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A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens

A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens

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O devedor possui artifícios que geralmente escapam às sanções da lei, sendo a simulação alegação eficaz para esses casos. Detalhamos os instrumentos jurídicos mais utilizados para combater a alienação fraudulenta de bens.

RESUMO: Artigo que se propõe a analisar as condições em que ocorrem, no plano material, alienações (inclusive doações) de bens por devedores, insolventes ou em vias de insolvência, em prejuízo da Fazenda Pública. Demonstra que os recursos e instrumentos jurídicos costumeiramente utilizados para impedir tais fraudes não são suficientes, por contingências do próprio ordenamento jurídico, para evitar a dissipação de bens ou sua salvaguarda perante credores. Assevera a necessidade de se buscarem novos mecanismos para evitar tais operações maléficas, indicando como alternativa viável a alegação de simulação, instrumento previsto no Código Civil para infirmar atos que, embora não se enquadrem nos exatos termos da fraude à execução ou fraude contra credores, caracterizam blindagem patrimonial prejudicial aos credores.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil e Processual Civil. Fraude contra credores. Fraude à execução. Simulação. Fazenda Pública.

SUMÁRIO: Introdução; 1. Blindagem patrimonial – conceito e identificação; 2. Os usuais instrumentos de combate à blindagem patrimonial; 2.1. Da Fraude contra Credores; 2.2. Da Fraude à Execução; 2.3. Da Doação Nula ou Ineficaz; 3. A alegação de simulação como alternativa; Considerações finais.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por base argumentação apresentada no bojo de execução fiscal ajuizada contra pessoa jurídica que foi irregularmente dissolvida (isto é, paralisou suas atividades sem regular baixa do registro) após acúmulo de dívidas diversas, o que ensejou o redirecionamento da cobrança em desfavor dos sócios-gerentes, com fulcro no enunciado nº 435 da Súmula do STJ[1].

De se observar que, em casos como esse (extremamente comuns no dia-a-dia das Procuradorias da União, Estados e Municípios), os sócios-gerentes tornam-se solidariamente responsáveis pelas dívidas fiscais contraídas pela pessoa jurídica, haja vista que as autoridades – notadamente os órgãos fiscais e a Junta Comercial, no caso de sociedade empresária – devem ser comunicados do encerramento dos trabalhos daquela, para atualização e baixa dos registros competentes.

Mesmo em caso de dificuldades financeiras (o que, a princípio, dificulta ou impede o cancelamento do registro perante os órgãos fazendários, no caso de dívidas fiscais), a empresa poderá se valer dos instrumentos da recuperação judicial ou autofalência, previstos na Lei 11.101/2005, isentando-se os administradores, dessa forma, de maiores responsabilidades. No caso-exemplo, porém, os sócios-gerentes optaram por simplesmente fechar as portas da empresa, à época já inviabilizada diante de inúmeras dívidas de origens diversas.

Por motivos inerentes ao mecanismo judiciário, entre a deterioração da situação da empresa e a efetiva inclusão dos sócios no pólo passivo da execução (citação), decorreu considerável período de tempo, período no qual um dos sócios transferiu, por doação, imóveis de sua propriedade para seus filhos, reservando a si e à sua esposa o usufruto desses bens, enquanto vivos fossem.

Note-se, na espécie, que os bens foram transferidos antes do registro da penhora, pelo que não seria possível, em tese, aplicar as regras concernentes à fraude à execução – nem as do art. 593 do antigo Código de Processo Civil (CPC), nem as do art. 792 do novo CPC (Lei 13.105/2015), que ampliou sensivelmente as hipóteses de configuração[2]. A priori, apenas quando redirecionada a execução em face dos sócios-gerentes é que a exequente se tornou, por direito, credora deles, agora devedores solidários juntamente à empresa inativada. Assim, a anulação da doação com base no art. 158 do Código Civil (CC)[3] também não seria possível, já que a fraude contra credores exige que o ato fraudulento seja contemporâneo ao crédito – é dizer, a doação só poderia ser anulada se tivesse ocorrido após o mencionado redirecionamento.

