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Consentimento da vítima nos crimes sexuais

Consentimento da vítima nos crimes sexuais

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"Não gosto de trabalhar. Preferia vagabundear

e pensar em todas as coisas boas que podem ser feitas.

Não gosto de trabalhar — nenhum homem gosta —,

mas gosto do que existe no trabalho — a oportunidade

de encontrar-se a si próprio.

Sua própria realidade — para você mesmo e

não para os outros —, aquilo que nenhuma pessoa

jamais poderia saber. Eles podem ver o resultado final,

mas nunca dizer o que realmente significa".

Joseph Conrad

I – Índice.: I – Índice; II – Introdução; III – Breve nota sobre os crimes contra os costumes; IV – O consentimento do ofendido nos crimes sexuais; V – Análise crítica das diferentes "teorias" apresentadas; VI – Uma "nova" proposta;VII – Conclusão;VIII – Bibliografia


I – Introdução.

A análise dos crimes sexuais, mais especificamente do consentimento da vítima nesse tipo de crime, oferece rica controvérsia doutrinária e jurisprudencial. Adentrá-la é situar-se num espectro argumentativo que vai desde uma determinada concepção de Hermenêutica até uma análise sociológico-evolutiva dos dispositivos do Código Penal.

De todo modo, o posicionamento crítico, sem cuja observância estaríamos fadados a uma mera repetição do discurso tradicional, deve acompanhar cada etapa do presente trabalho.

Para tanto, precisamos fugir do "senso comum teórico" e aceitarmos, inicialmente, a realidade de que os instrumentos de interpretação são plurívocos e que todos nós, enquanto aplicadores do Direito, possuímos a capacidade de trabalhar — numa perspectiva criativa e criadora — com os inúmeros sentidos que esses podem ganhar.

Nesse contexto, perpassar-se-á as tradicionais posições dogmáticas e jurisprudenciais acerca do tema para, posteriormente, apresentar as opiniões de vanguarda sobre o assunto. Ao final, concluir-se-á com a apresentação de uma "nova" proposta, calcada em uma hermenêutica liberta do consenso forçado que a dogmática jurídica põe à nossa "disposição".


II – Breve nota sobre os crimes contra os costumes.

O legislador pátrio no Título VI da Parte Especial do Código Penal (artigos 213 a 249) estabeleceu a tutela jurídica dos "costumes". Dentro desse universo amplíssimo, que envolve desde crimes contra a liberdade sexual até aqueles contra a filiação e o pátrio poder (poder familiar, segundo a Lei 10.406/2002), interessa ao presente trabalho aqueles que se convencionou chamar de "crimes sexuais", quais sejam, o estupro, o atentado violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, o atentado ao pudor mediante fraude, a sedução, a corrupção de menores e o rapto (definidos nos artigos 213 a 222 do Código Penal), tanto em suas formas qualificadas quanto presumidas (Cf. arts. 223 e 224 do Código Penal). Sendo ainda mais preciso, os crimes de estupro e atentado violento ao pudor são os que se aproximam mais do objeto do presente, haja vista que, além de serem os mais comuns, são aqueles que envolvem violência que, em tese, pode ser real ou ficta — sendo esta última alvo da principal polêmica a ser abordada neste trabalho: a da possibilidade de a vítima de crimes em que há violência presumida consentir com a prática de atos sexuais e se tal consentimento tem alguma validade jurídica.

Fogem do âmbito de pesquisa do presente trabalho, então, análises conceituais, subjetivas (sujeitos ativo e passivo), etc., dos delitos em tela, na medida em que, conforme indicado acima e no intróito, o que se visa a discutir é o consentimento da vítima nos crimes sexuais, mais especificamente quando se tratar da menor de 14 anos, hipótese em que, segundo o art. 224, a, do Código Penal, a violência é presumida.

Feita essa pequena ressalva técnica, urgem esclarecimentos acerca da visão que se pretende dar aos crimes sexuais no presente trabalho: um Estado laico, democrático e pluralista não pode pretender ter uma visão moralizadora e, quiçá, catequizadora da sexualidade. A sexualidade hoje, em pleno século XXI, deve ser interpretada e "permitida" em suas diferentes formas, o que significa dizer que o diferente deve, necessariamente, ser admitido. Não por um beneplácito do intérprete ou do legislador, mas por imperativos constitucionais de liberdades, de proibição de quaisquer tipos de discriminação, etc. Nesse contexto, concordamos com o texto extraído do Volume II do livro "Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial", organizado por Alberto Silva Franco e Rui Stoco: "Não há que se cogitar, na atualidade, [um conceito] de sexualidade fora do espaço da pessoa humana, não cabendo delimitação de sua área de significado segundo parâmetros éticos, de moralidade pública ou de bons costumes". [1] Assim, "só não pode encontrar suporte [jurídico] a sexualidade exercida com coerção ou explorada". [2]

Tal redimensionamento do que seja a liberdade sexual está de tal modo a inspirar o legislador e o aplicador do direito que, nas legislações penais mais recentes, os crimes sexuais têm sido definidos dentro do título destinado aos crimes contra a pessoa, porquanto violam uma das esferas da liberdade individual (tal como o seqüestro viola a liberdade de locomoção, etc.).

