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Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais

Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais

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Tanto menor será o risco de que o governante afronte a Constituição, quanto mais, em sede legal, forem detalhados os meios que deverá vinculativamente adotar na empreitada constitucional de promoção da efetividade dos direitos fundamentais sociais.

1. Introdução.

É histórica a ideia de que o Poder político tem de ser compartido a fim de que as variantes essenciais da sua capacidade de condução social não fiquem confiadas ou encerradas em um só indivíduo, de modo que, impedindo-se formalmente a concentração, se reduziria, por conseguinte, e substancialmente, a tendência ao abuso.

Inglaterra, Estados Unidos e França são, cada um a seu modo, o berço da formulação da “separação dos poderes” como viga de sustentação de uma sociedade genuinamente constitucionalizada.

Em sua concepção originária, a desconcentração do poder atendia aos reclamos de forças político-sociais prevalentes (nobreza e provo) e se erigiu como forma de acomodar tais estamentos ao lado do rei, nos centros oficiais de poder, a fim de aplacar inclinações revolucionárias.

Aquela era uma perspectiva eminentemente política da desconcentração a fim de conferir participação no poder aos grupos sociais que se formaram e se fortaleceram. Assim, o fracionamento subjetivo do exercício do poder atuava decerto como modo de contenção do poder, mas era muito mais uma forma de se reconhecer status, prerrogativas, aos estamentos ou ordens sociais que conquistaram importância política.

O telos da idéia de “separação dos poderes” consistia, então, numa fórmula política de se equilibrar as forças político-sociais – estamentos: rei, nobreza e representantes do povo – a partir da distribuição entre si do poder, sem que a nenhuma delas coubesse com exclusividade uma das três grandes vertentes funcionais do poder estatal (legislativo, executivo e jurisdicional).

Ao abandono da conformação político-social medieval, seguindo-se o ingresso na idade moderna, conforme anota Nuno Piçarra[1], houve as “efêmeras constituições escritas do Protectorado de Cromwell, as constituições dos Estados da Nova Inglaterra, a constituição americana saída da Convenção de Filadélfia e as constituições resultantes da Revolução francesa”, até o surgimento do Estado liberal.

O Estado passou a ser o centro único de poder a partir do povo, sua única fonte legítima, de sorte que não se reconhecia qualquer outra manifestação de poder, não havendo mais qualquer referência a estamentos sociais. Destarte, a desconcentração subjetiva do poder desvincula-se do viés equilibrante de potências sociais internas, convolando-se em instituto técnico-organizacional do Estado.

Assim, no Estado de Direito liberal, o princípio da “separação dos poderes”, que assumira uma “autonomização progressiva de uma função de controlo, atribuída em certa proporção a cada um dos órgãos constitucionais (...) destinada a garantir o caráter reduzido da actuação estadual, sucedeu uma limitação-racionalização destinada à correcta actuação do Estado progressivamente alargada[2].”

A relação triádica do Poder traduz-se, pois, nas funções legislativa, executiva e jurisdicional, exercidas, cada uma, prevalentemente e essencialmente, por indivíduos distintos, sem qualquer relação subordinativa de uma com as outras – ao menos sob o prisma formal-ideológico.

Ocorre que essa configuração tripartite foi informada e impregnada, desde a origem, por uma compreensão assaz acentuada de independência daquelas instâncias competenciais do poder, em medida tal que praticamente inadmitiam-se quaisquer interpenetrações, abominando-se incursão na perspectiva do mérito das ações – ou da falte de – do governante.

Portanto, repise-se, essa concepção originária da tripartição do Poder atendia fundamentalmente ao ideário liberal de contenção do governante, evitando-se a conseqüência do despotismo, que tem por causa mais marcante a concentração do poder político numa só pessoa, isto é, a técnica da “separação” do poder, inicialmente conformadora de potências sociais (estamentos), estabeleceu-se na modernidade, a par do monismo legitimatório estatal, como uma fórmula engenhada para debelar o perigo representado pelo governante, que reunisse em si as mais proeminentes e proficientes capacidades do poder político.

Entretanto, como assinalado, a atuação do postulado da “separação dos poderes” experimentou sensível alargamento, sendo certo que um dos fatores impulsionadores desse fenômeno social consiste na necessidade de aperfeiçoamento dos direitos fundamentais com o reforço das liberdades pelas necessárias prestações de caráter social a cargo do Estado, com nítido reflexo nas relações entre as funções[3]. 


2. A Constituição como gabarito do controle.

A partilha do poder político, então, não deveria significar que a compartição encarregada do governo (função executiva) pudesse agir sem peias e à margem da fiscalização e do controle afetos seja à especialização política a cargo da função legislativa, seja à especialização política afeta à função jurisdicional do poder.

Somente modernamente, no entanto, com a proclamação dos direitos fundamentais do homem e a instituição de Cortes constitucionais, é que se verifica o desenvolvimento de uma concepção da tripartição do poder não apenas limitada a conter o movimento concentralista e ditatorial do governante, mas também envolvida na consecução do bem comum, tal como estatuído nas respectivas leis fundamentais. A esse respeito, assevera Streck[4] que:

No hay duda, entonces, que esse nuevo modelo de justicia constitucional – el modelo de tribunales ad hoc introducido stricto sensu inicialmente em Austria y reafirmado en las Constituciones de Itália, Alemania, Portugal y España, para mencionar solo las principales – deja marcas indelebles em el constitucionalismo contemporâneo. La doctrina alemana, especialmente, em gran medida basada em el estudio de la eficácia de los derechos fundamentales y de los mecanismos interpretativos que sustenta(ba)n las tesis provenientes de la idea de fuerza normativa del texto constitucional y su caráter directriz.

A Constituição então passa a ser de fato o astro central do firmamento jurídico-político, em torno do qual gravita o próprio Estado, em quaisquer das suas manifestações de poder político. Destarte, a Constituição consubstancia-se no vínculo jurídico instituidor, disciplinador e regulamentador da relação obrigacional pública[5].

Dado que a Constituição tem seu núcleo essencial no estatuto dos direitos fundamentais, tem o Estado a obrigação constitucional de envidar todos os melhores e maiores esforços a fim de implementar políticas públicas capazes de dar-lhes a máxima satisfação. No sentido dessa vertente positiva da atuação estatal, assevera Mendes que há, “inequivocamente, a identificação de um dever do Estado de tomar todas as providências necessárias para realização ou concretização dos direitos fundamentais”.[6]

A necessidade impositiva desse preenchimento eficacial do estatuto fundamental acomoda-se à compreensão que Krell[7] admite acerca das intituladas normas programáticas, um vez que estas, segundo esse autor, “prescrevem a realização, por parte do Estado, de determinados fins e tarefas; no entanto, elas não representam meras recomendações ou preceitos morais com eficácia ético-política meramente diretiva, mas constituem Direito diretamente aplicável”. Também assim é o entendimento de George Sarmento, para quem “as normas programáticas não são aforismos políticos, exortações retóricas, apelos sentimentais, promessas vazias, boas intenções ou expectativas de realização dos programas. Elas prescrevem deveres estatais que se consubstanciam pela intervenção dos órgãos legiferantes ou pela atividade concretizadora da administração pública e da jurisdição”[8]. 