Outra maneira de tentar desfazer a doação seria obter sua declaração de nulidade, com base no art. 548 do CC. Porém, como retratado acima, foi estabelecido usufruto em favor dos doadores. Ademais, ao tempo da doação não havia, formalmente, uma situação de insolvência do doador empresário, embora estivesse sua empresa imersa em dívidas – e tais dívidas certamente acabariam por respingar no patrimônio pessoal dos sócios. Com base nessa certeza – situação costumeiramente vivenciada no mundo dos negócios, e que dá origem aos atos de blindagem patrimonial – é que a Fazenda Pública, por seu representante legal, formulou pedido de nulidade da doação por simulação: o que teria movido os doadores não seria uma verdadeira liberalidade para os filhos, e sim a premente necessidade de evitar a perda do patrimônio familiar para credores.

A despeito da rejeição inicial da tese pelo Judiciário, entendemos que o tema da simulação merece maior cuidado dos operadores do direito envolvidos com o processo de execução, ordinário ou especial, de maneira a evitar o uso de brechas jurídicas pelos devedores aptas a livrá-los da constrição de bens particulares.

Nas seções a seguir, trataremos, em linhas gerais, dos ditos atos de blindagem patrimonial, sua prejudicialidade à execução e ao direito dos credores, e dos instrumentos hoje utilizados para se reprimir ou fazer cessar essa prática.

Incontinenti, discorreremos acerca do ato simulado, sua definição legal e a possibilidade de uso da regra prevista no Código Civil (CC) para combater práticas como a acima descrita, tendo em conta que os instrumentos comuns não se revelam abrangentes o suficiente para evitar a dissipação inidônea de bens por devedor.


1. BLINDAGEM PATRIMONIAL – CONCEITO E IDENTIFICAÇÃO

É de se esperar que o termo blindagem, em um país como o nosso, com severa deficiência na segurança pública, já possua seu significado incorporado ao senso comum. A ideia de proteção trazida à memória não destoa do encontrado nos dicionários[4], e é inteiramente aplicável ao presente debate, onde o indivíduo (é dizer, o devedor) tenciona proteger-se de ataques externos, não de criminosos, mas dos credores em busca de seus bens.

A divergência acerca do conceito de blindagem patrimonial se dá em torno de sua natureza jurídica: seria um ato lícito ou ilícito? Gladston e Eduarda Cotta Mamede afirmam que:

“A blindagem patrimonial é um ato ilícito complexo, ou seja, envolve a prática de diversos atos que são considerados ilegais por disciplinas jurídicas diversas: ilícitos civis, ilícitos tributários e ilícitos penais, entre outros. Assim, tanto os profissionais quanto os clientes podem ser responsabilizados, inclusive por meio de processo criminal”[5].

Já outros juristas afirmam que a blindagem patrimonial, em seu estrito significado, pode indicar o planejamento da pessoa, física ou jurídica, antes mesmo da assunção de dívidas, com vistas a reestruturar suas atividades e torná-las mais eficientes quanto ao alcance das finalidades pretendidas. Assim, por exemplo, a reestruturação de sociedades por meio da constituição de holdings poderia ser considerada uma forma de blindagem patrimonial[6].

Fato é que, mesmo havendo ações tendentes a desfalcar o patrimônio do devedor, esse, segundo Araken de Assis, “conserva a livre disponibilidade de seus bens, incumbindo a seus credores respeitar-lhes os atos negociais, embora seus resultados sejam nocivos e até provoquem a insolvência”[7].

É bem verdade que, a favor da Fazenda Pública, foi estabelecido o art. 185-A do Código Tributário Nacional (CTN), que permite ao juiz decretar, contra o executado, a indisponibilidade de bens e direitos. Contudo, essa medida se revela inócua na prática do processo, visto que somente se lhe faculta o uso após a citação do devedor, tempo em que, provavelmente, seu patrimônio já estará dilapidado.

