, em qualquer procedimento, administrativo ou judicial, há de estar presente o devido processo legal. Entrementes, peca ao exigir a via administrativa como obrigatória e necessária para a atuação pretoriana.

1 - Art. 59. Praticada a falta disciplinar, deverá ser instaurado o procedimento para sua apuração, conforme regulamento, assegurado o direito de defesa.

2. - Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que:

I - incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina;

II - fugir;

III - possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem;

IV - provocar acidente de trabalho;

V - descumprir, no regime aberto, as condições impostas;

VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei.

VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo.

[...]

Art. 51. Comete falta grave o condenado à pena restritiva de direitos que:

I - descumprir, injustificadamente, a restrição imposta;

II - retardar, injustificadamente, o cumprimento da obrigação imposta;

III - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei.

Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características

3 - Art. 48. Na execução das penas restritivas de direitos, o poder disciplinar será exercido pela autoridade administrativa a que estiver sujeito o condenado.

Parágrafo único. Nas faltas graves, a autoridade representará ao Juiz da execução para os fins dos artigos 118, inciso I, 125, 127, 181, §§ 1º, letra d, e 2º desta Lei.

Art. 54. As sanções dos incisos I a IV do art. 53 serão aplicadas por ato motivado do diretor do estabelecimento e a do inciso V, por prévio e fundamentado despacho do juiz competente.

4 - artigo 5º, XXXV - A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.


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Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

, Denise Pipino Figueiredo. A apuração de falta grave pelo magistrado e a prescindibilidade do procedimento administrativo. O equívoco da Súmula 533 do Superior Tribunal de Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4592, 27 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46088. Acesso em: 29 mar. 2024.