3. O Estado é meio para o atingimento dos legítimos fins constitucionais

Com esse propósito, impõe-se seja revisitada a relação do Estado com o Povo, a fim de ressaltar que este subordina aquele – e não o contrário – e que aquele está a serviço do conjunto de toda a sociedade e não da manutenção do status quo desigualitário. A esse intento, o ponto de partida diz respeito à concepção teleológica do Estado[9].

Historia Bonavides[10] que o estudo do fenômeno Estado, sob a vertente finalística, é refutado por Kelsen, para quem tal investigação resultaria num esforço destituído de sentido à ciência jurídica, porquanto a teleologia constitui-se assunto situado ao largo do interesse e do objeto da teoria do Estado, na medida em que este não vai além de um complexo normativo. Portanto, serviria para acomodar os mais variados fins sociais, aqui entendidos como tudo aquilo que se abrigasse formalmente sob um comando normativo.

No mesmo sentido, ainda conforme Bonavides[11], amparado em Leonard Nelson, é o pensamento de Jellinek, segundo o qual os fins do Estado seriam tão transitórios quão transitórias fossem as concepções vigorantes em certo lapso histórico.

Por tais vertentes do pensamento, não se poderia aprioristicamente conceber-se fins qualitativos ao Estado. Mas o Estado é também um ente normativo, inserindo-se, como tal, na contextura do sistema do Direito Positivo, e este, como observa Ataliba[12], não se conhece a partir, apenas, da experiência lógica, do ato lógico, que “é parcial”, sob pena de incorrer em “logicismo”, uma vez que dito sistema, a par de características tais como eficácia, ineficácia, existe para regular a conduta humana em sociedade, e, portanto, também é distinguido pela circunstância de “prescrever como deve ser tal comportamento para realizar os valores da ordem, da justiça, da solidariedade, etc.”, pois que, frise-se, à existência do sistema normativo responde a necessidade não de se retratar dada sociedade, senão que regular a sua inexorável dinâmica rumo a sua evolução, e isso não se faz de modo neutro ou de qualquer modo, mas no “sentido da ordenação justa”.

Recasens Siches também explicita que o Direito não se reconhece nem se convalida a partir da consideração e da perspectiva isolada dos aspectos axiológico, normativo-estrutural e de efetividade social, tendo em vista que estas dimensões do Direito respondem pela integralidade da sua essência e, por esta razão, sobre serem-lhe indissociáveis, são – e funcionam – íntima, recíproca e correlacionadamente. Com essa orientação, mesmo o ente Estado, germinado proeminentemente por manifestação política, e que, portanto, é essencialmente finalístico, sob sua configuração normativa, máxime contemporaneamente, não está a serviço de postulados individualistas e egoísticos, pois a dimensão da “validez formal otorgada por la autoridad política” imprescinde da “dimensión de valor, estimativa, o axiológica, consistente en que sus normas, mediante las cuales se trata de satisfacer una serie de necesidades humanas, esto intentan hacerlo de acuerdo con las exigências de unos valores, de la justicia y de los demás valores que ésta implica, entre los que figuran la autonomia de la persona, la seguridad, el bien común y otros[13]”. Destarte, o Direito Positivo presta-se não a conhecer e descrever como o corpo social se relaciona e se conduz interna e externamente, senão que interferir individual ou conjuntamente nesse mesmo corpo social (diga-se: Estado), por meio da linguagem prescritiva, dizendo como deve ser o comportamento “para realizar os valores da ordem, da justiça, da solidariedade, etc.[14]

Bonavides, naquela mesma passagem, prenuncia a retomada ao centro da discussão jurídica do Estado da questão dos fins a que este se destina, transcrevendo a crítica sintética feita por Leonard Nelson à negação dos fins do Estado: “ou conhecemos o fim do Estado ou o não conhecemos”.

Essa reorientação crítica da teoria pública, que revigora o estudo teleológico da atividade estatal, Bonavides observa, modernamente, em Marcel de la Bigne de Villeneuve, para quem “ao jurista não há de interessar o fim por dado exclusivo senão por dado essencial”, pois que “o fim é um dos elementos rigorosamente necessários, talvez o elemento primordial à compreensão da verdadeira natureza do Estado”. Consoante Bonavides, o jurista francês subordina a legitimação dos atos estatais à questão dos fins, advertindo que “da resposta que se der à finalidade do Estado hão de depender as funções, os direitos, os deveres e os limites da autoridade”.

Ainda que se ergam as críticas verdejando uma concepção meramente normativista do Estado ou sublimando uma gênese naturalística e organicista, anterior e desvinculada da vontade e da consciência humana e cultural, força é reconhecer que os fenômenos sociais evoluem com as experiências históricas da sociedade a um ponto tal de civilidade que tendem a assumir, na consciência social livre e educada, a estatura de verdadeiras e intangíveis categorias sociológicas, políticas e jurídicas, que só admitem mover-se anageticamente[15].

Nesse sentido, não desnatura a força jurídica mobilizadora e impulsionadora dessas categorias – a exemplo do que é o Estado – que se lhe aproximem do jusnaturalismo – ao qual, aliás, sempre se recorre em tempos de crise, como observa Bonavides[16].

A Constituição, Lei Fundamental que estrutura e organiza o Estado, sob o prisma da sua elaboração, máxime como produto do constituinte originário legítimo, assentado em orientações e práticas democráticas, é um documento essencialmente político.

Até esse momento, compreende-se no plano das factualidades que o Estado possa servir a múltiplas concepções ideológicas, cujos meios e fins com elas igualmente sofrerão variações, das quais são exemplos clássicos as concepções liberal e social do Estado, mas não se pode conceber, ao menos sob os auspícios das nações e comunidades civilizadas, que o Estado preste-se legitimamente a promover desigualdades e perseguições, favorecimentos e privilégios, ou que de algum modo não esteja totalmente voltado para o atingimento do bem comum.

Desse modo, superando-se a dificuldade e o rigor cartesiano a fim de precisar ao Estado fins definitórios, tem-se, entretanto, que, uma vez acabado o monumento constitucional, se entrelaçam ao estofo político do Estado as fibras da tessitura jurídica[17], de modo que aquilo que era eminentemente político, segundo a lição de Cléve[18] passa a absorver “outra dimensão que é despolitizadora, quer dizer, isto que está definido politicamente a partir de agora é direito e, como questões nucleares, estão e haverão de estar fora do debate político, porque são princípios fundamentais, porque são objetivos fundamentais, por que são cláusulas pétreas ou porque são direitos fundamentais”. Também assim pondera Almeida Diniz que, ao tratar da relação entre legitimidade do Estado e positivismo jurídico, observa a tenuidade da fronteira entre política e direito, ressaltando a ocorrência de “simbiose”, “interseção”, “assimilação” e “transposição”, que resulta na “incorporação pelo sistema jurídico de categorias políticas, devidamente normatizadas e integradas à esfera do direito positivo”[19]{C}/{C}[20].