Ora, a lei não veda, a priori, que o devedor pratique atos de disposição dos seus bens, pois que vigora a presunção de boa-fé. Devemos, assim, concordar com o professor Araken de Assis quando ele diz ser impossível “apartar o negócio hígido do fraudulento, pois eles apenas se diferenciam, substancialmente, quanto à finalidade”[8]. À primeira vista, todos os atos negociais consentâneos com a lei civil seriam válidos. Contudo, dentre esses atos praticados pelo devedor, haverá aqueles cuja finalidade atenta à boa-fé, cujo objetivo principal é reduzir o patrimônio de forma artificial: bens invisíveis aos olhos do credor, porém ainda sob a administração do devedor, por si mesmos ou por seu equivalente.

Tais atos ilícitos, a nosso ver, configuram a blindagem patrimonial tida por contrária ao direito, ainda que se cogite de uma eventual blindagem lícita. Nunca é demais lembrar que a execução é movida no interesse do credor (art. 612 do CPC), realizando-se os atos expropriatórios no proveito desse agente e em face do patrimônio do executado (princípio da responsabilidade patrimonial[9]). Assim, em se tratando de devedor, ressalvados os bens protegidos pela impenhorabilidade (CPC, art. 649), não há que se falar em licitude nos atos tendentes a dilapidar ou ocultar bens, caindo por terra a presunção de boa-fé assim que evidenciado que a pessoa física ou jurídica tinha pleno conhecimento das dívidas que se acumulavam contra si.

Em verdade, bastante raras são as hipóteses de dívidas absolutamente ignoradas pelo devedor. Quando ocorrem, quase sempre têm origem duvidosa ou já se encontram prescritas. Em regra, a pessoa devedora sabe o exato momento em que deixou de pagar determinada obrigação, ainda que não tenha uma contabilidade minimamente organizada. Passando-se os dias e acumulando-se as dívidas, mostra-se inexorável àquele devedor o destino que lhe aguarda: cobranças e ameaças dos credores, muitas vezes culminando em processos judiciais.

No caso das dívidas tributárias, a diferença se dá no tempo decorrido entre o inadimplemento e a cobrança judicial, geralmente alongado por conta dos vários procedimentos que permeiam a atividade fazendária. Nesse interstício, vê o devedor a oportunidade de, mesmo não se livrando da cobrança, permitir que os bens amealhados no período de bonança se livrem da constrição judicial.

Não se pode negar que, em determinadas situações, os atos praticados pelo atribulado devedor se revelam feitos de quase desespero, na tentativa de garantir aos seus uma vida futura com conforto semelhante à vivenciada outrora. No entanto – mais uma vez ressalvando os bens que a lei considera impenhoráveis –, não é dado ao devedor realizar atos negociais com finalidade prejudicial aos credores, ainda que previamente à execução, já que a boa-fé exigida nesses negócios (art. 113 do CC) será, no mínimo, questionável desde seu nascedouro.

Ora, a boa-fé, nos dias atuais, “erige-se em preceito ético informador da vontade negocial válida”[10], de modo que não subsistirá no direito atos maliciosos, violadores da boa-fé, ainda que subjetiva – a qual possui caráter psicológico, interno ao indivíduo, situação comum no caso de blindagem patrimonial.

Tal explicação se faz necessária porque os instrumentos mais comuns para reverter ou declarar ineficazes os atos de blindagem patrimonial, quais sejam, a fraude à execução e a fraude contra credores, não são suficientes para efetivamente coibi-las, especialmente no trato de execuções fiscais. É o que se verá a seguir.


2. OS USUAIS INSTRUMENTOS DE COMBATE À BLINDAGEM PATRIMONIAL

2.1. DA FRAUDE CONTRA CREDORES

Voltemo-nos à situação introdutória. A doação operada pelo sócio-gerente (e responsável solidário pela dívida da empresa dissolvida irregularmente) aos seus filhos, em tese, poderia enquadrar-se na ideia central do art. 158 do CC, já transcrito alhures.