Ainda à luz dessa concepção de sexualidade, entendemos que não há mais espaço para crimes como o rapto consensual, a sedução, dentre outros, sendo, ademais, evidente a necessidade de reestruturação de alguns dos tipos definidores dos denominados crimes contra os costumes. Isso porque em uma estrutura penal moderna, o bem jurídico a ser tutelado deve ser, tão-somente, a liberdade sexual, ou seja, deve-se, antes de tudo, reconhecer-se ao cidadão em geral o direito à sexualidade, o direito de querer a prática de ato sexual — que, ressalte-se, só deve ser alvo do direito penal quando se tratar de sexo com coerção ou exploração de um consentimento inválido — o que, em tipos como o de rapto consensual, é tolhido da "vítima".

Há que se falar, ainda, nas duas possibilidades de crimes sexuais a serem cometidos: contra pessoas absolutamente capazes e contra incapazes. A distinção é relevante na medida em que os atos sexuais praticados com o consentimento de maiores são absolutamente lícitos, não tendo o direito penal que se imiscuir (com pretensões moralistas ou sob o argumento da proteção dos bons costumes) nessa seara, sob pena de gritante violação ao princípio da ofensividade: não há qualquer lesão a bem jurídico que possa ser de interesse penal; em contrapartida, nos atos sexuais praticados com menores de 14 anos, com alienados mentais, ou contra quem não possa oferecer resistência, segundo o artigo 224 do Código Penal, presume-se a violência. A polêmica, então, se instala na verificação do consentimento da "vítima", analisando-se a validade jurídica desse ato, ou seja, se a vítima menor de 14 anos, por exemplo, tem o direito de consentir com a prática de atos sexuais.

Por fim, ainda na esteira de esclarecimentos iniciais, cumpre esclarecer o que se entende por uma "presunção legal" tal qual a estabelecida pelo analisado artigo 224 do Código Penal. Nesse contexto, encontramos em Alberto Silva Franco, que busca amparo em Bettiol e Ferraiolo, a seguinte definição: "[presunção legal] é ‘o procedimento lógico necessário para estabelecer uma relação entre dois fatos na base de uma regra de experiência codificada pelo legislador’ (Bettiol, Sulle prezuncione in generale. Scritti Giuridici, 1966, v. I/344). A presunção legal constitui, portanto, um abrandamento da prova: ‘baseando-se numa regra de experiência, a lei deduz, de um fato, um outro fato e antecipa o procedimento lógico necessário para estabelecer uma relação entre dois fatos, recorrendo a um parâmetro abstrato de valoração que alivia o juiz do encargo da verificação’ (Marzia Ferraiolo, ‘Prezuncione’, Enciclopedia Del Diritto, 1986, v. XXXV/308)". [3]

À luz dessas premissas, doravante analisar-se-á o epicentro do presente trabalho: a questão do consentimento do ofendido nos crimes sexuais, em especial no que toca àqueles em que se considera presumida a violência.


III – O consentimento do ofendido nos crimes sexuais.

Um primeiro ponto a ser enfocado, conforme sugerido acima, é o que se refere à diferenciação entre o consentimento do ofendido capaz e do incapaz nos crimes sexuais.

No que se refere ao consentimento do capaz, nenhuma dúvida sustentável pode ser levada adiante: não existe tipicidade na conduta daquele indivíduo maior que pratica (qualquer espécie de) ato sexual com o consentimento do parceiro também maior. Torna-se bastante óbvia a conclusão quando analisamos os elementos constitutivos dos tipos penais que integram os denominados crimes sexuais: todos eles, para que haja efetiva caracterização, requerem a conjunção carnal (ou ato libidinoso diverso da conjunção carnal), acrescidos à prática de violência, de grave ameaça ou fraude. Ora, em inexistindo qualquer desses elementos — in casu a violência, a grave ameaça ou a fraude, porquanto há o consentimento — não há que se falar em conduta típica e, via de conseqüência, em conduta criminosa. [4]

Situação diversa ocorre, por exemplo, no estupro, que é um crime complexo — pois exige, à sua consumação, o constrangimento por meio de violência ou grave ameaça e a cópula carnal —, em que o autor usa de violência na abordagem de uma mulher, deixando claro que seu objetivo é a prática sexual, vindo a vítima, depois, a "consentir" na realização de conjunção carnal. Ora, esse consentimento não é valido, pois, em verdade, não houve (e, se houve verdadeiramente, as instâncias penais formais jamais terão conhecimento dele, na medida em que a vítima não as procuraria para que "o problema fosse resolvido"). A mulher, nessa hipótese, permitiu a conjunção em virtude do temor provocado pela violência. Em casos semelhantes a esse, a doutrina e especialmente a jurisprudência são fartas em apontar a caracterização do estupro.

Hipótese absolutamente diferente da anterior se afigura aquela em que um casal, de comum acordo, simula agressões (sado-masoquismo) para alimentar as fantasias sexuais de cada um deles. Em tal hipótese, evidentemente, não há que se falar em crime, vez que, como mencionado no item III supra, não cabe a um Estado laico, pluralista e democrático imiscuir-se na vida das pessoas e pretender dizer qual conduta sexual elas devem ter.

Feita essa primeira abordagem, deveras óbvia, é importante focar o principal ponto do presente trabalho, buscando abordar as três principais teses dogmáticas e jurisprudenciais acerca do tema, para, enfim, mostrar uma nova possibilidade hermenêutico-concretizadora de análise da presunção de violência nos crimes sexuais.