Daí que é possível intuir que o Estado contemporaneamente é uma criação da consciência humana evoluída, e que só se põe como tal, legitimando-se política, social e juridicamente, inclusive, se estiver voltado à consecução do bem comum e à elevação da sociedade[21]. Caso contrário, Estado autêntico não há de ser considerado, devendo merecer a repulsa interna e o repúdio internacional.

Nesse sentido, são as considerações de Azambuja[22]:

Aqueles para quem o homem não é um simples animal superior, para os que o consideram uma criatura livre e inteligente, dotada de uma alma imortal, o Estado é um meio, e não um fim. Para esses, jamais a pessoa humana poderia ser um meio que o Estado empregasse para realizar a própria grandeza. Ao contrário, a pessoa humana é a medida e o fim do Estado e da sociedade, o seu valor supremo transcende infinitamente ao de todas as coisas do universo, que só existe como quadro, necessário, mas transitório, dentro do qual a alma humana evolui para o seu destino imortal.

Este último é o nosso ponto de vista. O Estado é um dos meios pelos quais o homem realiza o seu aperfeiçoamento físico, moral e intelectual, e isso é que justifica a existência do Estado.

É da essência do Direito, diferentemente do que ocorre na exatidão das ciências naturais, certa ductibilidade da linguagem de boa parte dos seus enunciados, no sentido de se evitar, em determinadas searas e em boa medida, o encalacramento hermenêutico. Tanto é assim que muitos consideram como de não melhor técnica os textos normativos vertidos em formas cerradas, que se prestam a conceituar os fenômenos sócio-jurídicos. Mas, doutrinariamente, os sentidos e as significações dos fenômenos jurídicos são trabalhados e deles se pode extrair ao menos o seu núcleo induvidoso, mas, por óbvio, sem se afastar do normado, do texto posto.

Daí que, para que não se objete com a imprecisão do que seja o bem comum, aqui proclamado como fim constante e qualificador do ente Estado, colhem-se a lição de Dabin (Philosophie de l’ordre juridique, p. 160), e, na seqüência, a concisa concepção de Cathrein (Filosofia moral, vol. II, pág. 563), ambos citados por Azambuja:

Conjunto dos meios de aperfeiçoamento que a sociedade politicamente organizada tem por fim oferecer aos homens e que constituem patrimônio comum e reservatório da comunidade: atmosfera de paz, de moralidade e de segurança, indispensável ao surto das atividades particulares e públicas; consolidação e proteção dos quadros naturais que mantêm e disciplinam o esforço do indivíduo, como a família, a corporação profissional; elaboração, em proveito de todos e de cada um, de certos instrumentos de progresso, que só a força coletiva é capaz de criar (vias de comunicação, estabelecimentos de ensino e de previdência); enfim, coordenação harmoniosa de todas as necessidades legítimas dos membros da comunidade. (DABIN)

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Complexo de condições indispensáveis para que todos os membros do Estado – nos limites do possível – atinjam livremente e espontaneamente sua felicidade na terra. (CATHREIN)

Assim, compreendido o Estado como um complexo originado da vontade e do esforço da sociedade, devendo concorrer para a consecução do bem comum, que se consubstancia, como visto, na sua finalidade precípua, não se pode conceber a eventual postura de indiferença da função jurisdicional do poder político como finamente ajustada à teleologia desse mesmo Estado, quando confrontada, por intermédio de iniciativa do legislado-administrado-jurisdicionado (Povo), a uma situação evidenciadora de desatendimento, imotivado e irrazoável, por parte da dimensão governativa desse poder, de determinada demanda social revestida de direito fundamental. Daí porque “onde o processo político da definição concretizadora e implementação de uma política pública falha em nível do Executivo, o Judiciário tem não somente o poder, mas o dever de intervir”[23], vale dizer, o povo sim tem o poder de intervir, e se o faz por meio da instância jurisdicional do poder representativo oficialmente organizado, esta tem, fundamentalmente, e antes de mais nada, o dever funcional – e de conseguinte o poder implícito – de conhecer e julgar, meritoriamente, a pretensão do legislado-administrado-jurisdicionado, até mesmo em homenagem ao elevado senso de procedimentalismo e de institucionalização de que dito modo de intervenção popular se reveste. 


4. A participação popular por meio da função jurisdicional como exigência contemporânea e funcional da harmonia constitucional.

Identificados o vínculo, o obrigado e a obrigação, força é reconhecer que há um direito que lhes é correspondente e um sujeito que o titulariza: o direito, traduzido no desempenho estatal eficiente e efetivo; o credor, o povo. Desse modo, se o componente executivo do Estado inadimplementa desarrazoavelmente a Constituição, tem o povo prejudicado, num Estado democrático de direito e em respeito às instituições típicas deste, para além da legitimidade, o poder de exigir do componente jurisdicional do Estado o resguardo da Carta Política e, de conseguinte, a tutela do seu direito, constituindo grave ofensa à Constituição eventual postura de indiferença, sob o pretexto de se homenagear o princípio da “separação” dos “poderes”.

De se notar que a função jurisdicional do poder político é ontológica e constitucionalmente inerte, somente agindo quando diante de um pedido possível de um interessado legítimo e sob o mais intenso e pleno contraditório, tal como é razoável e legitimamente conferido à Fazenda do Povo. Desse modo, não passa ilesa a críticas a alegação de que a função jurisdicional do poder político (e competência jurídico-constitucional), ao conferir curso institucional ao controle popular dos atos ou omissões das instâncias governativas estaria empreendendo protagonismos, uma vez que esse “controle”, como antevisto, é do povo, administrado-jurisdicionado, que pede a tutela de um direito, lesado ou até mesmo somente ameaçado, ao que a função jurisdicional no máximo julga-o procedente, mas nunca citra, ultra ou extra petita, sob pena de nulidade.

 A Constituição, resultante do poder constituinte originário, consubstancia-se na razão de ser e fundamento de existência e validade do poder constituído, do qual qualquer das funções constitui-se mera fração da sua expressão.

É a Constituição, portanto, consoante a compreensão modernamente concebida, a entidade principiológica e normativa fundante, estruturante e subordinante da atuação de todos os atores políticos. Na expressão de Piçarra, “a constituição não funciona aqui como um mero repositório de princípios, carecidos de força jurídica vinculativa, mas como norma fundamental fornecedora de critérios ou parâmetros jurídico-materiais de validade dos actos dos três poderes constituídos, para cuja observância concorrem os recíprocos controlos interorgânicos. Tal parâmetro consubstancia-se, essencialmente, no catálogo constitucional dos direitos fundamentais”.[24]

Sendo a Constituição a fonte formal e material de onde provém o poder político e a configuração tripartite deste, dela, portanto, é que decorre a capacidade específica, primária e preponderantemente afeta à função jurisdicional do poder, consubstanciada na solução e composição dos conflitos sociais intersubjetivos e, cada vez mais acentuadamente, na guarda e defesa do ordenamento jurídico, máxime dos postulados e valores normativos constitucionais, ainda que eventual insubordinação advenha dos agentes políticos integrantes da função legislativa ou executiva do Poder.