Nos dizeres de Silvio Rodrigues, haveria fraude contra credores quando “(...) o devedor insolvente, ou na iminência de tornar-se tal, pratica atos suscetíveis de diminuir seu patrimônio, reduzindo, desse modo, a garantia que este representa, para resgate de suas dívidas”[11]. Para a configuração da fraude se exige a prova do eventus damni e do consilium fraudis, e no nosso caso-exemplo ambos os requisitos estariam presentes, considerando a prática, pelo executado, de um ato de disposição gratuita de bens (a doação) e a ciência, mesmo antes do ajuizamento das execuções, do acúmulo de dívidas em nome da empresa e do risco de que tais obrigações recaíssem sobre seu patrimônio pessoal, situação de ordinário verificada em processos trabalhistas e fiscais.

Ainda que, para ajuizamento da ação pauliana (prevista no art. 161 do CC), não se exija do devedor ter específico conhecimento de sua insolvência, fato é que apenas o credor à época do fato poderá pleitear sua anulação (§ 2º), e esse pedido se submete ao prazo decadencial de quatro anos, conforme previsto no art. 178 da Lei Civil. Sob os estritos termos da lei, no caso apresentado na introdução, não seria viável o ajuizamento da ação pauliana, especialmente em razão da constituição tardia do crédito.

No que pertine aos interesses da Fazenda Pública, a ostentar posição de credora privilegiada, surgem as dúvidas (a) acerca de sua legitimidade para pleitear a anulação e (b) sobre a data em que se poderá considerar credora: se a partir do inadimplemento do tributo ou somente após a constituição do crédito e sua inscrição em dívida ativa.

Quanto à legitimidade, há de se atentar inicialmente ao que quer dizer a lei com credores quirografários. É que, na espécie, não está em discussão a ordem estabelecida pelo ordenamento pátrio em sede de concurso de credores, onde a Fazenda se coloca em posição somente inferior à dos credores trabalhistas e, na falência, também a dos hipotecários.

Com efeito, como afirma João Franzen de Lima, citado por Orosimbo Nonato,

“Quirografários são os credores que não têm garantia real, isto é, hipoteca, anticrese ou penhor. Aos que têm essa garantia, não interessa a ação [pauliana], porque têm no bem a que aderem enquanto existir, a segurança do pagamento (...)”[12].

Dessa feita resulta que a Fazenda Pública, no mais das vezes, assume posição de credor quirografário, somente recebendo tratamento especial nos estritos limites dados pela legislação. Portanto, em não se tratando de tributo de natureza real (de que são exemplo os impostos sobre a propriedade territorial urbana e rural – IPTU e ITR), a garantia do crédito público será genérica, ficando à disposição do Fisco o manejo da ação pauliana quando o caso concreto a exigir.

Já no que diz respeito ao tempo da constituição do débito, é certo que, antes da inscrição em dívida ativa, não há presunção legal acerca da certeza e liquidez do crédito a ser perseguido em face do contribuinte devedor (art. 3º da Lei 6.830/1980). Contudo, há situações em que o contribuinte, antes da ação fiscal, já tem conhecimento da obrigação que possui e não cumpre: os débitos tributários declarados à Fazenda Pública, se não pagos no seu devido tempo, ficam desde logo constituídos, sem que se faça necessário qualquer intervenção da autoridade. Contudo, mesmo constituída a dívida, sua cobrança não será imediata, pois que demandará atividades administrativas preparatórias ao ajuizamento da execução fiscal, tais como a apuração do exato valor devido e a própria inscrição em dívida ativa.

Isso significa que, estando a empresa em dificuldades financeiras, deixando de pagar os tributos a que está obrigada, poderá também, desde logo, se desfazer de ativos, antes mesmo que a Fazenda Pública inicie os procedimentos para cobrança da dívida. De igual modo, contemplando o agravamento da situação, poderão os sócios-gerentes se desvincular de bens em seus nomes antes que a responsabilidade sobre as dívidas da empresa recaia sobre seus patrimônios particulares.

Outro grande obstáculo, nesse aspecto, será o prazo decadencial de quatro anos para pleitear a anulação do negócio. Embora pareça ser um prazo razoável, o fato é que ele é contado desde a realização do ato, independentemente da data que se o haja descoberto, já que o princípio da actio nata, em tese, apenas se aplica aos prazos prescricionais. Assim, quando ajuizada a execução fiscal e obtida a citação do réu, é bastante provável que já haja decaído o direito de pleitear a anulação do negócio, consolidando-se a fraude em prejuízo da Fazenda Pública.