A doutrina a esse respeito, basicamente, divide-se em duas grandes correntes: a que considera a presunção de violência absoluta e, pois, absolutamente inválido o consentimento da menor de 14 anos; e a que considera a presunção relativa, ou seja, em sendo provado que houve consentimento da vítima e que ela tinha plena consciência de seus atos sexuais, a presunção cairia, não restando, então, caracterizada a conduta criminosa.

A corrente mais tradicional e conservadora entende que a presunção é absoluta (juris et de jure) e apresenta como argumentos os seguintes: embora possam existir menores que adquiram consciência sexual mais cedo, a grande maioria, antes de completos os quatorze anos, não tem desenvolvimento psicológico suficiente para compreender as conseqüências de seus atos (é o que se denomina innocentia consilii); acrescentam, ainda, que a idade da vítima faria parte do próprio tipo penal, havendo uma verdadeira norma de extensão, tal qual na tentativa; acrescentam, por derradeiro, que as duas outras hipóteses previstas no art. 224, do Código Penal (alíneas b e c), trazem ressalvas no corpo do próprio texto — as tornando relativa. Assim, o legislador na alínea b do mencionado artigo diz que se presume a violência se a vítima é alienada mental e o agente conhecia essa circunstância. Segundo os adeptos dessa teoria, a parte final do dispositivo deixa claro que se trata de uma presunção relativa, na medida em que, caso se prove que o autor não conhecia a debilidade mental da vítima, a presunção se esvai. [5]

Essa corrente mais conservadora da presunção juris et de jure ganha ressonância em nossa mais alta Corte, que já decidiu reiteradamente que a presunção do art. 224, a, do Código Penal é absoluta e plenamente constitucional. É isso o que se depreende dos seguintes julgados:

"O consentimento da vítima menor de 14 anos, para a conjunção carnal, e sua experiência anterior não elidem a presunção de violência, caracterizadora do estupro, pois a norma em questão visa, exatamente, a proteção da menor considerando-a incapaz de consentir, não se afastando tal presunção quando a ofendida aparenta idade superior em virtude de seu precoce desenvolvimento físico, ou quando o agente desconhece a idade da vítima" (STF – HC – Rel. Ilmar Galvão – j. 17.12.1996 – RT 741/566).

Presunção de violência – Vítima menor de 14 anos de idade – "Sequer elide a presunção de violência o alegado fato do consentimento da vítima quanto à relação sexual. A violência ficta, prevista no art. 224, letra a, do Código Penal, é absoluta e não relativa, conforme iterativa jurisprudência do STF. Habeas Corpus indeferido" (STF – 2ª T. – HC 72.265-5 – Rel. Néri da Silveira – j. 12.12.1997 – DJU 19.11.1999, p. 54).

"O consentimento da menor de quatorze anos para a prática de relações sexuais e sua experiência anterior não afastam a presunção de violência para a caracterização do estupro" (STF – HC 74.580-6 – Rel. Ilmar Galvão – DJU 07.03.1997, p. 5.403).

A corrente que defende a relatividade da presunção (juris tantum), afirma que não há na lei qualquer menção à natureza da presunção e, como as demais alíneas trazem uma hipótese de presunção relativa, através de uma interpretação sistemática, chegar-se-ia à conclusão de que a presunção contra o menor de 14 anos também seria relativa. Nesse sentido, Nelson Hungria, que foi um dos idealizadores do Código Penal de 1940, nos informa que a expressão "não se admitindo prova em contrário", que estava contida no projeto original e indicava, nitidamente, uma presunção absoluta, foi retirada do texto final da lei, dando o legislador a entender que a natureza de tal circunstância seria juris tantum. [6]

Ademais, segundo tais doutrinadores, é mister que se reconheça que, nos dias atuais, existem adolescentes com menos de quatorze anos que já têm conhecimento suficiente dos atos sexuais e de suas conseqüências. Nesse sentido, admitem a relatividade da presunção, que deverá ceder diante de experiência sexual anterior da menor, quando ela tem autodeterminação sexual, ou quando ela, aparentando ter uma maior idade, consente na prática dos atos sexuais (erro de tipo). Em suma, continuaria havendo a presunção de violência prevista no art. 224, a, do Código Penal, mas, diante da inexistência de inocentia consilii por parte da ofendida, tal presunção cede para descaracterizar o crime.

Ressalte-se que esse é o entendimento praticamente unânime da doutrina e da jurisprudência, o que se percebe refletido nos julgados abaixo:

Violência presumida – Não caracterização – Presunção que não é de caráter absoluto – Vítima menor de 14 anos experiente das coisas do sexo – Recurso provido para absolver o réu – "Se a menor corrompida, tendo já mantido relações sexuais com outros rapazes, bem antes do réu, o que em si destrói a presunção de violência, cessando a configuração do crime de estupro em proveito da configuração de fornicatio simplex, há de ser inocentado o acusado" (TJSP – AC – Rel. Gonçalves Sobrinho – RJTJSP 72/330).

"No crime de estupro, a presunção de violência prevista no art. 224, a, do CP é relativa. Assim, pode ser afastada se a vítima, ainda que com 12 anos de idade, não era ingênua ou inexperiente e tinha capacidade de autodeterminação, com clara ciência da importância do ato que praticara" (STJ – REsp. – Rel. Edson Vidigal – j. 13.10.1998 – RT 762/580).