Por tais razões, a fiscalização e o controle jurisdicional da instância governativa do poder, necessária e inafastavelmente provocados pelo Povo (jurisdicionado, considerado individualmente ou por seus vários organismos sociais representativos), dada a inércia indissolúvel da função jurisdicional, não devem ser entendidos como perigoso começo de negação da concepção trímera do poder estatal, tampouco deve merecer a crítica do desfalque legitimatório.

Ao contrário, como ressalta Flávio Dino de Castro e Costa, “não existe incompatibilidade principiológica entre o exercício do controle jurisdicional sobre a atuação dos demais Poderes e o postulado inscrito no art. 2.º da nossa Constituição”[25].

Esta reorientação tende a aprimorar o Estado, na medida em que estimula a funcionalidade e operatividade do sistema, cujos efeitos se traduzirão em efetividade constitucional.

Por mais contraditório que, superficial e preliminarmente, possa parecer, o controle injuntivo desincumbido pelo Povo por meio da função jurisdicional do poder, a partir da Constituição, tende a promover, isto sim, a estabilidade do sistema, fazendo com que os subcomplexos de capacidade atuem não se subordinando, mas coordenando-se pelo bem comum, na medida em que devem estar voltados e convertidos para o atingimento do projeto político social delineado na Constituição. Isso responde à carga eficacial do fragmento enunciado da harmonia de que fala o texto constitucional, adjunta à independência dos poderes[26].

Nessa mesma vertente é o pensamento de Krell quando observa que, “no fundo, a questão envolve a própria supremacia da Constituição: se o texto da Carta Federal declara a proteção ao meio ambiente e a promoção da saúde pública expressamente como deveres do Poder Público, tem que ser dada também a possibilidade ao Judiciário de corrigir as possíveis omissões dos outros Poderes no cumprimento destes deveres. Isto vale especialmente para casos em que a situação omissiva está claramente consubstanciada e não há dúvidas a respeito da atividade necessária para sanar o estado de ilegalidade”.[27]


5. A legitimidade popular – princípio democrático – e o controle da função executiva por intermédio da função jurisdicional.

Konrad Hesse[28] fala da “vontade constitucional”, conclamando a que esta deva ser “honestamente” preservada e solidariamente praticada, pois “quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado”.

De quem falte o verdadeiro convencimento de que o poder emana do povo; de quem não se conforma como mandatário da vontade geral do povo; de quem não devote o exercício do poder ao múnus público, só se espera resistência a essa atuação controladora popular por meio da função jurisdicional. Essa é a crise que enfrenta o Brasil. Não é uma crise da Constituição. Não é uma crise do Estado brasileiro. É uma crise de estadistas.

Há vários modos de o Povo postular e perseguir dita substanciação constitucional, seja pelo recorrente, mas espasmódico, veredicto das urnas, seja pela pressão de movimentos sociais organizados etc.

Porém, indubitavelmente, um desses instrumentos, que está formal e constitucionalmente posto à disposição popular, consiste, desenganadamente, na função jurisdicional do poder político.

Ocorre que esta ainda negligencia esse múnus que a sistemática constitucional lhe atribuiu, presa que está, por vezes voluntariamente e por concepções interna corporis, à compreensão ultrapassada de certos dogmas juspolíticos, dos quais se destacam o princípio da independência dos poderes, a pseudo carência de legitimidade popular, além da indisponibilidade intelectual para enfrentar os desafios representados pelas teorias da “reserva do possível” e da “reserva de consistência”[29].

Esse é o quadro que ainda predomina e que representa o estágio atual, no que diz respeito ao tema do controle popular dos atos administrativos por meio da função jurisdicional do poder político, na perspectiva de conferir níveis satisfatórios de efetividade aos direitos fundamentais sociais.

Mas é preciso reconhecer que a questão estritamente política ficou lá atrás, nas discussões que culminaram com a promulgação da Constituição. A partir dela têm-se preceitos juspolíticos e como tais submetem as ações e manifestações dos atores políticos, que lhes sejam posteriores.

Desse modo, impõe-se que se dissemine a compreensão moderna e funcional dos dogmas jurídicos prenunciados, como também as modificações comportamentais no interior da demanda judicial cuja pretensão deduzida tenha por objeto um bem da vida que se relacione diretamente com a efetividade dos direitos sociais, a partir da tutela jurisdicional dos atos administrativos. Nesse sentido, observa Krell que “a limitação do controle judicial dos atos administrativos perde justificativa na medida em que aumenta a intensidade da afetação de direitos fundamentais”.[30]

Não se pode perder de vista, na apreciação desses institutos juspolíticos (harmonia, independência dos poderes e legitimidade), aquilo que tem sublinhado invariavelmente a experiência política nacional (contextualização espaço-temporal, subjetivo-material do Direito; âmbitos de valência da norma; tridimensionalidade do fenômeno jurídico), desde que se iniciou a prática democrática da eleição pelo voto popular direto, consistente no mais franco e insolente desprezo aos compromissos republicanos, alardeados e formalizados em campanha pelos pretendentes aos assentos executivos, momento este em que os postulados fundamentais da Constituição são solenemente exaltados.

Os que disputam o voto popular costumam apresentar-se com um programa de governo e uma penca de promessas e intenções, normalmente consentâneos aos ditames da Constituição. Ocorre que, ao depois de eleitos e já abancados, fazem do descompromisso para com muito daquilo que os fez merecer e conquistar o apoio da vontade majoritária do povo, a sua primeira, convicta, inarredável e mais estável ação administrativa.

Quer-se com essas ilações de cunho político-sociológico-axiológico apenas chamar a atenção para a seguinte indagação: com quem de fato está a crise de legitimidade?

É preciso, então, deslocar essa tensão, que notoriamente tem girado em torno do elemento subjetivo, na vertente mesmo da pessoa dos agentes políticos, e passar a analisá-la sob o prisma institucional.

Fazendo-se isso, logo se vê que a exasperação que toma conta de alguns circunscreve-se a aspectos de vaidade ou de temor dos riscos institucionais a interesses inconfessáveis, antes de ser algo que pudesse efetivamente comprometer o equilíbrio do poder.

O pretendido e decantado distanciamento forte da função jurisdicional do poder com o sistema político não deve ser de modo algum desprezado ou expungido quando em perspectiva a natureza e o exercício da função executiva do mesmo poder. À parte o acesso do elemento subjetivo que lhe empresta corpo e lhe presenta, que se dá por meio do voto popular, em processo que, embora regulado normativamente, tem acentuado matiz político, os desempenhos dos misteres típicos da Administração Pública hão de ser igualmente imparciais e neutros e de conformidade com os preceitos jurídicos positivados, pois que o fato de ser eleito não ressalva o já administrador público do jugo jusfundamental estatuído na Constituição. Uma vez eleito, o homem político, vale dizer, do sistema político, passa a ser agente administrativo e, nestes termos, agente do sistema jurídico, tanto quanto o deve ser o agente jurisdicional[31].

Ora, frise-se, o Judiciário age por provocação, defere ou não defere pedido, não é protagonista, não age moto proprio, não faz nem empreende ações. O Judiciário substitui a autotutela para compor, sob o Direito, os conflitos interpessoais e, uma vez que se atinja a certificação do direito, cumpre não olvidar que os protagonistas continuam a ser as partes substanciais da relação, ou seja, os jurisdicionados, os administrados, os legislados, de um lado, e, do outro lado, o organismo Estado. Eles, sim, é que irão atender não ao comando do juiz mediatamente, mas à lei e à Constituição, do qual a decisão injuntiva da função jurisdicional é veículo certificador ou introdutor da norma, individual e concreta[32]. 