Como não é possível “queimar” etapas no processo de constituição da dívida tributária de maneira a agilizá-la, e tendo em conta que o arrolamento de bens e direitos do contribuinte é reservado para situações específicas[13], haverá inúmeras situações concretas em que a fraude escapará ao controle da autoridade, porque não detectada no seu início, demandando então o estudo de medidas complementares para ser combatida.

2.2. DA FRAUDE À EXECUÇÃO

Diferentemente da fraude contra credores, vício que afeta o negócio jurídico, que se sujeita a prazo decadencial para anulação (por se tratar de direito potestativo do credor alegá-la), na fraude à execução se verifica um ilícito processual, ato que atenta à dignidade da justiça, sendo por isso nulo de pleno direito, se verificados os requisitos da lei para sua configuração.

Com a sanção do novo CPC, cuja entrada em vigor ocorre em março de 2016, o instituto da fraude à execução teve seus contornos ampliados, sem trazer, no entanto, garantias mais consistentes ao credor cujo título não estava formado ao tempo da alienação ou oneração de bens pelo devedor.

Com efeito, nos termos do novel art. 792 da Lei 13.105/2015, considera-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bem – em acréscimo às hipóteses do art. 593 e 615-A do revogando CPC[14] –, quando há averbação, no registro público do bem, de hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial (inciso III). Aliás, de acordo com a nova Lei Processual Civil, quando pendente ação fundada em direito real, é necessária a averbação de tal fato no registro competente, para que essa demanda seja capaz de induzir a ineficácia da alienação ou oneração do bem (inciso I, c/c § 1º).

Portanto, se os atos de blindagem patrimonial se antecipam às ações do credor para garantia de seu crédito, é evidente que o instituto da fraude à execução não possuirá qualquer serventia, já que a averbação no registro público de restrições ao uso, gozo e disposição do bem não poderá preceder, quando exequente a Fazenda Pública, a apuração da dívida e sua inscrição para fins de cobrança judicial.

Retornando à situação-exemplo trazida pela introdução, a doação teve lugar em meio à deterioração da sociedade empresária, mas antes de seus sócios-gerentes serem diretamente responsabilizados pela derrocada. Nesse panorama, uso da regra da fraude à execução não socorre ao credor fazendário, por maior que seja sua diligência em efetuar uma ágil cobrança da dívida fiscal.

2.3. DA DOAÇÃO NULA OU INEFICAZ

A situação-exemplo trazida para debate não possui qualquer ineditismo no mundo jurídico. Ela é apenas uma das medidas de que se servem os devedores para, na prática, se livrar do pagamento de suas obrigações. São empresas que, muitas vezes, “quebram” não por contingências do mercado, mas por ingerências de seus sócios, às vezes realizando retiradas além das suportadas pelo caixa da empresa, de maneira que o patrimônio pessoal daqueles cresce à medida que a atividade empresarial se inviabiliza.

Quando a dívida aumenta de forma exponencial e o fim da empresa é inevitável, surge a necessidade de garantir que os bens acrescidos ao patrimônio pessoal não sejam ameaçados pelas dívidas da empresa mal gerenciada. Uma das formas de se garantir a “sobrevivência” desse patrimônio é a doação a herdeiros[15]. No caso retratado na introdução, uma doação com reserva de usufruto dos doadores.

Em reforço às disposições legais acerca da fraude contra credores e fraude à execução, em se tratando de doação, o Código Civil assevera o seguinte:

“Art. 548. É nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador.

Art. 549. Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”.

Como se vê, a doação a herdeiros necessários com reserva de usufruto está a salvo das nulidades apontadas supra, já que o usufruto garante a subsistência do doador (afastando a nulidade do art. 548), e a liberalidade a herdeiro necessário garante a inaplicabilidade do art. 549, que se refere a doações que superam o limite de que se pode dispor em testamento.