Existe, ainda, uma corrente doutrinária mais radical que defende a possibilidade de a Constituição Federal de 1988 não ter recepcionado qualquer tipo de presunção in mallam partem em matéria penal (não resta dúvida que presunções, tal como a da menoridade, que beneficiam o acusado são plenamente aceitas, encontrando, inclusive, guarida constitucional – art. 228 da Constituição Federal). Segundo tais doutrinadores, qualquer hipótese que presuma a violência (ou presuma o perigo, nos casos dos crimes de perigo abstrato) viola nitidamente dois dos princípios penais mais importantes, quais sejam, o da lesividade e o da responsabilidade penal subjetiva. Em outras palavras, na medida em que o agente não cumpriu aquilo que se encontra descrito no tipo penal, presumindo-se uma "parte" de sua conduta para que possa haver a adequação típica, há uma nítida hipótese de responsabilidade sem culpa, violando flagrantemente o princípio da responsabilidade penal subjetiva. Noutros termos e trazendo a questão para os crimes sexuais: caso o agente não tenha agido com o dolo específico de ter relações sexuais (ou qualquer outro ato libidinoso) forçadas com a vítima, não se pode, segundo tal grupo de doutrinadores, simplesmente presumir que houve violência e, via de conseqüência, que o agente praticou uma conduta típica. Além disso, na medida em que não houve a violência real ou ameaça caracterizadora do tipo, não haveria lesão ao bem jurídico tutelado, qual seja, a liberdade sexual. Esse entendimento é amplamente minoritário, encontrando-se representado pelo seguinte julgado do STJ, da lavra de Luiz Vicente Cernicchiaro:

"A responsabilidade penal, consoante princípios constitucionais, é subjetiva. Não se transige com a responsabilidade objetiva e, muito menos, a responsabilidade por fato de terceiro. Além do mais, conseqüência lógica, impõe-se a culpabilidade (sentido moderno do termo), ou seja, reprovabilidade ao agente da conduta delituosa. Em conseqüência, não há, pois, como sustentar-se, em Direito Penal, presunção de fato. Este é fenômeno ocorrente no plano da experiência. Existe ou não existe. Não se pode punir alguém por delito, ao fundamento de que se presume que o cometeu. Tal como o fato (porque fato), o crime existe ou não existe. Assim, evidente a inconstitucionalidade do art. 224 do Código Penal. Que se aumente a pena ocorrendo as hipóteses ali inseridas, tudo bem. Presumir violência é punir por crime não cometido. Em ‘Direito Penal na Constituição’, São Paulo, RT, 1990, p. 17, escrevi: ‘Se a infração penal é indissociável da conduta, se a conduta reflete a vontade, não há como pensar o crime sem o elemento subjetivo. O princípio da legalidade fornece a forma e o princípio da personalidade a substância da conduta delituosa. Pune-se alguém porque praticou a ação descrita na lei penal. Ação, vale repisar, no sentido material. Conseqüência incontornável: é inconstitucional qualquer lei penal que despreze a responsabilidade subjetiva. O Código Penal, com a redação vigente da Parte Especial (sic), adotou a linha moderna. Depois de reeditar que o crime é doloso ou culposo (art. 18), registra no art. 19: Pelo resultado que agrava especialmente a pena só responde o agente que houver causado ao menos culposamente’. Pune-se, insistindo, pela conduta. Não porque o legislador pressupõe fato! A sentença, na fundamentação, apoia-se no art. 224 do CP. Isso seria bastante para repeli-la. Escudou-se em argumento inconstitucional" (STJ – REsp. 46/424-2 – Rel. Luiz Vicente Cernicchiaro).


IV – Análise crítica das diferentes teorias apresentadas.

Interpretar é dar sentido. Não é a descoberta do unívoco ou correto significado, mas um processo de produção de sentido. Para tanto, convém deixar claro, desde o início, que nenhum intérprete pode pretender estar livre de pré-compreensões como quer o cânone da autonomia ou neutralidade hermenêutica do objeto. Até porque, como acentua Karl Larenz, o texto nada diz a quem já não entenda alguma coisa daquilo de que ele trate. [7]

À luz desse contexto, uma doutrina, por melhor que seja ela, não pode se pretender absoluta, estando, sempre, sujeita a críticas. Ademais, um intérprete do século XXI deve estar imbuído de pré-compreensões diferentes das do legislador/aplicador de 1940. Portanto, a tarefa aqui imposta não é a de descobrir o sentido que o legislador quis dar ao artigo 224, a, em 1940, mas os possíveis sentidos que tal dispositivo pode ter hoje.

Partindo disso, vislumbra-se que a tese defensora da natureza absoluta da presunção não pode prevalecer. Em pleno século XXI, no auge da era da informação, em que somos bombardeados com variadas notícias em um curto espaço de tempo, sem que haja qualquer filtro nesse tipo de "serviço" prestado, não se pode olvidar que existem inúmeros adolescentes com a malícia necessária a consentir na prática de uma relação sexual, muitas vezes com jovens que regulam idade com as "vítimas" (quinze, dezesseis anos, por exemplo).

O ordenamento jurídico deve guardar coerência entre suas normas, buscando, ao máximo, a solução de conflitos sociais e não a criação deles onde, até então, não existiam. Nesse sentido, não se pode pretender que um casal de namorados de quatorze anos, por exemplo, que decida manter relações sexuais esteja praticando ato infracional: ele, estupro com violência ficta e ela, caso haja qualquer ato diverso da conjunção carnal, atentado violento ao pudor. Essa interpretação absoluta pode, se levada a extremos, provocar situações esdrúxulas como a apresentada.