6. Conclusão.

Mesmo atualmente, quando de há muito consolidada e conformada a “separação” subjetiva dos poderes, persiste o perigo – ao menos em democracias cujas instituições ainda não estejam sedimentadas com a prática e a experiência secular – de movimentos concentralistas, que invariavelmente descambam em abusos.

Esses abusos, por vezes, não estão mais tão representados num movimento concentralista tendente ao absolutismo. A isso, na maioria dos Estados, a divisão de poder e a pressão social interna e internacional parecem já ter dado resposta eficiente.

O “golpe” hoje está muito mais representado na figura do deficit de efetividade constitucional. Porém, dito receio provém, principalmente, semper et semper, a partir da atuação da pessoa do governante, do executivo.

Isso ocorre porque, dadas as múltiplas missões afetas ao Estado-gestor e dos muitos fins específicos que institucionalmente visa atingir, há de contar, portanto, a fim de desempenhá-los a contento, com certa liberdade de movimento e atuação, há de dispor de inúmeras competências, há de deter os mais variados meios e recursos materiais. Daí que, com tamanha dimensão e importância, poderá tender a relegar a plano inferior os fins genuinamente estatais consagrados na Constituição, no catálogo dos direitos fundamentais sociais.

Isso é facilmente observado em nosso país, a partir do exemplo de uma prática que vem sendo reiterada governo após governo e que consiste em minguar as políticas públicas durante a maior parte do mandato para “soltá-las” próximo do pleito eleitoral subsequente, com nítido objetivo de captação de votos.

Sendo assim, não se pode prescindir de mecanismos eficientes de controle, que igualmente somente podem advir da mesma matriz de poder, como são as estabelecidas funções legislativa e jurisdicional.

Vista a resistência ao controle popular dos atos administrativos, pela função jurisdicional, sob a perspectiva contemporânea da configuração triásica do Poder do Estado, supera-se a tradição paralisante, refratária e negativista, que vê nesse tipo de demanda judicial ofensa ao dogma da “separação dos poderes”. Ora, negar-se a tutela ao administrado-jurisdicionado, não porque seja este destituído do direito, mas em homenagem a uma suposta intangibilidade do “poder” ou auto-inidoneidade, significa sacrificar a Constituição, quando esta escrevinha a não exclusão da apreciação do Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito (amplo acesso à tutela jurisdicional) e estampa, já em seu artigo inaugural, que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente. Desse modo, não se há negar, o Povo, administrado-jurisdiconado, está sim exercendo o poder que dele exsurge – e o faz de modo direito – quando deduz jurisdicionalmente a sua pretensão; pretensão esta que, uma vez ajustada ao arquétipo constitucional, não pode ser desprezada pelo Estado.

A técnica da distribuição do poder em funções independentes é secular. Dá-nos bem essa certeza Nelson Saldanha[33] ao assentar que “a idéia da separação de poderes, cara a todas as gerações liberais, vinha de longe: Aristóteles, Marsílio, Locke, Montesquieu. Aliás, Montesquieu é sempre, mas algo injustamente, acusado de haver posto em voga o termo séparation, que depois se considerou excessivo; na verdade ele pouco emprega o verbo ‘separar’, ao versar o assunto”.

Assim também registra Bonavides[34] que “o princípio da separação de poderes, de tanta influência sobre o moderno Estado de Direito, embora tenha tido sua sistematização na obra de Montesquieu, que o empregou claramente como técnica de salvaguarda da liberdade, conheceu, todavia, precursores, já na Antigüidade, já na Idade Média e tempos modernos”.

Pelo distanciamento temporal longínquo, desde o seu surgimento até os dias atuais, é intuitivo que o barro sócio-político, a partir do qual se materializou a desconcentração do poder, tenha sido substituído pela liga de aço, polida e aparelhada pelas sucessivas experiências transformadoras das gerações, de modo a atender, hoje, a uma funcionalidade mais complexa. Quer-se dizer: o ideário subjacente à sua origem impregnou a consciência que a elaborou para aplacar a ebulição social de então. Mas, decerto, as feições originárias não respondem satisfatoriamente à atual conjuntura, máxime no que concerne a Estados periféricos de acentuado e notório deficit fundamental-social.

Entretanto, a noção do arcabouço fático que circunvolveu o nascedouro da tecnologia da compartição do poder político é obviamente determinante para a compreensão desse instituto juspolítico.

Nesse sentido é a advertência de Bonavides[35] ao dizer que “o princípio da separação de poderes, tanto quanto o da soberania, demanda do cientista político o indispensável exame da ambiência histórica em que se gerou, fora da qual se faz de todo incompreensível, quer na idade em que se elevou à altura de dogma constitucional – o século XIX – quer nos dias presentes, que testemunham já o declínio da influência auferida nas passadas quadras do liberalismo”.

Nesse estágio, reitere-se, a desconcentração do poder foi considerada pelos idealizadores e estudiosos como um modo seguro de suplantar o absolutismo e, de conseguinte, garantir e proteger as liberdades individuais.

Inobstante esse apelo institucional, força é reconhecer que, a par da contenção do poder absoluto do rei, o projeto liberal da separação de poderes atenderia a outro interesse da burguesia ascendente e dominante, traduzido na imobilização “da progressiva democratização do poder, sua inevitável e total transferência para o braço popular”.

O pendor para o abuso de quem detenha e reúna todo o poder político, identificado por Montesquieu, ainda persiste, em tempos modernos, mesmo após a desconcentração que propusera e se implantara no mundo ocidental, destacadamente em países periféricos, a exemplo do Brasil.

Georg Jellinek, já no início do século passado, observando realisticamente a decantada capacidade injuntiva da Constituição, vaticinava o descompromisso e a indiferença da classe economicamente dominante, pois que “as proposições jurídicas são impotentes para controlar a repartição estatal de poderes e que as forças políticas reais se movem segundo suas próprias leis, que atuam independentemente de todas as formas jurídicas”. [36]/[37]

Diante de um quadro de subversão da Lei Maior, especialmente no que concerne à efetividade dos direitos fundamentais sociais, é que se faz indispensável que sejam reafirmadas a supremacia e a força normativa da Constituição.

Não se pode perder de vista, ou fazer tábula rasa, de que o Brasil constitui-se numa república sob o modelo do Estado Constitucional Social Democrático de Direito (e de Direito Democrático), assentado debaixo da soberania popular.

Sendo assim, é a essa vontade geral delineada na Constituição que devem submeter-se todos e quaisquer agentes do Estado, de modo que a configuração tripartite do poder político, emanado do povo, não pode jamais ser concebido em desfavor deste, a exemplo do que ocorre quando a função jurisdicional, uma vez devidamente provocada pela sociedade, dá de costas aos notórios desmandos operados pela função governativa.