Por outro lado, é sabido que, conforme o art. 2.002 do Código Civil, os herdeiros “são obrigados, para igualar as legítimas, a conferir o valor das doações que dele [de cujus] em vida receberam, sob pena de sonegação”. Essa conferência é chamada pela lei de colação e, embora tenha por fim precípuo igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente (art. 2.003[16]), ela também se mostra importante para os fins do art. 1.997, pelo qual se tem que a herança responde pelas dívidas do falecido.

Em outras palavras, os bens trazidos à colação são levados em conta para responder pelas dívidas do espólio. Afinal, apenas serão partilhados os bens que sobejaram ao pagamento das dívidas do espólio. E, se assim é, como reputar eficaz uma doação que, desde sua formalização, se deu em prejuízo dos credores?

Note-se que a blindagem patrimonial, escassamente tratada pela lei, não passa de uma estratégia mais bem elaborada de inviabilizar a execução, escapando às características clássicas da fraude. Por isso mesmo há de ser considerada manobra mais grave, pois o devedor não está se desfazendo de seu patrimônio e consumindo o valor arrecadado, mas está lançando mão de providências para que tal patrimônio continue dentro de sua esfera familiar.

A exemplo das maneiras buscadas por indivíduos para se furtar ao rigor da norma de direito, não é de hoje que a doutrina vaticina a insuficiência da lei para regular as mais diversas particularidades vistas no mundo dos fatos[17]. A doação com reserva de usufruto, como apresentado no exemplo introdutório, é indubitavelmente estratégia a priori a salvo das regras punitivas do Direito Civil, daí a importância da interpretação sistemática das normas civilistas para se impedir a locupletação ilícita do indivíduo que, in casu, encontra-se em débito para com a Fazenda Pública.


3. A ALEGAÇÃO DE SIMULAÇÃO COMO ALTERNATIVA

A simulação, prevista nos arts. 166 (incisos III e VI, que tratam de ilicitude de motivos) e 167 do Código Civil[18], pode ser considerada a fraude em seu sentido mais extenso, não apenas por sua definição, mas também por conta da multiplicidade de origens da causa simulandi[19].

No que concerne à definição, parece-nos suficiente a lição do jurista e autor do projeto do Código Civil de 1916, Clóvis Beviláqua:

“Diz-se que há simulação, quando o ato existe apenas aparentemente, sob a forma em que o agente o faz entrar nas relações da vida. É um ato fictício, que encobre e disfarça uma declaração real da vontade, ou que simula a existência de uma declaração que se não fez”[20].

Tais atos fictícios ou inverídicos são indiscutivelmente comuns, embora de difícil constatação, pois a eles subjaz uma extensa gama de motivos, incluindo a fraude ao fisco e o prejuízo indiscriminado a credores.

O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Orosimbo Nonato, tratou na obra Fraude contra credores a respeito dos traços que diferenciam a simulação e a fraude. Com apoio no magistério de Antonio Butera e outros juristas, Nonato defende que a simulação, a priori, diz respeito a um negócio fictício, enquanto que a fraude se associa a um negócio sincero, de fato querido pelo autor ou agente[21]. O autor ainda acrescenta, no que diz respeito às ações que visam, em cada caso, combater o ilícito:

“A de simulação, quando armada para mostrar o fictício do ato, paragona-se à pauliana. Assim em um caso como em outro, ocorre manobra fraudulenta do devedor. Nas duas hipóteses, peleja o credor por fazer incidir a execução no bem alienado – fingidamente ou não – pelo devedor.

Na pauliana, dá-se alienação real para revogada; na simulação ocorre transferência fingida, dá-se um simulacro de transferência, que se faz mister desvelar para a execução do credor”[22] (grifo no original).

No caso apresentado em nossa introdução, parece bem clara a configuração da simulação em sua absoluta forma, visto que, na prática, os bens doados continuam sob administração do executado, porém a título de usufruto.

Não se pode negar que a doação em vida de bens a herdeiros é aceita pelo ordenamento jurídico pátrio. Se, todavia, a esse propósito se soma ou se nele se encobre a intenção de impedir que credores tenham acesso aos bens transferidos, a nulidade da doação restará evidente, pois ao menos um dos motivos que moviam o doador estava obnubilado e se traduzia numa ilicitude.