Acrescente-se, ainda, que depois do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) ficou ainda mais insustentável o posicionamento de que a presunção de violência deve ser ficta. [8] Isso porque, à luz do mencionado estatuto, somente o consentimento da criança (menor de doze anos) é absolutamente inválido, enquanto o consenso do adolescente (entre doze e dezoito anos de idade) é válido até prova em contrário. Ora, seria um dissenso admitir-se que, para uma determinada lei que tem como desiderato exclusivo a proteção do menor, o consentimento do adolescente entre doze e quatorze anos é válido e não o é para o Código Penal. Há aí um nítido confronto de normas, que não pode haver em um ordenamento jurídico, que deve prezar pela coerência de seus institutos. Tal conflito, então, deve ser resolvido aplicando-se o princípio da temporariedade, segundo o qual lei posterior revoga lei anterior naquilo em que forem divergentes (nesse sentido o art. 2º, § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil). Ademais, mesmo que se argumente que tal conflito é apenas aparente — na medida em que o Código Penal poderia ser entendido como uma lei especial em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente —, acredito que, conforme ressaltado supra, a interpretação consentânea com a Lei 8.069/90 é a que melhor se amolda aos dias atuais, devendo prevalecer (ou melhor, entre a presunção absoluta e sua relativização pela mencionada lei, deve prevalecer essa última, não obstante acreditar, como se verá adiante, que a melhor exegese não é nenhuma das duas).

Portanto, "aceitar (rousseaunianamente) sem nenhum questionamento a presunção de violência prevista no art. 224 do CP, particularmente no que concerne ao menor de catorze anos, significa ignorar a realidade do mundo que nos circunda. É privilegiar a forma sobre a substância. (...) Se isso [a consciência sexual precoce] representa uma evolução ou uma involução é algo que depende das idiossincrasias e posturas éticas de cada um. O juiz, no entanto, não está autorizado a julgar conflitos consoante suas idiossincrasias". [9]

No que se refere à tese que defende a relativização da presunção de violência, em que pese ser uma nítida evolução em relação à anterior, alguns pontos são absolutamente criticáveis. O principal deles, a meu ver, refere-se a que tal posicionamento continua reconhecendo a presunção (e, nesse sentido, a crítica também vale à teoria anterior), ou seja, continua atribuindo objetivamente uma responsabilidade criminal a um agente. Nessa esteira de raciocínio, o indivíduo que praticou relações sexuais com o consentimento da (o) menor será responsabilizado, salvo se ela (e), comprovadamente, tiver uma vida pregressa devassa, ou que ela tenha algum tipo de experiência sexual, etc. Acredito ser nítida a afronta aos princípios que regem o Direito Penal hodierno, especialmente os da inexistência de crime sem culpa e o da ofensividade (cf. item IV supra).

Um outro ponto que julgo passível de críticas é o que toca à nítida inversão do ônus da prova: o agente é que teria que provar sua inocência (provando, v.g., que a (o) menor já possuía uma vida promíscua), ao invés do Ministério Público ter que provar a culpa do acusado, demonstrando que ele teria se valido de um consentimento viciado da menor, ou que, de fato, teria havido o uso de violência real. Enfim, há um nítido choque entre a presunção de inocência (o acusado é considerado culpado até que prove o contrário!) e a presunção relativa de violência. Não resta dúvida que, diante da colisão entre uma norma de hierarquia constitucional (o princípio da presunção de inocência e seu corolário lógico do ônus probatório do órgão acusador encontram-se no art. 5º, LVII, da Constituição Federal) e uma norma prevista na legislação infraconstitucional (a presunção de violência está prevista no art. 224 do Código Penal), deve prevalecer a norma de natureza constitucional.

Por fim, uma crítica mais específica que se faz, como se as citadas não fossem mais do que suficiente ao desprestígio da tese que sustenta a presunção relativa, é a que se refere ao moralismo dos argumentos que pretendem criticar o absolutismo da presunção (que já é, em si, eminentemente moralista). Nesse sentido, é conclusiva a lição de Luiz Flávio Gomes: "No que concerne à presunção afinada com a idade da vítima, a tentativa de encontrar ‘abertura’ na lei (sem renegá-la) tem tangenciado o insustentável, mesmo porque se procura afastar uma presunção claramente moralista com concepções da mesma natureza. Vítima prostituta ou de comportamento reprovável não mereceria a tutela penal. Revela, ademais, desprezo total pelo bem jurídico tutelado (liberdade sexual), culminando por ‘criar’ um requisito típico (honestidade) de forma absolutamente inconstitucional". [10]

Por fim, cumpre analisar criticamente a última das teorias, que é a que defende a inconstitucionalidade de toda e qualquer presunção em Direito Penal. Estou convencido que, juridicamente, essa tese é a que melhor se coaduna com os princípios hodiernos do Direito, respeitando e dando ênfase a princípios como o da presunção de inocência, o da lesividade e o da culpabilidade em detrimento de uma presunção legal de violência. Nesse contexto, vislumbro, patentemente, a inconstitucionalidade do disposto no artigo 224 do Código Penal, porquanto, como já indicado, viola a presunção de inocência, na medida em que se presume, que se imagina, uma parte da conduta do agente — sem a qual ela não seria típica —, sendo ele, então, culpado — até que prove o contrário — de uma coisa que sequer ele fez, mas, ao revés, se presumiu. Tal artigo viola, ainda, o princípio da ofensividade porque o bem jurídico tutelado é a liberdade sexual e, na medida em que a vítima consente validamente com a prática do ato sexual, não há, então, lesão a qualquer bem jurídico. Por fim, afronta o princípio da culpabilidade, vez que, se o agente não cumpriu aquilo que se encontra descrito no tipo penal, presumindo-se uma "parte" de sua conduta para que possa haver a consunção, há uma nítida hipótese de responsabilidade sem culpa.