As idéias de soberania popular, distribuição das funções de poder e supremacia da Constituição, a partir das ponderações de Rousseau, Montesquieu e Sieyès, segundo Nelson Saldanha[38], assentaram o fato de “os poderes outros serem constituídos os colocava abaixo da constituição; somente o poder constituinte estaria acima da constituição, não só como origem sua, mas também como seu fundamento”.

W. B. Gwuin[39] narra que “na Inglaterra, em 1649, no seu Rights of the Kingdom, Jonh Sadler havia escrito que ‘se a execução é consoante com o julgamento, e este com a lei (entenda-se aqui: Lei Maior), então haverá uma doce harmonia; uma espécie de unidade sacra, em uma trindade’”. O raciocínio inverso impõe-se: se a execução é dissonante com a Constituição, então haverá desarmonia e estará dissolvida a unidade e quebrada a trindade, a não ser que a função jurisdicional do poder deseje harmonizar-se no propósito de malbaratar a Constituição.

Esse perigo, já o anuncia Paulo Bonavides[40], ao analisar a crise da função jurisdicional do Poder, apontando que “a falta de ‘patriotismo constitucional’ do Supremo (e aqui se emprega adrede expressão predileta dos constitucionalistas alemães) levanta, em maneira atroz e grave, o problema da independência dos Poderes. E o levanta por inculcar um aparente compromisso de colaboração e sujeição, às vezes indissimulável, aos desígnios do Poder Executivo. Este recebe, por conseguinte, considerável reforço às suas posições autocráticas”.

Prossegue Bonavides[41], advertindo que a subserviência do mais alto tribunal do país, “desvirtuado de sua missão tutelar, poderá minar o contrato social, debilitar a legitimidade democrática do regime, abrir janelas e escancarar portas às pressões inidôneas do Poder Executivo e, ao mesmo passo, desertar a função precípua de tutor do ente constitucional, fazendo, em certa maneira, mais tormentosas as crises e contradições e contrastes do sistema”.

À parte o servilismo, dogmaticamente não há razões impedientes de a função jurisdicional reassumir, ou assumir definitivamente, a sua missão institucional de salvaguarda dos postulados constitucionais, no sentido de, em sede de competente ação ajuizada, tanto que evidenciado o descumprimento irrazoável de um direito social estatuído na Constituição, exercer o dever constitucional de conferir eficácia ao controle popular da função governativa, reconduzindo-a aos trilhos constitucionais.

Bandeira de Mello[42], chamando a atenção para a característica de subsunção que orienta a relação da Administração com a lei – designadamente a Lei Maior – salienta que “as atividades estatais, maiormente as administrativas, nada mais são do que o cumprimento dessa vontade geral fixada, em primeiro plano, no texto constitucional, e, de seguida, na lei”.

Ao desincumbir-se do seu dever, não há como, com honestidade intelectual, enxergar protagonismo nessa atuação da função jurisdicional do Poder, mas o contrário denota um abstencionismo débil e um confinamento renuncista absolutamente incompatíveis com o múnus público que lhe atribui a Constituição.

Múnus, por certo, na precisa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello[43], para quem “a ordenação normativa propõe uma série de finalidades a serem alcançadas, as quais se apresentam, para quaisquer agentes estatais, como obrigatórias. A busca destas finalidades tem a índole de dever (antes do que poder), caracterizando uma função, em sentido jurídico”. Conclui dito autor que o “eixo metodológico do Direito Público não gira em torno da idéia de poder, mas gira em torno da idéia de dever”.

Hoje, é assente e remansoso o controle exercido pela função jurisdicional sobre a constitucionalidade da produção jusnormativa a cargo da função legislativa. Mas não foi sempre assim. Tal como o controle do mérito e da oportunidade dos atos de governo, não se cogitava do controle de conformidade da lei em face da norma fundamental, no início da fase moderna.

Quando surgiu mais vivamente, acompanhando os primeiros tempos do liberalismo, a partir da idéia do abade Sièyes de supremacia da Constituição e da possibilidade de controle dos atos legislativos com a experiência da Suprema Corte americana de Marshal, não foi, por certo, sem que se rompessem dogmas assentados historicamente, com embates no campo das idéias. Porém, isto foi superado e, atualmente, no mundo ocidental, esse controle é indiscutível, sob o ponto de vista da sua legitimidade e necessidade.

Ora, assim como é possível ao Legislador, ao produzir normas, no exercício da sua capacidade primordial, agredir a Constituição, da mesma forma também é francamente possível que a função executiva do Poder, a partir da sua atuação governativa (comissiva ou omissiva), igualmente incorra em desobediência ou inobservância de certo postulado constitucional.

Destarte, do mesmo modo que a tecnologia jurídica desenvolveu fórmulas para que a função jurisdicional do poder fulminasse as inconstitucionalidades legislativas, também saberá manejar os provimentos jurisdicionais aptos a reconduzir a administração ao ideário da Lei Suprema. O que não se pode admitir é a insindicabilidade popular, por meio da função jurisdicional, dos atos da instância governativa.

Esse é o entendimento sustentado por Humberto Ávila[44], para quem “(...) o exercício das prerrogativas decorrentes do princípio democrático deve ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, especialmente porque restringe direitos fundamentais. Em vez da insindicabilidade dessas decisões (Nichtjustitiabilität), é preciso verificar em que medida essas competências estão sendo exercidas”.

Ademais, esclarece esse autor que “(...) o controle de constitucionalidade poderá ser maior ou menor, mas sempre existirá, devendo ser afastada, de plano, a solução simplista de que o Poder Judiciário não pode controlar outro Poder por causa do princípio da separação dos Poderes”.

Essa é também a recomendação que se extrai de Krell[45], quando critica a aplicação tout court de teorias alienígenas, de países centrais, máxime a germânica, de tantas influências, inclusive aquém-mar, em países periféricos, como o Brasil, de pouca tradição substancial de respeito e efetividade dos direitos fundamentais sociais:

... torna-se evidente que o apego exagerado de grande parte dos juízes brasileiros à teoria da Separação dos Poderes é resultado de uma atitude conservadora da doutrina constitucional tradicional, que ainda não adaptou as suas ‘lições’ às condições diferenciadas do moderno Estado Social e está devendo a necessária atualização e re-interpretação de velhos dogmas do constitucionalismo clássico.

Veja-se que o âmbito de atuação da função legislativa, onde se sabe ser mais amplo o espaço de conformação das relações sociais, traz consigo a necessidade de que se estabeleça a presunção de constitucionalidade juris tantum dos atos normativos emanados daquela vertente do poder.

Essa presunção se estabelece em favor do interesse público primário (e não em proveito do corpo parlamentar), mas também decorre do fato de que ditos atos normativos são o produto de um processo elaborativo, insculpido na Constituição, por intermédio do qual são submetidos, ao menos formalmente, ao gabarito constitucional das comissões parlamentares e do veto presidencial.