De todo modo, merece destaque o fato de que, para o reconhecimento da simulação, não se exige do credor provas tais como as requeridas para atesto da fraude à execução ou fraude contra credores. Assim, o que se eleva na situação de ato simulado é a constatação objetiva do ardil, o que levou, algum tempo depois (no nosso caso-exemplo), à frustração das execuções ajuizadas contra o agente. Por outro lado, na fraude contra credores e fraude à execução, em vez de se desvelar o ato oculto ou fictício, prepondera o dever de demonstrar o prejuízo que causou a fraude – a ocorrência do consilium fraudis e do eventus damni constitui as condições da ação pauliana, já que o negócio, nesse caso, era verdadeiro e não aparente[23].

Vê-se, portanto, que a diferença entre a ação pauliana e o pedido de nulificação de ato simulado, quanto à finalidade, apenas se revela à medida que são diversas as situações de fraude stricto sensu e simulação, como apontado alhures, sendo a segunda, de certa forma, mais abrangente. No entanto, a diferença entre essas ações não se resume ao já exposto, e aqui o interesse da Fazenda Pública se acentua.

Nesse ponto, recorremos mais uma vez à lição de Orosimbo Nonato, que acentua não competir a ação pauliana aos credores posteriores à fraude, ao passo que a ação de simulação se abre a todos os credores, indiscriminadamente. Eduardo Espínola, citado pelo ex-ministro, elucida:

“No caso de atos fraudulentos apenas os credores anteriores poderão dizer-se por eles prejudicados e não os posteriores, pois quando adquiriram essa qualidade já os bens aludidos se não achavam no patrimônio do devedor, não podendo, assim, contar com eles para a garantia geral de seus créditos (...). Na simulação, as coisas se passam de modo diverso; os bens aparentemente alienados não saíram efetivamente do patrimônio do devedor”[24].

Assim sendo, abre-se ao exequente a possibilidade de, em específicas situações, perquirir acerca da intenção do executado ao praticar determinado ato de disposição de bens, sobretudo quando esse ato é mais antigo que o crédito que se busca satisfazer. E, nessas situações, ao contrário do que se vê na fraude contra credores e fraude à execução, não é preciso se atentar à má-fé do terceiro, ainda que por presunção legal, pois diante do ato simulado não importa terem o adquirente e o devedor consciência da redução desse último à insolvência[25].


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema ora retratado, decerto, não poderia se esgotar nas linhas acima escritas, nas quais trouxemos tão-somente um caso concreto, até certo ponto emblemático, para retratar a dificuldade enfrentada pelos credores para obter a garantia de seus créditos, isso em face não apenas da ardilosidade e astúcia dos devedores, mas sobretudo perante os engessados mecanismos legais que buscam resguardar a boa-fé nos negócios.

Como se viu, os tradicionais institutos que permitem a anulação ou declaração de nulidade de determinados negócios são insuficientes para contemplar a multidão de possibilidades, para um devedor, de manter seu patrimônio (sobretudo bens imóveis) em detrimento da dívida crescente, o que só agrava o quadro de insegurança jurídica hoje observado na atividade empresarial brasileira.

Com efeito, um ordenamento jurídico que protege em excesso o devedor – e não estamos falando da impenhorabilidade dos bens de família – corrobora com a manutenção de altas taxas de juros bancários e com a sensação de desequilíbrio de forças entre quem paga tempestivamente suas obrigações e quem faz uso cotidiano da inadimplência para competir no mercado.

Além do exemplo trabalhado neste artigo – a doação de bens a herdeiros com reserva de usufruto –, poderíamos citar outros casos que dificilmente seriam revertidos por fraude à execução ou fraude contra credores: uma questionável permuta de bens entre empresas endividada e sã, execução trabalhista promovida por parente de sócio da empresa, dação em pagamento suspeita... a depender das particularidades em concreto, não haveria solução aberta ao credor. A não ser apresentar a tese de simulação.