Entretanto, em que pese a nítida possibilidade de contradição interpretativa, acredito que uma tal exegese constitucional do dispositivo (art. 224 do Código Penal) pode levar a uma outra situação que vislumbro ser, também, inconstitucional: o menor que não pudesse consentir validamente ficaria desprotegido caso "consentisse" na prática de atos sexuais sem violência. Ora, não há dúvida que a Constituição de 1988 guardou um grande destaque à tutela do menor, haja vista o Capítulo VII da Constituição, que estabelece uma série de garantias às crianças e adolescentes. Nessa mesma linha de raciocínio, estabeleceu o Constituinte Originário no art. 227, § 4º, da Constituição: "A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente".

Chegamos, então, a um paradoxo: caso se declare a presunção de violência, da maneira como ela se encontra disposta na lei, inconstitucional — o que, como demonstrado acima, é concernente com as idéias inspiradoras do moderno Direito Penal — levar-se-ia a uma outra violação da Constituição, qual seja, não tutelar o menor de idade quando fosse abusado sexualmente. [11]

Para solucionar esse paradoxo e dar máxima efetividade à Constituição, propomos uma "nova" exegese dos dispositivos, como se verá adiante.


V – Uma "nova" proposta.

Antes de adentrarmos no mérito da solução do impasse a que se chegou no item anterior, cumpre perpassar pelos métodos, pelo caminho hermenêutico trilhado até que se chegue a uma conclusão solucionadora.

Com Heidegger, aprendemos que todo questionamento é uma procura, que retira do procurado a sua direção prévia. [12] Assim, o primeiro cuidado do hermeneuta contemporâneo consiste na procura da finalidade social da lei no seu todo, pois é o fim que permite penetrar na estrutura de suas significações particulares. Finalidade é sempre um valor, cuja atualização ou preservação o legislador tencionou garantir e, como valor, só pode ser objeto de um processo compreensivo que se realiza através do confronto das partes com o todo e vice-versa, iluminado-se e esclarecendo-se reciprocamente. Não é, em absoluto, diverso o que se dá na hipótese analisada: à luz dos princípios ordenadores do sistema jurídico, analisamos o que está disposto no art. 224 do Código Penal e na Constituição Federal, para, então, chegarmos a possíveis conclusões.

Feitas essas considerações, é possível pôr em realce alguns pontos fundamentais da interpretação jurídica, que nos orientarão sobremaneira na verificação da (in)constitucionalidade do dispositivo em exame e na busca de uma solução que atenda aos requisitos constitucionais: essa (a interpretação) é sempre resultado de uma junção entre sua natureza teleológica e sua consistência axiológica, com o intuito de estruturar operadores de concretização válidos para aplicação no caso concreto. O trabalho do intérprete, portanto, é de construção de natureza sistemático-axiológica, não só por captar o valor da norma (que, por sua vez, depende da pré-compreensão do intérprete sobre tal valor) extraindo-lhe um dos possíveis sentidos, mas também porque se deve ter presentes os preceitos de todo o ordenamento. Ademais, encontramos em Hesse — em um método denominado hermenêutico-concretizador — a lição de que se deve buscar a aproximação da Constituição com a realidade constitucional, através de uma concretização da norma a partir da situação histórica concreta. É um processo de interpretação-aplicação que visa ao caso concreto, porém, com primazia da norma. Em outros termos, não é possível imaginar uma interpretação útil que não seja para solucionar um caso específico, o que significa dizer que a norma só ganha sentido válido quando confrontada com as peculiaridades do caso que visa a resolver.

Ressalte-se, ainda, que a hermenêutica constitucional apresenta uma série de particularidades, o que não a torna, no entanto, uma disciplina autônoma, não abandonando os fundamentos de interpretação da lei em geral. A primeira delas e a mais importante para o objetivo desse trabalho, apontada por Lenio Streck, está contida no fato de que o texto constitucional deve se auto-sustentar, enquanto os demais textos normativos, de cunho infraconstitucional, devem ser interpretados em conformidade com aquele. [13]

Acrescente-se, ainda, que, embora a tarefa interpretativa não seja apenas um ato de conhecimento no qual a norma simplesmente se "revela" [14], mas, antes, é um ato de vontade, não sendo dado ao intérprete desconsiderar o marco normativo imposto, seja pela norma de nível superior, seja pelos princípios informadores do próprio sistema em que a norma se encontra, ao extrair a decisão para o caso concreto.