Entretanto, uma vez demonstrada a inconformidade constitucional, deve ser afastada essa presunção e combatido o ato legal viciado, pois que “uma vinculação estrita do órgão judicial aos fatos e prognoses legislativos fixados pelo legislador acabaria, em muitos casos, por nulificar o significado do controle de constitucionalidade”. [46]

Nesse sentido, registra Mendes que a Corte Constitucional Alemã “recusou o argumento formal quanto à sua incompetência para proceder à aferição dos fatos legislativos, observando que a Constituição confiou-lhe a guarda dos direitos fundamentais em face do legislador e que, portanto, se da interpretação desses direitos decorre limitação para o legislador, deve o Tribunal dispor de condições para exercer essa fiscalização”. [47]

Já no que concerne à atuação administrativa, vê-se que está, na maioria das situações, irremediavelmente subsumida aos estreitos legais. Seu âmbito de conformação é, por natureza, delimitado pela conformação já empreendida normativamente, e nela há de se conter.

Destarte, tanto menor será o risco de que o governante afronte a Constituição, quanto mais, em sede legal, forem detalhados os meios que deverá vinculativamente adotar na empreitada constitucional de promoção da efetividade dos direitos fundamentais sociais. Isso, por óbvio, na hipótese de o próprio ato legislativo já não padecer daquele vício, quando então a Administração apenas o fará concreto.


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Notas

[1] PIÇARRA, NUNO, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução, Coimbra: Coimbra editora, 1989, p. 25.

[2] PIÇARRA, NUNO, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução, Coimbra: Coimbra editora, 1989, p. 152.

[3] PIÇARRA, NUNO, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução, Coimbra: Coimbra editora, 1989, p. 152.

[4] STRECK, LENIO LUIZ, La Jurisdicción Constitucional y Las Posibilidades de Concretización de Los Derechos Fundamentales-Sociales, Teoría y realidad constitucional, Nº 16, 2005, páginas 241-272, ISSN 1139-5583.

[5] Queiroz, Cristina, após expor a compreensão de que os direitos sociais de liberdade não são atualmente concebidos apenas como “reservas” contrapostas ao Estado, senão que devem ser inteligidos numa “relação unificadora”, assevera que “a Constituição é desde então percebida não apenas como ‘ordem-quadro’ para ação (Rahmenordnung), que o legislador se vê obrigado a respeitar, mas, ainda, como base e fundamento de toda a ordem jurídica. Um ‘sistema de valores’ constituído não apenas com base nos ‘direitos fundamentais’, mas ainda noutros princípios constitucionais, como o princípio do ‘Estado de Direito’ ou o princípio do ‘Estado Social’. Esse elemento de ‘sociabilidade’ aponta para uma intervenção estadual não apenas como ‘limite’, mas inda como ‘fim’ ou ‘tarefa público-estadual’, ordenando concretos ‘deveres de proteção’ (Schutzpflichte) a cargo do Estado”. Artigo: Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade. In Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 169.

[6] Mendes, Gilmar Ferreira, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional, 3. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2004, p. 12.

[7] A Constituição Concretizada, construindo pontes com o públic11o e o privado/Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais, Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 2000, p. 27.

[8] In Pontes de Miranda e a teoria dos direitos fundamentais – Revista do Mestrado em Direito da Universidade Federal de Alagoas, ano I, nº 01 – Maceió: Nossa Livraria Editora, janeiro/dezembro de 2005, p. 35.

[9] Queiroz, Cristina, destaca que a teoria constitucional tem experimentado uma “funcionalização” no que concerne a “abrangência” e “amplitude” dos direitos fundamentais, de modo que esses direitos galgaram acentuado sentido qualificativo que passou a marcar, influenciar e modificar a relação entre o Estado e a sociedade, de maneira que “esta relação entre a ‘função’ e a ‘situação social’ dos direitos relativiza a sepração entre o Estado e a sociedade, bem como a diferenciação entre o Estado e o cidadão, ou a relação cidadão/cidadão. Ambos vêm, agora, ‘comunitariamente (co-)responsabilizados por essa coordenação.” Artigo: Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade. In Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, pp. 181/182.

[10] Bonavides, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2004, p. 108.

[11] Idem, p. 109.

[12] Vilanova, Lourival, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, Prefácio, pp. 22/23.

[13] Siches, Luis Recaséns. Introducción al estudio del derecho. México: Porrúa, 1997, p. 45.

[14] Vilanova, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 22.

[15] Gargarella, Roberto, observa que los derechos têm particularidades que os distinguem de outras criações humanas culturais, tais como a origem histórica revolucionária – em alusão direta às revoluções burguesas do século XVIII – e também que se fundamentam em razões que podem ser mais ou menos moralmente justificáveis, citando como exemplos dessa perplexidade o status libertatis e custódia da propriedade desigual. Entretanto, inobstante essa contradição, pondera que “los derechos han sido capaces de tomar vida própria, independizándose de muchas de las limitadas aspiraciones de sus impulsores, a partir de lo cual los derechos pudieron arrasar los delicados y cuidadosamente escogidos propósitos con que habían sido diseñados”. In Atria, Fernando, et al. Derecho y disociación. Un comentário a “existen derechos sociales?” de Fernando Atria. Derechos sociales. Discusiones. Año IV – Número 4, p. 61.

[16] Ob. Cit., p. 106.

[17] Neves, Marcelo destaca que o conceito modernamente concebido de Constituição não está adstrito a uma noção estritamente axiológica, senão que também há de ser apreendido “como uma via de prestações recíprocas e, sobretudo, como mecanismo de interpenetração (ou mesmo de ingerência) entre dois sistemas sociais autônomos, a Política e o Direito”. Mais adiante, embora ressaltando que, por força da Constituição, se intensifica a possibilidade de influência recíproca entre os sistemas político e jurídico, o autor ressalta que “as ingerências da política no Direito não mediatizadas por mecanismos especificamente jurídicos e vice-versa são excluídas”. In A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 61/63.

[18] Cléve, Clémerson Mérlin, Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais / O Controle de Constitucionalidade e a Efetividade dos Direitos Fundamentais. Sampaio, José Adércio Leite – Coordenador. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 389.

[19] Diniz, Antônio Carlos de Almeida, Teoria da legitimidade do direito e do estado: uma abordagem moderna e pós-moderna. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 129.

[20] Após salientar a perspectiva filosófica que enxerga contra-senso na idéia de direitos morais dos cidadãos, Dworkin observa que essa compreensão jamais influenciou a teoria política ortodoxa americana na medida em que os políticos a ela (moral) recorrem invariavelmente a fim de justificar sua plataforma política, de modo que “a Constituição funde questões jurídicas e morais, fazendo com que a validade de uma lei dependa da resposta a problemas morais complexos, como o problema de saber de uma determinada lei respeita a igualdade inerente a todos os homens”. In Levando os direitos a sério. Tradução e notas Nelson Boeira. – São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Justiça e direito), pp. 284/285.

[21] Essa parece ser também a compreensão de Neves, Marcelo quando evidencia que “na sociedade super-complexa de hoje, fundada em expectativas e interesses os mais diferenciados e contraditórios, o Direito só poderá exercer satisfatoriamente sua função de congruente generalização de expectativas normativas enquanto forem institucionalizados constitucionalmente os princípios da inclusão e da diferenciação funcional e, por conseguinte, os direitos fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberdade civil e à participação política”. In A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 72.

[22] Azambuja, Darcy, Teoria Geral do Estado. São Paulo: Editora Globo, 2001, p.122.