Entretanto, justamente pela existência dos tradicionais institutos de fraude, há certa resistência dos operadores jurídicos quanto à consideração da simulação como um instrumento inibidor dos negócios inidôneos praticados às vésperas de um processo de execução. Fazemos votos para que essa resistência seja vencida em breve.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2ª ed., 33ª imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.

LEMOS Jr, Eloy Pereira; SILVA, Raul Sebastião Vasconcelos. Reorganização societária e blindagem patrimonial por meio de constituição de holding. Londrina: Scientia Iuris, v. 18, n. 2, p. 55-71, dez. 2014.

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MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, vol. 1. 31ª ed. São Paulo: Saraiva, 1993.

NONATO, Orozimbo. Fraude contra credores (da ação pauliana). Rio de Janeiro: Ed. Jurídica e Universitária, 1969.

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil, vol. 1. 34ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.


Notas

[1]     “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.

[2]     Eis a redação do novel artigo:

“Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V - nos demais casos expressos em lei.

§ 1º A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

§ 2º No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

§ 3º Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

§ 4º Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias”.

[3]     Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívida, se os praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

§ 1º Igual direito assiste aos credores cuja garantia se tornar insuficiente.

§ 2º Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles”.

[4]     Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o verbo blindar tem o significado de pôr ao abrigo, proteger, resguardar, revestir (Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996).

[5]     Blindagem patrimonial e planejamento jurídico. São Paulo: Atlas, 2012, p. 43.

[6]     LEMOS Jr, Eloy Pereira; SILVA, Raul Sebastião Vasconcelos. Reorganização societária e blindagem patrimonial por meio de constituição de holding. Londrina: Scientia Iuris, v. 18, n. 2, p. 55-71, dez. 2014.

[7]     Manual da Execução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 296.

[8]     Idem, ibidem.

[9]     ASSIS, Araken de. Ob. cit., p. 113.

[10]    GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, vol. I. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 335.

[11]    Direito Civil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 228.

[12]    Fraude contra credores. Rio de Janeiro: Ed. Jurídica e Universitária, 1969, p. 156.

[13]    Vide art. 64 da Lei 9.532/1997.

[14]    “Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:

I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real;

II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;

III - nos demais casos expressos em lei.

(...)

Art. 615-A. O exeqüente poderá, no ato da distribuição, obter certidão comprobatória do ajuizamento da execução, com identificação das partes e valor da causa, para fins de averbação no registro de imóveis, registro de veículos ou registro de outros bens sujeitos à penhora ou arresto.

(...)

§ 3º Presume-se em fraude à execução a alienação ou oneração de bens efetuada após a averbação (art. 593)”.

[15]    Merece registro o disposto no art. 544 do Código Civil: “A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança”.

[16]    Por sua relevância, transcrevemos o teor do artigo:

“Art. 2.003. A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados.

Parágrafo único. Se, computados os valores das doações feitas em adiantamento de legítima, não houver no acervo bens suficientes para igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge, os bens assim doados serão conferidos em espécie, ou, quando deles já não disponha o donatário, pelo seu valor ao tempo da liberalidade”.

[17]  STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, pp. 103-105.

[18]    “Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

(...)

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

(...)

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

(...)

Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou, se válido for na substância e na forma.

§ 1º Haverá simulação nos negócios jurídicos quando:

I - aparentarem conferir ou transmitir direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem, ou transmitem;

II - contiverem declaração, confissão, condição ou cláusula não verdadeira;

III - os instrumentos particulares forem antedatados, ou pós-datados”.

[19]    MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 208.

[20]    Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1980, p. 225.

[21]    Ob. cit., pp. 45-46.

[22]    Idem, p. 46.

[23]    Idem, pp. 49-50.

[24]    Idem, p. 48.

[25]    Idem, p. 50.


Autor


Informações sobre o texto

Este artigo é fruto de pesquisas e estudos empreendidos pelo autor após caso concreto vivenciado em sua atuação enquanto Procurador da Fazenda Nacional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Thiago Batista da. A alegação de simulação como alternativa à tese de alienação fraudulenta de bens. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4634, 9 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46976. Acesso em: 26 abr. 2024.