Por fim, deve-se ter em mente que, à luz de uma doutrina moderna, a linguagem não pode ser vista, nunca, como um elemento lateral no processo interpretativo. Ela é, sempre, parte integrante de qualquer processo de conhecimento, porque "ser que pode ser conhecido é linguagem" [15] e o Direito, enquanto linguagem (palavra), é interpretável, é plurívoco. Nessa linha de raciocínio, interpretar significa, tão-somente, atribuir um sentido dentre os possíveis. Assim, a idéia de que o texto legal/constitucional comporta uma única exegese, devendo buscar-se, a qualquer custo, a mens legis ou a mens legislatoris, afigura-se desarrazoada, inverídica e, quiçá, impossível.

Resumindo todas essas importantes lições acerca do modo "moderno" de interpretar as normas e a Constituição, chega-se às seguintes conclusões para a análise da presunção de violência nos crimes sexuais:

1.Todo processo interpretativo deve levar em conta o sistema jurídico como um todo, dando especial realce à Constituição enquanto fonte de todas as demais normas, buscando nela a validade para os textos infraconstitucionais;

2.A tarefa hermenêutica deve, sempre, levar em conta o caráter axiológico-teleológico das normas, em um processo em que o intérprete, necessariamente, utiliza suas pré-compreensões, alcançando — porquanto as normas são eminentemente plurívocas — um dentre os possíveis significados;

3.Só se obtém uma hermenêutica válida, útil, quando se pretende solucionar um caso específico, com todas as suas particularidades, com todas as nuances históricas bem delimitadas, ganhando, nesse contexto, destaque a figura do juiz, pois deve avaliar os possíveis sentidos da norma diante de cada hipótese real. Até porque, quando as leis são criadas, o são com o fito de solucionar, regulamentar, conflitos sociais. Assim, só se atinge tal objetivo quando da efetiva solução de tais "problemas".

Tendo como ponto de partida tais esclarecimentos e conclusões, acredito que a única forma de solucionar o paradoxo do sistema de presunções de violência vigente frente à Constituição, sem que se deixe desamparado o menor, é permitindo ao juiz analisar especificamente cada caso, verificando objetivamente se houve, ou não, consentimento válido da (o) menor, ou se houve abuso da incapacidade dela (e).

Perceba que, nesse processo, não deve o juiz ter em conta elementos moralistas, éticos ou religiosos (pois esses não são os princípios que decorrem de um Estado laico), analisando, tão-somente, se houve, ou não, consentimento válido: se houve, a conduta do agente é atípica, na medida em que não viola nenhum bem jurídico; se não houve, deve haver a aplicação da sanção penal, não por uma presunção, mas fazendo uma interpretação do artigo 224, a, à luz dos princípios norteadores do sistema penal e do artigo 227, § 4º da Constituição. Nessa análise, o juiz deve, com base nas provas trazidas aos autos pelo Ministério Público e, por laudos técnicos, aferir a maturidade e consciência da vítima para a prática de atos sexuais, para, enfim, prolatar a decisão.

Constata-se, então, uma inconstitucionalidade parcial sem redução de texto: o artigo 224 do Código Penal é inconstitucional enquanto presume a violência, ou seja, ele não presta à tipificação ampliada dos crimes sexuais; contudo, serve para garantir a tutela do menor, evitando-se a inconstitucionalidade de deixar o menor desamparado frente a uma conduta abusiva sexualmente.

Assim, caberia ao Ministério Público ou à parte, em prevalecendo tal tese, comprovar que houve a violência real ou mesmo a nulidade do consentimento (por ser a vítima incapaz de compreender as conseqüências de suas condutas), acabando-se, portanto, com a violação ao princípio da presunção de inocência e seu corolário lógico, qual seja, o ônus probatório daquele que acusa.

Por fim, não foi de todo diferente, apesar de percorridos caminhos completamente diversos, a conclusão a que Luiz Flávio Gomes chegou em seu livro "Presunção de Violência nos Crimes Sexuais". Acredito, entretanto, que não é preciso a "ginástica exegética" proposta por aquele autor: segundo ele, dever-se-ia reconhecer a inconstitucionalidade do caput do artigo 224 do Código Penal, retirando-o, assim, da esfera jurídica, para se valer das alíneas como meio de tutela contra o abuso sexual. A conclusão é a mesma, mas na medida em que se retira o caput do mencionado dispositivo, perde-se, a meu ver, completamente a razão de ser das alíneas. Ademais, uma análise do próprio texto constitucional (art. 227, § 4º) nos indica a tutela sexual do menor, não sendo necessária a exclusão de qualquer dispositivo para a proteção do menor: basta que se faça, como pretendido neste trabalho, uma análise do dispositivo vigente à luz dos dispositivos constitucionais, constatando a sua invalidade para presumir violência, mas a regulamentação da necessária tutela do menor.


VI – Conclusão.

Conforme mencionado no intróito do presente trabalho, o âmbito de discussão da presunção de violência nos crimes sexuais é bastante amplo, crítico e desafiador. Nesse contexto, nos deparamos com uma legislação e interpretações obsoletas, que não mais atendem aos anseios de uma sociedade pluralista e laica, como a brasileira. Em razão disso, o espírito crítico foi o norte que se procurou seguir, para que se pudesse chegar a uma solução minimamente satisfatória.

Nessa linha de raciocínio, a primeira conclusão a que se chega é a da premente necessidade de reforma na legislação dos crimes sexuais no Brasil: quer para incluí-la entre os crimes contra a liberdade individual, quer para descriminalizar algumas condutas (como a do rapto consensual, v. g.), quer para solucionar, de uma vez por todas o problema da presunção de violência contra menores e alienados mentais.