[23] Krell, Andréas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo – Porto Alegre; Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 85.

[24] PIÇARRA, NUNO, A separação dos poderes como doutrina e princípio constitucional – um contributo para o estudo das suas origens e evolução, Coimbra: Coimbra editora, 1989, p. 206.

[25] A função realizadora do Poder Judiciário e as políticas públicas no Brasil, Administrativo, Constitucional e Previdenciário – IP 28, p. 69.

[26] Neves, Marcelo, observa que o Direito, por meio da institucionalização da “divisão de poderes”, exerce função intermediadora da influência da comunicação do código do poder sobre a comunicação do código jurídico, ressaltando, com apoio em Luhmann, que decisões do poder político são processadas e conduzidas pela via do Direito, destacando que essa procedimentalização funcionalista decorrente da separação subjetiva das funções típicas do poder político “aumenta a capacidade dos sistemas político e jurídico de responder às exigências do seu respectivo meio ambiente, repleto de expectativas as mais diversas e contraditórias”. In A constitucionalização simbólica. São Pulo: Acadêmica, 1994, p. 74.

[27] Krell, Andréas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo – Porto Alegre; Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 84.

[28] A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991, p. 22.

[29] Queiroz, Cristina, não desconhece a real dificuldade para efetivação dos direitos sociais representada pela sua ‘complexa polivalência semântica’. Inobstante isso, ressalta que a “relativa resistência dos tribunais e do poder judicial em resolver questões na aparência da competência dos órgãos politicamente conformadores, a ausência de mecanismos jurisdicionais adequados à emergência de ‘novos’ direitos de natureza coletiva, a que poderíamos acrescentar a falta de uma prática institucional e cultural de interpretação e conseqüente justiciabilidade e garantia efetiva deste tipo específico de direitos, estão na origem, entre nós, de um controle ‘imperfeito’ da sua constitucionalidade”. Artigo: Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade. In Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 210.

[30] Krell, Andréas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: um estudo comparativo – Porto Alegre; Livraria do Advogado Editora, 2004, p. 39.

[31] Neves, Marcelo observa que a Constituição atua como elemento distinguidor entre política e administração, de modo que esta “é neutralizada ou imunizada contra interesses concretos e particulares: ela atua, então, conforme preceitos e princípios com pretensão de generalidade”. In A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 75.

[32] Essa orientação também é perfilhada por Queiroz, Cristina, para quem “é certo que o juiz e o poder judicial não podem agir ex officio. Sob este ponto de vista, são ‘passivos’ no que concerne ao poder de ‘inovação’ (mas não de ‘criação’) na ordem jurídica democrática. Agem não como ‘representantes’ (políticos) do povo – que não o são -, mas ‘em representação’ da sua vontade. Não é o juiz, individualmente considerado, mas o tribunal, a função específica que exerce, que é considerado soberano – e, neste sentido, atuando ‘em representação’ do povo, posto que ‘torna presente’ sua vontade soberana. A justiça é aplicada ‘em nome do povo’. Não se trata de uma simples alegoria. Esta possui um simbolismo próprio, uma representação específica e insofismável”.Artigo: Direitos fundamentais sociais: questões interpretativas e limites de justiciabilidade. In Interpretação constitucional. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 193.

[33] Formação da teoria constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 2000, p. 76.

[34] Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, 146.

[35] Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, 144. Da erudição do jurista cearense, empresta-se o escorço histórico: “O poder soberano do monarca se extraviara dos fins requeridos pelas necessidades sociais, políticas e econômicas correntes, com os quais perdera toda a identificação legitimativa. Mudaram aqueles fins por imperativo de necessidades novas e, todavia, a monarquia permanecera em seu caráter habitual de poder cerrado, poder pessoal, poder absoluto da corroa governante. Como tal, vai esse poder pesar sobre os súditos. Invalidado historicamente, serve tão-somente aos abusos pessoais da autoridade monolítica do rei.

A empresa capitalista, com a burguesia economicamente vitoriosa, dispensava os reis, nomeadamente os monarcas da versão autocrática. O rei era o Estado. O Estado, intervencionista. O intervencionismo fora uma bem e uma necessidade, mas de súbito aparecerá transfeito num fantasma que o príncipe em delírio de absolutismo poderia improvisamente soltar, enfreando o desenvolvimento de uma economia já consolidada de um sistema, como o da economia capitalista, que, àquela altura, antes de mais nada, demandava o máximo de liberdade para alcançar o máximo de expansão; demandava portanto menos o paternalismo de um poder obseqüente mas cioso de suas prerrogativas de mando, do que a garantia impessoal da lei, em cuja formação participasse ativa e criadoramente.

Todos os pressupostos estavam formados pois na ordem social, política e econômica a fim de mudar o eixo do Estado moderno, da concepção doravante retrógrada de um rei que confunda com o Estado no exercício do poder absoluto, para a postulação de um ordenamento político impessoal, concebido segundo as doutrinas de limitação do poder, mediante as formas liberais de contenção da autoridade e as garantias jurídicas da iniciativa econômica”.

[36] Apud Bonavides, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 368. A constatação vatídica de Jellinek consumou-se na história política nacional, como constata Paulo Bonavides: Os piores reacionários, os mais corrosivos à sociedade, corruptos ao bem comum, lesivos à honra dos compromissos, infestos à execução das promessas contidas nas plataformas de governo, são aqueles que dantes confessavam abraçar a causa do progresso e da mudança, mas uma vez no poder faltaram à fé dos princípios, à lógica da existência vivida, à bandeira das idéias que haviam triunfado nos campos da revolução armada ou nas urnas sucessórias e terminaram atraiçoadas no dia seguinte ao da vitória, precisamente por aqueles que tinham o indeclinável e precípuo dever de ampará-las com determinação, congruência, lealdade e valentia. Assim no presente como no passado; nas Cortes de Lisboa, como na República de São Bernardo do Campo.

[37] Ao tratar do aspecto ideológico no sentido positivo da constitucionalização simbólica, Neves evidencia que a realização eficacial da Constituição somente seria factível “sob condições sociais totalmente diversas” o que exigiria “uma profunda transformação da sociedade”, sem o que o modelo constitucional atuaria como ideal, “fórmula retórica da boa intenção do legislador constituinte e dos governantes em geral”, sempre dependente da vontade dos “donos do poder”, no limite e desde que não lhes implique prejuízo. Neves, Marcelo. A constitucionalização simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 89.

[38] Ob. Cit., pp. 77/78.

[39] Saldanha, Nelson. Formação da teoria constitucional. Rio de janeiro: Renovar, 2000, p. 133.

[40] Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 307.

[41] Idem, p.310.

[42] Bandeira de Mello, Celso Antônio Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros editores, 2006, p. 12.

[43]. Idem, pp. 13/14.

[44] Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 125.

[45] Krell, Andréas Joachin Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha – Os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 91.

[46] Mendes, Gilmar Ferreira, in Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional, 3. ed. rev. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2004, p. 481.

[47] Idem, p. 476.


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SILVA, Adriano Luís de Almeida. Desconcentração subjetiva do exercício do poder público e a promoção dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4633, 8 mar. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46977. Acesso em: 4 maio 2024.