Sobre essa última perspectiva, Luiz Vicente Cernicchiaro [16] acredita que deveríamos copiar o direito alemão e estabelecer um tipo próprio para o crime sexual cometido contra menores de quatorze anos, eliminando, assim, apenas o erro da presunção de violência, mas mantendo, a meu ver, o equívoco de não se permitir que, em algumas hipóteses, nas quais a (o) adolescente se encontre madura para consentir validamente na prática de atos sexuais, o juiz possa fazer um juízo crítico acerca do consentimento da (o) menor (como no exemplo dado supra, em que um casal de namorados menores pratica atos sexuais conscientemente). Deve-se, então, inserir-se um parágrafo único (ou mesmo um novo artigo substitutivo ao 224) nos artigos 213 e 214 do Código Penal, com a seguinte redação: "Equipara-se à violência sexual, o consentimento inválido da vítima". Com essa redação, acabar-se-ia, de vez, com as presunções de violência e permitir-se-ia que o juiz, de forma absolutamente justificada e motivada, analisasse as particularidades de cada caso, podendo, sem a utilização de critério morais ou religiosos, conformar cada hipótese aos princípios constitucionais e penais modernos. Tutela-se, portanto, tanto os menores incapazes de consentir, quanto os alienados mentais e os que não pudessem oferecer resistência.

Não se fale, nessa hipótese levantada, que se estaria conferindo poderes em demasia ao juiz, porquanto ele está adstrito juridicamente às partes (em especial ao Ministério Público), que, diante de uma irregularidade, podem recorrer, bem como aos princípios constitucionais. Assim, ganham relevância os princípios norteadores da Constituição, pois têm a função de (de)limitar tanto a produção legislativa quanto a aplicação das normas. O que equivale a dizer: a fim mesmo de evitar um subjetivismo arbitrário por parte daquele que possui o poder de aplicação da norma, "os princípios, numa relação dialética com a realidade, num debate de compromisso" [17], devem atuar como nortes interpretativos-concretizadores, em busca da solução mais adequada.

Contudo, enquanto a reforma legislativa não é uma realidade, acredito que a solução apresentada acima é a que melhor se coaduna com uma interpretação crítica, respondendo aos anseios sociais, bem como aos princípios constitucionais e penais; promovendo justiça sem, contudo, esquecer-se da tutela de bens jurídicos essenciais à boa convivência em sociedade.


VII – Bibliografia

BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. São Paulo: Saraiva, 2002.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996.

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FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 7ª edição, 2001.

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MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Volume 2. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991.

—. Código Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1999.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.


Notas

01. FRANCO, Alberto Silva. STOCO, Rui. Coordenadores. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. Vol. II. São Paulo: RT. 7ª edição, 2001, p. 3059.

02. Ob. cit. p. cit.

03. FRANCO, Alberto Silva Franco. Crimes Hediondos. Notas sobre a Lei 8072/90. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 150/151.

04. Nesse momento, cabe um parêntesis para reforçar o anacronismo do vigente Código Penal no que se refere à essa espécie de crimes. São tidas como típicas as condutas do rapto consensual, da sedução, da posse sexual mediante fraude e do atentado violento ao pudor mediante fraude, ainda que a vítima, explicitamente concorde com a relação sexual. Tais crimes, a meu ver, são absolutamente obsoletos e não resistem a uma análise crítica, à luz da sociedade atual, dos modernos princípios do Direito Penal (especialmente o da lesividade) e da Constituição.

05. Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal. Vol. II. São Paulo: Atlas, 6ª edição, 1991, p. 453/454.

06. Cf. MRABETE. Ob. cit. p. cit

Cf. LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª edição, 1997, p. 289.

07. Cf. GOMES, Luiz Flávio. Presunção de violência nos crimes sexuais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 38 e ss.

08. Ob. cit. p 44.

09. Ob. cit. p. 75

10. Nesse momento, cabe uma distinção entre abuso sexual e violência sexual: na primeira não existe violência real, mas consentimento inválido da vítima para a prática de atos sexuais, enquanto na segunda, como o próprio nome indica, há a prática de violência real.

11. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. COELHO, Inocêncio Mártires. MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 18 e 19.

12. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica e(m) crise. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2ª edição, 2000.

13. Segundo Lenio, a doutrina brasileira, de uma forma geral, ainda atua sob uma perspectiva segundo a qual o intérprete deve buscar, através de um processo lógico, um sentido (único e verdadeiro) que paira subjacente à norma. A busca de "essências" e da "correta" exegese, conduz ao que ele denomina "fetichização do discurso jurídico": sempre remetendo à realidade, a dogmática tradicional oculta as condições de produção do sentido do discurso. A lei é vista como uma "lei-em-si", abstraída das condições sociais que a produziram, "como se a sua condição de lei fosse uma propriedade ‘natural’".

14. GADAMER, Hans-George. Apud STRECK, Lenio Luiz. Ob. cit. p. 60.

15. CERNICCHIARO, Luiz Vicente. Apud GOMES, Luiz Flávio. Ob cit.

16. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 112.


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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NACARATH, Gustavo Teixeira. Consentimento da vítima nos crimes sexuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 9, n. 202, 24 jan. 2004. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/4718. Acesso em: 26 abr. 2024.